Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
153/03.6TBANS-Q.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
MEIOS COMUNS
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 09/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 272º Nº1, 279º Nº1 E 1335º Nº1 DO CPC E 754º DO CC
Sumário: I – Ao contrário do que acontece na situação prevista no art. 1335º, nº 1, do C.P.C., a decisão proferida no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens que remete os interessados para os meios comuns não determina, só por si, a suspensão da instância no processo de inventário até que a questão seja decidida nos meios comuns; nessa situação apenas poderá ser equacionada a possibilidade de suspensão da instância nos termos gerais e, portanto, desde que já se encontre pendente a acção destinada a resolver as questões relativamente às quais os interessados haviam sido remetidos para os meios comuns e desde que exista entre essa acção e o inventário o nexo de prejudicialidade que é exigido pelo art. 279º, nº 1, do anterior CPC – ou 272º, nº 1, do actual CPC – como pressuposto dessa suspensão.

II – Se a causa que se encontra pendente tem como único objecto determinar a existência de outros bens a partilhar que não foram relacionados no inventário, a decisão que ali venha a ser proferida não afecta e não interfere com a partilha dos demais bens que aqui venha a ser efectuada, determinando apenas a necessidade de realizar uma partilha adicional; por essa razão não é possível concluir pela existência de uma relação de prejudicialidade que justifique a suspensão da instância no processo de inventário, até à decisão a proferir naquela acção.

III – O funcionamento do direito de retenção, concedido pelo art. 754º do CC, pressupõe a existência de uma obrigação de entrega de coisa certa e determinada (sobre a qual irá incidir o direito de retenção) e pressupõe que o crédito do titular daquele direito se reporte a despesas feitas por causa da coisa que está obrigado a entregar ou de danos por ela causados; consequentemente, não poderá ser configurado um qualquer direito de retenção sobre o valor das tornas a depositar em processo de inventário e relativamente a créditos que, reportando-se a alimentos e a compensação devida pela utilização da casa de morada de família, não têm com essas tornas a específica conexão que é legalmente exigida.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de inventário para partilha de bens em casos especiais no qual são interessados A...e B..., melhor identificados nos autos, foi elaborado o mapa informativo da partilha do qual resultava a obrigação da interessada A... de pagar tornas ao interessado B....

Na sequência desse facto e da notificação efectuada para proceder ao depósito das tornas, a interessada, A..., veio apresentar requerimento, alegando que:

Perante a complexidade de várias questões e direitos que haviam sido suscitadas foram proferidos despachos a remeter os interessados para os meios comuns; na sequência dessas decisões, intentou, em 29/09/2008, uma acção ordinária na qual veio a ser proferida decisão que condenou B... a ver relacionado, no processo de inventário para partilha de bens subsequente ao divórcio com a Autora A..., vários bens e rendimentos comuns e de elevado valor e, apesar de ter já fixado valores de alguns desses bens e rendimentos, tal decisão remeteu a quantificação de outros para apuramento em “fase de liquidação de sentença”; tendo sido pedido e ordenado, nessa sequência, o prosseguimento daqueles autos para liquidação de sentença, encontram-se ainda pendentes e, neste momento, a aguardar que o Sr. Perito apresente o resultado da perícia que lhe foi ordenada; assim – alega – existem questões prejudiciais que impõem a suspensão dos presentes autos de Inventário, por não poderem prosseguir sem que se mostre liquidada a sentença que condena o aqui Requerido a ver relacionados, neste inventário, bens e rendimentos comuns que essa liquidação, precisamente, há-de determinar – artº 1335º/1 e 2 do C.P.C.; por outro lado, além dos créditos da Acção acima referida, já considerados líquidos, bem como os ainda não liquidados, a Requerente é também credora do Requerido e ele devedor dela, noutros autos, nomeadamente: na Execução de Alimentos, apenso “H” aos presentes autos, de mensalidades em dívida e juros, neste momento do valor de aproximadamente 6.000,00€ (seis mil euros) e na Acção de Processo Sumário nº 547/05.2TBANS, por Sentença ali proferida em 18/08/2008 e há muito transitada em julgado, por utilização da casa de morada de família, que, com juros, ascende actualmente a mais de 3.000,00€ (três mil euros). Assim, conclui, sendo devedora de tornas ao Requerido e sendo este devedor de várias quantias à Requerente, goza ela do direito de retenção sobre o valor das tornas, que aqui invoca a seu favor e para todos os efeitos legais (cfr. artº 754º do Código Civil) e até que: se mostre liquidada a sentença supra referida; sejam relacionados no presente Inventário os valores resultantes da liquidação e sejam liquidados os débitos do Requerido para com a Requerente.

