Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1633/20.4T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
LISTA DE CREDORES
IMPUGNAÇÃO
FALTA DE RESPOSTA
EFEITO COMINATÓRIO
PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
CAUSA BILATERAIS
PODER PATERNAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 06/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 131.º, N.º 3, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
ARTIGOS 318.º, ALÍNEA B), DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I) O juiz não está, por regra, vinculado ao dever de apreciar as impugnações da lista de credores em relação às quais não tenha existido resposta, podendo julgar procedentes essas impugnações por mero efeito da falta de resposta e sem qualquer outra apreciação/fundamentação (factual ou jurídica).

II) Porém, nada obsta a que o juiz possa e deva fazer essa apreciação para o efeito de julgar a impugnação improcedente, ainda que não tenha existido resposta, caso entenda que a impugnação não tem a mínima aptidão para produzir os efeitos pretendidos, configurando-se, por isso, como manifestamente improcedente.

III) O facto de um menor estar representado por um dos progenitores na acção em que foi reconhecido o crédito a alimentos não obsta à suspensão do prazo de prescrição desse crédito prevista na alínea b) do art. 318.º do Código Civil relativamente ao outro progenitor.

IV) Invocada a prescrição, necessariamente por aquele a quem aproveita, o tribunal pode e deve apreciar todas as circunstâncias que, emergindo de factos que constem dos autos, sejam relevantes para a existência e efectivo funcionamento dessa excepção, aí se incluindo as circunstâncias impeditivas da prescrição, como sejam a respectiva suspensão ou interrupção.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência de A…, o Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos a lista de créditos por si reconhecidos da qual constam, entre outros, os seguintes créditos:

- Um crédito de B…, S.A., no valor de 1.869,98€, com origem em contratos de mútuo e qualificado como “crédito comum”;

- Um crédito de C…, no valor de 6.504,96€, referente a pensão de alimentos e qualificado nos seguintes termos: privilegiado relativamente ao montante de 500,76€ e comum relativamente ao montante de 6.004,20€.

O Devedor/Insolvente veio impugnar a lista de créditos.

No que toca ao crédito de C… argumentou que ele se encontrava prescrito relativamente ao valor de 2.534,94€ (referente a prestações vencidas há mais de cinco anos), nos termos do art. 310.º, f), do CC e que o restante valor deveria ser qualificado como crédito comum por não existir qualquer fundamento para o considerar como privilegiado.

No que toca ao crédito de B…, S.A. argumenta: que a referida credora nem sequer alegou que as quantias tenham sido efectivamente entregues ao mutuário, pelo que nem sequer é possível concluir pela existência de qualquer dívida, tendo em conta que os contratos de mútuo só se tornam perfeitos com e efectiva entrega da quantia mutuada; que, ainda que assim não fosse, tais créditos sempre estariam prescritos, nos termos dos arts. 310.º, alíneas d) e e), tendo em conta as datas de incumprimento que são alegadas pela credora.

Na sequência de notificação efectuada nos termos do art. 134.º, n.º 4, do CIRE, a credora B…, S.A., veio responder, dizendo, em resumo: que o valor do seu crédito reporta-se a contratos de abertura de crédito celebrados com o Insolvente em 15/11/2008 e 25/11/2008 e no âmbito dos quais lhe foi concedido um crédito no valor de 449,49€ (contrato n.º 4….) a reembolsar mediante o pagamento de 12 prestações no valor 43,56€ cada e um segundo crédito no valor de 750€ (contrato 8….); que os valores mutuados foram efectivamente entregues ao Insolvente para a conta indicada pelo próprio e constante nos contratos assinados e que não ocorreu qualquer prescrição, uma vez que ao crédito em questão não é aplicável o prazo de prescrição previsto no art. 310.º do CC.

A credora  C… nada disse na sequência da notificação que lhe foi efectuada nos termos do referido art. 134.º, n.º 4, do CIRE.

