Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | DEPOIMENTO INDIRECTO | ||
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Data do Acordão: | 04/12/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE VISEU - 2º JUÍZO CRIMINAL | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | UNANIMIDADE | ||
Legislação Nacional: | ART.º 129º, N.º 1, DO C. PROC. PENAL | ||
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Sumário: | A impossibilidade de serem encontradas as pessoas indicadas (a quem se ouviu dizer) referidas na parte final do n.º 1, do art.º 129º, do C. Proc. Penal, não tem de ser uma impossibilidade absoluta, no sentido de que, tendo sido esgotadas todas as diligências tendentes a encontrá-las, nem mesmo assim foi possível determinar o seu paradeiro. No que a tal respeita, é de admitir uma impossibilidade relativa, decorrente do insucesso das diligências efectuadas para encontrar tais pessoas no local em que era suposto que deveriam estar, insucesso esse que permite antever que só a muito custo (ou, quiçá, nem mesmo assim) elas serão encontradas, desde que, obviamente, hajam sido efectuadas as diligências que, no caso concreto e atentos os seus condicionalismos, se apresentavam como razoáveis. | ||
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Decisão Texto Integral: | II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a resolver consistem em · saber se há que modificar a matéria de facto apurada; · saber se foi cometida a nulidade do artigo 120º/2 d) do CPP; · saber se foram cometidas irregularidades processuais; · saber se está perfectibilizado o tipo de crime de falsificação. · saber se está perfectibilizado o tipo de crime de peculato, classificando-se a arguida como «funcionária» para os efeitos do artigo 386º do CP.
2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO 2.1. No ACÓRDÃO recorrido, é este o rol de FACTOS PROVADOS (em transcrição): «1. A arguida FS.. desempenhou a sua actividade laboral no Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do ..., sito na Rua …., nesta cidade de K..., tendo aí sido colocada através do Centro de Emprego de K..., ao abrigo dos “Acordos de Actividade Ocupacional” cujas cópias constam de fls. 126 a 136, outorgados pelo referido Serviço e pela arguida nos dias 19-07-2000 e 20-10-2000; 2. No Serviço referido no ponto anterior, a arguida exerceu as funções de coadjuvante de AM..., nas secções dos subsídios de desemprego e de doença; 3. A arguida, entre outras tarefas, ordenava os processos dos beneficiários do subsídio de desemprego e de doença e elaborava a listagem dos cheques devolvidos; 4. Os cheques que vinham devolvidos eram colocados num cesto em cima da secretária da AM... ; 5. Posteriormente, a AM... entregava os cheques à arguida, que elaborava um protocolo (listagem) e subsequentemente os devolvia àquela; 6. De seguida, a AM... remetia os cheques devolvidos para a contabilidade; 7. De acordo com um plano previamente estabelecido e em execução do mesmo, a arguida, em datas que não foi possível determinar em concreto, mas posteriores ao dia 19 de Julho de 2000, recebeu da AM... os impressos de cheque com os n° …, respeitantes à conta bancária n° … do “Banco X...”, titulada pelo Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do ...; 8. A arguida não devolveu à AM... os impressos de cheque referidos no ponto anterior, mantendo-os em seu poder; 9. Na posse do impresso de cheque com o n° … no valor de Esc. 34.360$00, cuja cópia consta de fls. 144 e 145, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego GP…, a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 23 de Agosto de 2000 (data de emissão do cheque), pagou a SS... a festa de aniversário da sua filha, que esta havia organizado; 10. Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 91.950$00, cuja cópia consta de fls. 143, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego MS..., a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 20 de Outubro de 2000 (data de emissão do cheque), deslocou-se ao estabelecimento comercial de AT..., sito no n° …, concelho de K..., e pagou com o mesmo as compras que ali fez; 11. Na posse do impresso de cheque com o n° … no valor de Esc. 63.810$00, cuja cópia consta de fls. 166 e 167, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego MM..., a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 20 de Outubro de 2000 (data de emissão do cheque), deslocou-se ao estabelecimento comercial de AT..., sito no …, em ..., concelho de K..., e pagou com o mesmo as compras que ali fez; 12. Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 102.424$00, cuja cópia consta de fls. 142, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de doença VL..., a arguida deslocou-se no dia 3 de Novembro de 2000 à agência de K... do “Banco X...” e aí depositou o referido cheque na sua conta bancária com o n° …; 13. Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 65.937$00, cuja cópia consta de fls. 141, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego LR..., a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 20 de Novembro de 2000 (data de emissão do cheque), deslocou-se ao estabelecimento comercial de AT..., sito no …, em ..., concelho de K..., e pagou com o mesmo as compras que ali fez; 14. Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 86.940$00, cuja cópia consta de fls. 4 e 139, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego IF..., a arguida deslocou-se no dia 28 de Dezembro de 2000 à agência de K... do “Banco X...”, em cujo balcão lhe pagaram aquela quantia; 15. A arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 19 de Julho de 2000, apoderou-se do impresso de cheque com o n° …, cuja cópia consta de fls. 138, no valor de Esc. 555.772$00, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego PP..., e deslocou-se com o mesmo, no dia 11 de Janeiro de 2001, à agência de K... do “Banco X...”, e aí depositou o referido cheque na sua conta bancária com o n° …; 16. Nas situações descritas nos pontos 9. a 14., a arguida assinou os nomes das pessoas a quem os cheques eram dirigidos, a fim de fazer crer que os mesmos lhe haviam sido endossados; 17. Em consequência da sua conduta, descrita nos pontos anteriores, a arguida embolsou a quantia global de Esc. 1.001.193$00 (€ 4.993,93), pertencente ao Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de K..., quantia essa que sabia não lhe pertencer, sabendo ainda que agia sem o consentimento e contra a vontade dessa entidade; 18. A arguida aproveitou-se das suas funções para aceder e dispor das quantias referidas nos pontos anteriores em seu proveito, atitude que manteve posteriormente ao se aperceber da facilidade com que actuava; 19. A arguida estava ciente de que não tinha poderes para movimentar a conta a que os cheques respeitavam; 20. A arguida agiu com consciência de que, ao representar erroneamente nos cheques referidos nos pontos 9. a 14. declarações de vontade do verdadeiro titular da conta, o fazia em prejuízo da confiança que as pessoas têm naquele meio de pagamento, e que, desse modo, abalava a fé pública que os títulos de crédito devem merecer; 21. A arguida actuou com o propósito concretizado de se apropriar das quantias tituladas nos cheques referidos nos pontos anteriores, apesar de saber que a elas não tinha direito; 22. A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei penal; 23. A arguida é solteira, mas vive com um companheiro e duas filhas, com 16 anos e 6 anos, ambas a cargo; 24. A arguida é doméstica; 25. O companheiro da arguida é perito de sinistros de profissão, auferindo a remuneração mensal de cerca de 1.200; 26. A arguida e seu companheiro suportam a renda mensal de € 450, referente à habitação em que vivem; 27. A arguida completou a licenciatura em …; 28. A arguida não apresenta qualquer condenação criminal prévia».
2.2. É este o elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS: «1. Os cheques que vinham devolvidos fossem colocados num cesto em cima da secretária da arguida; 2. Fosse a arguida quem remetia os cheques devolvidos para a contabilidade; 3. A arguida se tenha deslocado ao estabelecimento comercial de SS..., sito …, concelho de K...; 4. O cheque com o n° … no valor de Esc. 102.424$00, cuja cópia consta de fls. 142, que havia sido devolvido pelo beneficiário VL..., fosse relativo a subsídio de desemprego; 5. A arguida tenha entrado na posse do impresso de cheque com o n° 6. A arguida tenha entrado na posse do impresso de cheque com o n° 7. O impresso de cheque com o n° ..., que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego PP..., tenha sido entregue à arguida para elaboração do protocolo; 8. A arguida tenha assinado os nomes das pessoas a que eram dirigidos nos cheques referidos nos três pontos anteriores (5 a 7); 9. A quantia que a arguida embolsou, e o consequente prejuízo do assistente, ascendesse a Esc. l.048.509$00/€ 5.229,94».