Com estes fundamentos, pede que, face às questões prejudiciais que suscita, se ordene a suspensão dos autos, até que se mostre liquidada a sentença da Acção Ordinária supra indicada e relacionados, neste inventário, os bens e/ou rendimentos comuns que essa liquidação determinar, nos termos do artº 1335º/1 e 2 do C.P.C..

E, subsidiariamente, requer que seja reconhecido que goza do direito de reter o valor das tornas, nos termos do artº 754º do Código Civil, até que se mostre liquidada a sentença supra referida e até que sejam relacionados os valores resultantes dessa liquidação e liquidados os débitos do Requerido para com a Requerente.

O Interessado, B..., respondeu, sustentando que não assiste à Requerente qualquer direito de retenção, não tendo aplicação o art. 754º do CC e concluindo pela improcedência daquele requerimento.

Na sequência desses factos, foi proferida decisão que indeferiu a pretensão da Requerente e ordenou o depósito das tornas a seu cargo.

Inconformada com essa decisão, a Requerente, A..., veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Salvo o devido respeito por opinião contrária, existe um nexo de prejudicialidade entre as duas causas, designadamente a presente Acção de Inventário e a Acção de Processo Ordinário n.º 399/ 08.0TBANS.

2ª - Contudo, o poder de suspensão da instância não tem carácter discricionário, estando dependente da verificação de determinados condicionalismos legais.

3ª - Daí que, em face do disposto no artigo 1335° do Código de Processo Civil (anterior), se entenda, tal como o fez o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 9/10/97 (CJ, STJ, III/97, pag.54) que "tendo algum interessado pedido a exclusão de verbas da relação de bens alegando que eram suas e não da herança ( ... ) deve a instância ser suspensa em consequência de ter sido proposta acção pedindo se declare que as ditas verbas lhe pertencem."

4ª - Assim, o fundamento para a suspensão dos presentes autos, assenta na referida prejudicialidade, por daquela «depender a definição dos direitos dos interessados na partilha».

5ª - Ora, uma questão prejudicial é uma questão prévia que, não sendo preliminar (em que a solução pode tornar dispensável ou inadmissível o julgamento das questões delas dependentes), a sua decisão influenciará ou determinará o conteúdo da questão vinculada.

6ª - Isto é, à luz da disposição legal supra mencionada, estamos perante uma questão prejudicial susceptível de justificar, à luz dos critérios concretos e subjectivos de ponderação definidos na lei, a suspensão do inventário.

7ª - Aliás, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação Coimbra n.º 4265/03 datado de 09/03/2004 no proc. 314/09.4TBAVR.Cl, publicado in www.dgsi.pt, traduz isso mesmo:

«I - Quando a Lei permite que possa ser ordenada a suspensão quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta, a anterioridade aí mencionada é relativa à própria suspensão, querendo, portanto, significar que para ser decretada a suspensão é necessário que a acção considerada como prejudicial já tenha sido proposta, antes ou depois da acção a suspender. II - Resulta do art. 279.° n.º 1 1.ª parte do C. P. C., que a suspensão da instância por causa prejudicial depende de nesta se discutir questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser daquela. III - A 2.ª parte do n.º 2 do art. 279.° deve ser entendida no sentido de que a lei não toma em consideração, propriamente, os prejuízos ou vantagens (de um ponto de vista subjectivo) das partes, mas apenas a fase em que se encontra a causa dependente quando é requerida a suspensão.»

8ª - Ora, para efeitos de suspensão para a anterioridade de questão prejudicial basta que a acção considerada como prejudicial já tenha sido proposta, antes ou depois da acção a suspender.

9ª - O que se verificou no caso concreto.

