Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
283/23.8T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO PRÉVIA DA REQUERIDA
CMULAÇÃO DO PEDIDO DE SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇAO PRÉVIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 138.º, 1; 140.º E 141.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 891.º, 1; 892.º; 896.º, 1; 897.º, 2; 898.º, 1; 899.º, 1 E 2 E 986.º, 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I -No âmbito do processo de acompanhamento de maior, o Requerente, que,   “ab initio”, só o possa instaurar mediante autorização do beneficiário e não     a possua, deve, no requerimento inicial, cumular o pedido de suprimento da autorização do beneficiário.

II - Cumprindo-lhe, nesse caso, alegar os factos que fundamentam tal pedido, muito embora não tenha logo que fazer a  prova   dos mesmos, v.g., juntando documentos que, suficientemente, demostrem a veracidade desses factos.

III - Ante essa alegação, caso a mesma não seja  manifestamente  inábil  a  justificar o pedido de suprimento, o juiz deve ordenar o prosseguimento do processo, pois que, no seu decurso haverá plúrimas ocasiões, atenta a respectiva tramitação e os poderes do julgador que acima se evidenciaram, para, ponderadamente, se aferir da justeza do referido  pedido  de suprimento.

III - Assim, tendo-se procedido, no requerimento inicial,  à  alegação de factos  que justificam o pedido de suprimento da autorização do beneficiário, que     aí se cumulou, e não ocorrendo a manifesta inabilidade desses factos para lograrem essa justificação, é prematuro, na fase liminar, indeferir tal pedido de suprimento e, consequentemente, declarar a ilegitimidade do Requerente para instaurar o processo de  acompanhamento.

Decisão Texto Integral:
Relator: Falcão de Magalhães
1.ºAdjunto: Des. Pires Robalo
2.º Adjunto: Des. Sílvia Pires


Apelação n.º 283/23.8T8MGR.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:1