2.3. Motivou assim o tribunal recorrido esta decisão de facto (sublinhado nosso): «Funda-se esta no conjunto da prova produzida em audiência, salientando-se que: 1. A arguida prestou declarações, confirmando a sua ligação ao Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do ..., e a forma e termos em que aí foi colocada (através do Centro de Emprego de K..., ao abrigo dos “Acordos de Actividade Ocupacional”). A arguida esclareceu ainda as funções que desempenhava no referido Serviço, aceitando sem reservas que executava a tarefa de ordenar os processos dos beneficiários do subsídio de desemprego, elaborando a listagem dos cheques devolvidos. Cheques esses que recebia em mão da AM... , devolvendo-lhos posteriormente, após a realização da referida tarefa. A arguida aceitou ainda que tirou vários cheques, apoderando-se deles, assumindo dever à Segurança Social as quantias de que se apropriou. Além disso, a arguida começou por aceitar que assinava os nomes no verso dos cheques, embora posteriormente tenha negado que tivesse falsificado as assinaturas dos beneficiários dos cheques. Todavia, a arguida aceitou que após ter tirado os cheques em questão, mais ninguém com eles contactou, pelo que as assinaturas (de endosso) apostas nos versos dos cheques foram necessariamente feitas pelo seu punho. Na realidade, a postura da arguida revelou-se titubeante e contraditória (nos seus próprios termos) ao longo das suas declarações, assumindo posições diversas quanto à veracidade de certos factos, e relatando versões distintas das mesmas situações. Daí que boa parte das declarações da arguida não tenham merecido credibilidade, sendo aliás desmentidas pelos restantes meios de prova produzidos, como de seguida se expõe. Saliente-se ainda que a prova produzida, designadamente a testemunhal, desmentiu a afirmação da arguida de estar a ser ameaçada na altura dos factos por causa de uma dívida. De facto, tal afirmação da arguida não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, tendo mesmo sido negado pelos depoimentos testemunhais produzidos. E julgamos ser pacífico que quem se encontra a ser ameaçado não reage tirando cheques e falsificando-os, mas antes dirigindo-se às autoridades — o que a arguida não fez. Não merece, pois, qualquer credibilidade tal afirmação da arguida. A arguida esclareceu ainda as suas condições pessoais. 2. Foram ponderados os depoimentos das testemunhas MS..., VL…, GP…, MM..., LR..., e IF…, todos beneficiários de cheques em causa nestes autos, que afirmaram de forma serena, convicta, séria e credível que devolveram os cheques à Segurança Social, por entenderem que não tinham direito aos respectivos montantes, e não alteraram ou inscreveram qualquer palavra ou elemento nos mesmos. As testemunhas foram ainda confrontadas com as cópias dos impressos de cheque em questão, juntas aos autos, reconhecendo-os e afirmando a sua fidedignidade, e negando que as assinaturas constantes dos respectivos versos tivessem sido efectuadas pelos seus punhos. A testemunha MM... esclareceu ainda que se dirigiu ao estabelecimento em que o cheque que lhe era dirigido foi entregue, situado em ..., tendo um Sr. AM..., que aí trabalhava, dito que o cheque em questão havia sido entregue pela arguida, tendo já sido confrontado com outras duas situações análogas à sua, em que estavam em causa cheques também entregues pela arguida, inicialmente emitidos a favor de beneficiários da Segurança Social. 3. Extremamente relevante para o esclarecimento da situação em apreço, e para a boa decisão da causa, revelou-se o depoimento da testemunha AM..., antiga funcionária da Segurança Social (até ao ano de 2003), desempenhando as funções de chefe das secções de desemprego e doença. Foi esta testemunha a pessoa encarregue pela integração e acompanhamento da arguida no serviço, tendo delineado as funções que esta aí desempenhava, confirmando convictamente a tarefa de elaboração do protocolo (listagem) dos cheques de que esta estava incumbida. Confirmou ainda a testemunha que as funções desempenhadas pela arguida diziam respeito a ambas as secções que dirigia — desemprego e doença. A testemunha descreveu ainda o percurso dos cheques devolvidos desde o momento em que entravam nas instalações do Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do ..., passando pela secretaria, pelas secções que dirigia (desemprego e doença), e posteriormente sendo remetidos para a contabilidade. No interior das secções que dirigia, a testemunha afirmou que os cheques começavam por ser distribuídos pelas diversas funcionárias, para identificação da situação concreta, e de seguida eram colocados numa cesta na sua secretária. Era nessa altura que a testemunha entregava os cheques à arguida, para elaboração do protocolo, devendo esta proceder posteriormente à sua devolução (à testemunha). Afirmou ainda a testemunha, de modo coerente e esclarecido, que os cheques desapareceram em momentos distintos no tempo (embora não possa localizar com precisão a data de tal desaparecimento), e não de uma vez só, e sempre na altura em que estavam entregues à arguida para elaboração do referido protocolo. Excepcionou a testemunha apenas o cheque com o n° …, no valor de Esc. 555.772$00, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego PP..., referindo que este foi subtraído pela arguida da secretária da funcionária IS... — afirmação consonante com as declarações da arguida, quanto a este ponto concreto. O próprio facto de os cheques apresentarem datas de emissão e de apresentação a pagamento distintas aponta claramente para o seu desaparecimento em momento temporais distintos, e não em apenas uma ocasião. Por fim, da segunda vez em que prestou depoimento, a testemunha declarou que a arguida, após ter iniciado o trabalho no seu serviço, passou a ostentar dispor de boa situação financeira, adquirindo com frequência roupa e sapatos, trocando de viatura automóvel, realizando uma faustosa festa de anos à filha, com participação de palhaços, e fazendo ofertas às colegas do serviço 4. Também foram considerados os depoimentos sinceros, esclarecidos e isentos das testemunhas: - PG…, sócio-gerente da firma “C…, Lda.”, a quem SS... entregou o impresso de cheque com o n° 3164627468, no valor de Esc. 34.360$00, cuja cópia consta de fls. 144 e 145, dizendo-lhe que lhe havia sido entregue em pagamento de uma festa de aniversário que havia organizado; - AT..., dono do estabelecimento situado no …, em ..., concelho de K..., e que confirmou que a arguida aí pagou produtos que adquiriu com cheques (pretensamente) endossados por beneficiários da Segurança Social, e emitidos a favor destes por tal entidade, recebendo o troco (pois as compras efectuadas eram de baixo valor). Referiu ainda a testemunha que a arguida disse no seu estabelecimento que os beneficiários dos cheques lhe haviam pedido para proceder à cobrança dos mesmos. É de salientar que o depoimento desta testemunha se baseou, em parte, no que o seu primo, e antigo funcionário, CT..., que fazia a caixa do estabelecimento, lhe disse. Porém, não se tratou de uma conversa mantida após os eventos, mas na altura em que a arguida se encontrava no estabelecimento, pedindo o referido funcionário autorização ao depoente para trocar os cheques — autorização essa que foi concedida, tendo a testemunha visto e contactado directamente com a arguida. Refira-se ainda que esta testemunha confirmou a conversa que manteve com a testemunha MM..., acima relatada; - AZ..., pessoa que apenas confirmou ter recebido do AT..., seu cliente, um cheque, em pagamento de produtos que lhe forneceu. Cheque esse emitido pela Segurança Social a favor de um terceiro, posteriormente endossado, e que foi pago. 5. Sustentando a factualidade provada, foi ainda ponderado o teor dos documentos juntos a fls. 4, 99 a 104, 126 a 136, 138, 139, 141 a 145, 156, 162, 164, 166 a 170, 176, 193, 210 a 215, e 286 (certificado de registo criminal) dos autos, que mereceram credibilidade. No que respeita aos impressos de cheque em questão nos autos, reproduzidos nestes apenas por cópia, importa referir que estas (cópias) se mostram claras, perceptíveis e fidedignas. Além disso, foram remetidas aos autos por entidades sérias e isentas, que merecem toda a credibilidade - o “Banco X...” e a “Segurança Social”. E é certo que boa parte destes documentos correspondem a microfilmagens. Além disso, a lei processual penal permite a junção ao processo de cópias dos documentos relevantes, atribuindo-lhes validade e eficácia probatória - arts. 164°, 168° e 183° do C.P.P. Como referem Simas Santos e Leal-Henriques’, “as meras fotocópias de documentos, mesmo não autenticadas, não deixarão de ter uma certa valia como prova, se bem que tal relevância se não pode de modo algum equiparar ao valor probatório de um documento original ou autenticado. (...) O seu valor como prova é de livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127°. O motivo da impossibilidade de junção do original é irrelevante“. Por outro lado, as testemunhas inquiridas foram confrontadas com os documentos em causa (cópias de cheques) e confirmaram-nos sem qualquer dúvida, reserva ou excepção, afirmando corresponderem aos originais, que tiveram em seu poder ou observaram. Por fim, a arguida começou por aceitar o teor das cópias de impressos de cheque juntas aos autos, só posteriormente as impugnando, impugnação essa vazia de conteúdo, ou seja, não baseada em qualquer facto ou razão concreta. E importa não esquecer que a arguida aceitou ter tirado cheques devolvidos por beneficiários da “Segurança Social”, e ser devedora das correspondentes quantias. Assim sendo, os referidos documentos mereceram credibilidade, influindo na decisão da causa. 