Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/09.1GATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
DATA
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 358º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Não constitui “alteração não substancial dos factos” toda e qualquer alteração ou desvio da sentença em relação ao texto da acusação ou pronúncia.
A modificação dos factos constantes destas peças processuais só integra o referido conceito normativo quando tiver relevo para a decisão da causa e implique uma limitação dos direitos de defesa do arguido, vista em função do condicionamento da estratégia e utilidade da defesa.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. Nos autos de processo comum (tribunal singular) n.º 47/09.1GATND, a correr termos no Tribunal Judicial de Tondela, no decurso do julgamento (cfr. acta respectiva de fls. 110/113), o Sr. Juiz teve como verificada, em função de parte da prova oralmente produzida, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública e, a final, determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para «os fins tidos por convenientes, abstendo-se o tribunal de tomar conhecimento dos factos» imputados ao arguido AA....
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2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, tendo formulado as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - Por despacho de fls. 112-113, o Tribunal a quo considerou como sendo uma alteração substancial dos factos descritos na acusação a diferença da data (mês) em que ocorreram os factos.
2.ª - Os factos ocorreram em …, tendo sido referido na acusação que ocorreram em 31 de Janeiro de 2009.
3.ª - O Ministério Público entende, salvo o devido respeito por opinião contrária, tratar-se-á de um erro de escrita, de processamento de texto, cuja verificação foi requerida em sede de audiência de julgamento.
4.ª - Porquanto, como facilmente se alcança da leitura atenta do auto de denúncia (violência doméstica), os factos ocorreram no dia …, pelas 15H30 - cfr. 4; do teor da perícia de avaliação do dano corporal em Direito Penal, faz-se referência à data de 31-05-2009, pelas 15H30 - cfr. fls. 9; dos elementos clínicos de fls. 14, constata-se que foi no dia …, pelas 16H55, que a vítima foi assistida no Hospital …; as declarações das testemunhas, prestadas em sede de inquérito a fls. 21 a 23, reportam-se aos factos participados, ocorridos no dia ….; o arguido, quando interrogado em sede de inquérito, prestou declarações, reportando-se aos factos constantes do auto de denúncia, factos referentes ao dia …, quando se encontrava de baixa médica, a descansar em casa, deitado na cama, a ver televisão e depois, no café, do rés-do-chão da residência.
5.ª - Nas declarações prestadas pelo arguido e pela vítima em audiência de julgamento, ambos se referem ao dia/ano/hora constantes da acusação, bem como ao espaço e circunstâncias em que os factos ocorreram, com sendo os constantes da acusação.
6.ª - No entanto, referiram que tais factos ocorreram no mês de Maio e não no mês de Janeiro.
7.ª - O arguido apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos.
8.ª - O arguido não alegou factos que contrariem a data/hora/ano, espaço e circunstâncias em que ocorreram os factos e que constam da acusação.
9.ª - Aliás, tendo o arguido, em sede de inquérito, esbatido os factos de que vinha indiciado, como tendo ocorrido no dia …, pelas 15H30, não contestou os factos constantes da acusação, tendo em audiência de julgamento confirmado o dia/hora/ano e local/circunstâncias onde os mesmos ocorreram, em nada afectando a estratégia da sua defesa.
10.ª - Ou seja, discordando do douto despacho proferido, o crime é o mesmo, e o objecto do processo continua a ser o mesmo, pelo que, tal alteração não importa alteração substancial, porque não mexem com a identidade do objecto do processo, uma vez que fazem parte do mesmo “pedaço de vida” dos factos da acusação, formando com eles um conjunto em conexão natural.
11.ª - Entende-se que “A alteração da data, no caso (mês), diversa da que constava da acusação, não tendo por efeito a imputação de crime diverso nem agravação dos limites máximos da sanção aplicável, não constitui alteração substancial ou não substancial dos factos” (Acórdão da Relação do Porto de 06-07-2000, proferido no proc. 0040415), ou que “A simples alteração da data da ocorrência dos factos, não constitui para o arguido o surgimento de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos aplicáveis da pena, tratando-se apenas de uma alteração meramente circunstancial do objecto do processo.
12.ª - No entanto, caso não se entenda que em causa estará um lapso de escrita, de processamento de texto, certo é que essa alteração do mês se se considerasse com relevância para a defesa e decisão da causa, deveria ter sido comunicada ao arguido, nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo-lhe concedido prazo para a defesa se o desejasse.
13.ª - Pelo que, consideramos que o despacho proferido pelo tribunal a quo violou a interpretação a dar aos preceitos legais contidos nos artigos 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, artigo 1.º, alínea f), 358.º, n.ºs 1 e 3 e 359.º, do Código de Processo Penal.
14.ª - Termos em que, de harmonia com o exposto, requer-se que seja declarado nulo o despacho recorrido, ordenando a reabertura da audiência de julgamento, a fim de que seja dado cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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3. O arguido não respondeu ao recurso.
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4. Subidos os autos a esta Relação, a Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta subscreveu o parecer de fls. 136/7, cujo conteúdo ora se reproduz:
«(…).
2. Louvando-nos na argumentação expendida pelo Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância, na motivação do recurso interposto, que integralmente sufragamos, e em abono do que em tal peça processual vem e bem sustentado, apenas acrescentaremos o seguinte:
Tem sido considerado pela jurisprudência que não existe uma alteração dos factos integradora do art. 358.º do C.P.P., ou do art. 359.º do mesmo diploma legal, quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes - neste sentido ver Ac. do STJ de 1991/04/03, 1992/11/11 e 1995/10/16, in BMJ 406/287, 421/309, 421/309, e www.dgsi.pt.
Também tal não ocorrerá quando se tratar de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a acção do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia - cfr. Ac. TC n.º 387/2005, de 2005/Jul./13, in DR, II, 2005/Out./19.
Também não se poderá falar de alteração dos factos com relevo para a decisão, quando a decisão condenatória se sustenta «exclusivamente nos factos constantes da acusação e da contestação e o recorrente não foi surpreendido com os factos, dadas as considerações que precedem» (cfr. o Ac. do STJ de 23 Jun. 2005, Processo 1301/05, Relator: António Rodrigues da Costa, in Colectânea de Jurisprudência, n.º 184, Tomo II/2005).
Seguindo a doutrina e jurisprudência acima referidas, é nosso entendimento que a data em que os factos ocorreram, sendo apenas uma indicação temporal em que os factos se passaram, constitui um aspecto não essencial e irrelevante para a decisão da causa, pelo que não constitiu uma alteração substancial dos factos, como foi entendido.
3. Nessa medida, convocando os argumentos acima expendidos, somos de parecer que ao recurso interposto deve ser concedido provimento».
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4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.

5. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:

1. Delimitação do objecto do recurso e poderes cognitivos do Tribunal ad quem:

Conforme Jurisprudência uniforme nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

No caso sub judice, a única questão submetida à consideração deste tribunal consiste em saber se se verifica, perante a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública que determine, nos termos do artigo 359.º do Código de Processo Penal, a devolução dos autos ao Ministério Público para que este proceda criminalmente, se assim o entender, pelos novos factos.


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2. Elementos relevantes à decisão:

A) No dia 4 de Junho de 2009, CC... apresentou, em Posto da GNR, denúncia contra AA..., tendo por base os seguintes factos:

«(…).

No dia … , pelas 15H30, o denunciado encontrava-se no quarto a dormir com a televisão ligada. A vítima ao ver que este dormia, entrou no quarto e desligou a televisão (…).

Quando a denunciante desligou o televisor, o denunciado acordou e de imediato começou a injuriá-la (…).

Passados alguns momentos, o denunciado começou a exaltar-se cada vez mais e passou à agressão física, tendo desferido vários murros e pontapés por todo o corpo da denunciante e pegado na mesa e cadeira e virado tais objectos por cima da mesma (…)» - fls. 3/5 dos autos;

B) No dia …, pelas 16H57, a denunciante foi socorrida no Hospital de Tondela (cfr. fls. 14);

C) Em …, foi elaborado, pelo Gabinete Médico-Legal de Viseu do Instituto Nacional de Medicina Legal, relatório relativo a perícia de avaliação do dano corporal em direito penal. Dele consta que a examinada CC... apresentava, como lesões, equimose violácea na parte esquerda do tórax, com 9x2 cm; equimose violácea circular, com 4 cm de diâmetro, na base do polegar esquerdo; equimose violácea, com 3x6 cm, no membro inferior esquerdo, as quais determinariam, em condições normais, 8 dias para a cura com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional (2 dias) - fls. 8/9;

D) Findo o inquérito, em acusação pública de 29-01-1010, foi imputada ao arguido a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, tendo por suporte, inter alia, os seguintes dados de facto:

«O arguido AA… casou com CC... em …, tendo este vínculo matrimonial sido dissolvido por sentença transitada em julgado em 14 de Janeiro de 2008.

