Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
914/23.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: BALDIOS
LEGITIMIDADE DOS COMPARTES
ACÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE AQUISIÇÃO DE PARCELA DE TERRENO POR USUCAPIÃO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 12.º; 285.º; 286.º A 294.º; 298.º, 2; 487.º, 2 E 1340.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 3.º, 3; 567.º, 1; 571.º, 2, 2.ª PARTE; 576.º, 3; 579.º E 665.º, 2, DO CPC
ARTIGOS 1.º, 3 E 4.º, 1 E 2, DA LEI 68/93, DE 4/9
ARTIGOS 2.º, B); 6.º, 4 E 9; 7.º, 2; 39.º, 2 E 48.º, 2 DA LEI 75/2017, DE 17/8
Sumário: i) A legitimidade dos compartes, legalmente prevista na Lei dos Baldios, para requerer a nulidade de aquisição de uma parcela de terreno, por usucapião, justificada por escritura notarial, e nulidade do consequente registo predial, não abarca o próprio comparte que praticou esse acto nulo;
ii) O prazo a que se reporta o nº 2 do art. 39º da Lei dos Baldios (68/93, de 4.9), é de caducidade, mas não se reporta a direitos indisponíveis; por isso o tribunal não pode conhecer oficiosamente da caducidade do direito de acção tendente a fazer valer o direito de acessão industrial imobiliária relativamente ao terreno baldio de implantação.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. AA e BB, residentes em ..., intentaram acção declarativa contra a Assembleia de Compartes dos Baldios da localidade de ..., representada pelo Conselho Diretivo dos Baldios da Localidade de ..., com sede em ..., pedindo:

a) a condenação da ré a ver transferida para a autora, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com o autor, a propriedade e posse da parcela de terreno, descrita no artigo 15º, por acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento do preço de 740,71 € ou outro que se fixar, correspondente ao valor económico que tal parcela de terreno tinha antes da realização das mencionadas obras, consistentes na construção da casa de habitação, barracão de arrumos e quintal da autora, descrita no artigo 23º, nos termos do disposto no artigo 1340º, nº 1 do Cód. Civil;

b) reconhecido e declarado que a aquisição originária realizada pela autora, referida nos artigos 40º a 44º, pela qual a autora veio a registar a seu favor o prédio urbano descrito no artigo 23º, é nula, atento o disposto o disposto no artigo 6º, nºs 3 e 4 da Lei nº 75/2017, nulidade essa que se invoca com os efeitos previstos nos artigos 285º e seguintes do Cód. Civil;

c) e, em consequência, a declaração de nulidade e/ou sem qualquer efeito do registo de tal aquisição originária a favor da autora, por forma à autora poder registar a douta sentença a proferir nos presentes autos na Conservatória do Registo Predial, inscrevendo assim a seu favor o prédio urbano descrito no artigo 24º, por o haver adquirido por acessão industrial imobiliária, tudo como alegado nos artigos 15º a 45º;

d) a condenação da ré a ver transferida para a autora, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com o autor, a propriedade e posse da parcela de terreno, descrita no artigo 47º, por acessão industrial imobiliária, nos termos alegados nos artigos 47º a 70º, mediante o pagamento do preço de 806,06 € ou outro que se fixar correspondente ao valor económico que tal parcela de terreno tinha antes da realização das mencionadas obras, consistentes na construção do mencionado barracão de arrumos, espigueiro e releixo ou logradouro da autora, descrito no artigo 54º, nos termos do disposto no artigo 1340º, nº 1 do Cód. Civil;

e) e, em consequência, o cancelamento de todos e quaisquer registos, inscrições, ónus ou encargos, que a referida ré ou outros tenham efetuado ou venham a efetuar a seu favor sobre tal parcela de terreno descrita no artigo 47º, deste articulado, na Conservatória do Registo Predial, a fim da autora, com a douta sentença a proferir nos presentes autos, poder vir a registar e a inscrever a seu favor o prédio urbano descrito no artigo 54º deste articulado, por o haver adquirido por acessão industrial imobiliária.

Para tanto alegaram, em síntese, que: nos limite da localidade de ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ..., existem vários terrenos que vêm sendo possuídos e geridos comunitariamente pelos respetivos moradores, há mais de 100 ou 200 anos, ou seja, desde que há memória dos vivos, de forma continuada/ininterrupta, à vista de toda a gente, publicamente e sem oposição de quem quer que seja, ou seja, pacificamente, agindo, assim, os moradores da localidade de ... na convicção de que tais terrenos lhes pertencem, de forma comunitária, designadamente para complemento e/ou apoio das suas atividades agropecuárias, tais como para aproveitamento do mato para a “cama” dos animais, para apascentar os gados, corte e abate de árvores para lenha e madeira, corte de pedra, retirada de terra barrenta para a construção dos fornos de cozer o pão, caça, etc., tudo nos termos, entre outros artigos, do disposto nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei 75/2017, de 17 de Agosto; tais terrenos, assim possuídos e geridos pela comunidade dos compartes dos baldios da localidade de ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ..., constituíram-se, nos termos da citada Lei 75/2017, como terrenos baldios dessa mesma localidade; dos terrenos baldios faz parte o terreno denominado por terreno baldio do “...”, com a área matricial de 53.740 m2, inscrito na matriz sob o art. ...73º, descrito no art. 13º da p.i.; até à constituição dos órgãos dos baldios – o que sucedeu na década de 2000 –os referidos terrenos baldios foram sendo administrados pela então Junta de Freguesia ...; a referida Junta de Freguesia, na qualidade de então administradora dos ditos baldios, a pedido da autora, então solteira, veio a deliberar ceder àquela, por volta do ano de 1990, uma parcela do referido terreno baldio, com a área de 1.485 m2, descrita no art. 15º da p.i., para, em tal parcela, a autora, puder vir a construir a sua casa de habitação e quintal; na posse de tal parcela de terreno, a autora mulher, em 1990, 1991 e 1992, veio a construir a sua casa de habitação, passando a habitá-la de forma permanente, e no restante terreno da parcela efectuou edificações e outros trabalhos, o mesmo fazendo com o marido, depois do casamento, participando essa nova realidade económica e predial ao Serviço de Finanças ..., que corresponde ao actual artigo urbano ...20º da União de Freguesias ... e ..., descrito no art. 23º da p.i.; todas estas obras realizadas pela autora sucederam com o perfeito conhecimento e a colaboração da anterior Junta de Freguesia ..., então administradora do baldio denominado “Baldio do ...”; o valor das obras que realizou e o valor económico da nova realidade urbana é superior ao valor da aludida parcela de terreno; a autora mulher veio, em Novembro de 2010, a justificar notarialmente a posse desse seu prédio, com vista a registá-lo em seu nome, junto da Conservatória do Registo Predial ..., tendo-lhe sido atribuída a descrição nº ...12 da Freguesia ... e encontrando-se registado a favor da autora pela Ap. ...10 de 2011/01/12; sucede que a indicada justificação notarial com base no instituto da usucapião e, consequentemente, o registo dessa aquisição originária a favor da autora, é nula, atento o disposto no artigo 6º, nºs 3 e 4, da Lei 75/2017, pelo que, enfermando de nulidade a mencionada aquisição originária por parte da autora e, ainda, tendo em conta o acima alegado, e ainda verificando-se cumpridos os requisitos legais previstos no artigo 48º, nº 2, da Lei 75/2017, importa que a autora venha a adquirir a mencionada parcela de terreno, descrita no artigo 15º da p.i., por acessão industrial imobiliária, nos termos do art. 48º, nº 2, da Lei 75/2017.

Mais alegou, que, a referida Junta de Freguesia na qualidade de então administradora dos ditos baldios, a pedido da autora, então solteira, face às suas necessidades de construção de um barracão agrícola, onde pudesse guardar os seus animais, pastos e lenhas, e de um espigueiro para guardar as espigas, com releixo para aí poder secar as palhas, ervas, fazer depósito de lenhas e, ainda, poder descascar o milho, veio a deliberar ceder àquela, no ano de 1991, uma parcela do terreno baldio descrito no mencionado artigo 13º da p.i., com a área de 1.616,00 m2, parcela essa descrita no art. 47º da p.i.; a autora na posse de tal parcela de terreno, veio aí a construir, em 1991, um barracão de arrumos  e, ainda, um espigueiro; tal prédio urbano foi participado ao Serviço de Finanças ..., com vista à sua inscrição matricial, tendo o referido Serviço de Finanças que corresponde ao actual artigo urbano ...47º da União de Freguesias ... e ..., descrito no art. 54º da p.i.; a transformação da dita parcela de terreno baldio, descrita no artigo 47º, no indicado prédio urbano, descrito no artigo 54º, com a realização de trabalhos de nivelamento do terreno, construção do barracão de arrumos, espigueiro, ocorreu sempre à vista de toda a gente e sem a oposição de quem quer que seja e ainda contou com a colaboração da mencionada então Junta de Freguesia e também da própria ré; o valor das obras que realizou e o valor económico da nova realidade urbana é superior ao valor da aludida parcela de terreno; a realização das obras acima descritas, no prédio urbano descrito no artigo 54º, da p.i., passando, desde então, a autora a usar, fruir e a dispor também de tal prédio, nele fazendo ainda obras de conservação e de melhoramento, o que tudo faz e tem feito à vista de toda a gente e sem qualquer oposição de quem quer que seja, de forma contínua e permanente; a autora adquiriu a mencionada parcela de terreno, descrita no artigo 47º da p.i., por acessão industrial imobiliária, nos termos do art. 48º, nº 2, da Lei 75/2017.

Citada, a ré não apresentou contestação.

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Foi, de seguida, proferido despacho saneador que julgou verificada a excepção de ilegitimidade activa e, em consequência, absolveu a R. da instância.

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2. Os AA recorreram concluindo que:

1ª - O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” em 05.06.2023, referência eletrónica 93192365, que julgou verificada a exceção de ilegitimidade ativa dos Autores e, em consequência, absolveu da instância a Ré Assembleia dos Compartes dos Baldios da Localidade de ..., representada pelo Conselho Diretivo dos Baldios da Localidade de ..., ..., ....

2ª - Ora, em face dos pedidos formulados na p.i., identificados na sentença recorrida sob as alíneas a) a e), há que distinguir ou separar, por um lado, um primeiro segmento de pedidos, correspondentes aos 3 (três) primeiros pedidos formulados pelos Autores na p.i., identificados na sentença sob as alíneas a) a c), e, por outro lado, um segundo segmento de pedidos, correspondentes aos dois pedidos seguintes formulados na p.i., identificados na sentença recorrida sob as alíneas d) e e).

3ª – Sendo que os mencionados três primeiros pedidos formulados na p.i., identificados na sentença recorrida sob as als. a) a c), dizem respeito, o primeiro deles à invocada aquisição por acessão industrial imobiliária por parte da autora, da propriedade da parcela de terreno baldio, descrita no artigo 15º da p.i., do terreno baldio, descrito no artigo 13º da p.i., nos termos alegados nos artigos 16º a 39º da p.i., enquanto os pedidos formulados em 2º e 3º na p.i, identificados na sentença recorrida sob as als. b) e c), dizem ainda respeito à aquisição por parte da autora, pelo instituto da usucapião, da propriedade daquela parcela de terreno, descrita no artigo 15º da p.i. e, ainda, das construções nela erigidas, as quais depois de participadas no Serviço de Finanças, deu lugar ao prédio urbano, descrito no artigo 23º da p.i., aquisição essa consubstanciada na outorga da escritura de justificação notarial, nos termos do artigo 89º do Cód. do Notariado e para os efeitos previstos no artigo 116º do Cód. do Registo Predial, junta com a p.i. sob o doc. 3, com vista ao registo a seu favor do mencionado prédio urbano, descrito no artigo 23º da p.i. (cfr. docs. 3 e 4 juntos com a p.i.).

4ª – Sendo ainda certo que, a referida escritura de justificação notarial e, ainda, o registo do prédio urbano descrito no artigo 23º da p.i., se apresentam como atos nulos, quer se aplique o disposto no artigo 6º, nºs 3 e 4 da Lei nº 75/2017, de 17 de agosto, quer se aplique o disposto no nº 4 da Lei nº 68/93, de 4 de setembro.

5ª - Por sua vez, o indicado segundo segmento de pedidos, correspondente aos pedidos formulados em 4º e 5º lugar na p.i., identificados na sentença recorrida sob as alíneas d) e e), dizem respeito à invocada aquisição por acessão industrial imobiliária por parte da autora, da propriedade da parcela de terreno baldio, descrita no artigo 47º da p.i., do terreno baldio, descrito no artigo 13º da p.i., tudo nos termos alegados nos artigos 46º a 79º da p.i..

6ª - Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal “a quo” somente se pronunciou sobre os primeiros três indicados pedidos, identificados sob as alíneas a) a c) da sentença recorrida, não se tendo pronunciado relativamente aos pedidos, identificados sob as alíneas d) e e) da sentença recorrida, verificando-se assim uma omissão de pronúncia por parte do Tribunal “a quo”, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

7ª – Acresce dizer que, como referido, o Tribunal “a quo” veio julgar encontrar- se verificada a exceção de ilegitimidade ativa dos Autores, pelo que absolveu da instância a Ré, Assembleia dos Compartes dos Baldios da Localidade de ..., representada pelo Conselho Diretivo dos referidos baldios.

8ª - Ora, quanto a esta questão, importa, desde logo, dizer que, salvo melhor opinião, a mesma terá de ser analisada, por um lado, à luz dos mencionados 3 (três) primeiros pedidos formulados na p.i., identificados na sentença recorrida sob as alíneas a) a c), e, por outro lado, à luz dos 2 (dois) seguintes pedidos formulados na p.i., identificados na sentença recorrida sob as alíneas d) e e), como referido nas

conclusões 2ª a 5ª.

9ª - Ora, fazendo uma leitura atenta da sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, somente se pronunciou sobre aqueles três primeiros pedidos, para chegar à conclusão de que os autores/recorrentes carecem de ilegitimidade para terem proposto a presente ação, decisão com a qual não se concorda, como se referiu, não o tendo feito relativamente aos 2 (dois) pedidos formulados em 4º e 5º na p.i., identificados na sentença recorrida sob as alíneas d) e e).