6. Para terminar, saliente-se que nenhum outro meio probatório - que permitisse alterar a factualidade provada ou sustentar a factualidade não provada - foi produzido, requerido ou sequer referenciado em audiência de julgamento, sendo certo que a testemunha EE…, o inspector da Polícia Judiciária que realizou a investigação do processo, apenas se limitou a reproduzir o conteúdo dos documentos juntos aos autos. Quanto ao impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 28.980$00, cuja cópia consta de fls. 168, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego AC..., importa referir que do seu verso não consta qualquer endosso ou assinatura, o que lança sérias dúvidas acerca da versão fáctica relatada na acusação. Versão essa, designadamente referente à actuação da arguida, que não foi confirmada pela testemunha AC..., o que determinou que se considerasse tal factualidade não provada (quanto a esse cheque). Já no que concerne ao impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 18.336$00, cuja cópia consta de fls. 169 e 176, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego DD..., esclarece-se também que do seu verso não consta qualquer endosso ou assinatura, o que lança sérias dúvidas acerca da versão fáctica relatada na acusação. Versão essa, designadamente referente à actuação da arguida, que não foi confirmada pela testemunha DD..., o que determinou que se considerasse tal factualidade não provada (quanto a esse cheque)».
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. Vem a arguida recorrer do acórdão condenatório.. Alega que o faz de facto e de direito.
3.2. IMPUGNAÇÃO DE FACTO
3.2.1. Pretende a recorrente impugnar a matéria dada como provada. Incidindo este recurso sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe ao recorrente o ónus de especificar a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)- as provas que devam ser renovadas. Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo. Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º. A este propósito, convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso. Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento. No nosso caso, a recorrente satisfez os requisitos legais.
3.2.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: - primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada; - e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal. Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.
3.2.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano . da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano . da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
3.2.4. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[2]. A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt). Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente. Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova. E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
3.2.5. O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP. Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: – os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas); – A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; – Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais; – A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso; – Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto. A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt). Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
3.2.6. Com este pano de fundo, ANALISEMOS este recurso de facto, assente que são impugnados os factos provados 1, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21 e 22, alegando-se erro de julgamento e insuficiência da matéria de facto (conclusões 22, 27 e 37). Vejamos facto por facto, partindo do pressuposto que o depoimento da própria arguida – por nós OUVIDO e até SENTIDO -, porque muito variado, em termos de versão, ao longo do julgamento, não nos convenceu minimamente, relativamente à sua estratégia de defesa, mormente, no que diz respeito à história da ameaça, completamente desajustada[3]. a)- FACTO 1 - A arguida FS.. desempenhou a sua actividade laboral no Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do ..., sito na Rua …., nesta cidade de K..., tendo aí sido colocada através do Centro de Emprego de K..., ao abrigo dos “Acordos de Actividade Ocupacional” cujas cópias constam de fls. 126 a 136, outorgados pelo referido Serviço e pela arguida nos dias 19-07-2000 e 20-10-2000. Entende a recorrente que não é «funcionária» da Segurança Social, analisando o acordo de actividade ocupacional da mesma com a SS, constante de fls 126 a 136. Ora, o facto 1 é comprovado pelo teor literal desse acordo, lido por nós, e que nos vem dizer que entre a SS e a arguida foi celebrado um «acordo de actividade ocupacional», com duração limitada no tempo, no âmbito do qual ela exercia as funções elencadas em 2 e 3 (factos não impugnados pela recorrente). Como tal, o facto foi bem dado como provado (assente que a sua caracterização ou não como «funcionária» para os efeitos do crime em apreço será discutida em sede de DIREITO).
b)- FACTO 4 - Os cheques que vinham devolvidos eram colocados num cesto em cima da secretária da AM... . O próprio testemunho de AM... esse trajecto descreveu, sem margem para dúvidas, sendo certo que o próprio depoimento da arguida isso mesmo comprovou. Vejamos como o tribunal fundamentou a convicção da prova desta factualidade (sublinhado nosso): · A arguida esclareceu ainda as funções que desempenhava no referido Serviço, aceitando sem reservas que executava a tarefa de ordenar os processos dos beneficiários do subsídio de desemprego, elaborando a listagem dos cheques devolvidos. Cheques esses que recebia em mão da AM... , devolvendo-lhos posteriormente, após a realização da referida tarefa; · Extremamente relevante para o esclarecimento da situação em apreço, e para a boa decisão da causa, revelou-se o depoimento da testemunha AM... , antiga funcionária da Segurança Social (até ao ano de 2003), desempenhando as funções de chefe das secções de desemprego e doença - foi esta testemunha a pessoa encarregue pela integração e acompanhamento da arguida no serviço, tendo delineado as funções que esta aí desempenhava, confirmando convictamente a tarefa de elaboração do protocolo (listagem) dos cheques de que esta estava incumbida. Confirmou ainda a testemunha que as funções desempenhadas pela arguida diziam respeito a ambas as secções que dirigia - desemprego e doença: a testemunha descreveu ainda o percurso dos cheques devolvidos desde o momento em que entravam nas instalações do Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do ..., passando pela secretaria, pelas secções que dirigia (desemprego e doença), e posteriormente sendo remetidos para a contabilidade. No interior das secções que dirigia, a testemunha afirmou que os cheques começavam por ser distribuídos pelas diversas funcionárias, para identificação da situação concreta, e de seguida eram colocados numa cesta na sua secretária. Era nessa altura que a testemunha entregava os cheques à arguida, para elaboração do protocolo, devendo esta proceder posteriormente à sua devolução (à testemunha). Ouvido o depoimento da dita testemunha-chave[4], não contraria ela os termos em que o facto foi dado como provado.
