Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1531/08.0PBCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: COMUNICAÇÃO
TELEFONE
NULIDADE DA PROVA
Data do Acordão: 10/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA – VARA DE COMPETÊNCIA MISTA 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 189º Nº 2, 190º E 126º, N.º 3 CPP
Sumário: Não tendo havido qualquer despacho do juiz a ordenar a junção aos autos de certidão da qual consta todo o tráfego telefónico efetuado durante determinado período a partir dos telefones dos arguidos, nem decisão judicial que sindicasse a sua relevância para o processo, constituem prova nula nos termos do art.º 190º e 126º, n.º 3, o que se concretiza na total inviabilidade da sua utilização como prova.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra




Por acórdão proferido nos autos supra identificados, decidiu o tribunal condenar o arguido A... como co-autor de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos art.ºs 203º e 204º, nºs 1 e 2, alínea a. do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão[[1]].
Inconformado com o decidido, o arguido A...interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
1. O Tribunal a quo deu como provado os factos constantes da acusação e, consequentemente, condenou os arguidos na pena de 3 anos e 6 meses de prisão pelo cometimento de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º n.º 1 e 2 al. a) do C.P ..
2. Para tal condenação alicerçou a sua convicção no depoimento da testemunha B....
3. Todavia, entendemos que tal testemunha não mereceu credibilidade, nos termos já descritos na motivação e aqui se dão por reproduzidos, quer por contraposição ao seu depoimento no Processo n.º 104/J08.1JAGRD do Tribunal Judicial de Almeida, quer porque nestes autos faltou à verdade quando, exemplificativamente, mentiu sobre o que havia sucedido nesse processo.
4. Por outro lado, atenta a prova produzida em julgamento, não se provou:
• O número para o qual a testemunha B... contactou telefonicamente os vendedores da viatura;
• Com quem a testemunha B... falou ao telemóvel;
• A data em que a venda da viatura se realizou;
• Que a testemunha B... sabia que a viatura era furtada;
• Que os arguidos se haviam comprometido "arranjar" a viatura.
5. No que concerne “à demais prova documental" de fls. 47 ... de fls. 219 ... e ainda fls. 250-251...”, importa, nos termos da explicitação insita na motivação, concluir que:
5.1. Tal prova documental constante de fls. 161 e ss dos autos referentes aos tráfegos telefónicos, é NULA, nos termos dos arts. 122° n.º 1 e 190° ambos do C.P.P., por não ter sido autorizada nem posteriormente validada a sua junção aos autos, em cumprimento do disposto nos arts. 187º n.º 1 al. a) e 189º n.º 2 todos do C.P.P. - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.09.2011, in WWN.dgsi.pt
5.2. Pelo que, sendo NULA, não poderá ser valorada como meio de prova, nem poderá servir para sustentar a credibilidade do depoimento da testemunha B...;
5.3. Sem prescindir, tais dados revelam-se antagónicos às declarações da testemunha B..., abalando por completo a sua credibilidade, uma vez que demonstram inexistirem contactos prévios "à data da entrega da viatura" (dr fls. 179 e 219 dos autos) e ainda que depois dessa data, houve posteriormente vários contactos, pelo que não se tratou de "um único negócio", mais concretamente a 05.08.2008, 14.08.2008 e 13.09.2008 (cfr. fls. 184,221, 188, 189,225 e 211 dos autos);
5.4. Tais dados também demonstram que poderá ter sido a testemunha B... o autor do furto, uma vez que o mesmo esteve em Coimbra, pelo menos desde as 04:10 até às 17:27 do dia 19.07.2008 (cfr. fts, 178 e 179 dos autos) e a viatura foi furtada entre as 20:00 do dia 18.07.2008 e as 8:00 do dia 19.07.2008;
5.5. A "informação de serviço" de fts. 45 e ss dos autos não é meio de prova, tratar-se-ia de depoimento indirecto não confirmado em sede de audiência, nos termos do art. 129º do C.P.P., porque uma vez inquirida a testemunha B..., a mesma não se recordava dos números para os quais havia telefonado;
5.6. Quanto ao ínsito em fls. 250-251 dos autos, tais folhas não consubstanciam qualquer meio de prova, sendo inadmissíveis, nos termos do art. 164º n.º 2 do C.P.P ..