10ª - Desde logo, importa referir que os autores/recorrentes são compartes dos baldios da localidade de ..., da União de Freguesias ... e ..., concelho ..., à luz da legislação dos baldios que ao caso possa ter aplicação, quer seja à luz do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de janeiro, quer seja, à luz da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, quer seja à luz da Lei nº 72/2014, 2 de setembro, com a retificação nº 46/2014, de 29 de outubro) ao regime anterior, quer seja à luz da Lei nº 75/2017, de 17 de agosto.

11ª – Acresce dizer que, tal facto se mostra comprovado pelas declarações emitidas pelo Presidente da Freguesia ... e ... e pelo Ex.mo Presidente do Conselho Diretivo dos Baldios de ..., datada de 12 de maio de 2023, juntas sob os doc.s 1, 2 e 3, datadas de 15 e 12 de maio de 2023, com o requerimento dos autores/recorrentes, que deu entrada nos autos com a referência eletrónica 5935490.

12ª – Por outro lado, dúvidas também não restarão que a escritura de justificação notarial, lavrada no dia 11 de novembro de 2010, no Cartório Notarial ..., da Notária CC, lavrada a fls. 9 a 10, verso, do Livro de notas para escrituras diversas nº 126-A daquele Cartório (cfr. doc. 3 junto com a p.i.), outorgada nos termos do artigo 89º do Cód. do Notariado e para os efeitos previstos no artigo 116º do Cód. do Registo Predial, e, ainda, o registo a favor da autora mulher do prédio urbano justificado por tal escritura, descrito no artigo 23º da p.i. (cfr. docs. 3 e 4 juntos com a p.i.), por terem por objeto ou incidirem sobre a parcela de terreno, descrita no artigo 15º da p.i., do terreno baldio descrito no artigo 13º da p.i., são nulos, quer nos termos do disposto no artigo 6º, nºs 3 e 4 da Lei nº 75/2017, de 17 de agosto, quer nos termos do disposto no nº 4 da Lei nº 68/93, de 4 de setembro, precisamente porque a autora pretendeu adquirir, por mor do instituto da usucapião, tal parcela de terreno baldio, descrita no artigo 15º da p.i., e, ainda, das construções realizadas por si em tal parcela de terreno, tendo esta realidade económica dado lugar ao prédio urbano descrito no artigo 23º da p.i..

13ª - Assim, verificados que se mostram serem nulos, nos termos gerais de direito, quer a mencionada escritura de escritura de justificação notarial, quer o registo de aquisição a favor da autora do prédio urbano justificado, coloca-se a questão de saber se os autores têm ou não legitimidade para invocar tais nulidades.

14ª – Ora, salvo melhor opinião, quer se aplique o disposto no artigo 4º, nºs 1 e 2, da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, quer se aplique o disposto no artigo 6º, nºs 3, 4 e 9, a Lei nº 75/2017, de 17 de agosto, conjugados com o artigo 286º do Cód. Civil, dúvidas não restam que a indicada escritura de justificação notarial é nula, nos termos gerais de direito, e bem assim o registo do prédio urbano justificado pela autora mulher, a favor desta, pelo que, dúvidas não podem restar que os AA./recorrentes, quer enquanto compartes dos mencionados baldios, quer como cidadãos de plenos direitos e deveres, à luz daquelas citadas normas legais, têm legitimidade para invocar as referidas nulidades, a todo o tempo.

15ª – Pois que a previsão das citadas normas legais contidas na Lei nº 68/93, de 4 de setembro e, ainda, na Lei nº 75/2017, de 17 de agosto, não restringe somente às pessoas e/ou entidades aí mencionadas a possibilidade de invocarem a nulidade de atos jurídicos praticados sobre terrenos baldios ou parte deles, mas sim a todos e quaisquer interessados, como dispõe o citado artigo 286º do Cód. Civil.

16ª - Assim como, poderia, a referida nulidade, ser declarada oficiosamente pelo Tribunal “a quo”.

17ª – Pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, os autores/recorrentes têm legitimidade para invocar a nulidade da referida escritura de justificação notarial e, ainda, do registo que foi feito na Conservatória do Registo Predial a favor da autora do prédio urbano justificado, como efetivamente o fizeram na p.i..

18ª - Acresce dizer que o interesse dos autores na invocação da referida nulidade é ainda por demais evidente, também por uma questão de certeza e segurança jurídica, que todo o direito procura salvaguardar a quem o invoca ou procura, com vista à defesa dos seus legítimos direitos.

19ª - Efetivamente, não se reconhecendo legitimidade aos autores para invocar as mencionadas nulidades, como o fez o Tribunal “a quo”, permanecem estes sempre na incerteza e insegurança de que a alegada propriedade da autora por sobre o meu mencionado prédio urbano, descrito no artigo 23º da p.i., é uma propriedade adquirida por um título, que se apresenta ser nulo, assim como o registo de tal aquisição a favor da autora junto da Conservatória do Registo Predial, nos termos referidos, podendo essas mesmas nulidades serem invocadas a todo o tempo por qualquer interessado e até poderá ser declarada oficiosamente pelo tribunal, como vimos.

20ª - Situação esta que os autores obviamente não pretendem continuar a viver, desde logo, porque como pessoas normais que são, face ao conhecimento de que passaram a ter de que a indicada escritura de justificação notarial é nula e bem assim o registo do prédio justificado a favor da autora, os mesmos vivem o seu dia a dia, numa incerteza e insegurança jurídicas quanto ao alegado direito de propriedade da autora por sobre o seu prédio urbano, descrito no artigo 23º.

21ª - Daí que, salvo melhor opinião, têm os autores todo o interesse em que o Tribunal declare a nulidade de tal título e, ainda, do registo do prédio justificado a favor da autora, por si invocada, para que igualmente o Tribunal venha a condenar a ré, assembleia dos compartes dos baldios da localidade de ..., da União de Freguesias ... e ..., referida, a ver transferida para a autora, AA

, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com BB, a propriedade da parcela de terreno, descrita no artigos 15º, por acessão industrial imobiliária, nos termos alegados nos artigos 16º a 39º da p.i., mediante o pagamento do preço de 740,71 € (setecentos e quarenta euros e setenta e um cêntimos) ou outro que o Tribunal vier doutamente a fixar,

correspondente ao valor económico que tal parcela de terreno tinha antes da realização das mencionadas obras, consistentes na construção da casa de habitação, barracão de arrumos e quintal da autora, descrita no artigo 23º, nos termos do disposto no artigo 1340º, nº 1 do Cód. Civil.

22ª - Qualquer entendimento contrário, isto é, qualquer entendimento de que os autores não podem invocar a nulidade do referido título e, ainda, do seu registo na Conservatória do Registo Predial, é estar-se a agir contra a própria ratio da lei, como também é estar a impedir que os AA. vejam os factos por si alegados na p.i., nos artigos 15º a 39º, apreciados pelo Tribunal, para que este venha ou não a condenar a ré a ver transferida para a autora a propriedade da parcela de terreno, descrita no artigo 15º da p.i., por acessão industrial imobiliária, fazendo assim com esse seu direito de propriedade assim adquirido se torne certo e seguro, perante quem quer que seja e não dependente da vontade de qualquer interessado, como ocorre no caso do mencionado título, consubstanciado na mencionada escritura de justificação notarial.

23ª - Daí que, os AA. têm todo o interesse em pôr termo a toda e qualquer incerteza que possa existir quanto ao direito de propriedade da autora por sobre a parcela de terreno, descrita no artigo 15º da p.i., por a ter adquirido por acessão industrial imobiliária, nos termos alegados nos artigos 15º a 39º da p.i., pelo que devem estes ser doutamente considerados parte legítima para propor a presente ação, como se espera doutamente deste Venerando Tribunal, com o presente recurso e, bem assim, posteriormente com a prolação da sentença pelo Tribunal da primeira instância que venha a condenar a ré nos pedidos formulados na p.i..

24ª – Acresce dizer que, como acima referido, já quanto aos factos alegados nos artigos 46º a 79º da p.i. e respetivos pedidos formulados em 4º e 5º lugares da ação, identificados na sentença recorrida sob as alíneas d) e e), relativamente à invocada aquisição por acessão industrial imobiliária por parte da autora, da propriedade da parcela de terreno, descrita no artigo 47º da p.i., do terreno baldio, descrito no artigo 13º da p.i. e, consequente, cancelamento de todos e quaisquer registos, inscrições, ónus ou encargos, que a Ré ou outros tenham efetuado a seu favor sobre tal parcela de terreno, parece-nos que, como supra referido, o Tribunal “a quo”, não se tendo pronunciado sobre os mesmos, não poderia declarar os autores

parte ilegítima para deduzirem tais pedidos.

25ª - Efetivamente, sobre a parcela de terreno, descrita no artigo 47º da p.i., do terreno baldio, descrito no artigo 13º da p.i. e consequente cancelamento de todos e quaisquer registos, inscrições, ónus ou encargos, que a Ré ou outros tenham efetuado a seu favor sobre tal parcela de terreno, não existe, salvo melhor opinião, qualquer título suscetível de ser declarado nulo, para que o Tribunal “a quo”, tivesse igualmente incluído na mesma decisão por si proferida sobre tais pedidos.

26ª - Sendo que, pelo menos, quanto a esses pedidos, salvaguardando aqui o acima alegado, os autores devem ser considerados parte legitima, devendo consequentemente ser a sentença recorrida declara nula por falta de pronúncia, como acima referido, nas conclusões 2ª a 6ª.

27ª - Por último, o Tribunal “a quo” alegou que, mesmo que se considerasse que os Autores eram parte legítima nos presentes Autos, “sempre careceriam os Autores de interesse em agir nos presentes autos, dado que este consiste na necessidade de usar do processo judicial, o que in casu não se verifica, porquanto, o direito de propriedade de que se arrogam titulares tem, como se referiu, plena validade, nada sendo alegado pelos mesmos que permita concluir que tal direito foi contestado ou posto em causa por terceiros, concretamente, pelos órgãos do baldio, por qualquer dos compartes, pelo Ministério Público, pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou por arrendatários e cessionários do baldio.”

28ª - Embora a lei não lhe faça referência expressa, o interesse em agir constitui um pressuposto processual, cuja falta pode conduzir à absolvição da instância, nos termos previstos no art. 576º, nº 2 e 278º, nº 1, ambos do CPC.

29ª - Ora, como os demais pressupostos processuais, também a existência do interesse em agir deverá ser apreciada, não em abstrato, mas perante o caso concreto (tendo em conta os factos alegados pelos Autores na ação, nos precisos termos em que os mesmos a configuram, ou seja, perante o pedido e a causa de pedir formulados).

30ª - Salvo o devido respeito por opinião diversa, parece-nos que também não assistirá razão ao Tribunal “a quo” quanto à falta deste pressuposto processual, pois que o interesse processual dos autores, atento o alegado na p.i. e, ainda, nos pontos 1.; 2.; 2.1.; 2.1.1.; 2.1.2.;2.1.3. e 2.1.4. destas alegações de recurso, é manifesto e evidente!

31ª - Foram violados, entre outros, o artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, os artigos 6º, nºs 3, 4 e 5 da Lei nº 75/2017, de 17 de agosto e/ou o artigo 4º da Lei nº 68/93, de 4 de setembro e bem assim os artigos 285º, 286º e 289º, todos do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve doutamente:

a) – Declarar-se a sentença recorrida, proferida pelo Tribunal “a quo”, nula por omissão de pronúncia relativamente aos pedidos formulados em 4º e 5º lugares da p.i., ou ainda identificados nas als. d) e e) da sentença recorrida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

b) – De todo o modo, deve revogar-se a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” por douto acórdão que venha declarar que os autores/recorrentes são parte legítima para a propositura da presente ação e, ainda, ao contrário do decidido na douta sentença recorrida, que os autores têm interesse em agir nos presentes autos, com todas as consequências legais daí advenientes.

Assim se fazendo a mais inteira e sã JUSTIÇA.

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1ª – Como resulta da petição, cujos factos não foram contestados pelo réu, Conselho Diretivo dos Baldios da Localidade de ..., ..., em representação da comunidade local dos compartes daqueles baldios, ocorre verificar-se os requisitos de aquisição por parte da autora mulher do direito de propriedade sobre a parcela de terreno baldio, descrita no artigo 47º da p.i., onde a mesma implantou um barracão agrícola, espigueiro e o respetivo logradouro, tudo como melhor consta alegado nos artigos 47º a 70º da p.i.;

2ª – Quer o prazo de dois anos previsto no nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 04.09, quer o prazo de um ano a que alude o nº 2 do artigo 39º da Lei nº 89/97, de 30.7, não se reporta ao exercício de direitos indisponíveis, pelo que o Tribunal “a quo” não podia conhecer “ex officio” da referida exceção perentória da caducidade, já que tal conhecimento dependia da respetiva invocação pelo réu/recorrido.

3ª – Porém, no caso sub judice, estando na disponibilidade da comunidade local dos baldios da localidade de ..., ..., após o decurso daqueles prazos, referidos na conclusão 2ª, ter podido adquirir as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas pela autora mulher na mencionada parcela de terreno baldio, descrita no artigo 47º da p.i., avaliadas por acordo ou, na falta dele, por avaliação judicial, como resulta da própria Lei dos Baldios, a verdade é que o Conselho Diretivo dos Baldios da localidade de ..., ..., ..., também nos termos da referida Lei dos Baldios, não o veio a fazer, pois que não apresentou qualquer proposta extrajudicial para a adquisição das referidas benfeitorias; não contestou a ação e, consequentemente, não de deduziu reconvenção e não invocou a exceção perentória de caducidade.

4ª – Pelo que, o Tribunal a “quo” violou o disposto no artigo 579º do CPC, no artigo 333º do Cód. Civil e, ainda, o disposto no nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 04.09 e, bem assim o disposto no nº 2 do artigo 39º da Lei nº 89/97, de 30.7.

Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o ui suprimento de Vªs Ex.as, deve doutamente deve revogar-se a douta decisão complementar proferida pelo Tribunal “a quo” e, em consequência, deverá proferir-se douto acórdão que:

a) - Venha a declarar o direito da autora mulher/recorrente em adquirir o direito de propriedade sobre a parcela do terreno baldio, descrita no artigo 47º da p.i., onde implantou o seu mencionado barracão agrícola, espigueiro e logradouro por acessão industrial imobiliária, nos termos alegados nos artigos 47º a 70º da p.i., mediante o pagamento do preço de 806,06 € (oitocentos e seis euros e seis cêntimos), correspondente ao valor económico que tal parcela de terreno tinha antes da realização das mencionadas obras, consistentes na construção do mencionado barracão de arrumos, espigueiro e releixo ou logradouro da autora, descrito no artigo 54º, nos termos do disposto no artigo 1340º, nº 1 do Cód. Civil.

b) E, em consequência, ser ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos, inscrições, ónus ou encargos, que a referida comunidade local dos baldios de ..., ..., ... ou outros tenham efetuado ou venham a efetuar a seu favor sobre tal parcela de terreno descrita no artigo 47º, da p.i., na Conservatória do Registo Predial, a fim da autora, com o douto acórdão a proferir nos presentes autos, poder vir a registar e a inscrever a seu favor o prédio urbano descrito no artigo 54º da p.i., por o haver adquirido por acessão industrial imobiliária, tudo com as legais consequências.

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3. Inexistem contra-alegações de recurso.

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4. Após despacho do relator para pronúncia do tribunal a quo, sobre a arguida nulidade da sentença, o tribunal a quo proferiu despacho a suprir a mesma, e consequente decisão complementar.

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Nessa decisão complementar o tribunal julgou procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção dos AA relativamente à parcela de terreno referida no pedido formulado sob d) da p.i. e, em consequência, absolveu a R. dos pedidos por aqueles deduzidos em 4º e 5º lugar - d) e e) do pedido.

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E os AA apresentaram alegações complementares, alargando o respectivo âmbito (as respectivas conclusões estão inseridas no ponto 2. supra).

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II – Factos Provados

A factualidade a considerar é a que resulta do Relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da decisão.

- Legitimidade activa dos AA, ou subsidiariamente interesse em agir dos AA.

- Caducidade do direito de acção dos AA relativamente à parcela de terreno referida em d) do pedido formulado na p.i.

- Aquisição por acessão industrial imobiliária das 2 parcelas identificadas nos pedidos formulados sob a) e d) da p.i.

2. Como se disse, os recorrentes vieram arguir a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, ao abrigo do art. 615º, nº 1, c), do NCPC, relativamente aos pedidos deduzidos em 4º e 5º lugar, identificados nas alíneas d) e e) da p.i. (cfr. conclusões de recurso 1ª a 6ª).

O tribunal a quo reconheceu haver tal omissão de pronúncia, e proferiu despacho a suprir a mesma, proferindo decisão complementar, relativamente a esses dois pedidos. Assim, nos termos do art. 617º, nº 2, do NCPC, o despacho proferido passa a integrar a sentença recorrida e o recurso interposto a ter como objecto a nova decisão.

Pelo que não cabe conhecer, agora, a acusada nulidade.

3. Na despacho recorrido escreveu-se que:

“Dispõe o artigo 30.º, do Cód. Proc. Civil: «1- O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.

2- O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3- Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».

Em termos gerais, a legitimidade não constitui uma qualidade pessoal das partes, referente aos processos, mas uma posição delas em face do processo concreto – o interesse de cada uma delas em determinado processo (cfr. Prof. A. Varela, RLJ, Ano 114, p. 139).

Significa, pois, que «É uma posição do autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo» (Castro Mendes, «Direito Processual Civil», 1980, 2.º, p. 153).

No Ac. do S.T.J, de 27.01.1997, (Proc. n.º 97B521) sufragou-se a posição que: «A legitimidade para a acção deve ser aferida em função dos termos em que o autor configura a prestação face à causa de pedir por si invocada», tal como consta actualmente do n.º 3, do art.º 30.º, supra transcrito.

Ora, no caso dos autos, se bem interpretamos a pretensão dos Autores, estes pretendem que o Tribunal declare a nulidade de aquisição originária de propriedade sobre bens imóveis, ocorrida, segundo alega, há mais de 30 (trinta) anos, com base na Lei n.º 75/2017, de 17.08, quando, na verdade, tal lei não tem aplicação ao caso dos autos, atenta a previsão do art.º 12.º, n.º 1, do Código Civil.

De facto, salvo melhor opinião, o caso dos autos terá de ser analisado à luz da previsão da Lei n.º 68/93, de 4.09., que se encontrava em vigor à data da alegada aquisição originária da propriedade, a qual dispunha no seu art.º 4.º - em tudo semelhante, nesta parte, à previsão do art.º 6.º, da Lei n.º 75/2017, a que aludem os autores – que: «(…) 1 - Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei;

2 - A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) Pelos órgãos do baldio ou por qualquer dos compartes;

b) Pelo Ministério Público;

c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio nos termos dos artigos 22.º e 23.º;

d) Pelos arrendatários e cessionários do baldio, nos termos do artigo 10.º(…)»

Ora, como é sabido, interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, um sentido lógico, de modo a que se possa proceder à sua correcta aplicação.

Para tanto, dever-se-á partir do elemento literal, das palavras em que a lei se expressa e, depois, atender a outros elementos lógicos - históricos, racionais e teleológicos.

O elemento literal, traduz-se nas palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação, pois que a letra da lei tem duas funções, uma negativa e outra positiva.

A primeira afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); a segunda privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.

Para além do elemento literal, o intérprete deverá socorrer-se ainda dos elementos lógicos, com os quais procurará determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.

Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias: elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada); elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras; a ordem jurídica forma um sistema e a norma a interpretar é parte de um todo, do sistema legal; e, elemento racional ou teleológico que impõe que se atenda ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, à sua razão de ser.

Deste modo, salvo melhor opinião, bastará atentar devidamente na previsão do citado art.º 4.º, da Lei n.º 68/93, de 4.09., para se poder concluir que a eventual nulidade de actos jurídicos de apropriação de terrenos baldios poderá ser requerida pelos órgãos do baldio (1), por qualquer dos compartes (2), pelo Ministério Público, constituindo inclusive um dever para este, atento os seus deveres funcionais e estatuto profissional (3), pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio (4) e pelos arrendatários e cessionários do baldio (5).

Se bem interpretamos o citado preceito legal, atendendo aos seus elementos literal e lógico, com o mesmo pretendeu o legislador conferir legitimidade para peticionar a declaração de nulidade de actos jurídicos de apropriação de terrenos baldios a diversas entidades com especiais responsabilidades ou direitos relativamente aos baldios, onde não se poderá incluir, naturalmente – diríamos nós – o próprio autor do acto de apropriação, independentemente de ser também comparte ou não, pois que este há-de figurar como Réu na acção respectiva a instaurar por aqueles, que na mesma terão a posição processual de Autores.