c)- FACTO 7 - De acordo com um plano previamente estabelecido e em execução do mesmo, a arguida, em datas que não foi possível determinar em concreto, mas posteriores ao dia 19 de Julho de 2000, recebeu da AM... os impressos de cheque com os n° …, respeitantes à conta bancária n° … do “Banco X...”, titulada pelo Serviço Sub-Regional de K... do Centro Regional de Segurança Social do .... Indica a recorrente que dois dos 6 cheques terão sido devolvidos pelos beneficiários em Janeiro de 2001, numa altura em que a arguida já não trabalhava na Segurança Social. Parece-nos haver aqui um claro lapso de memória da testemunha AM... (recorde-se, com 78 anos de vida) – de facto, os ditos cheques, de valor de 86.940$00 e 555.772$00, de que eram beneficiários, respectivamente, as testemunhas IF... e PP..., estavam datados de 15.12.2000 e foram apresentados à cobrança em 28.12.2000 e 12.11.2001 (veja-se o teor de fls 4/139 e 5/138/215). Conforme decorre do próprio contexto dos depoimentos das testemunhas AF... – ouvida em 9.9.2010 - e AM... , em Janeiro de 2001 os beneficiários em causa foram à Segurança Social reclamar contra o pedido de pagamento de cheques que eles já tinham devolvido anteriormente, não tendo ido restituir os cheques, o que já haviam feito antes. E é só nessa ocasião, em que a AF…, em Janeiro de 2201, vai à Segurança Social reclamar contra o pagamento que lhe era exigido (e não restituir o cheque), que na secção em causa se detecta a falta dos cheques, nomeadamente o que havia sido restituído pelo PP..., que a referida D. IS... tinha na sua caixa para classificar e que, só no momento, descobre então ter sido levado. O que também resulta reforçado pelos termos da própria denúncia, onde consta que, efectivamente, a AF... e o PP... participação foram à Segurança Social em Janeiro de 2001 a reclamar contra o recebimento de notas de reposição, e não a devolver os cheques (cf. fls 2 e 3). Ou seja, e como bem acentua o MP de 1ª instância, tais cheques não foram devolvidos e, depois, tirados à Segurança Social em Janeiro de 2001, altura em que a arguida pretensamente já estava na cidade da Y..., mas, claramente, até 31.12.2000, não passando a referência àquele mês evidente lapso da testemunha AM... .
d)- FACTO 8 - A arguida não devolveu à AM... os impressos de cheque referidos no ponto anterior, mantendo-os em seu poder. A CONCLUSÃO parece evidente, face à forma como o tribunal fundamenta a prova.
e)- FACTO 9 - Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 34.360$00, cuja cópia consta de fls. 144 e 145, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego GP…, a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 23 de Agosto de 2000 (data de emissão do cheque), pagou a SS... a festa de aniversário da sua filha, que esta havia organizado. Sabemos que a referida testemunha SS... não foi ouvida. Estamos, contudo, do lado do MP respondente, quando conclui que não só ela validamente poderia confirmar nos autos que recebeu o cheque em causa (no valor de 34.360$00, de que era beneficiária a GP…) da arguida. A prova resulta da valoração conjugada e crítica dos depoimentos das testemunhas AM... e PG..., a quem a arguida e a própria SS…, respectivamente, fizeram confidências das quais, por raciocínio lógico de ilação e inferição, é possível extrai-la. É certo que falamos de “depoimentos indirectos”. Contudo, em ambas as situações as fontes foram chamadas a depor ou prestar declarações em julgamento. Uma delas compareceu, a arguida (não negando ter entregado o cheque em causa à SS..., dizendo mesmo que não o punha em dúvida, só que não se lembrava). A outra, SS..., não compareceu, mas por impossibilidade de ser localizada e convocada, como resulta dos autos (fls 553; 565; 569-A). É lícita, pois, a valoração de tais depoimentos nesta parte, não sendo impeditivo o disposto no art. 129°/l do Código do Processo Penal. Efectivamente, devendo a norma jurídica ser entendida como a expressão lógica da dirimição de um determinado, mas abstractamente proposto, conflito de interesses -materiais ou processuais -, há que buscar, então, um ponto de “concordância prática” entre tais interesses — ambos ético-socialmente essenciais -, num esforço interpretativo que nunca perca de vista a razão material. O que significa que, no respeito mútuo pelos núcleos essenciais, invioláveis, dos princípios da verdade material e da livre convicção do julgador (avesso a qualquer sistema de prova formal) e pelos princípios da dignidade individual e do contraditório, também cremos (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 13.12.2006, Processo-0615421[5]), que aquele ponto de “concordância prática” impõe que não se entenda como absoluta a “impossibilidade de serem encontradas” as pessoas a quem se ouviu dizer, para que seja admissível a prestação do depoimento (indirecto) do ouvinte.
f)- FACTO 10 - Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 91.950$00, cuja cópia consta de fls. 143, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego MS..., a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 20 de Outubro de 2000 (data de emissão do cheque), deslocou-se ao estabelecimento comercial de AT..., sito …, em ..., concelho de K..., e pagou com o mesmo as compras que ali fez. Quanto a este cheque, note-se que a própria arguida admitiu que ali foi mais que uma vez fazer compras, de valores diminutos, pagando com os cheques em causa e recebendo em dinheiro o respectivo troco. O próprio testemunho de AT... – ouvido em 16/9/2010[6] - confirma tal factualidade, ou seja, que a arguida ali entregou em pagamento ou “cambiou” cheques da Segurança Social, dizendo que o fazia a pedido dos beneficiários. Recorde-se o que o tribunal recorrido deixou escrito sobre este testemunho: «confirmou que a arguida aí pagou produtos que adquiriu com cheques (pretensamente) endossados por beneficiários da Segurança Social, e emitidos a favor destes por tal entidade, recebendo o troco (pois as compras efectuadas eram de baixo valor). Referiu ainda a testemunha que a arguida disse no seu estabelecimento que os beneficiários dos cheques lhe haviam pedido para proceder à cobrança dos mesmos. É de salientar que o depoimento desta testemunha se baseou, em parte, no que o seu primo, e antigo funcionário, CT..., que fazia a caixa do estabelecimento, lhe disse. Porém, não se tratou de uma conversa mantida após os eventos, mas na altura em que a arguida se encontrava no estabelecimento, pedindo o referido funcionário autorização ao depoente para trocar os cheques — autorização essa que foi concedida, tendo a testemunha visto e contactado directamente com a arguida. Refira-se ainda que esta testemunha confirmou a conversa que manteve com a testemunha MM..., acima relatada».
g)- FACTO 11 - Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 63.810$00, cuja cópia consta de fls. 166 e 167, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego MM..., a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 20 de Outubro de 2000 (data de emissão do cheque), deslocou-se ao estabelecimento comercial de AT..., sito …, em ..., concelho de K..., e pagou com o mesmo as compras que ali fez. Vale o que se escreveu no facto 10, complementado com o depoimento de MM… (ouvida em 9/9/2010[7]) - «a testemunha MM... esclareceu ainda que se dirigiu ao estabelecimento em que o cheque que lhe era dirigido foi entregue, situado em ..., tendo um Sr. AM..., que aí trabalhava, dito que o cheque em questão havia sido entregue pela arguida, tendo já sido confrontado com outras duas situações análogas à sua, em que estavam em causa cheques também entregues pela arguida, inicialmente emitidos a favor de beneficiários da Segurança Social».
h)- FACTO 12 - Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 102.424$00, cuja cópia consta de fls. 142, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de doença VL..., a arguida deslocou-se no dia 3 de Novembro de 2000 à agência de K... do “Banco X...” e aí depositou o referido cheque na sua conta bancária com o n°40519806/001. O depoimento de VL… fala por si, complementado pelo depoimento escorreito da testemunha AM..., tendo, a este propósito e de outros cheques, referido o tribunal a quo: «Afirmou ainda a testemunha, de modo coerente e esclarecido, que os cheques desapareceram em momentos distintos no tempo (embora não possa localizar com precisão a data de tal desaparecimento), e não de uma vez só, e sempre na altura em que estavam entregues à arguida para elaboração do referido protocolo». i)- FACTO 13 - Na posse do impresso de cheque com o n° …, no valor de Esc. 65.937$00, cuja cópia consta de fls. 141, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego LR..., a arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 20 de Novembro de 2000 (data de emissão do cheque), deslocou-se ao estabelecimento comercial de AT..., sito no …, em ..., concelho de K..., e pagou com o mesmo as compras que ali fez. Vale o que se escreveu no facto 10, complementado com o depoimento de LR… (ouvida em 9/9/2010).
