Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2458/11.3TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PERMUTA
TERRENO
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
PROPRIEDADE HORIZONTAL
HIPOTECA
REGISTO
PREVALÊNCIA
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 405º DO CC E 480º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – Ainda que os réus não contestem o pedido, formulado entre outros, de reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre determinado imóvel, por não porem em causa tal direito, deve o tribunal condenar no seu reconhecimento, imputando-se, todavia, a estes as custas correspondentes a essa parte da improcedência da acção;
II – Num contrato de permuta de terreno por fracção autónoma de prédio nele a construir, os efeitos translativos do direito de propriedade sobre tal fracção, enquanto bem futuro, só operam com a constituição da propriedade horizontal;

III – A hipoteca constituída por empresa construtora a favor de um banco, com vista a garantir o empréstimo concedido para a construção do prédio e fracção permutada com o respectivo terreno, é válida e eficaz e prevalece sobre os registos posteriores a ela, não sendo oponível ao credor hipotecário, não interveniente no contrato de permuta, a cláusula determinante da cedência da fracção predial no sentido de ser transmitida livre de quaisquer ónus ou encargos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            1. Relatório

A... e mulher B... propuseram contra “C..., Lda.” e “Banco D...” acção com forma de processo ordinário, pedindo a condenação das RR. a reconhecer os AA. como donos e legítimos proprietários da fracção A de prédio urbano constituído em propriedade horizontal, que identificaram, bem como declarar-se a nulidade e ineficácia da escritura de constituição de hipoteca realizada entre a 1.ª e a 2.ª Ré, ou quaisquer outras hipotecas ou ónus sobre essa fracção.

Alegaram para tanto, em síntese, terem celebrado mediante escritura pública com a Ré “ C...” um contrato de permuta de um prédio rústico com uma fracção autónoma correspondente à fracção A de um prédio urbano por ela construído nesse prédio rústico, para sua habitação, livre de quaisquer ónus ou encargos, sendo que a 1.ª Ré entretanto procedeu ao registo de uma hipoteca, em 15.9.08, a favor da 2.ª Ré para garantia de pagamento das responsabilidades assumidas ou a assumir por aquela respeitantes a um contrato de abertura de crédito, a qual se mantém, pese embora a 1.ª Ré se ter obrigado a proceder à entrega da fracção naquelas condições e porque, em suma, a constituição de um ónus ou encargo pela 1.ª Ré incidente sobre a fracção que lhe não pertence é uma actuação ilícita, dado não poder onerar um bem que já não lhe pertence, o que é do conhecimento da 2.ª Ré e, por violar o direito de propriedade dos AA., é nula e ineficaz em relação a si a escritura de constituição de hipoteca celebrada entre as RR.

Citadas, contestaram as RR., a “ C...” alegando que a permuta foi efectuada entre o terreno propriedade dos AA. e um bem seu, futuro, a construir pela 1.ª Ré sobre o terreno permutado, ou seja, a edificação correspondente à fracção A, para o que contraiu empréstimo bancário junto da 2.ª Ré, então “Banco J..., SA”, garantido pela hipoteca constituída anteriormente à data dessa edificação, concluindo pela improcedência parcial da acção relativamente aos pedidos de nulidade e ineficácia, sendo que quanto ao reconhecimento do direito de propriedade a ele se não opôs, embora com referência à data da sentença e com a oneração da hipoteca.

            A Ré “ D...” alegou, em síntese, estar em causa a permuta de um bem presente (terreno) por um bem futuro (fracção a edificar), que não teve qualquer intervenção na escritura de permuta e que as hipotecas, a seu favor, já se encontravam registadas em data anterior à constituição da propriedade horizontal, sendo 3.ª de boa fé para os efeitos do art.º 291.º do CC, concluindo pela improcedência da acção.

            Houve lugar a réplica onde os AA. concluíram como na petição inicial.

Proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, não houve lugar a reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, as partes prescindiram da produção de prova testemunhal oferecida, acordando nas respostas a dar à matéria de facto controvertida.

Proferida sentença, foi a acção julgada improcedente e implicitamente as RR. absolvidas dos respectivos pedidos.

Inconformados, recorreram os AA., apresentando alegações que terminaram com as seguintes conclusões.