10ª - Também, importa referir que, a suspensão do inventário não tem de ser imediatamente ordenada, devendo antes acontecer quando as partes demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns.

11ª - Estamos, assim, perante uma medida cautelar que assegura que a suspensão da instância só será decretada quando existir fundamento sério para tal.

12ª - Ora, a Recorrente requereu a suspensão com fundamento e prova de que já havia recorrido aos meios comuns.

13ª - Apesar de a acção que determina a suspensão ter sido instaurada posteriormente à de inventário, tal não é bastante para concluir que foi unicamente instaurada para obter a suspensão destes autos.

14ª - Acresce referir que, no que concerne à certeza jurídica, não existe base para concluir que a suspensão destes autos causará mais prejuízos do que as vantagens decorrentes da mesma.

15ª - Nestes termos, não restam dúvidas de que estamos perante uma questão prejudicial e a decisão a proferir na Acção de Processo Ordinário supra referida (no que concerne à liquidação) pode influir na decisão a proferir na presente Acção de Inventário, designadamente no que concerne ao valor do acervo patrimonial do casal dissolvido, ao mapa da partilha, aos quinhões de cada interessado e sobretudo, deixando a sentença homologatória em suspenso de uma hipotética reabertura do inventário, com prejuízo da segurança e certezas jurídicas dos interessados e do comércio jurídico em geral.

16ª - Acresce que, sendo as partes as mesmas em ambas as acções, a decisão que vier a ser proferida na Acção de Processo Ordinário forma caso julgado em relação à Acção de Inventário e pode determinar a reabertura desta.

17° - Face ao exposto, o douto despacho ao indeferir a pretensão da Recorrente no que toca ao pedido de suspensão, violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 272° do novo Código de Processo Civil e 1335° do anterior Código de Processo Civil.

Caso assim não se entenda sempre se dirá que,

18ª - Quanto ao pedido da Requerente no que concerne ao direito de retenção sobre o valor das tornas, importa referir que o mesmo deveria ter sido deferido.

19ª - Ora, o direito de retenção consiste num meio de defesa outorgado ao credor, a quem é reconhecida a faculdade de continuar a deter a coisa alheia, mantendo-a em seu poder até ser indemnizado pelo crédito, que se origina, via de regra, das benfeitorias ou de acessões por ele feitas.

20ª - Conforme preceitua o artigo 754° do Código Civil "o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados".

21ª - O direito de retenção consiste assim no princípio da equidade, de dar a cada um o que é seu.

22ª - A existência de direito de retenção assenta nos seguintes pressupostos:

- Uma conexão causal entre a coisa e o crédito a ser recebido, a qual pode resultar de despesas feitas pela coisa ou danos por ela causados, como por exemplo, o conserto de um veículo, onde a oficina mecânica, não recebendo o valor acertado pelo serviço prestado, poderá reter o aludido veículo, ou um acidente de carro, onde o acidentado poderá reter o veículo daquele que deu causa ao acidente para garantir o pagamento dos prejuízos causados, e ainda, de uma relação legal ou contratual, como percebemos no artigo 755°, que são os chamados casos especiais, onde não há, necessariamente, uma relação directa do crédito e da coisa;

- A coisa deve ser certa, não se podendo reter coisa incerta. Devendo deter a coisa de maneira lícita ou a constituição do crédito não tenha resultado de despesas efectuadas de má-fé;

- A coisa a ser retida não pode revestir-se do carácter de impenhorabilidade;

- Por fim, o crédito deve ser exigível, mas não necessariamente líquido.

23ª - Assim sendo, reportando-nos ao caso em apreço, não restam dúvidas de que a Recorrente é credora do Recorrido, nos seguintes termos:

- Os créditos na Acção de Processo Ordinário abundantemente referidos, já considerados líquidos, bem como os ainda não liquidados;

- Os créditos na Execução de Alimentos, apenso "H" aos presentes autos, de mensalidades em dívida e juros, neste momento do valor de aproximadamente 6.000,00€ (seis mil euros);

- Os créditos na Acção de Processo Sumário nº 547/ 05.2TBANS, por Sentença ali proferida em 18/08/2008 e há muito transitada em julgado, por utilização da casa de morada de família, que, com juros, ascende actualmente a mais de 3.000,00€ (três mil euros).