j)- FACTO 14 - Na posse do impresso de cheque com o n° 8667531588, no valor de Esc. 86.940$00, cuja cópia consta de fls 4 e 139, que havia sido devolvido pela beneficiária do subsídio de desemprego IF..., a arguida deslocou-se no dia 28 de Dezembro de 2000 à agência de K... do “Banco X...”, em cujo balcão lhe pagaram aquela quantia. Ouvimos também o depoimento de IF…, ouvida na sessão de 9/9/2010, tendo sido ele elucidativo[8] q.b.
k)- FACTO 15 - A arguida, em data que não foi possível determinar em concreto, mas posterior ao dia 19 de Julho de 2000, apoderou-se do impresso de cheque com o n° ..., cuja cópia consta de fls. 138, no valor de Esc. 555.772$00, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego PP..., e deslocou-se com o mesmo, no dia 11 de Janeiro de 2001, à agência de K... do “Banco X...”, e aí depositou o referido cheque na sua conta bancária com o n°40519806/001. Recorde-se o que deixou escrito o tribunal, ALICERÇANDO a sua convicção no depoimento de AM... que trouxe imensa luz à factualidade já passada há 10 anos, note-se: «Afirmou ainda a testemunha (AM... ), de modo coerente e esclarecido, que os cheques desapareceram em momentos distintos no tempo (embora não possa localizar com precisão a data de tal desaparecimento), e não de uma vez só, e sempre na altura em que estavam entregues à arguida para elaboração do referido protocolo. Excepcionou a testemunha apenas o cheque com o n° …, no valor de Esc. 555.772$00, que havia sido devolvido pelo beneficiário do subsídio de desemprego PP..., referindo que este foi subtraído pela arguida da secretária da funcionária IS... - afirmação consonante com as declarações da arguida, quanto a este ponto concreto. O próprio facto de os cheques apresentarem datas de emissão e de apresentação a pagamento distintas aponta claramente para o seu desaparecimento em momento temporais distintos, e não em apenas uma ocasião. Por fim, da segunda vez em que prestou depoimento, a testemunha declarou que a arguida, após ter iniciado o trabalho no seu serviço, passou a ostentar dispor de boa situação financeira, adquirindo com frequência roupa e sapatos, trocando de viatura automóvel, realizando uma faustosa festa de anos à filha, com participação de palhaços, e fazendo ofertas às colegas do serviço E ainda de sublinhar que a testemunha relatou ter sido contactada e visitada em sua casa pela arguida e seu companheiro cerca de um mês antes da realização da audiência de julgamento, tendo a arguida pedido desculpa pela sua conduta na altura em que os factos ocorreram — realidade confirmada pela arguida nas suas declarações». Mais: quanto aos cheques depositados pela arguida na sua conta bancária, tal circunstância resulta, desde logo, das cópias dos cheques respectivos e do extracto enviado pelo Banco (cfr. documentos de fls 5, 138, 142 e 212-215). l)- FACTO 16 - Nas situações descritas nos pontos 9. a 14., a arguida assinou os nomes das pessoas a quem os cheques eram dirigidos, a fim de fazer crer que os mesmos lhe haviam sido endossados. O tribunal raciocinou bem: «A arguida aceitou ainda que tirou vários cheques, apoderando-se deles, assumindo dever à Segurança Social as quantias de que se apropriou. Além disso, a arguida começou por aceitar que assinava os nomes no verso dos cheques, embora posteriormente tenha negado que tivesse falsificado as assinaturas dos beneficiários dos cheques. Todavia, a arguida aceitou que após ter tirado os cheques em questão, mais ninguém com eles contactou, pelo que as assinaturas (de endosso) apostas nos versos dos cheques foram necessariamente feitas pelo seu punho». Diga-se ainda que foi a própria arguida que assumiu em julgamento, dizendo que foi ela que levou os cheques ao banco. O resto fica por conta da dedução lógico-indutiva, a lançar mão sempre que no seu percurso em direcção à fixação da questão-de-facto, o tribunal seja confrontado com hiatos ou lacunas que deva e possa, objectiva, lógica e razoavelmente preencher. Nega a arguida ter feito os “endosso” dos cheques dos beneficiários. Ora, os beneficiários disseram não terem assinado os cheques. A própria arguida reconheceu que desde que deles se apropriou até os depositar ou dar em pagamento ninguém mais lhes tocou. Logo, foi ela a autora desses endossos. Esta CONCLUSÃO está longe, pois, de ser temerária e inadmissível. Ora, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem. Por isso, resulta que, para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como opina o acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002 (C.J. , ano XXVII , 2º , página 44) , “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. Nesta parte importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciária). A prova indirecta “…reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág. 289[9]. Como acentua o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “ a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51. Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127.º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Na expressão regras de experiência[10], incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano . da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184). Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto. Como acentua Euclides Dâmaso, no seu artigo «Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)», publicado na Revista Julgar, n.º 2, 2007, «vale isto por dizer-se que a “prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunções”, que alguns decisores por vezes (infelizmente raras e apenas em crimes contra as pessoas) meticulosa e exigentemente praticam sem claramente assumirem fazê-lo, tem que ganhar adequada relevância jurisprudencial e dogmática também entre nós. Sob pena de a Justiça não se compatibilizar com as exigências do seu tempo e de se agravar insuportavelmente o sentimento de impunidade face aos desafios criminosos de maior complexidade e desvalor ético-jurídico, mormente os “crimes de colarinho branco” em geral e a corrupção e o branqueamento em particular». Prieto-Castro Y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes opinam mesmo que «o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico — jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade». Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra a arguida qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efectivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo. Aqui chegados, só há que constatar que o tribunal recorrido, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas, utilizando, de boa feição e pelo melhor método, as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência, não se vislumbrando qualquer vício no seu modo de decidir. Conclui-se, assim, que, não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados, sendo esse um mecanismo recorrente na formação da convicção («basta pensar na prova da intenção criminosa; a intenção, enquanto elemento volitivo do dolo - enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime -, na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado»).
m)- FACTO 17 - Em consequência da sua conduta, descrita nos pontos anteriores, a arguida embolsou a quantia global de Esc. 1.001.193$00 (€ 4.993,93), pertencente ao Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de K..., quantia essa que sabia não lhe pertencer, sabendo ainda que agia sem o consentimento e contra a vontade dessa entidade. Esta conclusão parece óbvia, face à prova dos factos antecedentes.
n)- FACTO 18 - A arguida aproveitou-se das suas funções para aceder e dispor das quantias referidas nos pontos anteriores em seu proveito, atitude que manteve posteriormente ao se aperceber da facilidade com que actuava. Esta conclusão aparece óbvia também, sendo absolutamente irrelevante o que se deixa escrito nas conclusões 41 a 47 (a arguida acedeu a cheques, disso ninguém duvida, tendo a eles acedido face às funções temporárias mas efectivas que exercia na Segurança Social).
o)- FACTO 21 - A arguida actuou com o propósito concretizado de se apropriar das quantias tituladas nos cheques referidos nos pontos anteriores, apesar de saber que a elas não tinha direito. p)- FACTO 22 - A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei penal. Quanto à prova da intenção ilícita da arguida e do seu dolo directo, há que referir a sábia lição de Cavaleiro Ferreira, quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados. Ora, resulta à evidência que estamos perante alguém que sabia o que estava a fazer, movida por intuitos apropriativos.
3.2.7. Uma palavra sobre o princípio «in dubio pro reo». No fundo, o que a recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. A recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte: «Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum». Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253). Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada. Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira. O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo. Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam. Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009: «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.». Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela. Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados. E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados. É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade. Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa. Por isso, repete-se: entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos. Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto com base no cotejo dos elementos de prova que a recorrente refere, não fazendo qualquer sentido a alegação de «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», pressuposto do vício do artigo 410º/2 a) do CPP (a este assunto voltaremos a propósito das nulidades e irregularidades arguidas). Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados. Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa». O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido. Não ficou o Tribunal de K... em estado de dúvida. E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133). Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.