I – A) AA, casada, residente na Urbanização ..., lote ..., ... ..., intentou acção para a aplicação do regime de acompanhamento de maior à requerida BB, viúva, sua mãe, alegando acções e comportamentos desta – cujo actual paradeiro desconhece -, que, segundo o seu entender, levam a crer que a requerida sofre de patologia que, colocando em perigo, a sua pessoa e os seus bens, justifica a protecção da mesma através de acompanhamento.
Alegou, também, que a maioria desses factos e comportamentos, que descreve, justificam que, não tendo a Requerente autorização da Requerida para instaurar a presente acção, peticione, como o faz na petição, o suprimento de tal autorização, nos termos dos artigos 892.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e 141.º n.º 3 do Código Civil.
Designadamente, entre o mais, alegou-se no Requerimento inicial:
«[…]10.º
A Requerida é viúva, tendo nascido a .../..../1934, em ... (...), tudo conforme certidão de nascimento que se junta como Doc. n.º 2.
11.º
A Requerida tem duas filhas: a aqui Requerente e a CC. 12.º
A Requerida tem, atualmente, 88 anos e tem como última morada conhecida o Beco ..., "...", DD, ... ....
13.º
A Requerida até julho de 2021 vivia sozinha, em casa própria, em .... (…)
20.º
Sucede que, em meados de 2018/2019, a Requerida começou a apresentar comportamentos estranhos.
21.º
Tinha um diálogo muito repetitivo e contava sempre as mesmas histórias do passado. 22.º
A Requerida jamais podia ser contrariada, sob pena de cortar relações. 23.º
Começou a dizer aos netos coisas sem grande nexo. (…)
38.º
No final de 2020, a Requerida começou, praticamente todos os meses, a pedir dinheiro ao neto EE, conforme Doc. n.º 3.
39.º
Alegando que gastava o dinheiro na farmácia e no dentista. 40.º
Veio a Requerente, mais tarde, a descobrir que a Requerida gastava muito dinheiro, nomeadamente, em raspadinhas, o que se comprova, também, com a utilização do cartão multibanco na papelaria/tabacaria “...” e com recebimento de prémios, conforme Doc. n.º 3.
(…) 45.º
Face aos acontecimentos, mas em data que não sabe precisar, a Requerente e a irmã CC concordaram que a Requerida não tinha condições para viver sozinha.
46.º
Razão pela qual, a filha CC foi viver com e para casa da Requerida. 47.º
Contudo, passado algum tempo, desentenderam-se, 48.º
Pelo que a filha CC acabou por se ir embora. 49.º
Pouco tempo depois, a Requerida reconheceu que não se sentia confortável na sua casa e que não tinha condições para viver sozinha, mas não queria ir para o lar.
50.º
Motivo pelo qual a Requerida decidiu vender a sua casa (o que ocorreu 21-01-2022). 51.º
Face a essa circunstância, ficou combinado que a mesma iria viver com a Requerente e o marido, que na altura ainda se encontravam a viver em França, mas que já tinham ideia de regressar, em definitivo, a Portugal.
52.º
Em julho de 2021 a casa foi colocada à venda. 53.º
Nessa altura, a Requerida mudou-se, sozinha, para a casa da Requerente e do marido, na ....
54.º
Acontece que, ao contrário do que esperavam os netos e a Requerente, a Requerida começou novamente afirmar que pessoas tentavam entrar na casa.
55.º
Razão pelo qual, o neto EE comprou e instalou câmaras de videovigilância. 56.º
Todavia, nunca registou ninguém a tentar entrar em casa ou observou alguma coisa anormal.
57.º
A Requerida continuou a despender o dinheiro sem noção. (…)
96.º
Confirmou a Requerente que a Requerida quando abandonou a casa, foi viver para casa da filha CC, em FF.
97.º
Todavia, só aí ficou a viver cerca de um mês. 98.º
Soube, posteriormente, que a Requerida foi viver com o Sr. GG e a mulher – que pediram apoio ao Centro Paroquial ... pois a situação ficou insustentável (o que terá acontecido entre finais do ano de 2022 ou início do ano de 2023)
99.º
Mais tarde, foi viver com uma Sra. de nome FF, 100.º
Posteriormente com uma Sra. chamada HH, 101.º
Não se sabendo ao certo onde a Requerida reside atualmente. (…)
Face ao comportamento da Requerida (e eventualmente por razões de saúde), é notório que a mesma atualmente é incapaz de cuidar da sua própria pessoa e bens.
114.º
Não aceitando qualquer a cooperação e assistência da família, 115.º
Confiando apenas em pessoas estranhas. 116.º
É notório que Requerida atualmente é incapaz de gerir o seu dinheiro. 117.º
Entende a Requerente, que a Requerida não pode andar a “saltitar” de casa em casa. 118.º
Sendo urgente, arranjar uma solução para a mesma. 119.º
Designadamente, ir residir para um lar digno onde a Requerida possa ter todos os cuidados e ser bem tratada.
120.º
É evidente que o comportamento da Requerida se tem agravado, 121.º
Não há qualquer expetativa de irreversibilidade.
122.º
Estando a Requerida impossibilitado de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres.
123.º
Afigurando-se, assim, a presente ação de acompanhamento absolutamente necessária. 124.º
Não só pelo facto de haver necessidade de tomar decisões que envolvem a pessoa do Requerida e sobre as quais alguém tem de se responsabilizar,
125.º
Como também pelo facto do Requerido constituir um perigo para a si própria, quando recusa acompanhamento da família.
126.º
O que levou a Requerente a avançar com a presente ação. […]».
E terminou, tal Requerimento, assim:
«[…] deve esta ação ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser declarado o acompanhamento da Requerida BB, por se mostrar incapaz de governar a sua própria pessoa e bens, bem como, exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres.
Para tanto,
Requer a V. Exa. que, se nomeie como acompanhante a filha e aqui Requerente, AA, decretando o conteúdo do acompanhamento, como representação integral, incluindo administração total de bens, ficando vedado à beneficiária o exercício de direitos
pessoais e celebração de negócios da vida corrente, exceto os que estão ao alcance da capacidade da Requerida e que apenas impliquem despesas ou disposições de bens, de pequena importância.
Indica-se, desde já, para constituírem o Conselho de Família, caso se entenda necessário, os parentes mais próximos da Acompanhada para além da Requerente, EE e II.
Por fim, requer-se nos termos do artigo 148.º do CPC, a necessária autorização para a inscrição e integração da Requerida num
estabelecimento residencial para idosos idóneo e perto da residência da Requerente. […]».
Ofereceu prova testemunhal e documental, requerendo, ainda, que:
- Se ordenasse “…a requisição do parecer técnico elaborado pelo Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social (SAAS) do Centro Social Paroquial ... e que foi remetido ao Ministério Público.”;
- Se procedesse à avaliação pericial (designadamente clínico-psiquiátrica), da Requerida, para apuramento das questões que enuncia.
*
