Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1631/08.6TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: SEGURANÇA SOCIAL
PRESTAÇÕES DEVIDAS
MORTE
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 04/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 7/2001, DE 11/05; ARTºS 1º, Nº 1, E 8º, Nº 1, DO DEC. LEI Nº 322/90, DE 18/10; DEC. REG. Nº 1/94, DE 18/01; 2009º E 2020º, Nº 1, DO CC.
Sumário: Em acção instaurada contra a instituição de segurança social competente para atribuição das prestações por morte de beneficiário dessa instituição, ao autor compete provar, para além da união de facto, há mais de dois anos, com o referido beneficiário (não casado, ou separado judicialmente de pessoas e bens), que carece de alimentos e que não lhe é possível obter estes do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos seus descendentes, dos seus ascendentes e dos seus irmãos, nem da herança do de cujus.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1 - A....., solteira, maior, residente em ....., intentou, em 21/04/2008, nos Juízos Cíveis de Coimbra, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra o Instituto da Segurança Social, IP/Centro Nacional de Pensões, com sede em Lisboa, pedindo que lhe fosse seja reconhecida a qualidade de titular das prestações da segurança social pela morte do beneficiário B....., alegando para o efeito, em síntese, que:

- O aludido B.... e ela, Autora, a partir de Outubro de 1972, viveram maritalmente um com o outro na cidade da ..., Moçambique, partilhando mesa, leito e habitação, numa relação em tudo análoga à de marido e mulher, tendo sido em consequência de tal relação que, em 08.10.1973, veio a nascer o filho de ambos, C.....

- Tendo regressado a Portugal acompanhados do filho, o casal formado pela A. e pelo aludido B.... instalou a respectiva casa de morada de família na .... - ...., em ...., ali mantendo a residência familiar habitual e permanente;

- Necessita de alimentos, pois encontra-se aposentada da função pública, desde Agosto de 2005, auferindo uma pensão de reforma no montante de 818,15 €, suporta mensalmente, despesas com renda de casa, consumos de água, energia eléctrica, gás, telefone, seguros e combustível que, em média, ascendem a quantia não inferior a 300,00 €, suportando, ainda, despesas de saúde mensais no montante médio de 50,00 €;

- Tem problemas de saúde bastantes graves e vive apenas da exploração de um pequeno café, cujo rendimento mal dá para manter o seu funcionamento, sendo que nenhuma das pessoas obrigadas a alimentos, designadamente, as elencadas no art. 2009°, têm condições para os prestar.

2 - O Réu, contestando, impugnou os factos articulados na petição inicial, impugnando, também, o valor dado à causa pela Autora.

3 - Por despacho de fls. 46 foi fixado à causa o valor de 30.000,01 € e foi ordenada a remessa dos autos, após trânsito em julgado, à Vara Mista de Coimbra, nos termos do n°l do art. 319° do CPC.

4 - Já na Vara Mista de Coimbra, na sequência do convite que lhe foi formulado por despacho de fls. 58, veio a Autora a apresentar novo articulado aperfeiçoando a petição inicial.

B) - Elaborou-se o despacho saneador, procedeu-se à selecção dos factos assentes e à organização da base instrutória.

C) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, com registo da prova, após o que foi proferida sentença (em 23/09/2009), que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu o Réu do pedido.

II - Inconformada com o decidido, apelou a Autora para este Tribunal da Relação, terminando a sua douta alegação recursiva com as seguintes conclusões:

[………………………………………….]

III - A) - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do CPC [1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos, que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).
No presente recurso importa apurar se, em face da factualidade dada como provada, foi acertada a decisão de julgar a acção improcedente, o que passa por saber se à Apelante cabia o ónus de provar que carecia de alimentos e que não lhe era possível obtê-los dos familiares referidos nas alíneas a), b), c) e d) do n.° 1 do art. 2009° do C.C..

B) - Os factos:

Na sentença recorrida foi considerada como provada a seguinte factualidade:

[…………………………………….]

               

C) - O direito:

Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nem se vendo motivo que leve este Tribunal a modificá-la oficiosamente, as razões da improcedência da acção estão assim explicitadas na sentença impugnada: «(…) a A. provou, nesta acção, ter vivido com B.... - beneficiário da segurança social - desde 1972 até à data da sua morte, ocorrida em 10.12.2007, em condições análogas às dos cônjuges.

Mas não logrou demonstrar que se encontra carenciada de alimentos, o que decorre da sua situação económica comprovada nos autos, nomeadamente, porque se provou auferir uma pensão de reforma no montante de € 818,15, com a qual tem de fazer face às suas despesas com a renda da casa e consumos de água, luz, energia eléctrica e gás para além de ter despesas de saúde no montante médio mensal de € 40,00. Ainda que tivesse alegado demonstrar - e não o fez - as alegadas despesas no valor de € 300,00 mensais, sempre lhe restaria, deduzidas essas despesas, um rendimento disponível superior ao rendimento mínimo mensal garantido.