3.2.8. Em CONCLUSÃO, manter-se-ão os factos dados como provados pela 1ª instância, improcedendo as conclusões do recurso nesta parte factual (1 a 52), inexistindo qualquer erro de julgamento ou vício do artigo 410º/2 do CPP.
3.2.9. NULIDADES E IRREGULARIDADES a)- Mas foi cometida alguma nulidade ou irregularidade de prova pelo Colectivo de K...? Entende que sim a recorrente.
b)- Vejamos. Tudo isto foi suscitado na audiência de 9/9/2010, 16/9/2010 e 17/9/2010, tendo o Colectivo indeferido tais arguições de nulidade e irregularidades. Quanto à primeira, há que recordar que o Colectivo decidiu assim: Em 9/9: «A arguida beneficiou do prazo previsto no art° 315° n°1 do CPP e nada requereu. Previamente, a arguida beneficiou igualmente de prazo para requerer a abertura de instrução, faculdade que também não exerceu. Tentando suprir tal omissão ou negligência processual, apresentou o requerimento de fls. 548, com o mesmo sentido e conteúdo do que agora apresenta. Tal requerimento foi, e bem, indeferido pelo despacho judicial de fls. 554, que a arguida ainda poderá, se o desejar, impugnar. Pretende agora a arguida renovar tal requerimento, recorrendo ao mesmo Todavia, julgamos que tal decisão é juridicamente acertada e Em 17/9: Como bem refere o M° P°, a fase de instrução dos presentes autos, já terminou. Além disso, a arguida, além de toda a fase de instrução, beneficiou de prazo para requerer a abertura de instrução, dele não usando, e de prazo de contestação e requerer a produção de meios de prova, nada requerendo nessa fase. Entende o Tribunal Colectivo que os meios de prova produzidos e analisados extensamente e cuidadosamente na audiência de julgamento, são suficientemente esclarecedores da situação em apreço, permitindo o apuramento do sucedido, ou seja, da verdade material, não ficando qualquer facto por esclarecer, nem qualquer dúvida razoável acerca de qualquer ocorrência. Não se trata aqui da emissão de qualquer juízo prévio à decisão final, mas apenas da constatação de uma realidade que deve ser avaliada em todos os processos criminais pelo juiz do julgamento em momento de encerramento da fase da instrução cio processo. Assim sendo, os meios de prova ora requeridos, revelam-se claramente supérfluos, irrelevantes e patentemente dilatórios, pois nada acrescentariam de conclusivo à decisão a proferir sobre a questão de facto, visando apenas lançar a confusão e atrasar a decisão da causa». No que concerne às requeridas inquirições, diga-se, parafraseando o MP de 1ª instância que esteve muito atento ao julgamento e que raciocinou igualmente de forma exemplar, que: «A própria versão apresentada pela arguida em julgamento sobre esta pretensa circunstância e seus contornos e desenvolvimentos era inverosímil e denotava autêntica efabulação, pelo que bem andou o Colectivo ao indeferir o pedido de realização de tal diligência. Convicção que, aliás, como já era de esperar, veio a ser reforçada pela inquirição da testemunha AM... . Quanto à requerida inquirição da D. IS... e do superior hierárquico da D. AM...: a própria arguida é contraditória na sua versão, começando por dizer que retirou os cheques dos cestos das suas colegas (entre as quais a D. IS...), para depois, de forma inesperada e num autêntico passe de mágica, vir dizer que os retirou todos, na mesma ocasião, do cesto da D. IS… A testemunha AM... foi muito esclarecedora no seu depoimento quanto às circunstâncias em que se apurou que faltava também um cheque na secretaria da D. IS… . O superior hierárquico da testemunha AM... , pelo que resulta da discussão da causa e do próprio requerimento, apenas viria esclarecer sobre as competências da secção que aquela chefiava na Segurança Social, o que ela própria fez de maneira esclarecedora e contundente, referindo-se, logo aquando da sua primeira inquirição, que também processavam os cheques da Secção de Doença, e não apenas do Desemprego (o que, até, não foi impugnado da matéria-de-facto provada – cfr. o n.° 2)». Não acrescentaremos nada mais por absolutamente irrelevante e desnecessário - por este andar, este julgamento nunca teria fim pois haveria sempre mais testemunhas a arrolar e a ouvir, requeridas fora do momento processual que o CPP entendeu como idóneos para o efeito. Usar o artigo 340º do CPP para mascarar as deficiências de um artigo 315º ou de uma não abertura de instrução não é técnica que se aceite. Como tal, inexiste a nulidade arguida, não se vislumbrando também que tivesse havido alguma violação do artigo 32º/2 da CRP durante este processo pois não se visualiza que a arguida tenha sido prejudicada no seu direito de defesa, estando nós perante um processo que correu célere e escorreito, sob o ponto de vista processual (conclusões 53 e 54).
c)- Quanto à 1ª irregularidade, foi este o despacho exarado na acta de 17/9/2010: «(…) No que à prova pericial respeita, importa referir que apenas se presume estar subtraída à livre apreciação do julgador o próprio juízo pericial, e não a percepção do facto por outros meios de prova, directos ou indirectos. E mesmo o próprio juízo pericial, pode ser alterado pelo Tribunal, exigindo apenas a Lei que a divergência seja fundamentada -. art° 163° do CPP. Quanto às capacidades e habilidades ou competências próprias, cada um sabe de si, sendo certo que as competências do Tribunal não são definidas pela arguida, mas sim pela Lei, e é indiscutível que é ao Tribunal Colectivo que incumbe a tarefa de apreciar a questão de facto, competência essa, exclusiva. Deve ainda referir-se que as afirmações constantes do requerimento da arguida referentes ao conteúdo, alcance e valor dos meios de prova produzidos nesta audiência, são obviamente, subjectiveis, reflectindo unicamente a sua posição, e nada mais. Assim sendo, e pelos motivos expostos, indefere-se o requerido na sua totalidade. Notifique». Pretendia a recorrente, ao abrigo do disposto no art° 154°, n° 1 e 151° do CPP, a produção de prova pericial das assinaturas apostas nos versos dos cheques, cuja autoria vem imputada à arguida, «devendo tal análise pericial ser confrontada com a caligrafia da arguida, dos beneficiários dos cheques, e de todas as pessoas que com eles tiveram contacto, conforme prova produzida neste Tribunal, uma vez que o Tribunal não tem conhecimento técnico, próprio, e necessário para proceder à percepção e avaliação do facto de saber se existiu, ou não, falsificação e porquê». Ora, aqui chegados, há que notar que: · É notório que os documentos bancários são destruídos num prazo nunca inferior a 10 anos, preservando-se a sua existência através de microfilmagem que, como se sabe, não permite exame grafológico; · Comprovar se certa pessoa falsificou uma assinatura apondo-a num documento só justifica o recurso à prova pericial se não houver outras provas nos autos bastantes à comprovação desse facto, nomeadamente, de natureza testemunhal, por exemplo, de uma forma mais directa alguém que o tenha presenciado, ou de uma forma mais indirecta ou complexiva, através de recurso a juízos e ilações lógicas retiradas objectivamente e razoavelmente das provas directamente produzidas, como é o caso dos autos. Face ao exposto, inexiste qualquer irregularidade processual (conclusões 55 e 56).