B) – O Mmo. Juiz do Juízo de Competência Genérica ..., por despacho de 12/4/2023, entendendo que não estavam reunidas “…as condições para se determinar a supressão da autorização da R. para a A. vir instaurar o presente processo de acompanhamento…”, indeferiu o pedido da A. e decidiu não suprir a autorização prévia da R. e, consequentemente, declarou que a A. sem a supressão de autorização da R. não tinha legitimidade para instaurar o presente processo de acompanhamento, a obter em sede própria.
*
II - Inconformada com o decidido, veio a Requerente interpor recurso deste despacho, oferecendo, a terminar a respectiva alegação, as seguintes “conclusões”:
«A. Vem a Requerente/ora Recorrente recorrer do despacho com a ref.ª 103464368, onde o Meritíssimo Juiz a quo decidiu não suprir a autorização prévia da Requerida e, em consequência, indeferir o pedido.
B. Não podendo a Recorrente concordar com tal decisão.
C. Com efeito, a Recorrente deduziu o pedido de suprimento e alegou, de forma bastante, os factos que o fundamentam, assim como, os que fundamentam as medidas de acompanhamento.
D. Portanto, razões inexistiam para que o processo não prosseguisse os seus termos.
E. Não havendo fundamento para o processo não seguir os seus termos, deveria ter o Meritíssimo Juiz a quo determinado o prosseguimento do mesmo e a citação da Requerida, nos termos do artigo 895.º do CPC , o que não fez.
F. Findos os articulados, o Juiz a quo deveria analisar todos os elementos juntos, pronunciar-se pela prova requerida e ordenar as diligências que se reputassem convenientes, nos termos do artigo 897.º do CPC.
G. Devendo, em todo o caso, proceder sempre, à audição pessoal e direta da beneficiária, nos termos do n.º 2 do artigo 897.º e do artigo 898.º n.º 1 ambos do CPC.
H. Ora, a falta de citação da Requerida, com o devido respeito por opinião diversa, representa uma violação dos artigos 3.º e 896.º, n.º 1 do CPC.
I. Portanto, o Tribunal a quo deveria ter relegado o conhecimento do pedido de suprimento para o momento ulterior à resposta e audição da Requerida e, eventualmente, da produção da prova.
J. Pois só reunidos todos os elementos necessários, é que o Tribunal a quo estaria em condições de proferir uma decisão sobre o pedido de suprimento.
K. A inobservância do contraditório, em concreto da citação para resposta da Requerida, constitui uma omissão de um ato que a lei prescreve, ou seja, uma irregularidade que influiu na decisão da causa.
L. Sem prescindir, também é importante salientar que, decorre da lei a obrigatoriedade de audição prévia do beneficiário.
M. A norma do artigo 897.º, n.º 2 do CPC é imperativa, veda, portanto, ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização lhe está imposta (a não ser em situações muito excecionais, que não é o caso).
N. Sendo que a omissão de tal ato determina que a decisão seja ilegal.
O. Refere, ainda, a decisão recorrida que o suprimento da autorização da Requerida deve ser obtido em sede própria “verifica-se que a A. terá de obter uma prévia decisão do Tribunal a suprir aquela autorização” e “declara-se que a A. sem a supressão de autorização da R. não tem legitimidade para instaurar o presente processo de acompanhamento, a obter em sede própria”.
P. Ora, mais uma vez com o devido respeito, não assiste razão ao Meritíssimo Juiz a quo.
Q. Quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando existir um fundamento atendível, a autorização pode ser suprida pelo Tribunal.
R. Nos termos do artigo 141.º, n.º 3 do Código Civil e do artigo 892.º, n.º 2 do CPC, o pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o próprio pedido de acompanhamento de maior, o que se verificou no caso.
S. Atendendo ao facto que a Recorrente, em sede de requerimento inicial, requereu o seguinte: 8.º A presente ação é instaurada sem autorização da Requerida, requerendo- se, desde já e nos termos dos artigos 892.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e 141.º n.º 3 do Código Civil, o suprimento da mesma. 9.º Atendendo ao facto da matéria que fundamenta o pedido de suprimento da autorização ser maioritariamente coincidente com a matéria que fundamenta o pedido de acompanhamento de maior, por uma questão de organização e de condensação factual, os factos que fundamentam este pedido são os que constarão no capítulo infra.
T. Ora, é assim evidente que o legislador pretendeu que o incidente de suprimento do consentimento pudesse ser enxertado no processo de acompanhamento de maior, que não tem uma tramitação específica, mas integra, formal e estruturalmente, aquele próprio processo, conforme defendido, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 17-07-2022, processo n.º 1386/21.9T8VNF.G1 e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24-09-2020, processo n.º 16021/19.7T8PRT.P1.
U. Motivo pelo qual, é forçoso concluir que, ao contrário do que refere o Meritíssimo Juiz a quo, o suprimento da autorização pode ser obtido no próprio processo de acompanhamento de maior, sem necessidade de obtenção prévia noutra sede.
V. Razão pela qual, o processo deveria ter prosseguido os seus normais termos, decidindo o Tribunal a quo sobre o suprimento da autorização da Requerida.
W. Sendo que a diligência de audição, pessoal e direta, do beneficiário pelo Juiz também tem caracter obrigatório no incidente de suprimento da autorização.
X. Por fim, não pode deixar a Recorrente de reforçar que, no caso, era e é essencial a produção de prova testemunhal e a avaliação pericial da beneficiária, tal como requerido.
Y. A prova pericial é de extrema importância, in casu, para a demonstração dos factos e a sua valorização à luz dos conhecimentos técnicos e científicos, conhecimentos esses que, não fazendo parte da cultura geral e da experiência comum, se presumem não detidos pelo julgador.
Z. Assim, só com esta produção de prova é que o Douto Tribunal a quo poderia concluir, com segurança, se existem ou não um conjunto de circunstâncias que, por si, seja reveladora de que a Requerida beneficiária (não) pode livre e conscientemente dar autorização para o procedimento de acompanhamento ou quando, para tal seja de considerar, existe algum fundamento atendível.
AA. Em suma, sem ser tomada como assente matéria de facto, não poderia ter o Tribunal a quo, como fez, decidir sobre o incidente e, em consequência, da legitimidade da Recorrente.
Terminou assim: “Termos em que, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, revogando a decisão proferida pelo Tribunal a quo e substituindo-a por outra que determine a citação da Requerida/Beneficiária nos termos e para os efeitos dos artigos 895.º e 896.º, bem como determine a sua audição pessoal e direta nos termos do artigo 897.º, n.º 2 e 898.º, todos do Código de Processo Civil, seguindo-se os demais trâmites até final, decidindo-se sobre o suprimento da autorização e das medidas de acompanhamento, farão a tão necessária e costumada JUSTIÇA».
*
III - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes” e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.