Por conseguinte, no caso dos autos, tendo os Autores o seu direito de propriedade sobre uma parcela de terreno que integrava um baldio reconhecido por escritura notarial e inscrição no registo predial, caberá àqueles, caso assim entendam, interpor a competente acção contra estes (autores) com vista à declaração da nulidade da referida escritura, com o consequente cancelamento da inscrição registral, sendo que, como nos parece óbvio, até ao trânsito em julgado da sentença que declare a nulidade do referido acto notarial e inscrição no registo do direito de propriedade dos aí Réus e a condenação destes no seu reconhecimento, o referido direito de propriedade de que são titulares tem plena existência e validade jurídicas.

Em face do exposto, é de concluir que os Autores carecem de interesse directo em demandar, não sendo, portanto, parte legitima, conforme previsto no artigo 30.º, do Cód. Proc. Civil.”.

Sobre a questão da legitimidade activa dos AA, os recorrentes discordam, pelas razões apresentadas nas suas conclusões de recurso (7ª a 26ª).

Em primeiro lugar importa destacar que não é determinante saber, face ao art. 12º do CC, sobre aplicação das leis no tempo, se é de aplicar a Lei 68/93, de 4.9 ou a Lei 75/2017, de 17.8 (que revogou aquela), visto que no essencial, no que releva para decidir o nosso caso, ambas, nas normas pertinentes, são praticamente idênticas. Vejamos, então.

Quanto à qualidade de compartes, naquela primeira lei diz-se que são compartes todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma atividade agroflorestal ou silvo-pastoril (art. 1º, nº 3), enquanto na nova lei se diz que o universo dos compartes é integrado por cidadãos com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas comunidades locais, podendo também ser atribuída pela assembleia de compartes essa qualidade a cidadão não residente (arts. 2º, b), e 7º, nº 2).

Não sabemos se os AA são compartes, pois na p.i. não alegaram ser cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os baldios ou desenvolver no baldio uma actividade agroflorestal ou silvo-pastoril, ou que são cidadãos com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis. E como tal, apesar da revelia da ré, não há admissão dos factos articulados pelos AA nesses pontos (art. 567º, nº 1, in fine do NCPC)

Embora – aquando da sua audição contraditória, ao abrigo do art. 3º, nº 3, do NCPC, promovida pelo tribunal a quo, sobre a sua eventual ilegitimidade activa - tenham vindo afirmar serem compartes, em requerimento avulso apresentado em data posterior à não apresentação da contestação, mas prévio à decisão tomada ora sob recurso, com base em dois atestados de residência passados pela Junta de Freguesia e declaração do Conselho Directivo da R. Aceitamo-lo que sejam, até como hipótese de trabalho e para exposição do nosso raciocínio argumentativo.

Prosseguindo. A mesma semelhança de regimes decorre de ambas as leis quanto à arguição de nulidades.

Na realidade, na referida 1ª lei dispõe-se nos termos do art. 4º, nº 1 e 2, transcrito na fundamentação jurídica da decisão recorrida, enquanto na nova lei se estatui no art. 6º que:

3 - Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião.

4 - Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei.

(…)
9 - A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes;

b) Pelo Ministério Público;

c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele;

d) Pelos cessionários do baldio.  

As nulidades têm um regime geral. Mas há nulidades que não estão sujeitas a esse regime. São as nulidades especiais, admissíveis por força do art. 285º do CC (que prevê que os artigos seguintes, 286º a 294º apenas são aplicáveis na falta de regime especial).

Uma das formas de estabelecer um regime especial da nulidade é a lei prever expressamente aqueles que a podem arguir, restringindo assim os que o podiam fazer pela norma geral do art. 286º do CC (vide nesta linha sobre nulidades e nulidades especiais/atípicas/mistas, Castro Mendes, T.G. Direito Civil, Vol. III, Ed. 1979, pág. 697, Oliveira Ascensão, D. Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2ª Ed., págs. 374 a 376, 379 a 381 e 383 a 389, Carvalho Fernandes, T.G. Direito Civil, Vol. II, 2ª Ed., págs. 382 a 391, Menezes Cordeiro, Tratado, II, Parte Geral, 4ª Ed., págs.  921 a 924, 942 a 945, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Ed. 2017, págs. 13 a 15, 230 a 234 e 236 a 239, Maria Clara Sottomayor, Comentário aos artigos 285º e 286º do CC, Parte Geral, U. Católica, 2014, págs. 706 a 709, Jorge Morais Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, 2016, págs. 194 a 199).

Assim, quando as leis dos baldios (a 68/93 e a 75/2017), vêm dizer nos seus mencionados arts. 4º, nº 2, e 6º, nº 9, respectivamente, quem são os legitimados para a arguição da nulidade, que preveem no seu art. 4º, nº 1, e 6º, nº 4, respectivamente, estão a dizer que o critério da legitimidade activa para a arguição da nulidade (relativa, por se reportar a determinadas entidades e pessoas) não é o do art. 286º do CC, mas sim o que elas estatuem especialmente para o efeito. Pelo que o art. 286º do CC, na passagem “por qualquer interessado”, é afastado, ao contrário do que defendem os apelantes.

Perante os textos legais dir-se-á, então, que os recorrentes não sendo compartes não têm legitimidade para requererem a declaração de nulidade. Caso se aceite que o são, a solução afigura-se a mesma.

Efectivamente, os referidos normativos – 4º, nº 1, e 6º, nº 4, respectivamente, das mencionadas leis -, pressupõem e afirmam a nulidade dos actos e negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão.

Ora, como justamente se salienta na fundamentação da decisão recorrida, na alusão legal da legitimidade activa aos compartes, não se poderá incluir, naturalmente, o próprio autor do acto de apropriação, se também este for comparte. Este há-de figurar como réu na acção respectiva a instaurar pelas pessoas/entidades legitimadas activamente pela lei, e que na mesma terão a posição processual de autores.

Do exposto, temos por acertada a decisão do tribunal a quo, relativamente à ilegitimidade activa dos AA, no respeitante aos pedidos por estes formulados nas alíneas b) e c) – seus 2º e 3º pedidos. Assim se mantendo a mesma, não procedendo o recurso nesta parte.

4. Face ao exposto no anterior ponto e ao que se vai decidir, queda prejudicado apreciar a questão remanescente da falta de interesse em agir (cfr. conclusões de recurso 27ª a 30ª).

5. Quanto aos pedidos formulados nas alíneas d) e e) – seus 4º e 5º pedido -, este último, absolutamente dependente daquele, na decisão complementar exarou-se que:

“Relativamente aos pedidos referentes à parcela de terreno a que se referem os art.º 46.º a 69.º, da P.I., referem os Autores, além do mais, que no ano de 1991 a Junta de Freguesia ..., na qualidade de administradora dos baldios da localidade de ..., deliberou ceder à Autora a parcela em questão, com 1.616,00 m2, tendo a Autora, nesse mesmo ano de 1991, procedido, além do mais, à construção de um barracão de arrumos, com paredes de tijolo e argamassa de cimento, pilares e vigamentos, com armação em madeira e cobertura em chapas metálicas, com a superfície coberta de 83,00 m2 e, ainda, um espigueiro.