d)- No que diz respeito à 2ª IRREGULARIDADE, ditou assim a sua opinião o tribunal recorrido em 9/9/2010: «Como resulta do art° 168° do CPP, e não foi jamais questionado pela arguida, as reproduções constantes do processo bastam para assegurar a fidedignidade do meio de prova em causa. Logo, o requerimento probatório pretende a produção de um meio de prova já validamente produzido, pelo que se revela supérfluo e dilatório. Em consequência, indefere-se o ora requerido, condenando-se a arguida. pelo Notifique». Em 16/9/2010, decide ainda assim, depois de ter sido colocada em causa a autenticidade e veracidades de certos documentos juntos aos autos, à luz do artigo 169º do CPP: «Independentemente da credibilidade e valor probatório dos documentos juntos ao processo referenciados no requerimento da arguida, é indiscutível que os mesmos não constituem métodos proibidos de prova, devendo ser, por isso, objecto da livre apreciação do Tribunal, a efectuar em momento próprio, ou seja, na decisão final. Assim sendo, tendo o M° P° deduzida a acusação, tem o direito e o dever de juntar ao inquérito os meios de prova legalmente admissíveis tendentes à demonstração dos factos relatados no libelo acusatório, incluindo os documentos cuja análise será feita necessariamente em sede de audiência. A arguida teve oportunidade de analisar e contradizer tais documentos que foram assim, produzidos nesta audiência de julgamento. Logo, devem os documentos manter-se nos autos e ser ulteriormente objecto de sindicância judicial. Notifique». Foi, de facto, colocada em causa a credibilidade das fotocópias dos cheques. Contudo, o tribunal indeferiu e bem tal arguição, Diremos apenas que, embora reconhecendo que tais documentos não primam pela qualidade, os mesmos são perceptíveis e apreensíveis, entendendo-se ainda, no que tange Não deixaremos de deixar aqui, pois tem a nossa inteira concordância, o explanado pelo tribunal em sede de acórdão: «No que respeita aos impressos de cheque em questão nos autos, reproduzidos nestes apenas por cópia, importa referir que estas (cópias) se mostram claras, perceptíveis e fidedignas. Além disso, foram remetidas aos autos por entidades sérias e isentas, que merecem toda a credibilidade - o “Banco X...” e a “Segurança Social”. E é certo que boa parte destes documentos correspondem a microfilmagens. Note-se que a lei processual penal permite a junção ao processo de cópias dos documentos relevantes, atribuindo-lhes validade e eficácia probatória - arts. 164°, 168° e 183° do C.P.P. Como referem Simas Santos e Leal-Henriques’, “as meras fotocópias de documentos, mesmo não autenticadas, não deixarão de ter uma certa valia como prova, se bem que tal relevância se não pode de modo algum equiparar ao valor probatório de um documento original ou autenticado. (...) O seu valor como prova é de livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127°. O motivo da impossibilidade de junção do original é irrelevante“. Por outro lado, as testemunhas inquiridas foram confrontadas com os documentos em causa (cópias de cheques) e confirmaram-nos sem qualquer dúvida, reserva ou excepção, afirmando corresponderem aos originais, que tiveram em seu poder ou observaram. Por fim, a arguida começou por aceitar o teor das cópias de impressos de cheque juntas aos autos, só posteriormente as impugnando, impugnação essa vazia de conteúdo, ou seja, não baseada em qualquer facto ou razão concreta. E importa não esquecer que a arguida aceitou ter tirado cheques devolvidos por beneficiários da “Segurança Social”, e ser devedora das correspondentes quantias. Assim sendo, os referidos documentos mereceram credibilidade, influindo na decisão da causa». Sem mais, improcede, assim, tal arguição de irregularidade (conclusões 57 e 58).
3.3. IMPUGNAÇÃO DE DIREITO
3.3.1. Estão em causa aqui o crime de falsificação de documento na forma continuada e um crime continuado de peculato, ambos cometidos em concurso real de infracções. Ora, face à validação dos factos provados, só há que concluir que foi praticado o crime de falsificação de documento, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, n.º 2, 79º e 256º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do CP (note-se que a arguida não coloca em causa a opção pelo crime continuado, bem explicado, em sede sentencial, face ao facto 18º). Como tal, só podem improceder as conclusões 60 a 63.
3.3.2. Resta o crime de peculato, também praticado na forma continuada. Entende a recorrente que não é funcionária para estes termos, nunca tendo tido a posse ou a disponibilidade dos cheques em acusa. Quanto ao 2º argumento, face à validação dos factos provados – facto 5º - e à inequívoca prova da real apropriação dos cheques pela arguida, só pode improceder[11]. Vejamos o 1º argumento. Comete o crime de peculato previsto e punido pelo artigo 375º/1 o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio, de dinheiro, público ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções – aqui a pena abstracta vai de 1 a 8 anos de prisão. Se o valor for de diminuto valor (e é-o nos termos do artigo 202º, alínea c) do CP), o agente é punido com pena de prisão ate 3 anos ou com pena de multa (artigo 375º/2 do CP). Os factos que à arguida são imputados, que se tiveram por demonstrados, integram, objectiva e subjectivamente a prática, na forma continuada, de um crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375º, n.º 1, do CP. A factualidade provada patenteia que a arguida se apropriou de dinheiros públicos, que lhe estavam confiados, na sua qualidade de trabalhadora na SS e, ao invés de proceder, como se lhe exigia, com lisura na guarda daqueles dinheiro, apropriou-se de dinheiro desse organismo, para seu uso e/ou consumo pessoal ou de seus familiares, pelo que se verificam todos os elementos, tanto objectivos como subjectivos de tal ilícito. Com a tipificação do crime de peculato, um delito específico impróprio, visa-se a salvaguarda do interesse do Estado e dos organismos públicos em que os seus funcionários e agentes sejam honestos[12], interesse que a arguida terá violado, consciente da ilicitude dessa conduta. O tipo legal de crime de peculato parte de um crime base, ou primário, que é o crime de abuso de confiança, no qual introduz um elemento qualificante – a qualidade de funcionário. Tem, pois, como elementos típicos a qualidade de funcionário do agente, a apropriação ilícita em proveito próprio ou de outrem, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, que lhe foi entregue ou estiver na sua posse em razão das suas funções. No que se refere à qualificação de tal conduta como continuada, também não há dúvidas, face ao modo como os factos ocorreram e tendo em vista o disposto no artigo 30º, n.º 2, do Código Penal: mantiveram-se inalteráveis no tempo as circunstâncias que propiciaram a sua conduta criminosa, desde a disponibilidade dos «dinheiros» por parte da arguida, que assim aproveitou a facilidade de acesso a esses dinheiros e ao seu desvio. Tal bastará para se concluir que o comportamento criminal da arguida cai na alçada do artigo 375º, n.º 1, afastando-se a aplicação do n.º 2, assente que, nos termos do artigo 79º/1 do CP – norma tida por violada pela recorrente -, o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação. Estatui a letra do art. 79º do CP (na redacção da Lei nº 59/2007, de 04/09): 1. O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação; 2. Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior. A expressão “conduta mais grave” refere-se à acção, integrante da continuação, que preencha o tipo punível com a pena mais grave (não se pretende apenas punir a actuação parcelar mais grave, deixando de fora todas as outras); o que se pretende é que, em caso de crime continuado, se tenha em conta a moldura abstracta aplicável à infracção mais grave abrangida pela continuação, devendo dentro dessa moldura serem levadas em conta – na determinação da medida concreta da pena - todas as restantes actuações parcelares, ou seja, a ilicitude global da actuação criminosa em causa. Furtado dos Santos isso mesmo doutrina (BMJ nº 47, pág. 500): “a pena do crime continuado deverá pois situar-se entre as aplicáveis ao delito único e ao concurso real. É esta a solução que, modernamente (e tendo em conta a entrada em vigor da actual redacção do art. 79º), Maria da Conceição Valdágua pressupõe, no artigo “As alterações ao CP de 1995, relativas ao crime continuado, no Anteprojecto de Revisão do CP”, Revista de Ciência Criminal, Ano 16, nº 14, 2006, ao criticar o injusto privilégio do agente do crime continuado, em comparação com o regime de punição do agente de vários crimes em concurso “na verdade, como já se referiu, no caso do crime continuado, só dentro da moldura penal aplicável à infracção mais grave abrangida pela continuação criminosa é que podem ser tomados em conta todos os restantes actos singulares do agente do crime continuado, quer eles sejam, por