24ª - A coisa é certa, penhorável e exigível.

25ª - Também, embora não exista uma relação causal directa entre o crédito e a coisa, certo é que, estamos perante uma relação contratual, que origina uma conexão especial.

26ª - Nestes termos, existindo conexão entre a coisa e o crédito a ser reconhecido, a Requerente goza do direito de retenção sobre o valor das tornas, que aqui invoca a seu favor e para todos os efeitos legais (sendo este um caso especial, contemplado no 755° do Código Civil) e até que:

a)- Se mostre liquidada a sentença proferida no Processo nº 399/08.0TBANS; Por exemplo, os 14.508,35€ do ponto ii. e o veículo do ponto iv., da alínea a) do nº 1 da mesma Decisão.

b)- Relacionados no presente Inventário os valores resultantes da liquidação;

c)- Liquidados os débitos do Requerido para com a Requerente.

27ª - Pelo que antecede, não restam dúvidas de que a Meritíssima Juiz" a quo", ao proferir o mui douto despacho de que ora se recorre, violou o disposto nos artigos 754° a 756° do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser mui doutamente proferida nova decisão que determine a revogação do despacho proferido e ser proferido outro que determine a suspensão dos presentes autos até que se mostre liquidada a sentença na Acção Processo Ordinário e relacionados, neste Inventário, os bens/rendimentos comuns que essa liquidação determinar.

Ou caso assim não seja mui doutamente entendido, deverá ser proferido novo despacho que reconheça que a Recorrente goza do direito de reter o valor das tornas, até que mostre liquidada a sentença na Acção Processo Ordinário e relacionados, neste Inventário, os bens/rendimentos comuns que essa liquidação determinar.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Agravante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se deve ser suspensa a instância no processo de inventário até à decisão da causa onde se discute a existência de outros bens a partilhar e que foi proposta na sequência de decisão proferida no proferida no inventário que remeteu os interessados para os meios comuns com vista à resolução dessa questão;

• Saber se a Agravante goza de direito de retenção sobre o valor das tornas a cujo depósito está obrigada até à relacionação dos bens cuja existência se discute numa outra causa que se encontra pendente e até à satisfação dos créditos que a Agravante detém sobre o Agravado referentes a prestações de alimentos e à utilização da casa de morada de família.


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III.

Na decisão recorrida, foram enunciados os seguintes factos que resultam dos autos:

1 - Conforme resulta do mapa informativo de fls. 662 a 663, a interessada e ora requerente, é devedora de tornas no montante de €44.232,47, tendo sido notificada para as depositar.

2 - Foi comunicado aos presentes autos a penhora das tornas em apreço nas execuções nº 528/12.0TBANS no valor de 46.648,12 e processo nº 547/05.2TBANS-A, no total de €3695,23.

3 - Perante várias questões e direitos oportunamente suscitados e reclamados nos presentes autos, foi decidida a remessa para os meios comuns nos termos do artigo 1350º, nº 1, do CPC – cfr. despachos de fls. 303 e seguintes e de fls. 462 e seguintes.

4 - Na sequência de tais decisões, em 29/09/2008 intentou a Requerente neste Tribunal a Acção de Processo Ordinário nº 399/08.0TBANS, em que o pedido tem o valor de 351.292,52€ e na qual foi proferida douta Sentença em 09/02/2011 e rectificada por despacho de 05/05/2011, sentença em que o ali Réu (aqui Requerido), B..., além do mais, foi condenado “a ver relacionado, no processo de inventário para partilha de bens subsequente ao divórcio com a Autora A...”, bens e rendimentos comuns;

5 - E, apesar de ter já fixado valores de alguns desses bens e rendimentos, remeteu, aquela sentença, a quantificação de outros – v.g. pontos i. e iii. Da alínea a) e alínea b) do nº 1 do capítulo III. DECISÃO - para apuramento em “fase de liquidação de sentença”.

6 - Pedido e ordenado, nessa sequência, o prosseguimento daqueles autos para liquidação de sentença, encontram-se ainda pendentes e, neste momento, a aguardar que o Sr. Perito apresente o resultado da perícia que lhe foi ordenada.