Assim sendo, se quanto à da parcela de terreno descrita no artigo 15.º, da P.I., o Tribunal considerou ser aplicável a Lei n.º 68/93, de 4.09., que se encontrava em vigor à data da alegada aquisição da propriedade, face à alegação dos Autores que a construção do urbano no mesmo implantado terminou no ano de 1993, com participação às finanças no ano de 1994 – na sequência do que foi atribuído o artigo urbano ...20.º da União de Freguesias ... e ... – já no que respeita à parcela de terreno descrita no art.º 47.º, da P.I., tal lei não se poderá aplicar, pois que, ao tempo da entrada na posse da referida parcela de terreno e da realização das construções que na mesma se encontram implantadas e que constituem a causa de pedir desta ação, se encontrava em vigor o DL n.º 39/76, de 19.1., o qual estabelecia, no seu art.º 2.º, que: “(…) Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião(…)”, razão por que se entende tratar-se, ao tempo, de direitos indisponíveis, pois que os terrenos baldios encontravam-se subtraídos ao domínio da vontade das partes, não podendo, por isso, ser objeto de relações jurídicas, o que, aliás, se extrai da conjugação do citado preceito legal com o art.º 82.º, da C.R.Portuguesa.

Por via disso, o DL n.º 40/76, de 19.01, comina com a sanção de anulabilidade, a todo o tempo, os atos ou negócios jurídicos que tenham como objeto a apropriação de terrenos baldios ou de parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, nos termos do direito.

Ora, com a entrada em vigor da Lei n.º 68/93, de 4.9. – no 30.º dia após a publicação em DR – que revogou os DL n.ºs 39/76 e 40/76, tal regime de indisponibilidade foi alterado, prevendo no art.º 39.º algumas exceções à nulidade dos negócios jurídicos relativos a terrenos baldios (cfr. art.º 4.º), concretamente, no seu n.º 2, que: «(…)quando não se verifiquem os condicionalismos previstos no número anterior e no art.º 31.º, os proprietários das referidas construções podem adquirir a propriedade da parcela do terreno baldio estritamente necessária ao fim da construção de que se trata, por recurso à acessão industrial imobiliária nos termos gerais de direito, sob pena de, não tomando essa iniciativa no prazo de dois anos a contar da data da entrada em vigor da presente lei, poderem as respetivas comunidades locais adquirir a todo o tempo as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno, avaliadas por acordo ou, na falta dele, por avaliação judicial (…)”.(destacado nosso)

Por força do disposto na Lei n.º 89/97, de 30.7., o referido preceito legal, passou a ter a seguinte redação, «(…)Quando não se verifiquem os condicionalismos previstos no número anterior e no art.º 31.º, os proprietários das referidas construções podem adquirir a parcela de terreno de que se trata por recurso à acessão industrial imobiliária, presumindo-se, até prova em contrário, a boa fé de quem construiu e podendo o autor da incorporação adquirir a propriedade do terreno, nos termos do disposto no art.º 1340.º, n.º 1 do Código Civil, ainda que o valor deste seja maior do que o valor acrescentado, sob pena de, não tomando essa iniciativa no prazo de um ano a contar da entrada em vigor da presente lei, poderem as respectivas comunidades locais adquirir a todo o tempo as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno avaliadas por acordo ou, na falta dele, por decisão judicial(…)”. (destacado nosso)

A referida Lei n.º 89/97 foi publicada no DR n.º 174, I-A, de 30/07/1997, tendo entrado em vigor no dia 4.08.1997 (cfr. art.º 2.º, da Lei n.º 6/83, de 29.7).

Do exposto decorre, salvo melhor opinião, que os Autores, por força da Lei n.º 68/93, dispuseram do prazo de dois anos, contabilizado desde a sua entrada em vigor, acrescido de um novo prazo de um ano, atribuído pela Lei n.º 89/97, contabilizado igualmente desde a entrada em vigor deste diploma legal, para proporem ação judicial com vista ao reconhecimento da aquisição da supra descrita parcela de terreno por via da acessão industrial imobiliária, o que não fizeram, pois que a presente acção foi interposta apenas em 24.02.2023, deixando, por isso, esgotar os descritos prazos e, desse forma, caducar o direito em questão – de aquisição do direito de propriedade de parcela de terreno baldio por acessão industrial imobiliária que teve lugar no ano de 1991.

Como é sabido, a caducidade constitui exceção perentória, que, in casu, pelas razões expendidas, considerando o regime legal em vigor ao tempo da apropriação da dita parcela (DL n.º 39/76, de 19.1.), é de conhecimento oficioso, tendo como consequência a absolvição total ou parcial do pedido, como previsto no art.º 576.º, n.º 1 e 3, do Cód.Proc.Civil.

Por conseguinte, julgo procedente a exceção perentória da caducidade do direito de ação dos Autores relativamente à parcela de terreno a que se referem os art.ºs 46.º a 69.º, da P.I. e, em consequência, absolvo o Réu dos pedidos deduzidos por aqueles em 4.º e 5.º lugar.”.

Os AA dissentem, pelas razões constantes das suas alegações complementares (conclusões de recurso 1ª a 4ª). E têm razão.

Ambas as redacções do referido preceito legal, o 39º, nº 2, referido e transcrito na fundamentação atrás mencionada – tal como no actual art. 48º, nº 2, da Lei 75/17 -  têm a ver com a figura da caducidade.

Na realidade, a caducidade, motivada por razões de certeza e de segurança jurídica, leva a que se extingam, em virtude do seu não exercício durante determinado prazo, dos direitos que, por força da lei (ou de convenção), nesse prazo devam ser exercidos.

Embora, por vezes, seja mais ou menos aturado distinguir entre os prazos de caducidade e de prescrição, porque a lei não traça nenhum critério de distinção, a lei fornece um critério seguro estabelecendo que quando um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, aplicar-se-ão as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente à prescrição (art. 298º, nº 2, do CC).

De maneira que, em caso de dúvida sobre a natureza de um determinado prazo, se de prescrição ou de caducidade, deve considerar-se que é de caducidade.

Como o indicado art. 39º, nº 2, estipula que as comunidades locais podem, a todo o tempo, adquirir as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno, se os autores das construções não tomarem a iniciativa, num certo prazo, de aquisição da propriedade do terreno por acessão industrial imobiliária.

Tratando-se de um limite temporal ao exercício de um direito, sem qualquer referência à prescrição, em que estão em causa razões de certeza e segurança das relações jurídicas envolvidas, temos por correcto considerar o mencionado prazo, como sendo de caducidade.

Foi, aliás, assim que a decisão recorrida considerou o que os recorrentes também aceitam.

No respeitante ao conhecimento oficioso de tal caducidade é que a decisão recorrida se mostra menos correcta.