E a questão a solucionar, é a de saber se o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, decidiu acertadamente ao entender não suprir a autorização prévia da R. e, consequentemente, ao declarar que a A., sem essa supressão de autorização da R., não tinha legitimidade para instaurar o processo de acompanhamento.
*
IV – A) - O circunstancialismo processual e a factualidade alegada que interessa para a decisão do recurso, é a que consta de I “supra”.
B) – 1) - O Tribunal “a quo”, para alicerçar a decisão recorrida, consignou no despacho recorrido, entre o mais, o seguinte:
«[…] Resulta do disposto no artigo 141º, nº1, do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 49/2018, de 14-8, que introduziu o regime jurídico do maior acompanhado, que apenas têm legitimidade para solicitar o acompanhamento, livremente, e sem necessidade de autorização prévia, o próprio que necessita desse acompanhamento e o Ministério Público.
Por outro lado, determina esse mesmo artigo 141º, nº1, que as outras pessoas que legalmente podem solicitar o acompanhamento, designadamente, como acontece no caso concreto, a mãe, que é seu parente sucessível, apenas podem vir instaurar o respectivo processo, mediante autorização prévia daquele potencial acompanhado. Deste modo, com a alteração introduzida quanto a esta norma legal, aqueles parentes sucessíveis deixaram de poder livremente solicitar o acompanhamento, sem obterem prévia autorização do potencial acompanhado. Contudo, no caso de não conseguirem obter essa autorização do potencial acompanhado, os parentes sucessíveis podem solicitar ao Tribunal que supra essa autorização, nos termos do nº 2, daquele artigo 141º, do Código Civil. Tal supressão ocorrerá quando o potencial acompanhado não possa livre e conscientemente dar a autorização para a instauração do processo de acompanhamento.
No caso concreto, verifica-se que a A. não juntou aos autos uma declaração da requerida em que este desse autorização à mesma para instaurar a presente acção de acompanhamento. Em conformidade, tendo em conta o exposto supra, verifica- se que a A. terá que obter uma prévia decisão do Tribunal a suprir aquela autorização, para poder ter legitimidade para instaurar a presente acção.
Por outro lado, verifica-se que a A. juntou aos autos, apenas, uma declaração bancária que nada atesta em torno da alegada inconsciência para dar para a instauração do processo de acompanhamento
Verifica-se assim que não se encontra atestado, que a R. se encontra numa situação de incapacidade de facto, e, consequentemente, impossibilitada de livre e conscientemente, poder tomar uma decisão quanto à concessão de autorização para ser solicitado o seu acompanhamento pelas pessoas legalmente previstas com legitimidade para o efeito.
Em conformidade, considera-se que não estão reunidas as condições para se determinar a supressão da autorização da R. para a A. vir instaurar o presente processo de acompanhamento. […]».
2) - Decidindo:
A Lei n.º 49/2018, de 14/8, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil (CC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966, procedendo à alteração, quer deste código, quer de outros diplomas legais, como sucedeu com o Código de Processo Civil de 2013 (doravante, NCPC).
O artº 138.º, nº 1, do CC, preceitua que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”.
Por seu turno, o nº 1, do artº 140.º, esclarece que “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.”.
Estabelece o Artigo 141.ºdo CC:
[...] 1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público. 2 - O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.
3 - O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.
Semelhantemente, no âmbito da regulamentação do processo de acompanhamento de maior (artº 891º e ss.) o NCPC preceitua no artº 892º: “1 - No requerimento inicial, deve o requerente, além do mais:
a) Alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento;
b) Requerer a medida ou medidas de acompanhamento que considere adequadas;
c) Indicar quem deve ser o acompanhante e, se for caso disso, a composição do conselho de família;
d) Indicar a publicidade a dar à decisão final;
e) Juntar elementos que indiciem a situação clínica alegada.
2 - Nos casos em que for cumulado pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam.”.
E nesse processo, em que, com as necessárias adaptações, se aplica o disposto nos processos de jurisdição voluntária, designadamente, no que respeita aos poderes do juiz (n.º 1 do artigo 891.º do NCPC), que pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. n.º 2 do artigo 986.º do NCPC), importa, ainda, salientar o seguinte:
- Para além da resposta do beneficiário, que se prevê no artº896. nº 1, do NCPC, e que pode já indicar a posição deste face à instauração do processo e à da factualidade alegada no Requerimento inicial, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e directa do Beneficiário (artºs 897.º, nº 2, e 898, nº 1 do NCPC);
O juiz, para além da prova que seja requerida, ordena as diligências que considere convenientes (artº 897.º, nº 1), podendo determinar que o perito ou os peritos elaborem um relatório que precise, sempre que possível, entre o mais, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, bem como, em caso de dúvida, autorizar o exame numa clínica da especialidade (artº 899º, nºs 1 e 2);
Do exposto, chega-se a esta conclusão:
No âmbito do processo de acompanhamento de maior, o Requerente, que, “ab initio”, só o possa instaurar mediante autorização do beneficiário e não a possua, deve, no requerimento inicial, cumular o pedido de suprimento da autorização do beneficiário, cumprindo-lhe, nesse caso, alegar os factos que fundamentam tal pedido, muito embora não tenha logo que fazer a prova dos mesmos, v.g., juntando documentos que, suficientemente, demostrem a veracidade desses factos.
Ante essa alegação, caso a mesma não seja manifestamente inábil a justificar o pedido de suprimento, o juiz deve ordenar o prosseguimento do processo, pois que, no seu decurso haverá plúrimas ocasiões, atenta a respectiva tramitação e os poderes do julgador que acima se evidenciaram, para, ponderadamente, se aferir da justeza do referido pedido de suprimento.

Assim, tendo-se procedido, no requerimento inicial, à alegação de factos que justificam o pedido de suprimento da autorização do beneficiário, que aí se cumulou, e não ocorrendo a manifesta inabilidade desses factos para lograrem essa justificação, é prematuro, na fase liminar, indeferir tal pedido de suprimento e, consequentemente, declarar a ilegitimidade do Requerente para instaurar o processo de acompanhamento.
A ponderada decisão sobre o aludido pedido de suprimento há-de ser tomada, v.g., em face da posição assumida na resposta do Beneficiário, do resultado do relatório pericial e da audição obrigatória do beneficiário (cfr. Acórdão desta Relação, de 26/04/2022 - Apelação nº 144/21.5T8PMS.C1)2, subscrito pelos aqui 1º Ajunto e 2º Adjunta, enquanto, Relator e 1ª Adjunta, respectivamente, e Prof. Miguel Teixeira de Sousa, no escrito aí citado).
Maria Inês Costa escreveu, a propósito do referido suprimento (“A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, “in” Julgar “Online, Julho de 2020”, págs. 150 e 151, nota 15:
«[…] A lei não prevê a tramitação do incidente de suprimento da autorização, mas, uma vez que a decisão do mesmo pressupõe saber se o beneficiário pode ou não, livre e conscientemente, dar a autorização para propor a ação, entendo que deve relegar-se tal decisão para depois da realização da perícia médico-legal. Para esse efeito, poderá invocar-se o princípio da adequação formal, previsto no artigo 547.º do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 549.º, n.º 1, do mesmo Código.” . […]».
Ora, do conjunto de factos alegados pela Requerente no Requerimento inicial, retira-se ser plausível, precisamente pelo comportamento que a beneficiária, alegadamente, adoptou e que levou a Requerente a instaurar este processo, que, a confirmar-se o alegado, ficará explicada a razão da não obtenção da aludida autorização e do pedido de suprimento da mesma.