O casal fixou residência conjugal no lugar de …, comarca de Tondela, local onde ambos, não obstante o supra citado divórcio, continuam a residir e onde, no rés-do-chão daquela, funciona um café explorado por ambos.

Sucede que, no dia 31 de Janeiro de 2009, pelas 15h30, o arguido dormia no seu quarto com a televisão ligada, quando a ofendida entrou naquele e desligou a mesma.

Tal facto acordou o arguido que de imediato a começou a apelidar, por diversas vezes, de “vaca”.

Acresce que, momentos depois, já no rés-do-chão da referida casa, mais concretamente no interior do referido café, o arguido abordou a ofendida CC…, tendo-lhe dirigido as seguintes expressões: “És uma puta”, és uma vaca, vais dar a cona para Tondela e vais dar a cona para Santa Comba Dão”.

De seguida, desferiu vários murros e pontapés no corpo da ofendida, tendo, ainda, pegado numa mesa e numa cadeira e virado as mesmas para cima daquela.

(…)» - fls. 44/48;

E) Designada data para julgamento, na contestação que ofereceu, o arguido limitou-se a oferecer o merecimento dos autos (fls. 77);

F) Na sessão de julgamento do dia 17-05-2011, após a prestação de declarações pelo arguido e pela denunciante/demandante civil CC..., na sequência de requerimento do Ministério Público no sentido de se proceder à correcção do lapso de escrita relativo à data constante da acusação como sendo a da ocorrência da agressão, devendo ser considerado o dia 31 de Maio de 2009 e não o dia 31 de Janeiro do mesmo ano, o Sr. Juiz proferiu o despacho infra transcrito:

«Compulsados os autos, nomeadamente os elementos documentais referidos na acusação, fls. 13 e 14 e fls. 7 a 9, bem como o depoimento da ofendida ora ouvida, é manifesto que os factos não ocorreram no dia 31 de Janeiro de 2009, sendo que apenas poderão ter ocorrido no dia 31 de Maio de 2009.

A alteração de factos requerida pelo Ministério Público, apesar de ser um manifesto erro da acusação, não é um lapso de escrita que se revele pela leitura da acusação.

Assim, consubstancia efectivamente uma alteração de factos a qual é substancial, pois há uma alteração significativa de um dos elementos da acusação, o tempo e com uma diferença de quatro meses.

Assim, não podemos deixar de ter em conta que o crime em causa é diverso por ser uma porção da realidade externa distinta da constante da acusação.

Assim, e apesar de o arguido ter referido factos laterais que permitem ao Tribunal concluir pela identificação da situação da parte deste, ter-se-á de lançar mão do disposto no art. 359.º, do C. P. Penal, o que se faz de imediato».

Dada novamente a palavra ao ilustre mandatário do arguido, «pelo mesmo foi dito não prescindir do prazo legal. Manifesta, ainda, neste momento, o propósito de se opor à continuação do julgamento pelos factos novos que resultam da alteração».

Foi então proferido novo despacho, que se transcreve:

«Porque os factos em causa são apenas uma parte do crime, o qual tem carácter reiterado de violência doméstica, a continuação do julgamento pelos factos que não seriam alvo de alteração irá determinar a impossibilidade de o arguido ser julgado pelos factos cuja alteração é agora única.

Assim, e evitando que seja invocada a proibição do “ne bis in idem” determina-se a remessa dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, abstendo-se assim o Tribunal de tomar conhecimento dos factos».

G) As declarações prestadas pelo arguido no decurso do julgamento são do seguinte teor:

A denunciante foi lá acima e começou a discutir comigo; não foi pela televisão, foi por a minha irmã estar insatisfeita. E eu então vim cá abaixo, ela apagou a televisão, acompanhou-me e mandou minha irmã para a rua. Então eu dei-lhe um empurrão, tendo a mesma batido no apoio do telefone. Não lhe bati. A denunciante foi ao Hospital, levada por uma médica sua amiga.

H) Por sua vez, a denunciante/demandante civil CC...deu a seguinte versão dos acontecimentos:

«A agressão de que fui vítima, perpetrada pelo arguido, não foi em Janeiro, mas sim em fins do mês de Maio, há dois anos.