6. Desta forma, atento o teor da motivação, cremos, salvo melhor opinião, que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provado os pontos de I a III da Fundamentação de facto do Acórdão que aqui
se recorre.
7. O que consequentemente, determinará a ABSOLVIÇÃO do aqui recorrente.
Sem prescindir,
8. Se considerarmos o depoimento da testemunha B... como credível, tal prova é insuficiente para condenar os arguidos pelo cometimento de um crime de furto qualificado.
9. Não foi produzida qualquer prova nesse sentido, não sabemos quando a viatura entrou na posse dos arguidos, nem quando a mesma foi vendida à testemunha B.... Apenas sabemos que a mesma foi furtada entre as 20:00 horas do dia 18.072008 e as 08:00 horas do dia 19.07.2008 e que foi encontrada na posse da testemunha B... em 1909.2008, pelo que não se sabe o que aconteceu à viatura durante 2 meses.
10. Assim, as regras de experiência comum e a normalidade não permitem, de forma alguma, concluir que foram os arguidos os autores do furto.
11. Tal constituiria uma inversão do ónus da prova, deitando por terra um direito constitucionalmente garantido (art. 32° n~ da C.R.P.) de que os arguidos se presumem inocentes até prova em contrário.
12. Os elementos de prova dos autos, pelos motivos referidos na motivação, apenas poderiam consubstanciar a prática de um crime de receptação, p e p. pelo art. 231° do CP (conforme sucedeu no Processo n.º104/08.1JAGRD do Tribunal Judicial de Almeida}.
13. Todavia, atento o disposto no art. 290 n.º 5 da C.R.P, terão de ser absolvidos, pois o recorrente já foi julgado por tal crime, tendo a respectiva decisão já transitado em julgado.
14. NORMAS VIOLADAS:
- Arts. 203°, 204º e 231º do Código Penal;
- Arts. 61° n.º 1 al d), 122° n°1,129°, 164° n.º, 187º n.º 1 aí. a), 189°, 190º, 355º do Código de Processo Penal;
- Arts. 29° n.º 5, 32 n.º e 5 da Constituição da República Portuguesa;
- Art. 11° n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
- Art. 14° n.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos;
- Art. 6° n.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser o arguido, ora recorrente, absolvido da prática do crime de furto qualificado”
Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.
Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.
Cumpre conhecer do recurso
Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.
É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[2]].
Questões a decidir:
- Prova nula
- Erro na apreciação da prova
Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):
I – No período compreendido entre as 20.00 horas do dia 18 e as 08:00 horas do dia 19 de Julho de 2008, os arguidos dirigiram-se à Urbanização (...), nesta cidade, e aí até ao imóvel com o nº 20.
II – Nesse local, através de meio ou procedimento não concretamente apurado, os arguidos lograram abrir a porta da garagem com o nº 8, pertença de D...e do seu interior retiraram e levaram com eles um veículo de marca FORD, modelo C-Max e matrícula (...), no valor de € 30.000 e que tinha a chave na ignição, um televisor LCD de marca “Quartek”, no valor de € 800, um outro televisor no valor de € 150, uma carteira com documentos pessoais, cheques e cartões bancários, uma máquina de filmar de marca “Panasonic” no valor de € 250 e um telemóvel “Nokia” com o Imei 353262010621539.
III – Mais tarde, os arguidos venderam o veículo automóvel a B... , à data a residir no (...), Almeida, localidade onde no dia 20 de Julho entregaram a viatura, conforme acordado com aquele; para tal, e por indicação de um indivíduo que todos conheciam, os arguidos contactaram telefonicamente com aquele, para o seu telemóvel com o nº (...) e através do nº (...) que eles usavam, este confidencial. Posteriormente, em 19 de Setembro de 2008, o veículo foi apreendido e recuperado na referida localidade, estando na posse de B... a documentação e as chaves.
IV – Os arguidos agiram livre e conscientemente, de prévio e comum acordo e em comunhão de esforços, com intenção de fazerem seus aqueles objectos, apesar de saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que estavam a actuar sem e contra a vontade do seu dono.