Ou seja, atento o montante que aufere e as despesas que tem, resulta óbvio não necessitar de quaisquer alimentos, por deles não estar necessitada, pois que a quantia mensal que recebe dá para custear as despesas que tem e ainda lhe sobra.

Pelo que, não logrando provar a necessidade de alimentos, a solução nos presentes autos terá de ser a improcedência da acção.

Mas ainda que assim não fosse, idêntica solução teria de ter a presente acção pois, provando embora que a herança aberta por óbito do falecido não tem bens que possam suportar a pensão reclamada nos autos não logrou demonstrar que os alimentos não lhe podem ser prestados pelos familiares referidos no artigo 2009.° do CC designadamente pelo filho.

Com efeito, o agregado familiar do filho da autora integra ainda a esposa deste e o filho do casal tendo um rendimento global de € 2.290,00 e despesas fixas que somam € 975,00, assinalando-se que têm a suficiente capacidade económica e financeira para despender a quantia de € 740,00 para amortização de empréstimo contraído para aquisição de habitação própria. De qualquer modo, deduzidas todas as referidas despesas o casal fica ainda com um rendimento disponível de € 1315,00.

Assim, do exposto resulta que a autora não logrou a prova, como lhe competia, que carece de alimentos e que nenhuma das pessoas previstas no art. 2009°, do Cód. Civil, lhe pode prestar alimentos.

Do que fica dito importa concluir que não se mostram reunidas todas as condições necessárias à atribuição à A. da titularidade da pensão de sobrevivência, pelo que a acção deverá ser julgada improcedente.».

Vejamos.

Adoptando medidas de protecção das uniões de facto, a Lei n.º 7/2001, de 11/05, que revogou a Lei n.º 135/99, de 28/8, considera como “união de facto”, a vivência de duas pessoas, independentemente de sexo, que vivam há mais de dois anos” (art.º 1, n.º 1) e estabelece que as pessoas que vivem em união de facto nas condições que prevê têm direito a protecção, na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei.

Ora, de harmonia com o que preceitua o art. 6º, n.º 1, da referida Lei 7/2001, relativamente ao regime de acesso às prestações por morte, “beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do art. 3, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no art. 2020 CC, decorrendo a acção perante os tribunais civis”.

Segundo o n.º 2, desse mesmo art.º 6º, em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.

Estipula o art.º 2020º do CC: “Aquele que no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009º.”.

Nesse art. 2009º consagra-se, na parte que ora interessa: “1. Estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:

a) O cônjuge ou o ex-cônjuge;

b) Os descendentes;

c) Os ascendentes;

d) Os irmãos;

(…)”.

Quer na vigência Lei n.º 7/2001, de 11/5, quer no domínio da legislação pretérita que regulava a matéria - v.g., a Lei n.º 135/99, de 28/8 - desenvolveram-se duas correntes jurisprudenciais no que concerne aos pressupostos de que dependia o direito às prestações por parte da pessoa que, à data da morte do beneficiário do regime geral da segurança social, com ele vivesse em condições análogas às dos cônjuges.

Uma dessas corrente exigia apenas a prova relativa ao estado civil do beneficiário falecido e a existência de uma relação de união de facto, que perdurasse há mais de dois anos, não fazendo recair, portanto, sobre o respectivo interessado, o ónus da prova, quer da sua necessidade de alimentos (art.º 2004º, do CC), quer da impossibilidade para os pagar por parte da herança ou dos familiares indicados nas alíneas a) a d) do art. 2009º do CC.

Tal entendimento assentava, essencialmente, na consideração de que a previsão da norma constante do art.º 2020, nº 1, do CC, na referência que lhe era feita pelo art.º 6º, nº 1, da Lei nº 7/2001, deveria ser interpretada restritivamente, reportando-se apenas e tão só aos requisitos da união de facto[3] .

Para outra corrente jurisprudencial, porém, o direito às prestações por morte de um beneficiário da Segurança Social, não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, dependeria, para além da alegação e prova da convivência com o mesmo em situação análoga à dos cônjuges, há mais de dois anos, da alegação e prova, da carência de alimentos e da impossibilidade de os obter, quer da herança do falecido, quer dos familiares indicados nas alíneas a) a d) do art. 2009º do CC.