Após o almoço, o arguido deitou-se na cama. Desliguei a televisão. O arguido dirigiu-me vários impropérios, entre eles, “vaca”, e, em seguida, dirigiu-se ao rés-do-chão, local onde funciona o estabelecimento de “Café”. Fui atrás dele. Na sequência de novas injúrias, agrediu-me com pontapés e murros, cadeiras e mesas».


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3. Do mérito do recurso:

Preliminarmente, não podemos deixar sem reparo a inadequação da fase processual escolhida pelo Julgador do tribunal de 1.ª instância para a prolação dos despachos recorridos.

Sendo o julgamento da matéria de facto da competência do tribunal colectivo ou do júri, qualquer posição sobre se ocorrem factos novos susceptíveis de serem tidos como uma alteração substancial ou não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia apenas é possível de ser tomada se se efectuar deliberação (cfr. artigo 365.º e ss. do CPP) que constate a existência dos indícios desses factos e decida ordenar a sua investigação.

A existência de uma tal deliberação surge como necessidade imposta pela natureza colegial do tribunal que tem de formar a decisão: esta em vez de corresponder à vontade funcional de uma só pessoa que não precisa para a formar de conferenciar com outrem, como acontece no juiz singular, é a resultante da vontade dos vários juízes.

Diversamente, sendo o julgamento da matéria de facto da competência do tribunal do tribunal singular, a referida posição, no rigor dos princípios, só deve ocorrer após a produção de toda a prova que for tida por relevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

No caso em apreciação, a prova produzida em julgamento cingiu-se tão só às declarações do arguido e da demandante civil, tendo sido omitidos os depoimentos das testemunhas indicadas pelo Ministério Público (FF… e HH...) e pelo arguido (AA… e BB...).

Todavia, os elementos probatórios já produzidos em audiência de julgamento, acima indicados, permitem, ainda assim, sindicar a (in)correcção jurídica do despacho recorrido, o que se fará de seguida.

A questão suscitada pelo recorrente conduz directamente ao disposto nos artigos 358.º e 359.º, ambos do Código de Processo Penal (serão deste diploma todas as normas que se vierem a citar sem indicação de fonte legal).

Dispõe o primeiro dos dois artigos:

«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - (…)».

E o outro normativo:

«1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário».

As citadas disposições processuais articulam-se directamente com os poderes de cognição do tribunal de julgamento que, vinculado ao objecto traçado pela acusação (ou pela pronúncia), se vê confrontado na audiência com o conhecimento de outros factos relevantes.

Na realidade, no nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal.

Segundo Figueiredo Dias, nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade, dever considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo).

Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantidas de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.

Ao vedar, em regra, os poderes de cognição do tribunal a outros factos, que não os contidos na acusação, garante-se ao arguido que só deles se terá de defender e que apenas por estes poderá ser julgado. A finalidade visada é a protecção do arguido, assegurando-lhe o direito de não se não deparar com surpresas relativas à imputação de factos com que não contava e não podia contar. A defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto o conjunto de factos imputados na acusação.

Pretendendo conciliar a celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos legais do princípio do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido, o processo penal admite, não obstante, a condenação por factos novos, ou seja, que traduzam alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos definidos nos artigos 358.º e 359.º do CPP.

Em contraposição à “alteração substancial dos factos”, ou seja, cfr. alínea f) do artigo 1.º do CPP; «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», existe alteração simples ou não substancial sempre que se não verifique uma alteração do objecto do processo. Para além dos factos constantes da acusação (os quais constituem o objecto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjectivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.. Estes factos novos fazem parte do chamado “objecto do processo em sentido amplo”. Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objecto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º, n.º 1, do CPP .

É dentro desta axiologia que há que situar os artigos 358.º e 359.º. Tais preceitos não pretendem mais do que expressar os limites da alteração temática do processo penal constitucionalmente admissíveis à face dos referidos princípios asseguradores de todas as garantias de defesa, da estrutura acusatória do processo e do contraditório, distinguindo os casos de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia da alteração substancial, e, ainda, enunciar os instrumentos jurídicos cuja realização pretende fazer corresponder ao nível de concretização da normatividade constitucional decorrente de tais princípios, em cada uma dessas diferentes situações. Porque são muito diferentes a extensão e intensidade com que esses princípios sairiam afectados nas duas situações de alteração temática do processo configuradas nos artigos 358.º e 359.º, bem diferentes teriam de ser, e são, as exigências da sua admissibilidade[1].