1 – Os AA. e a 1ª R. celebraram um contrato de permuta, ao qual se aplica, por efeito do disposto no artigo 939º do Código Civil, o regime da compra e venda (artigo 874º do Código Civil);

2 – Por efeito das normas que regulam a compra e venda, os efeitos do contrato (transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito – artigo 879º, alín. a), do Código Civil) não dependem sequer da tradição da coisa, nem do pagamento do preço;

3 – No caso dos autos, a propriedade transmitiu-se por mero efeito do contrato, em 23.5.08, não sendo, por tal, necessário realizar qualquer outro acto ou contrato adicional, para que sejam os AA. considerados donos e legítimos proprietários da fracção A;

4 – Ao não declarar a propriedade dos AA., o tribunal “a quo” violou, por erro, as normas indicadas nas conclusões anteriores;

5 – A oneração posterior do prédio pela 1ª R. e o não cancelamento da hipoteca voluntária registada a favor da 2ª R. fazem com que o contrato se mantenha apenas parcialmente cumprido por aquela;

6 – A constituição de um ónus ou encargo por parte da 1ª R. a incidir sobre a fracção A que não lhe pertence, é uma actuação ilícita, porquanto a 1ª R. não pode onerar um bem que já não lhe pertence;

7 – De referir, também, que a 2ª R. só foi chamada à presente acção em virtude de à mesma terem de ser chamados todos os sujeitos cuja esfera jurídica é susceptível de ser afectada pela decisão a proferir, sob pena de esta não surtir o seu efeito útil normal, ou seja, não se lograr obter a composição definitiva do litigio (nos termos do disposto no artigo 28º, n.º 2 do CPC);

8 – A actuação referida em 6 é um facto do conhecimento da ª R., porquanto o contrato de permuta já se encontrava registado à data de 15.9.08, ou seja, à data da celebração da escritura de constituição da hipoteca;

9 – Por violar o direito de propriedade dos AA. em toda a sua extensão e limites, é nula e ineficaz em relação àqueles, a escritura de constituição de hipoteca celebrada entre a 1ª R. e a 2ª R;

10 – E mesmo que se entenda que a transmissão da propriedade sobre a fracção A não ocorreu com a celebração do contrato de permuta, sempre a mesma teria ocorrido com a constituição da propriedade horizontal onde ficou definida qual era a fracção A, que por seu turno também é anterior à constituição da hipoteca;

11 – Ao decidir em contrário, o Juiz “a quo” violou o disposto no artigo 1305º do Código Civil pelo que deve ser revogada a sentença e substituída por outra que condene as RR. nos termos peticionados.

 Apenas a Ré “ D...” respondeu, no sentido da confirmação da sentença.

Cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – A improcedência da acção quanto ao pedido de condenação das RR. no reconhecimento do direito de propriedade dos AA sobre a fracção A;

b) – A reapreciação do mérito da causa quanto aos pedidos de nulidade e ineficácia da escritura de constituição de hipoteca ou outros ónus ou encargos sobre a fracção A do prédio permutado.


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            2. Fundamentação

2.1. De facto

Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, que não foi objecto de impugnação, a que, todavia e com base nos documentos autênticos de fls. 21, 23 e 62 não arguidos de falsidade, porque relevantes para a decisão, se aditam as subsequentes alíns. n) e o) e se anota a data de constituição da propriedade horizontal:

a) – Por escritura outorgada perante a notária Dr.ª E..., o “ J..., SA”, pessoa colectiva n.º 505.087.3286, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto, procedeu ao trespasse à D... do “estabelecimento comercial que constitui a universalidade dos activos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos nomeadamente contratos de depósito, contratos de mútuo e de uma forma geral a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua actividade bancária”;

b) – De entre os direitos e obrigações transmitidas consta da escritura mencionada na alínea anterior que aí estão incluídos “(…) os créditos sobre mutuários, devedores e restante clientela a ele afecta, acompanhados de todas as respectivas garantias e acessórios (…);

c) – No dia 23 de Maio de 2008 foi celebrada a escritura pública denominada “Permuta” na qual o aí identificado como 1.º outorgante A ..., casado com B... declarou ceder à sociedade “ C... Lda.” aí representada pelo 2.º outorgante F.... um prédio rústico sito à ..., concelho de Viseu, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º x... daquela freguesia e ali registado a seu favor pela inscrição G, apresentação 37 de 3.4.2006, inscrito na matriz sob o art.º ...;

d) – Na escritura mencionada na alínea anterior o 2.º outorgante declarou: “Que a sociedade que representa vai edificar numa parcela de terreno com 1047 m2 um prédio urbano destinado a habitação a instituir em propriedade horizontal com as fracções A e B, parcela essa a desanexar do mencionado prédio rústico e que em troca do referido prédio rústico, cedido pelo 1.º outorgante marido cede àquele a fracção autónoma que irá corresponder à referida letra A, constituída por uma habitação com cave, R/c, 1.º andar (…) e que a referenciada fracção autónoma é cedida livre de quaisquer ónus ou encargos e encontra-se devidamente identificada em planta (…)”;