exemplo, apenas dois, ou vinte ou duzentos.” O Acórdão do STJ de 27/09/1990 decidiu o seguinte: “A punição do crime continuado deve ser feita de acordo com o art. 78º, nº 5 do CP, com referência a conduta mais grave que integra a continuação; as demais condutas deverão, no entanto, ser consideradas na qualificação da pena enquanto constituem sinal de uma maior ou menor ilicitude, portanto, como factor de agravação”. Já o Acórdão do STJ de 12/11/1990 deixou escrito o seguinte: “Embora o crime continuado seja punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação – art. 78º, nº 5 do CP – é de entender que a gravidade dos actos unificadores pode e deve ter-se em consideração como factor de agravação” (ambos com sumários publicados no sítio www.dgsi.pt). Tal como se alcança do já referido, o benefício concedido ao agente do crime continuado, em virtude da sua culpa se encontrar consideravelmente diminuída, é evitar-se que a determinação da medida da pena em concreto se faça de acordo com as regras do concurso, em que o limite máximo da pena aplicável seria o resultante da soma de todas as penas parcelares aplicadas (e o limite mínimo, a pena parcelar mais elevada), ocorrendo a determinação dessa medida concreta da pena dentro dos limites da pena abstracta aplicada ao crime mais grave (no caso, no que aos crimes de peculato, seria a pena de 1 a 8 anos, aplicável ao crime de peculato mais grave). A alteração da configuração do art. 79º do CP, com a recente revisão, introduzida pela Lei nº 59/2007, nada mudou neste particular, apenas tendo esclarecido no seu n.º 2 o caso de conhecimento superveniente de crime que se integre em concurso de infracções - «destina-se a esclarecer o procedimento a seguir nos casos em que são descobertos e julgados factos integrantes duma continuação criminosa, já objecto de condenação transitada em julgado». No crime continuado, a diminuição da culpa relativa à reiteração criminosa já foi levada em conta pelo legislador, quando retirou a situação global do tratamento próprio do concurso de crimes. Portanto, nos limites da culpa ínsita na conduta mais grave, os factos relativos às outras condutas devem ser ponderados para a punição, sob pena de a punição do crime continuado não se distinguir, em – quase - nada, da punição dum único crime, assente esta numa conduta singular. Como refere Figueiredo Dias, «significa então que deve vigorar, no caso, um princípio de exasperação, e não de absorção. Nada impede, pois, que se valore a pluralidade de actos, se disso for caso face ao limite da culpa e às exigências da prevenção, como factores de agravação”. Como se vê, a conduta mais grave que integra esta específica e comprovada continuação[13] (crime continuado este que juridicamente é tratado como um só crime, embora realizando plurimamente o mesmo tipo de crime ou vários tipos que protejam o mesmo bem jurídico, tudo de acordo com o dispositivo do artigo 30º/2 do CP) é claramente superior, em termos de valor apropriado, à UC em causa, caindo então a punição deste crime continuado na letra do artigo 375º, n.º 1 do CP. Mas será ela um funcionário, na acepção da lei penal? A categoria de «funcionário» é um elemento normativo do tipo, cujo conhecimento depende apenas da apreensão pelo agente do sentido social do elemento do tipo (alguém que prevarica com algo que não é seu e que está ao seu dispor, face ás funções que tem) e não de uma exacta subsunção jurídica dos factos na lei que os prevê. Estatui o artigo 386º do CP actual: 1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange: a) O funcionário civil; b) O agente administrativo; c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar. 2 - Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos. 3 - São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.º a 374.º: a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência; b) Os funcionários nacionais de outros Estados membros da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; d) Todos que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos. 4 - A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial. Ora, a situação da arguida, enquanto parte activa de um acordo de actividade ocupacional, subsume-se à da alínea c) do n.º 1 do supracitado artigo 386º (é chamada a desempenhar uma actividade compreendida na função pública administrativa), a nada obstando o facto de se estar perante uma função temporária e provisória. O que releva é que lidava com «dinheiros» que lhe eram entregues ou estavam à sua disposição na sequência das suas funções temporárias, seja do quadro, ou não, sem curar da natureza do vínculo laboral em causa, o que apenas pode relevar em termos disciplinares. O próprio Acordo por si assinado é claro - é dever do segundo outorgante aceitar a prestação do trabalho necessário... [cfr. Cláusula 4/1a)]. Materialmente, apenas relva o trabalho que é de facto feito. E ninguém duvida, nem ela, penso, que a arguida durante este tempo «trabalhou» na Segurança Social, laborando no âmbito funcional da Administração Pública do Estado, seja no sentido orgânico, seja no sentido material. Desenvolvia ela, conforme resulta dos factos provados (2 a 6), tarefas que, materialmente, se enquadram, de forma inevitável, na função pública administrativa: fazia o protocolo (listagem) dos cheques relativos a subsídios de desemprego e de doença que eram devolvidos à Segurança Social depois de emitidos e remetidos para os respectivos beneficiários. Nesta medida, sendo a atribuição e gestão de tais subsídios da competência da Segurança Social, Instituto Público da Administração Central do Estado, na dependência do Ministério do Trabalho, parece evidente que qualquer tarefa desempenhada, nessa estrutura orgânica, no sentido de acautelar o efectivo destino de tais cheques e respectivas importâncias, integra também os fins que estão adstritos a tal entidade pública[14]. Vê-se que o legislador-penal, pela amplidão de que revestiu o conceito de “funcionário”, procurou defini-lo abstraindo (ou apesar) do acto formal que, à luz do Direito Administrativo, titula a relação-jurídica de emprego-público. Como bem acentua o MP, «mas não se duvida, até, que a arguida ingressou na Segurança Social, embora provisoriamente, através de um contrato de natureza administrativa, que, porém, tem na sua génese uma filosofia ocupacional para desempregados, não ocorrendo usurpação de funções, como alega ela própria. Aliás, sendo o AAC celebrado ao abrigo do disposto nos arts. 10º a 13º da referida Portaria[15] (“trabalhadores desempregados em situação de comprovada carência económica”), não era imperativo que a arguida fosse, como pretende o Ilustre Defensor, exercer uma actividade em “beneficio da colectividade”, mas, isso-sim, uma actividade que lhe facilitasse, no futuro, o ingresso num emprego estável e evitasse a desmotivação profissional (cfr, art. 3°/1-a) e b) do mesmo diploma legal)». A arguida é, pois, FUNCIONÁRIA, em sentido legal e alargado, quando pratica os actos ilícitos culposos. Desta forma, improcedem as conclusões 64ª a 69º.
3.4. Improcedem, pois e assim, todo o recurso, nada havendo a apontar à medida da pena aplicada à arguida e à condenação cível de que foi alvo (intocada no recurso).
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5 ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pela arguida FS.., mantendo o acórdão recorrido, quanto ao Factos, ao Direito – segmento penal e civil - e à Pena aplicada.
Condena-se a recorrente em custas, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ, ainda aplicável aos autos].
Paulo Guerra (Relator) Cacilda Sena [1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano . da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt. [2] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp. [3] E aqui o tribunal foi peremptório, e nós com ele: «Na realidade, a postura da arguida revelou-se titubeante e contraditória (nos seus próprios termos) ao longo das suas declarações, assumindo posições diversas quanto à veracidade de certos factos, e relatando versões distintas das mesmas situações. Daí que boa parte das declarações da arguida não tenham merecido credibilidade, sendo aliás desmentidas pelos restantes meios de prova produzidos, como de seguida se expõe. Saliente-se ainda que a prova produzida, designadamente a testemunhal, desmentiu a afirmação da arguida de estar a ser ameaçada na altura dos factos por causa de uma dívida. De facto, tal afirmação da arguida não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, tendo mesmo sido negado pelos depoimentos testemunhais produzidos. E julgamos ser pacífico que quem se encontra a ser ameaçado não reage tirando cheques e falsificando-os, mas antes dirigindo-se às autoridades — o que a arguida não fez. Não merece, pois, qualquer credibilidade tal afirmação da arguida». [13] O tribunal não teve dúvida em ver na atitude da arguida uma acção CONTINUADA – nem tal é colocado em crise pela recorrente. |