Deve, pois, ser relegada, para ulterior momento, v.g., para depois de obtido o resultado da perícia requerida, e da audição da beneficiária, a decisão quanto ao suprimento da autorização desta, sendo prematura e, portanto, ilegal, por obstar à demostração, pela Requerente, do bem fundado desse pedido de suprimento, o indeferimento “in limine” que no presente caso ocorreu, e a consequente declaração de ilegitimidade da Requerente.
Revoga-se, pois, o despacho recorrido, determinando que a apreciação do pedido de suprimento se tome em momento processual posterior, em que já haja elementos colhidos nos autos que, ponderadamente a possibilitem, v.g., após a obtenção do resultado da perícia requerida, e da audição da beneficiária.
*
V – Decisão:
Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgando a apelação procedente, revogar o despacho recorrido, e determinar que o Tribunal “a quo” dê prosseguimento à tramitação regular do processo, relegando a apreciação do pedido de suprimento da autorização da beneficiária, para momento processual posterior, em que já haja elementos colhidos nos autos que, ponderadamente a possibilitem, v.g., após a obtenção do resultado da perícia requerida, e da audição da beneficiária.

Sem custas - artº 4º, nº 2, h), do RCP. 30/5/2023
Luiz José Falcão de Magalhães (relator)
António Domingos Pires Robalo
Sílvia Maria Pereira Pires

1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Consultável - tal como os acórdãos da Relação de Coimbra, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados -, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.