E do próprio texto da mesma emerge essa incorrecção, pois começa por dizer-se que “ao tempo da entrada na posse da referida parcela de terreno e da realização das construções que na mesma se encontram implantadas e que constituem a causa de pedir desta ação, se encontrava em vigor o DL n.º 39/76, de 19.1., o qual estabelecia, no seu art.º 2.º, que: “(…) Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião(…)”, razão por que se entende tratar-se, ao tempo, de direitos indisponíveis,…”, mas logo a seguir considera-se que “Ora, com a entrada em vigor da Lei n.º 68/93, de 4.9. – no 30.º dia após a publicação em DR – que revogou os DL n.ºs 39/76 e 40/76, tal regime de indisponibilidade foi alterado, prevendo no art.º 39.º algumas exceções à nulidade dos negócios jurídicos relativos a terrenos baldios (cfr. art.º 4.º), concretamente, no seu n.º 2, que: …” – o sublinhado é nosso.

Quer dizer, do próprio discurso jurídico do tribunal a quo decorre que se passou de um regime de indisponibilidade para um de disponibilidade. Como assim, face a essa conclusão tal caducidade não é de conhecimento oficioso, pois a R. não a arguiu em lado nenhum.

Mais, foi essa conclusão a que se chegou no Ac. do STJ, de 4.12.2007, Proc.07B4321, em www.dgsi.pt, como justamente relembram os recorrentes, quando aí expressa que:

“No plano processual estamos perante uma excepção peremptória própria de tipo extintivo (artigo 487º, nº 2, do Código de Processo Civil).

O tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade dos interessados (artigo 496º do Código de Processo Civil).

No que concerne à caducidade, ela só é de conhecimento oficioso pelo tribunal se for estabelecida em matéria de indisponibilidade das partes, nesse caso em qualquer estado do processo (artigo 333º, nº 1, do Código Civil).

(…)

No caso contrário, isto é, se a caducidade for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, é aplicável o regime previsto para a prescrição, ou seja, o tribunal só dela pode conhecer se for invocada por quem dela aproveita (artigo 333º, nº 2, do Código Civil).

Os direitos são indisponíveis quando os respectivos titulares deles não possam dispor por mero efeito da sua vontade, como é o caso dos direitos relativos à personalidade e ao estado pessoal lato sensu, incluindo o familiar, em que prevalecem interesses de ordem pública.

Certo é que os cidadãos integrantes das comunidades locais não podem dispor individualmente do direito de propriedade sobre os terrenos baldios nem os podem adquirir por via da usucapião (artigos 1º, nº 1 e 4º, nº 1, da Lei dos Baldios).

Com efeito, a sua usufruição individual ou colectiva limita-se à apascentação de gados, à recolha de lenhas ou de matos, ao cultivo ou outras utilizações, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola, a que acima de fez referência.

Dir-se-á que o interesse público exige que se mantenha a referida propriedade comunitária, que corresponde a uma instituição que sobrevive de remoto passado, gerada pela necessidade do povoamento do território português.

Mas importa considerar que os mencionados baldios podem ser objecto de expropriação, de alienação por motivos de interesse público, de constituição de servidões, de cessão exploração por longos períodos, de arrendamento e até de extinção (artigos 10º, 26º, 27º, 29º e 31º, da Lei dos Baldios).

As referidas vicissitudes inscrevem-se na competência da assembleia de compartes, sob proposta do conselho directivo ou após a audição deste (artigos 15º, nº 1, alíneas j) e p), e 21º,

alíneas f), da Lei dos Baldios).

Acresce que a lei permite a aquisição do direito de propriedade sobre parcelas de terreno baldio a quem tenha construído nelas, de boa fé, a casa de habitação, como ocorre no caso vertente.

Embora o recorrido pudesse fazer valer, no confronto dos recorrentes, o seu direito a adquirir a construção realizada pelos últimos, porque estes deixaram decorrer o prazo de exercício do direito de aquisição do terreno, não o fez porém, nem contestou esta acção, e já lá vão cerca de sete anos.

Independentemente disso, estamos perante este quadro de disponibilidade pelos órgãos de administração dos baldios em relação à parcela de terreno em causa e ao direito patrimonial dos recorrentes de adquirirem o respectivo direito de propriedade por via do instituto da acessão industrial imobiliária.

Por isso, concluímos que o prazo de um ano a que se reporta o artigo 39º, nº 2, da Lei dos Baldios se refere a direitos disponíveis.

Em consequência, não podiam as instâncias conhecer oficiosamente da excepção peremptória da caducidade, porque o seu conhecimento dependia da respectiva invocação pelo recorrido, e tal não aconteceu”.

Entendimento este que foi igualmente sufragado no Ac. desta Relação de 12.9.2017, Proc.3745/15.7T8PL, consultável no mesmo sítio.

Em suma, no plano processual, a invocada excepção peremptória, não arguida pela R., não podia ser conhecida oficiosamente pelo tribunal a quo (arts. 571º, nº 2, 2ª parte, 576º, nº 3, e 579º, do NCPC).

Procede o recurso nesta parte, assim importando revogar a decisão recorrida nesta parte.

6. Quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) e d) – seus 1º e 4º pedidos – e na alínea e) – seu 5º pedido -, este último, absolutamente dependente do da d)/4º pedido, o que está em jogo é a aquisição para a autora, da propriedade e posse de 2 parcelas de terreno, integradas no baldio, por acessão industrial imobiliária, ao abrigo do disposto no art. 1340º, nº 1 do CC.

O tribunal a quo não se pronunciou sobre o pedido formulado sob a), mas estranhamente os AA recorrentes não arguiram a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, tal como fizeram quanto aos pedidos deduzidos sob d) e e). Há que conhecer de tal pedido.

Assim igualmente, face à apontada revogação da decisão recorrida, relativamente aos pedidos deduzidos sob d) e e). O que os recorrentes peticionam na parte final das suas conclusões complementares, em a) e b).

O que devia acontecer, tudo, nos termos do art. 665º, nº 2, do NCPC, por virtude da regra da substituição ao tribunal recorrido. 

Contudo, tal só é possível, se o tribunal ad quem, dispuser dos elementos necessários (mesmo artigo e número), o que não é o caso, pois o tribunal a quo ainda nem apurou/fixou os factos provados (repare-se que o tribunal recorrido proferiu despacho saneador, onde decidiu pela ilegitimidade total dos AA, mas apenas em relação apenas aos apontados pedidos formulados sob b) e c) da p.i.). E apesar da não contestação da R., ainda nem sequer observou a eventual aplicação ou não do disposto no art. 567º do NCPC (confissão de factos e exame do processo para alegações).

De sorte que este tribunal ad quem não pode aplicar a aludida regra de substituição ao tribunal recorrido, devendo, por isso, o processo prosseguir os seus termos.

(…)

IV – Decisão

Pelo exposto:

a) julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida, no respeitante à ilegitimidade dos AA, relativamente aos pedidos formulados na p.i. sob b) e c);

b) julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, no respeitante à caducidade do direito de acção dos AA, relativamente à parcela de terreno referida em d) do pedido formulado na p.i.

c) ordena-se o prosseguimento dos autos, relativamente ao conhecimento e decisão dos pedidos dos AA formulados em a), d) e e).  


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Custas pelos AA, na proporção de 1/3.

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Coimbra, 9.1.2024

Moreira do Carmo

Vítor Amaral

Fonte Ramos