Foi então proferida decisão onde se decidiu (com referência aos citados créditos) o seguinte:

(…)

3) Julgar parcialmente procedente a impugnação apresentada pelo devedor insolvente, excluindo da lista de créditos reconhecidos o crédito da B…, S.A., relativamente ao contrato n.º 4…;

4) Julgar improcedente a impugnação deduzida pelo devedor insolvente relativamente ao crédito reconhecido a C… ;

5) Homologar, no mais, a lista definitiva de credores reconhecidos apresentada pelo senhor Administrador da insolvência, classificando o crédito reconhecido a C… como comum, sendo os créditos pagos rateadamente relativamente ao rendimento disponível que vier a ser cedido, e sem prejuízo da afetação prioritária aos pagamentos a que aludem as alíneas a) a c) do artigo 241º, nº 1, do CIRE”.

Discordando dessa decisão, o devedor A… veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:


(…)

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

● saber se a falta de resposta da credora C… implicava (ou não) a imediata e automática procedência da impugnação deduzida ao seu crédito por força do disposto no art. 131.º, n.º 3, do CIRE;

● saber, em caso de resposta negativa à anterior questão, se ocorria ou não suspensão da prescrição relativamente a esse crédito e se essa suspensão podia ser apreciada e considerada oficiosamente sem que tivesse sido invocada pela credora;

● saber se o crédito da B…, S.A. (referente ao contrato n.º 8…) está (ou não) prescrito por força do disposto no art. 310.º, alínea e), do CC, o que equivale a saber se o crédito em causa pode ser incluído no âmbito de previsão da norma citada;

● em caso de resposta negativa a essa questão, importará saber se ocorreu (pelo menos) a prescrição de juros por força do disposto na alínea d) do citado art. 310.º.


/////

III.

Na 1.ª instância e no que toca aos referidos créditos (em causa no presente recurso), julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

Em relação ao crédito de C… :

1. C… , nascida em 27.01.2008, é filha do ora devedor insolvente e de D…;

2. Por sentença judicialmente homologada em 20.04.2010, foram reguladas as responsabilidades parentais da menor C…, sendo que as respeitantes aos actos de particular importância seriam exercidas por ambos os progenitores de comum acordo e as respeitantes aos actos da vida corrente seriam exercidas em cada momento pelo progenitor que estivesse com a criança;

3. Mais se fixou a obrigação do aqui devedor contribuir a título de alimentos para a filha com a quantia mensal de 75,00€, montante esse a atualizar anualmente;

4. Por decisão proferida em incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, proferida em 14.09.2015, foi o ora insolvente declarado devedor das seguintes quantias: 648,00€, respeitante aos alimentos dos meses de Setembro de 2013 a Abril de 2014; 974,52€, atinente aos alimentos dos meses de Maio de 2014 a Abril de 2015;

Em relação ao crédito de B…, S.A.:

1. No dia 15.11.2008, o ora insolvente subscreveu um documento particular, epigrafado de «Contrato de Crédito», do qual consta como mutuante o Banco E…, S.A., junto a fls. 52 a 53, cujo teor se dá por reproduzido;

2. Consta do referido documento que o empréstimo, no valor de 449,49€, que foi concedido ao agora insolvente se destinava à aquisição de bem (ou bens) no estabelecimento J…, no L… Shopping;

3. A restituição da quantia mutuada seria efectuada em 12 prestações mensais, de 43,56€ cada, num total de 524,97€, a debitar na conta bancária ali indicada pelo ora devedor, da M…, S.A., agência de …, tendo a TAEG sido fixada em 34,22%;

4. Tal contrato, com o n.º 4…, veio a ser incumprido pelo aqui devedor, em 01.09.2009, tendo nessa data ficado em dívida no montante de 501,13€;

5. Também no dia 15.11.2008, o ora insolvente subscreveu um documento particular, epigrafado de «Proposta de Adesão», do qual consta como mutuante o F…, Banco de Crédito ao Consumo, S.A., junto a fls. 53 v.º e 54, cujo teor se dá por reproduzido;

6. O referido documento visava o uso do Cartão G…, tendo um planfond inicial de 750,00€, tendo ali o ora devedor autorizado a mutuante a debitar directamente na conta bancária por este indicado, os valores acordados;

7. Tal contrato, com o n.º 8…, veio a ser incumprido pelo aqui devedor, em 01.06.2009, tendo nessa data ficado em dívida no montante de 803,86€;

8. O Banco E…, S.A., e o F…, Banco de Crédito ao Consumo, S.A., estão integrados actualmente no Banco H…, S.A., conforme resulta de certidão junta aos autos;