Não surpreendendo, nos argumentos esgrimidos para o efeito, razão suficiente a impor a interpretação restritiva do 2020º, n°1, do CC, na referência que lhe é feita pelo art.º 6º, nº1, da Lei nº 7/2001, de 11/5, sufragamos este último entendimento jurisprudencial, salientando, não só que o mesmo já foi seguido no Acórdão desta Relação de 13/10/2009[4], proferido pelo colectivo de Juízes que subscreve o presente, como é o maioritariamente seguido pelo STJ, como, também, que é o entendimento que se conforta na jurisprudência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 195/2003, de 09/04/2003 (processo n.º 312/02), que decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, na parte em que faz depender a atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social, a quem com ele convivia em união de facto, de todos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil”.[5] [6]

Exemplificando, no que concerne à jurisprudência do STJ, foi decidido:

- No Acórdão de 19-03-2009 (Processo n.º 09B0202): «1. O direito às prestações por morte de um beneficiário da Segurança Social, não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, depende, para além da prova de com este conviver, em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos, da alegação e prova do sobrevivente estar carenciado de alimentos e de não os poder obter, quer da herança do falecido, quer dos familiares elencados no art. 2009º do CC.

2. As normas dos artigos 3º, alíneas e), f) e g) e 6º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, 8º do Decreto-Lei nº 322/80, de 18 de Outubro e 3º do Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, interpretadas no sentido de ser necessária sentença judicial a reconhecer o direito a alimentos do companheiro do beneficiário falecido, não são materialmente inconstitucionais.»;

- No Acórdão de 23/09/2008 (Processo n.º 08B2475): «1 - O direito às prestações por morte de um beneficiário da Segurança Social, não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, depende, para além da alegação e prova da convivência com o mesmo, em situação análoga à dos cônjuges, há mais de dois anos (tendo em conta a data da morte), da alegação e prova, também por banda do requerente, de estar carenciado de alimentos e de os não poder obter, quer da herança do falecido, quer dos familiares elencados no art. 2009º do CC.

2 - Incumbe ao requerente o ónus da prova de tais requisitos, que são - todos eles - elementos constitutivos do seu arrogado direito, sejam eles factos positivos ou negativos.

3 - Não justificando, em princípio, a inversão de tal ónus, a eventual maior dificuldade da sua prova.

4 - Sucedendo que, na falta de prova de qualquer um dos aludidos requisitos, a acção terá que improceder.»;

- No Acórdão de 16-09-2008 (Processo n.º 08A2232): «I) A norma constante do art. 2020º, n°1, do Código Civil, na referência que lhe é feita pelo art.6º, nº1, da Lei nº 7/2001, de 11.5, não deve ser interpretada restritivamente, no sentido que ao requerente apenas cumpre provar que vivia em união de facto há mais de dois anos e que o companheiro era subscritor da CGA.

II) Sobre o requerente da pensão de sobrevivência, em caso de união de facto, impende o ónus de provar, além daqueles requisitos, a sua necessidade de alimentos e a incapacidade dos familiares a que alude o art. 2009º, als. a) a d) do Código Civil lhos prestarem.

III) - Não devem ser tratadas no mesmo plano as obrigações jurídicas dos que se vinculam pelo contrato de casamento, daqueles que vivem em união de facto, ainda que em condições análogas às dos casados, não sendo violador dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade a maior exigência da lei no que respeita aos requisitos para a atribuição de alimentos ao sobrevivente de união de facto. »[7].

Indiscutido que a Autora não provou a carência de alimentos, nem que estes não lhe podiam ser prestados pelos familiares referidos no artigo 2009.°, estando assente, face a tudo o acima exposto, que cabia à Autora o ónus dessa prova, nada mais resta senão confirmar o decidido pelo Tribunal “a quo”.

Em síntese conclusiva, dir-se-á:

«Em acção instaurada contra a instituição de segurança social competente para atribuição das prestações por morte de beneficiário dessa instituição, ao autor compete provar, para além da união de facto, há mais de dois anos, com o referido beneficiário (não casado, ou separado judicialmente de pessoas e bens), que carece de alimentos e que não lhe é possível obter estes do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos seus descendentes, dos seus ascendentes e dos seus irmãos, nem da herança do “de cujus”.

IV - Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente e confirmar a sentença da 1.ª Instância.

Custas pela Apelante.


[1] Código este a considerar na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet , através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Assim, por exemplo, Acórdão da Relação de Lisboa de 4/11/2003, processo nº 7594/2003, consultável em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase.
[4] Apelação nº 45/08.2TBPNC.C1.
[5] Consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030195.html .
[6] Cfr. t.b., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/2005, de 09/11/2005 (Processo n.º 697/04), consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050614.html .
[7] Cfr., tb., em sentido idêntico aos ora citados, o Acórdão de 10/07/2008 (Processo n.º 08B1695), o Acórdão de 27/5/2008 (Processo n.º 08B1429) e o Acórdão de 28/02/2008 (Processo n.º 07A4799), todos do STJ.