Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7/19.4T9MGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: INDEFERIMENTO
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: I – O princípio do juiz natural só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, como seja o da imparcialidade e isenção de juiz, o ponham em causa.

II – As meras relações de cordialidade entre o juiz e um sujeito ou interveniente processual, ainda que alongadas no tempo, não se revelam objectivamente graves, idóneas e adequadas a perturbar a decisão a proferir pelo tribunal num quadro de imparcialidade ou a gerar desconfiança sobre essa neutralidade.

III – Assim, não justifica o pedido de escusa a circunstância de o juiz considerar a assistente pessoa sua amiga, quando essa amizade surge circunstanciada no espaço (conhecimento surgido num ginásio) e limitada no tempo (cerca de três anos).

Decisão Texto Integral:





          1.  Relatório

          O Ex Juiz de Instrução Criminal de Viseu (juiz 2) veio requerer que seja deferido pedido de escusa, sendo dispensado de intervir no presente processo.

          Fundamentou aquele pedido na circunstância de ter constatado - já após ter declarada aberta instrução nestes autos -  que conhecia a assistente M., que considera pessoa amiga, frequentado ambos o mesmo ginásio há cerca de 3 anos, tendo inclusive chegado a ir juntos a um evento promovido pelo mesmo ginásio, cumprimentando e falando com a assistente sempre que com a mesma se encontra.

          Mais acrescentou que desconhece por completo toda a situação relatada nos autos, não tendo mantido qualquer conversa com a assistente, ou seja, com quem for, sobre esse assunto, mas ainda assim considerando que a sua intervenção pode ser considerada suspeita e gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

          II - Nos termos do art. 44º do C. Processo Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início do debate instrutório, sendo assim o pedido de escusa tempestivo, uma vez que foi deduzido pelo Magistrado Judicial a quem competiria dirigir a Instrução antes daquele momento.

          O art. 45º, nº 1, a), do C. Processo Penal, estabelece que o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior; estando em causa o pedido de escusa de um Sr. Juiz de Direito (Juiz de Instrução Criminal), mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante a Relação competente.

          Nada obsta por isso ao conhecimento do mérito do incidente.


*

              III - Apreciando e decidindo:

              a) A escusa é o instrumento jurídico, em forma de pedido, com a qual o juiz denuncia que se encontra em qualquer condição de incompatibilidade e pede para ser exonerado, em relação àquele específico caso, do exercício das suas funções. Na escusa está em causa a concretização d do dever de imparcialidade que impende sobre o juiz, fora dos casos em que taxativamente se encontra impedido – cf. Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, Tomo I, p. 487, ed Almedina.

            b) O regime da escusa encontra-se regulado conjuntamente com as recusas no art. 43º do C.P.P. o qual estabelece:

            “1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.

            2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

            4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.

           

             c) Do regime legal ora exposto, resulta que tanto a recusa como a escusa são dois instrumentos jurídicos que visam impedir um juiz tenha intervenção num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, tendo como consequências a alteração de regras essenciais do processo, como seja o princípio do juiz natural.

            

            d) O princípio do juiz natural traduz-se na necessidade de intervenção na causa do juiz determinado de acordo com regras da competência legal anteriormente estabelecidas, estabelecendo-se como uma garantia dos direitos dos arguidos, e tem consagração constitucional no 32.°, n.º 9, da CRP que preceitua que "nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior". Tal implica que este princípio só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, o ponham em causa, como o princípio da imparcialidade e isenção - cf. n.º 1 do art. 32.º, e 203º da CRP.

         e) Daqui resulta que a aplicação do mecanismo previsto no citado art 43º do C.P.P., deverá ser rigorosa, no sentido de apenas poder ser afastada a aplicação do princípio do juiz natural em situações  em que seja objectivamente de recear  uma falta de imparcialidade por falta do juiz, de modo a preservar a confiança dos cidadãos na imparcialidade e isenção do julgador; apenas em situações limite deverá ser afastado o juiz do processo que lhe foi atribuído por regras de competência previamente estabelecidas;  quando efectivamente a intervenção de um juiz no processo correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (cf. o n.º 1 do citado art 43º do CPP).

          f) No caso em apreciação, note-se que o Sr. Juiz declarou aberta a instrução sem sequer se ter apercebido que conhecia a assistente, o que desde logo aponta para que a relação que estabeleceu com a mesma não fosse de especial intimidade ou proximidade; se o fosse, o mais natural era que se tivesse imediatamente apercebido - através da leitura do nome completo da assistente – que a conhecia.