7 - A Requerente é também credora do Requerido:

a)- Na Execução de Alimentos, apenso “H” aos presentes autos, de mensalidades em dívida e juros, no valor de cerca de 6.000,00€ (seis mil euros);

b)- Na Acção de Processo Sumário nº 547/05.2TBANS, por Sentença ali proferida em 18/08/2008 e já transitada em julgado, por utilização da casa de morada de família, que, com juros, ascende a mais de 3.000,00€ (três mil euros).


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IV.

Analisemos, então, as questões suscitadas no recurso.

Suspensão da instância

A Agravante começa por sustentar que a decisão recorrida, ao indeferir a sua pretensão no sentido da suspensão do inventário, violou o disposto no art. 272º do novo CPC e o art. 1335º do anterior CPC, porquanto – diz – a decisão a proferir na acção com processo ordinário nº 399/08.0TBANS pode influir na decisão a proferir no presente inventário, designadamente no que concerne ao valor do acervo patrimonial do casal dissolvido, ao mapa da partilha, aos quinhões de cada interessado e deixando a sentença homologatória em suspenso de uma hipotética reabertura do inventário, com prejuízo da segurança e certezas jurídicas dos interessados e do comércio jurídico em geral. Assim, conclui, existe prejudicialidade entre as duas causas que justifica a suspensão do presente inventário até que seja proferida decisão na acção supra mencionada que se encontra pendente.

Não nos parece, contudo, que lhe assista razão.