Na situação prevista no artigo 358.º, a lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

Já no caso regulado pelo artigo 359.º, o tribunal não pode tomar em conta para efeito de condenação no processo em curso os novos factos, nem a alteração substancial pode levar à extinção da instância. No entanto, se os referidos factos forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo, deve a alteração ser comunicada ao Ministério Público, valendo a mesma como denúncia para que ele proceda por eles, salvo se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento, na descrita situação.

Trata-se de um simples postulado dos princípios da estrutura acusatória do processo penal e da sua consequente vinculação temática, do contraditório e do asseguramento das garantidas de defesa do arguido, como já devidamente explicitado.

No caso em análise, mesmo que de erro de escrita se trate, como defende o recorrente, parece perfeitamente razoável que a defesa, na fase do julgamento, possa beneficiar, em princípio, de quaisquer deficiências da acusação ou da pronúncia quer em matéria de descrição factual quer no domínio de qualificação jurídico-penal dos factos[2].

De qualquer modo, o concreto quadro com que nos deparamos não constitui manifestamente uma situação de alteração substancial dos factos, pela clara e simples razão de o novo facto (diferente data da agressão física), contrariamente ao referido no despacho sob recurso, não ter como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso.

Segundo a posição que é unânime na nossa doutrina, a expressão “mesmo crime” não dever ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime»[3].

Colhendo de novo os valiosos contributos de Frederico Isasca, o processo penal «só pode ser (…) o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível[4].

Sobre a temática em análise, no domínio do Código de Processo Penal, acentua Cavaleiro de Ferreira, na parte que no presente contexto temos como relevante: «O conceito de identidade do facto irá buscar-se…ao direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real».

Revertendo ao caso dos autos, perante os elementos conhecidos, existe identidade entre os factos da acusação e aqueloutros decorrentes da prova produzida no julgamento. Efectivamente, o libelo acusatório e as declarações, em audiência, ainda que dissonantes, do arguido e da denunciante, narram o mesmo recorte histórico, o mesmo “pedaço de vida”, numa unidade de sentido. Ou seja, uma e outra fase processual se reportam à imputada agressão física.

Será, no entanto, que nos deparamos com uma situação de alteração não substancial dos factos?

Não “constitui alteração não substancial dos factos” toda e qualquer alteração ou desvio da sentença em relação ao texto da acusação ou pronúncia. A modificação dos factos constantes destas peças processuais só integra o referido conceito normativo quando tiver relevo para a decisão da causa e implique uma limitação dos direitos de defesa do arguido, vista em função do condicionamento da estratégia e utilidade da defesa.

No conspecto que importa ter em conta, é patente a alteração de um facto, rectius a data da imputada agressão física, realidade que é facilmente constatável pela comparação da acusação com o conteúdo das declarações recolhidas em julgamento.

Afigura-se-nos, não obstante, que essa alteração não pode ser tida com não substancial, na medida em que não envolve qualquer limitação do efectivo e consistente direito de defesa do arguido provocada por um arbitrário alargamento da actividade cognitiva e decisória do tribunal a quo.

Na verdade, o arguido revelou conhecimento sobre os precisos factos que lhe estão imputados, nomeadamente sobre a concreta agressão física em causa e, nessa justa medida, exerceu o direito ao contraditório, tendo contrariado ou contestado os elementos fácticos relevantes carreados pela acusação.

Em síntese conclusiva: perante os meios de prova produzidos em julgamento, não existe alteração quer substancial quer não substancial dos factos descritos na acusação pública. Consequentemente, deve o Sr. Juiz do tribunal de 1.ª instância reiniciar a audiência, produzindo todos os meios de prova relevantes, incluindo os que foram indicados pelo Ministério Público e pelo arguido (cfr. n.º 6 do artigo 328.º do CPP), proferindo, a final, sentença.

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III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, concedendo provimento ao recurso, revogam os despachos recorridos e, em consequência, determinam que o tribunal de 1.ª instância reinicie a audiência de discussão e julgamento, produzindo todos os meios de prova considerados relevantes, nos termos acima expostos, proferindo, a final, sentença.
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(Processo e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 28 de Setembro de 2011

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(Alberto Mira)

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(Elisa. Sales)


[1] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 463/2004, de 23-06-2004, proferido no proc. n.º 226/2003, publicado no DR, 2.ª série, de 12-08-2004.
[2] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/92 (DR, 2.ª série, de 18-09-1992).
[3] Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 221, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira.
[4] Ibidem, págs. 242 e 229.