9. Por contratos de cessão de créditos celebrado em 23 de Setembro de 2013, o Banco H…, S.A., cedeu o crédito resultante do contrato n° 4…. À I…;

10. Subsequentemente, por contratos de cessão de créditos celebrado em 25 de Junho de 2014, o Banco H… , S.A., cedeu o crédito resultante do contrato n.º 8… à I…;

11. Por sua vez, a I… cedeu os créditos referentes aos contratos supra mencionados à aqui Reclamante, que o aceitou, conforme documentos de cessão de créditos juntos aos autos;

12. O crédito concedido ao ora devedor em ambos os contratos acima referidos devia ser reembolsado nos termos previstos nas condições particulares vertidas em cada um deles, que aqui se dão por reproduzido;

13. Caso o ora devedor não reembolsasse os valores mutuados nos termos previstos, passaria a estar em mora, acrescendo à prestação em dívida juros de mora e às demais consequências ali previstas;


/////

IV.

Apreciemos então o objecto do recurso

Crédito de C…

No que toca a este crédito, a sentença recorrida julgou improcedente a impugnação que lhe havia sido deduzida – com fundamento na prescrição de parte dele – argumentando que o prazo de prescrição de cinco anos nem sequer havia começado a correr, tendo em conta o disposto no art. 318.º, n.º 2, do CC e uma vez que o devedor se mantinha a exercer as responsabilidades parentais sobre a sua filha (a credora de alimentos).

Discordando dessa decisão, argumenta o Apelante:

- Que, dada a falta de resposta da credora, a impugnação deveria ter sido julgada procedente tendo em conta o efeito cominatório pleno previsto no art. 131.º, n.º 3, do CIRE;

- Que, por força do disposto no art. 303.º do CC, não poderia ter sido aplicado o disposto no art. 318.º do mesmo diploma sem que a suspensão da prescrição tivesse sido invocada pela credora, sendo certo que tal suspensão não era de conhecimento oficioso;

- Que, além do mais, não se verifica a ratio material e teleologia da norma do artigo 318.º do Código Civil, uma vez que a credora, estando representada pela mãe, nunca esteve inibida nem coibida de lançar mão de incidentes de incumprimento das responsabilidades parentais.

Analisemos, portanto, cada uma dessas questões.

Coloca-se, em primeiro lugar, a seguinte questão: a impugnação do referido crédito deveria ter sido, necessária e automaticamente, julgada procedente pelo facto de a credora não ter respondido a tal impugnação?

Ainda que a questão seja controversa, pensamos que a resposta é negativa pelas razões que passamos a enunciar.

Dispõe a esse propósito o art. 131.º, n.º 3, do CIRE que a resposta à impugnação deve ser apresentada no prazo ali mencionado, “…sob pena de a impugnação ser julgada procedente”.

A clareza do texto legal parece apontar, de forma inequívoca, para um efeito cominatório pleno da falta de resposta à impugnação; a falta dessa resposta implicaria, sempre e automaticamente, a procedência da impugnação, o que, aliás, está em linha e em conformidade com o pensamento e intenção do legislador no sentido da simplificação dos procedimentos e no sentido de dar mais um passo na desjudicialização no âmbito do processo de insolvência.

Não obstante esse facto, tem vindo a ser considerado – vejam-se, designadamente, os Acórdãos do STJ de 12/11/2019 e 23/10/2018 (proferidos nos processos nºs 4669/13.8TBFUN-C.L1.S1 e 650/12.2TBCLD-B.C1.S1, respectivamente), o Acórdão da Relação do Porto de 27/01/2020 (proferido no processo n.º 741/16.0T8VNG-L.P1), o Acórdão da Relação de Coimbra de 28/04/2015 (proferido no processo n.º 1642/10.1TBVIS-D.C1)  e o Acórdão da Relação de Guimarães de 28/11/2019 (proferido no processo n.º 956/14.6TBVRL.G1)[1] – que a falta de resposta à impugnação não implica a imediata e automática procedência da impugnação, implicando apenas a admissão (por acordo) dos factos nela alegados e a subsequente apreciação judicial do crédito à luz desses factos.