Dispõe o art. 272º, nº 1, do actual CPC – tal como dispunha o art. 279º, nº 1, do anterior CPC – que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
Segundo o Prof. Manuel de Andrade[2], só existe verdadeira prejudicialidade e dependência quando na primeira causa se discute, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental. Mas, segundo o mesmo autor, nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos, podendo considerar-se prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.
Concordando com esse entendimento, o Prof. José Alberto dos Reis refere que “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir ou modificar o fundamento ou a razão da segunda…[3], referindo ainda que “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta[4].
Em termos gerais, podemos afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afectar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “…na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito, quando a decisão de uma acção - a dependente - é atacada ou afectada pela decisão ou julgamento emitido noutra[5] ou quando “…numa acção já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço[6].
Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.
Ao nível do processo de inventário, é possível afirmar a existência dessa prejudicialidade nas situações previstas no art. 1335º do CPC (anterior), ou seja, quando estejam em causa questões das quais dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados e que se prendem, designadamente, com a qualidade de herdeiro de quem reclama, no inventário, essa qualidade e a titularidade do direito de exigir e de intervir na partilha da herança. Nessas situações, é evidente que a resolução dessa questão irá interferir e influenciar o processo de inventário, seja ao nível da sua existência (se a questão em causa se relacionar com a sua admissibilidade), seja ao nível da partilha que aí venha a ser efectuada (se a questão se relacionar com a definição dos direitos dos interessados e, designadamente, com a qualidade – ou não – de herdeiro) e, portanto, a resolução dessa questão terá influência directa na decisão do inventário, destruindo o fundamento do inventário ou alterando, de forma essencial e substancial, os fundamentos e os pressupostos em que se baseou a partilha efectuada.
Por isso mesmo, determina o citado art. 1335º que o processo de inventário será suspenso até à decisão dessa questão prejudicial, suspensão que ocorre por mero efeito da decisão proferida no processo de inventário que, pela complexidade da questão, remeta os interessados para os meios comuns com vista à sua resolução e independentemente de já se encontrar pendente uma qualquer causa que tenha por objecto a definição dessa questão.
Não é essa, no entanto, a situação que ora nos ocupa.
Com efeito, não está aqui em causa uma qualquer questão que interfira com a admissibilidade do inventário ou com a definição dos direitos dos interessados e que se inclua no âmbito de previsão do citado art. 1335º; o que está aqui em causa é apenas a determinação dos bens que fazem parte do acervo patrimonial a partilhar e estas questões têm natureza diversa daquelas que estão em causa no art. 1335º, como se considerou, aliás, no Acórdão da Relação de Coimbra – que é citado pela Agravante – de 11/09/2007[7], porquanto estas questões – apenas relacionadas com a determinação dos bens a partilhar – não contendem com a admissibilidade do inventário e não interferem com a definição dos direitos dos interessados, seja no que toca à titularidade do direito de participar na partilha, seja no que toca à definição da medida (quota) dessa participação.
Ainda que se entenda – como parece entender a Agravante – que o art. 1335º é uma disposição de carácter geral que abrange situações como a dos autos, a verdade é que tal norma, de carácter geral, sempre teria que ceder perante as normas que regulam especificamente – e de forma diversa – o incidente de reclamação contra a relação de bens.
Com efeito, o incidente de reclamação contra a relação de bens está regulado nos arts. 1348º e segs., determinando o art. 1350º que, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas nas reclamações contra a relação de bens torne inconveniente a sua resolução incidental no inventário, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns. Foi isto que aconteceu no caso sub judice, o que determinou a propositura da acção (que a Agravante considera ser prejudicial relativamente ao inventário) onde se discute a existência de determinados bens e a sua inclusão (ou não) no acervo patrimonial a partilhar.
Todavia, além de não se prever aqui a suspensão do processo de inventário até à decisão a proferir nos meios comuns (como acontece na situação prevista no art. 1335º), o legislador até dispõe em sentido contrário, quando determina, no nº 2 do citado art. 1350º, que, no caso previsto no número anterior (ou seja, quando os interessados são remetidos para os meios comuns no que toca às questões suscitadas na reclamação contra a relação de bens), não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu. Ao dispor nestes termos, o legislador teve, naturalmente, em vista o prosseguimento do inventário, independentemente da efectiva resolução das questões (apenas relacionadas com a determinação dos bens a partilhar) a dirimir nos meios comuns e afastando, portanto, a possibilidade de o juiz determinar, desde logo, a suspensão do inventário até que, nos meios comuns, seja proferida decisão definitiva sobre essas questões.
Parece, portanto, dever concluir-se que, ao contrário do que acontece na situação prevista no art. 1335º, nº 1, no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens, a decisão de remeter os interessados para os meios comuns não poderá determinar, só por si, a suspensão da instância no processo de inventário até que a questão seja decidida nos meios comuns.
Mas, em princípio, nada obstaria a que a suspensão pudesse ser decretada nos termos gerais, ao abrigo do disposto no art. 279º, desde que se verificassem os pressupostos legais e a partir do momento em que fosse efectivamente instaurada a acção com vista à decisão da questão que estava em causa na reclamação contra a relação de bens (sendo que, ao contrário do que acontece na situação prevista no art. 1335º, nº 1, a suspensão da instância com fundamento em pendência de causa prejudicial pressupõe que esta já tenha sido proposta).
Mas, para que a suspensão da instância pudesse ser decretada nesses termos, era necessário que existisse entre ambas as acções o nexo de prejudicialidade a que já aludimos e que é pressuposto do funcionamento do citado art. 279º, nº 1.
A verdade, porém, é que tal nexo de prejudicialidade não se verifica no caso sub judice.
Com efeito, a acção que se encontra pendente (com fundamento na qual a Apelante pretende ver suspenso o inventário) tem como único objectivo apurar a existência de outros bens ou rendimentos a partilhar, pelo que a decisão a proferir não tem aptidão para destruir ou alterar os fundamentos da partilha dos bens que, entretanto, venha a ser efectuada no inventário. A eventual existência de outros bens a partilhar determinará apenas a necessidade de realizar uma partilha adicional (em conformidade com o disposto no art. 1395º do CPC), sem que tal implique qualquer alteração à partilha anteriormente efectuada relativamente aos bens cuja existência já estava definida no inventário.
Ao contrário do que acontece quando o objecto da acção tem em vista a exclusão de determinados bens que estão relacionados no inventário (questão que poderá assumir outros contornos e poderá reclamar outra solução)[8], quando essa acção tem como único objecto determinar a existência de outros bens a partilhar que não foram relacionados no inventário, a decisão a proferir é totalmente indiferente para a partilha dos bens cuja existência já está definida; aquela questão não é essencial e não tem que ser considerada para a partilha dos bens que se encontram relacionados no inventário e a partilha destes bens não será atacada ou afectada pela decisão que venha a ser proferida no sentido de existirem outros bens a partilhar, sendo que esta decisão apenas determinará a necessidade de realizar uma partilha adicional.
Parece-nos, portanto, que não existe entre ambas as acções qualquer relação de prejudicialidade que justifique a suspensão da instância no presente inventário, até à decisão a proferir naquela acção[9].
Improcede, portanto, o recurso, no que toca a esta questão.

Direito de retenção

Sustenta ainda a Agravante – em desacordo com a decisão recorrida – que tem direito de retenção sobre o valor das tornas, a cujo depósito está obrigada, até que se mostre liquidada a sentença proferida no Processo nº 399/08.0TBANS, até que sejam relacionados no presente Inventário os valores resultantes da liquidação e até que sejam liquidados os débitos que o Requerido tem para com a Requerente.

Não lhe assiste, no entanto, qualquer razão.

Dispõe o art. 754º do C.C. que “O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

O art. 755º enuncia, por seu turno, alguns casos especiais em que é conferido o direito de retenção.

Sendo indiscutível que o caso em análise não se integra em nenhuma das situações previstas no art. 755º, o direito de retenção da Agravante apenas poderia encontrar apoio no art. 754º.

Conformem referem Pires de Lima e Antunes Varela[10], “para que exista direito de retenção, nos termos deste artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar, que o respectivo titular detenha (licitamente: cfr. art. 756º, alín. a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em segundo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (…), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados”.

Ora, como facilmente se constata, não ocorrem no caso sub judice os referidos pressupostos do direito de retenção.

Em primeiro lugar, porque a Agravante não detém qualquer coisa que deva entregar ao Agravado; a Agravante apenas está obrigada a pagar ao Agravado uma determinada quantia a título de tornas e por força da adjudicação de bens que lhe foi efectuada em excesso relativamente à sua quota. O funcionamento do direito de retenção pressupõe a existência de uma obrigação de entrega de coisa certa e determinada (sobre a qual irá incidir o direito de retenção) e a Agravante não está obrigada a qualquer obrigação desse tipo, mas sim a uma obrigação pecuniária que se constitui no decurso do inventário em virtude de os bens que lhe são adjudicados excederem o quinhão a que tem direito.

É certo, por outro lado, que entre os créditos invocados pela Agravante e a obrigação de tornas não existe a relação de conexão que é exigida para o funcionamento do direito de retenção, porquanto, como é evidente, os créditos da Agravante não resultaram de despesas feitas por causa das tornas ou de danos por elas causados. Os créditos invocados pela Agravante reportam-se a prestações de alimentos devidas pelo Agravado e à utilização da casa de morada de família que foi efectuada pelo Agravado e não vislumbramos como e em que termos se poderia considerar que esses créditos resultam de despesas feitas por causa das tornas que a Agravante está obrigada a pagar ou de danos por ela causados e da decisão a proferir na acção nº 399/08 também não resultará qualquer crédito que tenha com as aludidas tornas aquela específica conexão.

Aliás, a própria Agravante reconhece – conclusão 25ª das conclusões das alegações – que não existe relação causal directa entre os créditos e a coisa, apenas sustentando que está em causa uma relação contratual que origina uma conexão especial.

Mas, exista ou não a tal conexão especial a que alude a Agravante, a verdade é que o legislador não se bastou com qualquer conexão (especial ou não), exigindo, para o funcionamento do direito de retenção, uma concreta e determinada conexão entre o crédito e a coisa sobre a qual se invoca a retenção, impondo que o crédito tenha resultado de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados e esta concreta e determinada conexão (única que releva para efeitos de funcionamento do direito de retenção, ao abrigo do disposto no art. 754º) não existe no caso sub judice, conforme referimos.

Questão diversa seria a de saber se a Agravante podia ou não invocar a compensação de créditos como forma de extinguir a sua obrigação de tornas, sendo certo, porém, que tal questão não foi colocada no presente recurso e, portanto, não poderá haver lugar à sua apreciação.