V – Sabiam, ainda, os arguidos, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
VI – O arguido A... já respondeu e foi condenado pela prática dos crimes de furto qualificado, injúria agravada, ameaça, roubo, furto simples, condução sem habilitação legal e tráfico de estupefacientes, cumprindo actualmente pena à ordem dos autos de P.C.C. nº 37/08.1PFCBR da 1ª secção desta mesma Vara Mista de Coimbra.
VII – Este arguido teve uma infância e adolescência pautada por alguns distúrbios, com lacunas sócio-educativas, mas também incapacidade ou falta de motivação do próprio para aderir aos valores e regras da vida em Sociedade, o que numa fase ulterior foi agravado com a toxicodependência, sendo agora a perspectiva da sua reinserção social prognosticada como ainda reservada; em reclusão tem mantido um comportamento satisfatório, não só ao nível de controlo da dependência aditiva, como pela positiva valorização pessoal e profissional em que está envolvido.
VIII – O arguidoG... já respondeu igualmente e foi condenado pela prática dos crimes de burla simples e de falsificação ou contrafacção de documento, cumprindo actualmente pena à ordem dos autos de Proc. Nº 89/10.4TAPCV do T. Judicial de Penacova.
IX – Este arguido teve uma infância e adolescência relativamente estruturadas, mas iniciou-se na toxicodependência cerca dos 24 anos de idade, que se veio a revelar causa e efeito do seu percurso na criminalidade, sem embargo dos tratamentos para controlo dessa problemática no meio prisional, relativamente à qual se afirma abstinente onde intenta fazer uma vida mais controlada, encontrando-se laboralmente activo; tem ele uma filha menor de 7 anos de idade, entregue à guarda e cuidados da família materna e um outro menor de 15 anos de idade, com o qual não tem contacto.
Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):
“Factos não provados com interesse para a decisão da causa: não existem.”
O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
“A convicção do tribunal assentou numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto, sendo de destacar:
- que se é certo que ambos os arguidos usaram do seu direito processual de não prestar declarações, tal na circunstância, designadamente após o depoimento produzido pela testemunha B..., acabou por se revelar contraproducente: é que essa testemunha reconheceu ter oportunamente “contratado”, inicialmente por via telefónica com os arguidos, que então lhe foram indicados, por um amigo comum ( C..., com o nº de telemóvel (...) - fls. 250), como “ A...” e “ G...” de “Coimbra”, vindo apenas a conhecê-los pessoalmente um dia ou dois depois, mais propriamente quando e no momento da “entrega” do veículo em causa, ao início da manhã do dia 20 de Julho de 2008, na localidade de Freixo, concelho de Almeida, onde residia e reside (os quais como tal “reconheceu” positivamente na audiência), sendo que mais reconheceu que estava a adquirir-lhes um veículo furtado, que aqueles lhe transmitiram que íam “arranjar”, factos estes que se mostram consentâneos com toda a demais prova documental constante dos autos, designadamente os dados de tráfego telefónico de fls. 179 (que comprovam os contactos telefónicos entre a dita testemunha B... e os arguidos no dia 20-07-2008, usando o telemóvel com o nº (...) e (...), este último indicado como sendo o telemóvel usado pelos arguidos, conforme “informação de serviço” a fls. 47 dos autos), de fls. 219 (que comprovam um contacto telefónico deste último número de telemóvel usado pelos arguidos e o da dita testemunha B..., no mesmo dia 20-07-2008) e ainda de fls. 250-251 (que na conjugação com os anteriores permite percepcionar o “tráfego telefónico” nos dias 18 a 20 de Julho de 2008 entre todos os referenciados envolvidos na situação – arguidos, C... e B...), sendo certo que a valoração de todos estes meios de prova documentais é permitida pela melhor interpretação do disposto no art. 355º, nº 2 do C.P.Penal, pelo que, na medida em que seguramente tal veículo foi subtraído entre a noite/madrugada do dia 18 para 19 de Julho de 2008 da residência/garagem do seu proprietário (facto decisivamente apurado pelo depoimento deste último, a testemunha D...), dada a curta proximidade entre tais datas, sem que os arguidos tivessem ou lograssem dar qualquer justificação ou explicação para a detenção/posse do veículo em causa no dia 20 de Julho, à luz de regras de experiência comum e de normalidade das situações, cremos que é perfeitamente legítimo e lícito concluir que os arguidos é que subtraíram efectivamente tal veículo do seu proprietário, termos em que se concluiu em conformidade quanto ao que se deu como provado;