          Depois, sendo certo que o Sr. Juiz considera a assistente uma pessoa amiga, constata-se que essa amizade surge circunstanciada no espaço (conheceu-a do ginásio) e limitada no tempo (há cerca de 3 anos), mais uma vez se afastando uma relação de proximidade ou intimidade que pudesse gerar desconfiança tanto nos restantes intervenientes processuais como nos cidadãos em geral. O momento de maior intimidade, segundo relatado pelo Sr. Juiz que pediu escusa, consubstanciou-se na comparência de um evento do ginásio, ou seja, ainda dentro do limitado circunstancialismo que permitiu que se conhecessem. E nesse evento, pela sua natureza, terão certamente comparecido também outros frequentadores do ginásio. De resto, para além desse evento, o Sr. Juiz limita-se a manter relações cordiais com a assistente, cumprimentando-a e falando com a mesma, sempre que com a mesma se encontra.

          Por último, o Sr. Juiz requerente da escusa, apesar de considerar que a sua intervenção pode ser considerada suspeita e gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, declarou desconhecer por completo toda a situação relatada nos autos, afirmando que não manteve qualquer conversa com a assistente, ou mesmo com terceiros, sobre o assunto objecto dos autos.

          g) Deste quadro não resulta que a intervenção do Juiz no processo  possa ser considerada suspeita; Avaliando objectivamente o relacionamento mantido entre ambos,  constata-se que o mesmo está longe de se poder considerar de mediana proximidade ou intimidade, sendo com toda a probabilidade semelhante ao que o Sr. Juiz mantém com outros frequentadores do ginásio, que poderão igualmente ter frequentado o referido evento, e que com toda a probabilidade o Sr. Juiz cumprimentará cordialmente, sempre que os encontrar por algum acaso ou circunstância. O mesmo é dizer que homem médio colocado na posição do destinatário da decisão, razoavelmente não ponderará que a relação mantida entre o Sr. Juiz e a assistente seja de molde a suscitar alguma dúvida ou apreensão quanto à existência de algum preconceito do juiz sobre a matéria da causa, que o impeça de decidir com a esperada isenção.

             h) O S.T.J. já decidiu que as “relações de grande cordialidade”, mesmo que alongadas no tempo, não se perfilam, objectiva e realmente, como graves, idóneas e adequadas a perturbar um qualquer juiz quanto à decisão a tomar num quadro de imparcialidade, ou a gerar desconfiança sobre essa imparcialidade. Nessa decisão  (Ac. do S.T.J. de 24/9/2003, Proc. nº 2156/03-3, disponível em www.dgsi.pt) , considerou-se que não se justificava o pedido de escusa a circunstância de o assistente ter sido condiscípulo da esposa do magistrado julgador na Faculdade de Medicina, e de ser colega daquela na carreira de clínico geral, tendo-se por tal motivo gerado relações de grande cordialidade que perduram há largos anos.

             Comparativamente com este caso, a situação em apreciação reveste muito menor potencialidade para gerar desconfiança, quer quanto ao âmbito do conhecimento entre juiz e assistente, quer quanto à sua duração. 

           Citando ainda ao mesmo aresto, que nos parece especialmente adequado ao caso em apreciação, (…) “Relações de cordialidade que se invocam, mas que não envolvem nada mais do que isso mesmo - uma cordialidade - porque não transmudadas num qualquer outro relacionamento ou ligação de contornos familiares, de parentesco, de afinidade ou de compadrio”.

      Em suma, face aos contornos que assume, o tipo de relacionamento mantido entre o Sr. Juiz e a assistente não constitui motivo sério e grave, adequado a abalar a convicção de imparcialidade do juiz.

     Mais, até se poderá dizer que a imparcialidade e isenção do Sr. Juiz até sai reforçada com o próprio pedido de escusa por si espontaneamente formulado.

IV - Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em indeferir o pedido de escusa do Sr. Juiz titular do processo n.º 7/19.4T9MGL-A.C1

Sem tributação.

Coimbra, 28 de Outubro de 2020

         João Novais - relator


                         

         Elisa Sales - adjunta

 

                      Coimbra, 9 de Setembro de 2020


João Novais

                         

Elisa Sales