Refira-se, para finalizar, o seguinte: compreendemos, de algum modo, a pretensão da Agravante que, estando obrigada a depositar tornas, pretende ver dispensado esse depósito como forma de garantir o efectivo pagamento dos créditos que detém sobre o Agravado, mas, para atingir tal objectivo, poderia, designadamente, ter requerido a penhora do direito às tornas com vista ao pagamento dos seus créditos (o que fez, aliás, pelo menos no que toca a um dos créditos) e teria, certamente, outros meios legais à sua disposição – que não nos cabe indicar – para garantir o seu direito. É certo, por outro lado, que no proc. nº 399/08.0TBANS já foi proferida decisão em 2011 onde foram determinados alguns bens a relacionar no inventário (um veículo e um saldo bancário) e, ao que nos parece, poderia a Agravante ter requerido, desde logo, a inclusão desses bens (já determinados) no inventário, o que permitiria, eventualmente, reduzir o valor das tornas que está obrigada a depositar.

A verdade é que a Agravante não pode invocar qualquer direito de retenção sobre o valor das tornas, porquanto, como assinalámos, não estão verificados os respectivos pressupostos.

Por outro lado e como também assinalámos, a eventual existência de outros bens a partilhar (questão que está em apreciação no âmbito de uma acção que se encontra pendente) não obsta à realização da partilha dos bens que já estão determinados e a decisão que venha a ser proferida naquela acção não invalida e não interfere com a partilha dos demais bens, apenas justificando a realização de uma partilha adicional; tal acção não se configura, pois, como causa prejudicial relativamente ao inventário e, nessa medida, não justifica a suspensão da instância neste processo.

  

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO:
I – Ao contrário do que acontece na situação prevista no art. 1335º, nº 1, do C.P.C., a decisão proferida no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens que remete os interessados para os meios comuns não determina, só por si, a suspensão da instância no processo de inventário até que a questão seja decidida nos meios comuns; nessa situação apenas poderá ser equacionada a possibilidade de suspensão da instância nos termos gerais e, portanto, desde que já se encontre pendente a acção destinada a resolver as questões relativamente às quais os interessados haviam sido remetidos para os meios comuns e desde que exista entre essa acção e o inventário o nexo de prejudicialidade que é exigido pelo art. 279º, nº 1, do anterior CPC – ou 272º, nº 1, do actual CPC – como pressuposto dessa suspensão.
II – Se a causa que se encontra pendente tem como único objecto determinar a existência de outros bens a partilhar que não foram relacionados no inventário, a decisão que ali venha a ser proferida não afecta e não interfere com a partilha dos demais bens que aqui venha a ser efectuada, determinando apenas a necessidade de realizar uma partilha adicional; por essa razão não é possível concluir pela existência de uma relação de prejudicialidade que justifique a suspensão da instância no processo de inventário, até à decisão a proferir naquela acção.

III – O funcionamento do direito de retenção, concedido pelo art. 754º do CC, pressupõe a existência de uma obrigação de entrega de coisa certa e determinada (sobre a qual irá incidir o direito de retenção) e pressupõe que o crédito do titular daquele direito se reporte a despesas feitas por causa da coisa que está obrigado a entregar ou de danos por ela causados; consequentemente, não poderá ser configurado um qualquer direito de retenção sobre o valor das tornas a depositar em processo de inventário e relativamente a créditos que, reportando-se a alimentos e a compensação devida pela utilização da casa de morada de família, não têm com essas tornas a específica conexão que é legalmente exigida.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Agravante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro

                    


[1] Reg. nº 161.
[2] Lições de Processo Civil, págs. 491 e 492.
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, págs. 268 e 269.
[4] Ob. cit., pág. 206.
[5] Cfr. Ac. do STJ de 29/09/93, processo nº 084216, em http://www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Ac. do STJ de 06/07/2005, processo nº 05B1522, em http://www.dgsi.pt.
[7] Proferido no processo nº 48/03.3TBFIG.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Importa notar que é esta a situação que está em causa no Acórdão do STJ de 09/10/97 e no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/09/2007, que são citados pela Apelante.
[9] Neste sentido, podemos encontrar os Acórdãos da Relação do Porto de 06/05/2013 e de 16/09/2010, proferidos nos processos nºs 8/1978.P1 e 675/08.2TJVNF.P1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt
[10] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 742.