- que se seguiu como critério e condicionante desta valoração material da prova o princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.Penal), sendo certo que a “livre convicção” assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição; esta operação intelectual, não é uma opção voluntarista sobre a certeza de um facto e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dúbio pro reo” (cf. o Ac. do T. Constitucional de 24-03-2003, in DR, II, nº129, 02/06/2004, 8544 e segs); a prova, mas do que uma demonstração racional é um esforço de razoabilidade: o juiz laça-se à procura do “realmente acontecido” conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca – derivados da(s) finalidade(s) do processo (cf. Cristina Líbano Monteiro, in “Perigosidade de Inimputáveis e «in dubio pro reo»”, Coimbra, 1997, a pags. 13); em qualquer caso, a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica (cf. neste sentido, Climent Durán, in “La Prueba Penal”, ed. Tirant Blanch, pag. 615); assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é o mesmo, têm o mesmo cerne – que há-de orientar o “fio da navalha” da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável, enquanto que o princípio do «in dúbio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação razoável, objectiva e racional; nesta ordem de ideias e linha de entendimento, importa concluir dizendo que a convicção a que se chegou foi operada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, face às quais não subsistiu nenhum estado de dúvida insanável quanto à culpabilidade dos arguidos;
- que é de referir ter sido devidamente valorado ainda o depoimento do referenciado proprietário do veículo e demais bens/objectos subtraídos (dita testemunha D...), quanto aos aspectos de pormenor relativos não só à descoberta da subtracção, como ainda da concreta identificação e valor de todos e cada um desses bens/objectos;
- que as testemunhas Inspectores da P.J. da Guarda – E... e F...– relataram o conteúdo geral das diligências investigatórias a que haviam procedido, designadamente confirmando ambas a detecção do veículo ajuizado na posse/detenção do dito B..., “camuflado” e após “denúncia” de que o mesmo diligenciava pelo seu “desmantelamento”;
- que os factos atinentes à situação pessoal de cada um dos arguidos e seu percurso de vida, inclusive no momento actual, resultaram basicamente do teor dos relatórios sociais que foram juntos aos autos (fls. 412-415 e 419-423);
 - que o teor das certidões judiciais de condenações dos arguidos constantes dos autos, relevaram quanto ao facto atinente aos respectivos antecedentes criminais.”
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Diz o recorrente, para além do mais, que a “prova documental constante de fls. 161 e ss dos autos referentes aos tráfegos telefónicos, é NULA, nos termos dos arts. 122° n.º 1 e 190° ambos do C.P.P., por não ter sido autorizada nem posteriormente validada a sua junção aos autos, em cumprimento do disposto nos arts. 187º n.º 1 al. a) e 189º n.º 2 todos do C.P.P. - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.09.2011, in WWN.dgsi.pt, pelo que, sendo NULA, não poderá ser valorada como meio de prova, nem poderá servir para sustentar a credibilidade do depoimento da testemunha B...”.
Tem razão.
Explicando:
No âmbito do inquérito destes autos, o Ministério Público oficiou ao processo no 104/08.1JAGRD solicitando a remessa de “certidão dos elementos que se obtiveram junto das operadoras quanto às chamadas entre o arguido B... e os aqui arguidos A...e G...”
A fls. 161/237 foi junta a certidão solicitada, na qual estão discriminadas todas as chamadas telefónicas efectuadas durante o período de Janeiro a Setembro a partir dos telefones dos arguidos destes autos e do B....
A fls. 249/251 está junta certidão de documento constante do processo n.º 104/08.1JAGRD, no qual está discriminado o tráfego telefónico entre os arguidos deste processo ( A... e G...) e C...e B..., no período compreendido entre 1 de Junho e 13 de Setembro de 2008.