e) – A 1.ª outorgante declarou “que dá o seu consentimento à presente permuta”, após o que pelo 1.º outorgante e pelo 2.º foi dito “que aceitam as prestações efectuadas nos termos exarados, devendo a moradia ser entregue no prazo de 1 ano (…)”;

f) – Mediante a ap. 4 de 2008/05/26 a Ré “ C..., Lda.” registou a seu favor a aquisição do prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial  de Viseu, freguesia de ..., sob o n.º 2470/2008082, resultando da certidão junta a fls. 20 que a causa de tal aquisição foi uma permuta;

g) – Mediante a ap. 9 de 2008/09/15 foi registada sob o prédio descrito sob o n.º 2470, na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Viseu, hipoteca voluntária constituída a favor de “ J..., SA” para garantia  do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela Ré “ C..., SA”, no âmbito de um contrato de abertura de crédito até ao montante máximo assegurado de € 256.623,50, registo este que ainda se mantém;

h) – A Ré “ C..., Lda.” procedeu, em 4.8.09, à constituição de propriedade horizontal, tendo ficado constituídas no prédio 2 fracções: a A, com a permilagem 500/1000, no valor total do prédio, a B com a permilagem 500/1000, no valor total do prédio;

i) – A Ré “ C..., Lda” procedeu à construção da moradia correspondente à fracção A;

j) – A Câmara Municipal de Viseu emitiu o alvará de utilização n.º 396/2009;

l) - Os outorgantes na escritura mencionada em C) e ss atribuíram ao prédio inscrito na matriz sob o art.º ... o valor de € 155.000,00;

m) – E atribuíram à aí mencionada fracção A idêntico valor de € 1555.000,00;

n) – No contrato de abertura de crédito com hipoteca celebrado entre a ora 1.ª e 2.ª Ré foi acordado que o crédito (de € 175.000,00) era destinado a apoiar a construção de uma moradia bifamiliar, para venda, a edificar no imóvel permutado e que sobre ele constituíram hipoteca voluntária “com todas as suas construções e/benfeitorias já edificadas e/ou a edificar, para garantia do bom e pontual pagamento” do crédito;

o) – Os AA. registaram a seu favor a aquisição da fracção A na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Viseu, pela apresentação 2066 de 15.12.09.


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            2.2. De direito

            Como é sabido, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o seu objecto, não podendo conhecer-se de questões nelas não versadas, salvo se forem de conhecimento oficioso (art.ºs 684.º, n.º 3 e 685-A, n.º 1, do CPC).

            1. Recortadas que foram já, começando pela parte da decisão recorrida que julgou improcedente a acção quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre a fracção predial que identificaram, dir-se-á estar a razão do lado dos recorrentes.

            Não se compreende, de resto, a asserção contraditória do correspondente trecho da sentença no sentido de que não deve ser declarada contra os RR. a propriedade dos AA. porque os RR. a não contestaram.

            Ora, porque a não contestaram e porque ao juiz compete resolver todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação (n.º 2 do art.º 660.º do CPC), impunha-se a procedência da acção, desde logo, relativamente a essa parte do pedido e as RR. nele condenadas (art.ºs 490.º, n.º 2 do CPC e 372.º do CC).

            Aliás, conforme a matéria de facto provada nos autos e ora aditada, os AA. beneficiavam da presunção decorrente do registo predial (art.º 5.º do CRP), sendo que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que elas conduz (art.º 350.º do CC).

            Questão diversa seria (e será) a da condenação em custas relativamente a essa parte da decisão.

            Porque os RR. nunca contestaram tal pedido, porque assim quanto a ele não deram causa à acção, será sobre os AA. que incidirá a obrigação do pagamento das custas.

            Com esta ressalva e quanto ao pedido em causa será, pois, procedente a apelação.


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            2. Outro tanto se não pode dizer quanto ao pedido de declaração de nulidade e ineficácia da escritura de constituição de hipoteca de 15.9.08 ou de outras garantias ou ónus incidentes sobre a fracção predial dos AA.

            Na base das relações contratuais entre os AA. e a 1.ª Ré está um contrato de permuta de um terreno rústico por uma fracção autónoma do prédio a ser nele construído, livre de quaisquer ónus ou encargos, para cujo financiamento a Ré construtora obteve da 2.ª Ré crédito bancário garantido por hipoteca incidente sobre o prédio permutado, com todas as construções e benfeitorias a edificar, com registo anterior à constituição da propriedade horizontal.

            Com salienta Menezes Leitão[1], a permuta, também designada por troca ou escambo, apesar de consistir no mais antigo contrato, deixou de ser regulada no Código Civil, por se considerar que corresponde a um estádio primitivo da economia, que o uso do dinheiro suplantou.

            A tal contrato faz, contudo, ainda referência o art.º 480.º do C. Comercial, a ambas as situações sendo aplicáveis as correspondentes normas do contrato de compra e venda, de acordo com o disposto no art.º 939.º do CC no que respeita à troca civil e 480.º do C. Comercial quanto à troca comercial.

            Porque reconhecida a categoria na lei comercial, é costume qualificar o contrato de permuta como nominado, embora atípico, dado o seu regime não se encontrar tipificado na lei, antes remete, como dissemos, para o regime da venda, sendo utilizado à luz do princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do CC) e mesmo frequente, nos dias de hoje, em caso como o dos autos, de permuta de terreno por fracção predial autónoma nele a construir futuramente.

            Tal como a venda, é um contrato primordialmente não formal (art.º 219.º do CC), excepção feita quando em causa estiverem bens imóveis (art.º 875.º do CC).

            É ainda um contrato consensual, dado não exigir a tradição para que se constitua, simplesmente obrigando as partes à entrega das coisas trocadas (art.º 879.º, alín. b) do CC), não se tratando, pois, de um contrato real quoad constitutionem, mas quoad effectum, dado que a propriedade dos bens trocados se transmite por mero efeito do contrato e no momento da sua celebração (art.ºs 879.º, alín. a) e 408.º, n.º 1, do CC).

            É assim, contudo, se se tratar de permuta recíproca de bens presentes.

            No caso de permuta de bens presentes com bens futuros (art.º 408.º, n.º 2, do CC), embora a transmissão da propriedade da coisa permutada continue a ter como causa o próprio contrato (de permuta), os efeitos podem ficar dependentes de um facto futuro, como a aquisição da coisa pelo alienante.[2]

            Daí que se possa afirmar, como com propriedade o faz o Ac. da RG de 7.9.09[3], que “no contrato de permuta de bens presentes por bens futuros, a transmissão do direito de propriedade das coisas permutadas tem como causa o próprio contrato, mas, nada sendo estipulado pelas partes, os efeitos ocorrem em momento diferente: quanto aos bens presentes, no momento da celebração do contrato e quanto aos bens futuros, no momento em que se tornam presentes (art.ºs 408.º, n.ºs 1 e 2. do CC)”.

            Voltando ao caso dos autos, pelo contrato de permuta os AA., ora apelantes, transmitiram a propriedade do terreno para a 1.ª Ré, construtora, e simultaneamente adquiriu a propriedade sobre uma da duas fracções autónomas a construir nesse terreno (fracção A).

            Essa Ré adquiriu o direito de propriedade sobre o terreno (a cujo registo procedeu em 26.5.08, outros registos não havendo relativamente à permuta) e alienou o direito de propriedade sobre essa fracção, cujo registo de propriedade horizontal data de 4.8.09.

            Em relação ao terreno, porque bem presente, o efeito translativo da propriedade ocorreu no momento da celebração do contrato de permuta (23.5.08).

            Em relação à fracção autónoma denominada pela letra A enquanto bem futuro (art.º 211.º do CC), o efeito translativo operou só após a construção e mais concretamente só após a constituição da propriedade horizontal (4.8.09).[4]

            Quanto à oneração da fracção sustentam os recorrentes que a escritura de hipoteca (15.9.08) por ter sido realizada posteriormente ao contrato de permuta e sem intervenção dos AA. é um acto nulo e ineficaz quanto a estes, por ofender o seu direito de propriedade e que a constituição de um ónus ou encargo por parte da 1.ª Ré a incidir sobre a fracção A, que lhe não pertence, é uma actuação ilícita, porquanto a 1.ª Ré não pode onerar um bem que já não lhe pertence.

            Nada menos exacto.

            Já vimos, por um lado, que os efeitos translativos da propriedade de bem futuro (fracção A) não se reportam (como ao bem presente – terreno) à data da constituição da permuta, antes à data da constituição da propriedade horizontal do prédio urbano, em 4.8.09.

            Por outro lado, à data da celebração do contrato de mútuo com hipoteca e respectivo registo, em 15.9.08, assistia à 1.ª Ré, sua proprietária, o direito de onerar o terreno através da constituição de hipoteca, já que tais poderes obviamente se enquadram nos poderes de disposição do proprietário (art.ºs 1305.º, 688.º, n.º 1, alín. a) e 715.º, do CC).

            Por outro lado, ainda, e tendo em conta o princípio da eficácia relativa dos contratos (art.º 406.º, n.º 2, do CC), no sentido de que, em regra, o contrato é inoperante em relação a terceiros, à 2.ª Ré, credora hipotecária não interveniente no contrato de permuta, jamais poderia ser oponível a cláusula determinante da transmissão da fracção livre de quaisquer ónus e encargos.

            O não cumprimento de tal cláusula, se pode fazer incorrer a 1.ª Ré na obrigação de indemnizar por responsabilidade contratual, é anódino relativamente à recorrida “ D...”, nenhum efeito tendo sobre a validade e eficácia da garantia hipotecária constituída a seu favor.

            Quanto à extensão da hipoteca ao edifício a construir, de acordo com a factualidade aditada, o respectivo contrato de “abertura de crédito com hipoteca” abrangeu expressamente “as construções e benfeitorias já edificadas e/ou a edificar”, ou seja, contratualmente abrangeu a fracção dos AA.

            A mesma conclusão, contudo, se retiraria do disposto da alín. c) do art.º 691.º do CC e do princípio da indivisibilidade da hipoteca vertido no art.º 696.º do CC, em redor do que se formou jurisprudência corrente, que subscrevemos, no sentido de que a hipoteca constituída sobre um terreno para construção se transfere para o prédio entretanto aí construído em propriedade horizontal e por forma a que cada fracção garanta a totalidade do crédito. [5]

            A sem-razão dos recorrentes resulta ainda da aplicação das regras relativas ao registo.

            Tal como salienta a recorrida, porque juntamente com esta os recorrentes adquiriram do mesmo autor (1.ª Ré, “ C...”) direitos incompatíveis entre si (direito de propriedade sobre a fracção autónoma e a hipoteca), são reciprocamente terceiros para efeitos de registo (n.ºs 1 e 4 do art.º 5.º do CRP).

            Atenta a regra da prevalência da inscrição registral do n.º 1 do art.º 6.º do CRP e o facto de a hipoteca se reportar à data de 15.9.08 e mormente o registo da propriedade horizontal do prédio que integra a fracção dos AA. em 4.8.09, torna aquela válida e eficaz e manifestamente prevalece sobre os registos posteriores (art.ºs 686.º, n.º 1 do CC e n.º 4 do 5.º do CRP).[6]

            Aqui chegados, afora a procedência da apelação no que tange ao pedido do reconhecimento do direito de propriedade sobre a fracção dos AA., soçobram as conclusões recursivas.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – Ainda que os réus não contestem o pedido, formulado entre outros, de reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre determinado imóvel, por não porem em causa tal direito, deve o tribunal condenar no seu reconhecimento, imputando-se, todavia, a estes as custas correspondentes a essa parte da improcedência da acção;

            II – Num contrato de permuta de terreno por fracção autónoma de prédio nele a construir, os efeitos translativos do direito de propriedade sobre tal fracção, enquanto bem futuro, só operam com a constituição da propriedade horizontal;

            III – A hipoteca constituída por empresa construtora a favor de um banco, com vista a garantir o empréstimo concedido para a construção do prédio e fracção permutada com o respectivo terreno, é válida e eficaz e prevalece sobre os registos posteriores a ela, não sendo oponível ao credor hipotecário, não interveniente no contrato de permuta, a cláusula determinante da cedência da fracção predial no sentido de ser transmitida livre de quaisquer ónus ou encargos.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, na procedência parcial da apelação acordam em:

a) - Revogar parcialmente a sentença recorrida, condenando as RR a reconhecer os AA. como donos e legítimos proprietários da fracção A do prédio constituído em propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ..., da freguesia de ... e registado na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Viseu, com a descrição n.º 2470/2008/08/27-A.;

b) – Manter, no mais, pelos motivos que se deixaram indicados, a sentença recorrida.

            Custas, em ambas as instâncias, pelos recorrentes.


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Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

 Ferreira Lopes


[1] “Direito das Obrigações, III – Contratos Em Especial”, 6.ª ed., pág. 169 e ss.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil, Anotado”, II, pág. 168.
[3] Proc. 2813/08.6TBPRD-A.P1, in www.dgsi.pt, onde foi tratada questão similar à dos presentes autos.
[4] Ac. STJ de 19.3.02, CJ/STJ, 2002, I, 139.
[5] Acs. RC de 21.1.97, CJ, 1997, 1.º, pág. 14, RE de 15.4.99, CJ, 1999, 2.º, pág. 699 e STJ de 12.2.04, Proc. 03B283, in www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, v. Ac. RP de 19.11.02, Proc. 0121542, in www.dgsi.pt.