Não nos parece, no entanto, que essa posição deva ser admitida com a amplitude que dela resulta.

Com efeito, a afirmação de que a falta de resposta à impugnação não poderá implicar (nunca) a imediata e automática procedência da impugnação (implicando apenas a admissão, por acordo, dos factos nela alegados com a subsequente necessidade de apreciação judicial do crédito à luz desses factos) colide, expressa e frontalmente, com a letra da lei, na medida em que, na prática, equivale a retirar todo e qualquer efeito ao disposto no nº 3 do citado art. 131.º. Na verdade, a entender-se – como parece resultar dos referidos Acórdãos – que o juiz teria sempre que fazer a apreciação judicial da impugnação – fosse para o efeito de a julgar procedente, fosse para o efeito de a julgar improcedente – a norma citada (parte final do n.º 3 do art. 131.º) seria totalmente inútil e nenhuma aplicação teria, o que, evidentemente, não se conforma com o pensamento e intenção do legislador quando introduziu a norma em questão. Importa notar, aliás, que, além de o anterior texto legal já apontar nesse sentido, o legislador veio reafirmar o seu pensamento e a sua intenção, dizendo no preâmbulo do Dec. Lei n.º 200/2004, de 18/08, que “Quanto às reclamações de créditos, esclarece-se que todas as impugnações das reclamações de créditos serão imediatamente consideradas procedentes quando às mesmas não seja oposta qualquer resposta, assim obviando a eventuais dúvidas que a anterior redacção pudesse suscitar” (sublinhado nosso). É evidente, portanto, que o pensamento legislativo não se conforma e não se compadece com a interpretação da norma no sentido de a falta de resposta à impugnação não implicar (nunca) a imediata procedência da impugnação, como se sustenta na posição jurisprudencial acima mencionada. Tal interpretação não encontra, portanto, qualquer apoio no texto da lei e no pensamento do legislador que foi claramente expresso e posteriormente reafirmado. E não se diga – conforme se sustenta nos referidos Acórdãos – que a atribuição do efeito cominatório pleno (que resultaria da leitura literal da norma em questão) violaria o acesso ao direito e à tutela jurisdicional consagrados no art. 20.º da CRP, na medida em que a lei confere a quem nisso tenha interesse ou legitimidade o direito de responder à impugnação. Além do mais, conforme resulta do disposto no art. 134.º, n.º 4, do CIRE, os titulares dos créditos a que respeitam as impugnações são delas notificados (salvo se forem eles próprios os impugnantes) e, portanto, eles ficam colocados em efectivas condições de responder à impugnação no sentido de fazer valer a sua pretensão (importando esclarecer que, no caso que analisamos, a credora foi expressamente notificada para responder à impugnação sob pena de esta ser julgada procedente).

Entendemos, portanto, não ser possível – por contrariar abertamente a letra da lei e o pensamento legislativo – interpretar a lei no sentido de a falta de resposta à impugnação não implicar (nunca) a imediata e automática procedência da impugnação e no sentido de que o juiz nunca fica dispensado de proceder à apreciação dos créditos antes de declarar o seu reconhecimento em definitivo, estando, portanto, vinculado a fazer essa apreciação seja para o efeito de julgar procedente a impugnação, seja para o efeito de a julgar improcedente.

Entendemos, ao contrário, que a regra – claramente estabelecida na lei e expressamente visada e pretendida pelo legislador – é a de que, na falta de resposta à impugnação, o juiz não está vinculado a qualquer dever de apreciar os créditos e o mérito das impugnações que lhe foram deduzidas, podendo julgar imediatamente procedente a impugnação sem qualquer consideração/fundamentação adicional, pretendendo o legislador libertar o juiz da necessidade de apreciar toda e qualquer impugnação que seja deduzida, no sentido de conferir ao processo maior celeridade.

Mas, não obstante seja essa a regra, entendemos, contudo, que ela pode e deve ser temperada ou ajustada no sentido de afastar resultados claramente injustos que, por não se conformarem com a verdade e justiça material, não devem ser acolhidos e tolerados pelo Direito e, consequentemente, pelas decisões judiciais.

  Nessa medida, entendemos que também aqui deve ser adoptada uma solução semelhante à que se encontra prevista a propósito da falta de impugnação da lista de credores (cfr. art. 130.º, n.º 3) – onde se ressalva a possibilidade de o juiz recusar a homologação da lista, apesar de não existirem impugnações, quando ela enferme de erro manifesto – no sentido de considerar que, não obstante a falta de resposta, o juiz tem o poder/dever de julgar a impugnação improcedente quando os factos nela alegados – que sempre terão que ser considerados provados por falta de impugnação em conformidade com a jurisprudência supra assinalada – não têm qualquer aptidão para produzir o efeito pretendido, ou seja, quando a impugnação é manifestamente improcedente.

Resumindo o que foi dito, diremos – em jeito de conclusão – que, face ao disposto no citado art. 131.º, nº 3, o juiz não está, por regra, vinculado ao dever de apreciar efectivamente as impugnações da lista de credores em relação às quais não tenha existido resposta, podendo julgar procedentes essas impugnações, em conformidade com a norma citada, por mero efeito da falta de resposta e sem qualquer outra apreciação/fundamentação (factual ou jurídica); isso não obsta, contudo, a que possa e deva fazer essa apreciação para o efeito de julgar a impugnação improcedente, ainda que não tenha existido resposta, caso entenda que a impugnação não tem a mínima aptidão para produzir os efeitos pretendidos, configurando-se, por isso, como manifestamente improcedente.

Assim, dando resposta à questão colocada no recurso, concluímos que a decisão recorrida não estava vinculada a julgar procedente a impugnação por falta de resposta da credora visada e podia julgá-la improcedente – como julgou – caso considerasse que ela era manifestamente improcedente por não ter aptidão para produzir os efeitos pretendidos.

Resolvida essa questão, coloca-se agora a questão de saber se a impugnação deduzida pelo Insolvente/Apelante era (ou não) manifestamente improcedente, o que se reconduz a saber se o Insolvente podia (ou não) opor ao referido crédito a excepção de prescrição.

Está aqui em causa um crédito de alimentos de que é titular a filha (menor) do Insolvente, que foi reconhecido pelo Sr. Administrador pelo valor de 6.504,96€ e qualificado como privilegiado relativamente ao montante de 500,76€ e como comum relativamente ao montante de 6.004,20€.

O Insolvente/Apelante) impugnou o reconhecimento desse crédito, invocando, por um lado e nos termos do art. 310.º, f), do CC, a sua prescrição relativamente ao valor de 2.534,94€ (o que implicaria a exclusão desse valor da lista de créditos reconhecidos) e pondo em causa, por outro lado, a qualificação do crédito dizendo que todo ele era um crédito comum.

Tal impugnação foi julgada improcedente por se ter entendido que, face ao disposto no art. 318.º, n.º 2, do CC, ainda não havia começado a correr qualquer prazo de prescrição dada a circunstância de o devedor se manter a exercer responsabilidades parentais sobre a titular do crédito (sua filha).

Argumenta, no entanto, o Apelante que tal disposição não era aplicável, por não se verificar a ratio e teleologia da norma, na medida em que a menor estava representada pela mãe e que, além do mais, essa questão (suspensão da prescrição) não podia ser conhecida oficiosamente.

Não tem razão.

O art. 318.º do CC, reportando-se às causas bilaterais da suspensão da prescrição, determina que “A prescrição não começa nem corre: (…) b) Entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas, entre o tutor e o tutelado ou entre o curador e o curatelado (…)”.

A situação dos autos insere-se no âmbito de previsão dessa norma, uma vez que o Apelante (devedor) exerce o poder paternal relativamente à sua filha menor (credora) e, ao contrário do que pretende o Apelante, a circunstância de a menor estar representada pela mãe não obsta à aplicação da norma em questão e à suspensão da prescrição que aí se encontra prevista, sendo certo que nada aí se dispõe que aponte nesse sentido.

Mas, ainda que assim fosse – ou seja, ainda que a norma em questão não fosse aplicável –, sempre seria seguro afirmar que, por força do disposto no art. 320.º, n.º 1, do CC, a prescrição nunca se completaria sem ter decorrido um ano a partir da data em que a menor (credora) atinja a maioridade. Esta disposição consagra um prolongamento do prazo da prescrição no sentido de acautelar o direito do credor (menor) relativamente à possibilidade de o(s) seu(s) representante(s) não actuar no sentido de exercer atempadamente esse direito, consagrando, por isso, a possibilidade de o credor ter sempre a oportunidade de exercer (ele próprio) o seu direito (caso o seu representante não o tenha feito) durante o ano subsequente ao termo da sua incapacidade.

Ora, no caso, a credora ainda não atingiu a maioridade e, portanto, ainda que a prescrição não se tivesse suspendido por força do disposto no citado art. 318.º, b) – e não era esse o caso –, ela nunca se teria ainda completado, conforme disposto no art. 320.º, n.º 1.

Argumenta, no entanto, o Apelante que essa circunstância – suspensão da prescrição – não era de conhecimento oficioso do tribunal e, portanto, não tendo sido invocada pela credora, não poderia ter sido conhecida.

Não tem razão.

É certo que a suspensão corresponde a um facto impeditivo do funcionamento da prescrição e, portanto, o respectivo ónus de alegação e prova caberá ao credor. Mas isso apenas significa que é o credor que sofrerá as consequências negativas da falta de alegação e prova dos factos necessários à efectiva constatação dessa suspensão; ou seja, não resultando provados esses factos, a dúvida resolve-se em desfavor do credor que estava onerado com o ónus de prova. Daí não resulta, porém, que o tribunal esteja impedido de apreciar e conhecer essa questão, caso os factos necessários tenham sido trazidos aos autos por qualquer outra via. Na verdade, conforme refere José Lebre de Freitas[2], “Ter o ónus da prova não significa que se tenha o exclusivo da prova: quer o órgão decisório, quer os interessados não onerados a podem também produzir. Ter o ónus da prova significa que é aconselhável ter a iniciativa da prova, a fim de evitar a consequência da falta de prova…

Assim, a circunstância de recair sobre o credor o ónus de prova dos factos relevantes para a suspensão da prescrição não tem relevância para o efeito de concluir se o tribunal pode ou não conhecer (oficiosamente) dessa suspensão quando ela não tenha sido invocada pelo credor.

A solução dessa questão terá que ser encontrada noutras regras ou disposições legais e a verdade é que nada resulta da lei que vede ao tribunal a apreciação dessa questão quando ela não tenha sido expressamente invocada pelo credor.

Para defender a impossibilidade de conhecimento oficioso dessa questão, o Apelante alude ao disposto no art. 303.º do CC.

 No entanto, a citada disposição legal apenas se reporta à prescrição; ou seja, é a prescrição que não pode ser apreciada oficiosamente pelo tribunal e que, para ser eficaz, tem que ser invocada por aquele a quem aproveita. Daí não se retira, contudo, que as circunstâncias que obstam ao funcionamento da prescrição (suspensão, interrupção…) também estejam dependentes de expressa invocação do interessado. E se tal não se retira dessa disposição legal, também não resulta de qualquer outra norma.

Nessas circunstâncias, pensamos que, uma vez invocada a prescrição (que carece, efectivamente, de ser invocada por aquele a quem aproveita), o Tribunal pode e deve apreciar – à luz da sua liberdade de aplicação das regras de direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC) – todas as circunstâncias que, emergindo de factos que constem dos autos, sejam relevantes para a existência e efectivo funcionamento dessa excepção, aí se incluindo os factos que impeçam a prescrição, como sejam a respectiva suspensão ou interrupção. Assim, se os factos que constam dos autos e resultaram provados, não permitem concluir pela existência de causa impeditiva da prescrição (suspensão ou interrupção), é evidente que ela não pode ser considerada – sendo declarada a prescrição – na medida em que era o credor que tinha o ónus de alegar e provar esses factos. Mas, se constarem dos autos os factos necessários para concluir pela existência de qualquer causa impeditiva da prescrição (suspensão ou interrupção) – ainda que esses factos não tenham sido alegados pelo credor e ainda que este não tenha invocado essa causa impeditiva –, o tribunal pode e deve aplicar a lei a esses factos para o efeito de retirar deles as necessárias consequências ao nível da procedência ou improcedência da excepção de prescrição que tem o dever de conhecer por ter sido expressamente invocada.

Nessas circunstâncias, resultando dos autos que estava em causa um crédito de alimentos de que era titular a filha (menor) do devedor (o Insolvente) e em relação à qual este exercia o poder paternal, era certo que, à luz das regras legais aplicáveis, a prescrição do crédito que havia sido invocada não podia proceder, na medida em que, naquelas circunstâncias e tendo em conta a menoridade da credora, a prescrição estava suspensa e nunca se teria ainda completado, e, portanto, o Tribunal tinha que tomar em conta essas circunstâncias (ainda que não tivessem sido expressamente invocadas pela credora) para o efeito de julgar improcedente aquela excepção que, como era evidente, não estava em condições de proceder.

Assim, no que diz respeito ao crédito de C…, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida que julgou improcedente a impugnação deduzida pelo Insolvente/Apelante relativamente a esse crédito.

 

Crédito de B… , S.A.

O referido crédito reporta-se a um contrato de crédito com o n.º 4… (por via do qual foi concedido ao Insolvente um empréstimo de 449,49€ e em relação ao qual estava em dívida à data do respectivo incumprimento – 01/09/2009 – o valor de 501,13€) e a um contrato n.º 8…, (cujo plafond inicial era de 750,00€ e em relação ao qual estava em dívida à data do respectivo incumprimento – 01/06/2009 – o valor de 803,86€).

A sentença recorrida julgou procedente a impugnação relativamente ao contrato n.º 4…, julgando prescrito o crédito dele emergente e julgou a impugnação improcedente relativamente ao contrato n.º 4….

Discordando da decisão – na parte em que julgou improcedente a impugnação, ou seja, na parte que se reporta ao contrato n.º 8…), argumenta o Apelante:

- Que devem se retirados da matéria de facto os pontos 14 e 15, uma vez que nada se diz para fundar a consideração dos mesmos como assentes nem se vislumbra de onde poderá tal factualidade resultar (existindo, por isso, uma nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto ou, o que é mais provável, um qualquer lapso de escrita);

- Que o montante de juros de 351,14€ sempre prescreveu, quanto mais não seja, com fundamento na norma legal da al. d) do artigo 310.º do Código Civil;

- Que, mesmo no que diz respeito ao capital (803,86€), o crédito prescreveu nos termos das alíneas e) e d) do art. 310.º do CC, uma vez que, ainda que se trate de um crédito resultante do uso de um cartão, a dívida gerada também é restituída em quotas (percentagens) de capital e juros a amortizar.

A primeira questão que era suscitada pelo Apelante – relacionada com os pontos 14 e 15 da matéria de facto – reportava-se efectivamente a um lapso de escrita da sentença que, entretanto, já foi rectificado, considerando-se não escrito o excerto, onde se aludia a tais factos.

Assim e no que toca a essa matéria, nada há a apreciar.

Apreciemos então as demais questões que se reportam à prescrição do crédito.

Sustenta o Apelante que o crédito emergente do contrato n.º  8… prescreveu nos termos e por força do disposto no art. 310.º alíneas d) e e), do Código Civil.

A norma citada dispõe nos seguintes termos:

Prescrevem no prazo de cinco anos:

(…)

d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;

e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;

(…)”.

A alínea e) da norma reporta-se – como resulta do seu teor – aos casos em que uma determinada dívida de capital é paga/amortizada em várias prestações (quotas) que, além do capital, incluam também os respectivos juros. Não basta, portanto, que o capital seja pago/amortizado em diversas fracções/prestações; para que tais prestações fiquem submetidas ao regime de prescrição de cinco anos aqui em causa, será ainda necessário que tais prestações compreendam capital e juros; as prestações que apenas se reportem a capital ou que apenas se reportem a juros estão excluídas do âmbito de previsão da referida alínea e).

Conforme refere Ana Filipa Morais Antunes[3], a referida previsão normativa abrange “…as hipóteses de obrigações pecuniárias, com natureza de prestações periódicas, pagáveis em prestações sucessivas e que correspondam a duas fracções distintas: uma, de capital e, outra, de juros, em proporção variável, a pagar conjuntamente. Cada quota de amortização corresponderá, assim, ao valor somado do capital e dos juros correspondentes, pagáveis conjuntamente”, aplicando-se, portanto, “… às prestações de capital repartidas no tempo, a que se somam juros - a pagar conjuntamente -, e que representam quotas correspondentes à amortização e ao rendimento do capital disponibilizado”.

Nessa situação – continua dizendo a citada autora[4] - “…não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração”.

Estão aqui em causa, portanto, várias prestações pecuniárias que, apesar de terem origem no mesmo acto (contrato), têm prazos de vencimento autónomos, ficando, cada uma delas, sujeita a um prazo prescricional próprio e autónomo de cinco anos (a contar do respectivo vencimento) desde que incluam uma fracção de capital e uma fracção de juros.

Não sabemos, no entanto, se é essa a situação dos autos.

Com efeito, atendendo à matéria de facto que se julgou provada (e só a esta poderemos atender, tendo em conta que não foi objecto de qualquer impugnação) não sabemos sequer se o capital em dívida com referência ao aludido contrato (n.º 8…) era – ou devia ser – pago/amortizado em várias parcelas ou fracções e muito menos sabemos se cada uma das eventuais parcelas/fracções/quotas/prestações incluía capital e juros. Aliás, se olharmos às condições gerais de uso do cartão referente a esse contrato, o que delas resulta é que havia diversas modalidades de pagamento dos valores devidos e nem todas essas modalidades envolviam o pagamento em diversas fracções e nem todas envolviam o pagamento de juros.

Estando em causa um facto extintivo do direito contra ele invocado, cabia, naturalmente, ao devedor o ónus de alegar e provar os factos de que dependia a verificação da prescrição daquele direito e, portanto, invocando e pretendendo prevalecer-se do prazo de prescrição de cinco anos previsto no art. 310.º, alínea e), do CC, tinha o ónus de alegar e provar os factos com base nos quais seria possível concluir que o crédito em causa se incluía no âmbito de previsão do apontado normativo. O devedor tinha, portanto, o ónus de alegar e provar que o crédito em causa se reportava a diversas prestações e que cada uma delas incluía amortização de capital e juros. Ora, o devedor não alegou – e, portanto, não provou – esses factos; não alegou que o valor em questão se reportava a várias prestações; não alegou o valor e a data de vencimento de cada uma dessas (eventuais) prestações ou fracções e não alegou que cada uma delas incluía capital e juros.

Sem esses factos – que não resultaram provados e que ao devedor cabia alegar e provar – não é possível concluir que o crédito em causa se insira no âmbito de previsão da alínea e) do citado art. 310.º e que, como tal, estivesse submetido ao prazo de prescrição de cinco anos.

O crédito em causa não poderia, portanto, julgar-se prescrito nos termos da alínea e) do citado art. 310.º.

Resta analisar a eventual prescrição dos juros ao abrigo do disposto na alínea d) do citado art. 310.º.

Dispõe a citada alínea que prescrevem no prazo de cinco anos “Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos”.

Com referência ao crédito que analisamos a credora reclamou o capital de 803,86€ e reclamou a quantia de 351,14€ correspondente aos juros, à taxa de 4%, desde a data do incumprimento (01/06/2009) até à data da declaração da insolvência (importando esclarecer que o crédito foi reconhecido nesses termos).

É certo, no entanto, que uma parte desses juros – os que se haviam vencido há mais de cinco anos – já estavam prescritos, por força da citada disposição legal, pelo que, nessa parte, tem que proceder a impugnação.


/////

V.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao presente recurso, decide-se:
► Julgar procedente a impugnação deduzida relativamente ao crédito da B…, S.A., no que toca ao contrato n.º  8…  e na parte referente aos juros peticionados vencidos há mais de cinco anos – tendo como referência a data de declaração da insolvência – julgando-se procedente a excepção de prescrição relativamente a esses juros e excluindo-se os mesmos da lista de créditos reconhecidos, revogando-se, nesta parte, a sentença recorrida:
► Confirmar, em tudo o mais, a sentença recorrida.

Custas a cargo do Apelante e da Apelada B…, S.A. na proporção de 95% para o primeiro e 5% para a segunda.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                              (José Avelino Gonçalves)                    


[1] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Código Civil Anotado, Coordenação Ana Prata, Vol. I,, 2017, pág. 421.
[3] “Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade”, Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, Coimbra Editora, pág. 44 e 46.
[4] Ob. cit., pág. 47.