Nenhum despacho judicial recaiu sobre a junção destas certidões, nem o recorrente deu o seu consentimento para a junção.
Realizado o julgamento, em sede de fundamentação da matéria de facto, o tribunal “a quo” explicou, para além do mais, que “ambos os arguidos usaram do seu direito processual de não prestar declarações, tal na circunstância, designadamente após o depoimento produzido pela testemunha B..., acabou por se revelar contraproducente: é que essa testemunha reconheceu ter oportunamente “contratado”, inicialmente por via telefónica com os arguidos, que então lhe foram indicados, por um amigo comum ( C..., com o nº de telemóvel (...) - fls. 250), como “ A...” e “ G...” de “Coimbra”, vindo apenas a conhecê-los pessoalmente um dia ou dois depois, mais propriamente quando e no momento da “entrega” do veículo em causa, ao início da manhã do dia 20 de Julho de 2008, na localidade de Freixo, concelho de Almeida, onde residia e reside (os quais como tal “reconheceu” positivamente na audiência), sendo que mais reconheceu que estava a adquirir-lhes um veículo furtado, que aqueles lhe transmitiram que íam “arranjar”, factos estes que se mostram consentâneos com toda a demais prova documental constante dos autos, designadamente os dados de tráfego telefónico de fls. 179 (que comprovam os contactos telefónicos entre a dita testemunha B... e os arguidos no dia 20-07-2008, usando o telemóvel com o nº (...) e (...), este último indicado como sendo o telemóvel usado pelos arguidos, conforme “informação de serviço” a fls. 47 dos autos), de fls. 219 (que comprovam um contacto telefónico deste último número de telemóvel usado pelos arguidos e o da dita testemunha B..., no mesmo dia 20-07-2008) e ainda de fls. 250-251 (que na conjugação com os anteriores permite percepcionar o “tráfego telefónico” nos dias 18 a 20 de Julho de 2008 entre todos os referenciados envolvidos na situação – arguidos, C... e B...)”.
Como se vê, o tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão em (certidões de) documentos que especificam todo o tráfego telefónico a partir dos telefones n.º (...), (...), (...) ocorrido durante os primeiros nove meses de 2008 e ainda telefonemas recebidos entre Junho e Setembro de 2008 pelos telefones n.º (...) e (...).
De tais especificações constam, para além do mais, a data, hora, minuto e segundo em que se iniciaram as chamadas, a localização do telemóvel e o número de telefone para onde cada uma foi efectuada.
Vejamos:
Diz-nos o art.º 189º, n.º 2 do Código de Processo Penal[[3]] que “a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo”.
Ora, não houve qualquer despacho do juiz ordenando ou autorizando a junção da localização celular ou dos registos de tráfego, o que quer dizer que não houve decisão judicial a ordenar a junção aos autos dos referidos elementos, nem decisão judicial que sindicasse a sua relevância para o processo.
Por isso, constituem prova nula nos termos do art.º 190º e 126º, n.º 3, o que se concretiza na total inviabilidade da sua utilização como prova.
Tendo tal “prova nula” contribuído para a formação da convicção do tribunal relativamente ao crime pelo qual foi o recorrente condenado, a procedência de tal nulidade determina a invalidade do respectivo acórdão, bem como dos actos subsequentes (art.º 122º, nº 1).
Assim sendo, deve o tribunal “a quo” elaborar novo acórdão em que desconsidere a prova identificada como nula (fls. 161/237 e 249/251).
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A procedência da nulidade da prova proibida prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões do recurso, e que atrás se deixaram enunciadas.
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Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a invocada nulidade da prova supra identificada e, em consequência, declarando-se a invalidade do acórdão recorrido, determina-se a sua repetição, agora sem que seja atendida e ponderada a prova proibida.
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Coimbra, 16 de Outubro de 2013



Luís Ramos (Relator)
Olga Maurício

[1] Decidiu também condenar o arguido J G... como co-autor de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos art.ºs 203º e 204º, nºs 1 e 2, alínea a. do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão
[2] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada)
[3] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem