Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO VALÉRIO | ||
Descritores: | AMEAÇA | ||
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Data do Acordão: | 10/30/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 153.º DO CP | ||
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Sumário: | A expressão “fazer a folha” - significando, implicitamente, fazer algo de mal a outrem -, quando usada numa situação de conflito, e precedida de uma agressão física, tem aptidão para, em relação a qualquer pessoa, traduzir a possibilidade da execução de uma acção agressiva futura, sendo, por isso, adequada a configurar o tipo objectivo do crime de ameaça. | ||
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Decisão Texto Integral: | Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra RELATÓRIO 1- No Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, no processo acima identificado, por despacho do Ministério Publico proferido em inquérito, foi ordenado o arquivamento dos autos no que toca a um denunciado crime de ameaça com o fundamento de que as palavras pronunciadas pelo acusado não eram susceptíveis de integrar aquele crime. Requerendo a assistente A... a abertura de instrução nos termos do art° 287 do CPP, e foi, por decisão instrutória de fls 140 sgs, considerar-se não pronunciado o arguido B.... 2- Inconformada, a assistente recorreu, concluiu do modo seguinte : A expressão proferida pelo recorrido dirigindo-se a recorrente : "Deixa vir o teu ex-marido daqui a duas semanas que a gente fazemos-te a folha" é idónea a provocar medo e intranquilidade a recorrente pelo que subsume-se ao tipo legal de crime de ameaça previsto e punido pelo art°. 153°. n°.1 do CodPenal pelo qual, o recorrido, deveria ter sido pronunciado; 0 critério da adequação da ameaça a provocar medo e inquietação de modo a prejudicar a liberdade de determinação do ofendido é determinada pelas circunstancias objectivo - individuais que contextualizarn os factos; Pelo que há que levar em conta o significado comummente aceite para o homem médio em geral de acordo com as circunstâncias concretas em que a expressão foi proferida, bem como as condições individuais do seu destinatário; No caso em apreço, é conhecido pela generalidade dos cidadãos que a expressão “ fazer a folha a alguém” significa infligir um mal à vida ou/e integridade física de alguém, sobretudo se tal expressão é proferida num contexto de agressões físicas desferidas previamente pelo agente e proferidas No caso concreto a recorrente foi gravemente agredida pelo recorrido, o que lhe originou lesões físicas e determinou que este tenha sido acusado nos autos pela pratica de um crime de ofensa a integridade física simples, após o que lhe dirigiu a referida expressão que esta entendeu como seria e ameaçadora, conforme o homem medio comum entenderia colocado em situação idêntica; Sendo certo que o próprio recorrido agiu com essa intenção bem sabendo que dirigindo tal expressão a recorrente após a ter agredido com violência actuava de forma adequada a provocar-lhe medo e intranquilidade e a coarctar a sua liberdade de determinação, bens jurídicos que o crime tipificado pelo art°. 153°. n°.1 do Cod. Penal visa proteger. Pelo que ao proferir despacho de não pronúncia a decisão recorrida desrespeitou o disposto pelo art°. 153°. n°.1 do CodPenal, devendo ser proferindo despacho que pronuncie o recorrido pelo crime de ameaça previsto e punido pelo art°. 153°. n°.1 do CodPenal. 3- Nesta Relação, a Exma PGA emitiu douto parecer em que, acompanhando o MP da 1.ª instância, se pronuncia pela procedência do recurso 4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência. + FUNDAMENTAÇÃO A decisão instrutória tem, em resumo e com interesse para a questão levantada pela recorrente, o seguinte teor : « (...) Em primeiro lugar diga-se que nem a assistente sabe muito bem o significado de tal expressão. Como consta do artigo 7º do RAI não sabe se é atentar contra a integridade física ou contra a vida de alguém. E não sabe devido ao facto da expressão ser demasiado vaga e por isso não pode subsumir-se no crime de ameaça. Aliás, a nossa jurisprudência já se debruçou sobre esta expressão a propósito do crime de ameaça. A título exemplificativo veja-se alguma jurisprudência: O Ac. da RC de 5.5.99, in www.dgsi.pt, diz-nos que “a expressão «não espera pela demora que eu faço-lhe a cama» não prefigura ameaça na medida em que o agente não anuncia a prática de qualquer um dos crimes referidos no texto do artigo 153º, n.º1, do Código Penal”. Também o Ac. da RC de 9.1.2008, in www.dgsi.pt, refere que “a expressão “quem lhe vai f.. a vida vou ser eu” (…) não contém a virtualidade ou potencialidade de influenciar negativamente o normal agir e estar de um cidadão e de lhe perturbar o seu quotidiano”. Pelo que fica dito, entende-se que deve ser proferido despacho de não pronúncia, por não haver uma probabilidade de futura condenação do arguido. O Tribunal não pode formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma reacção criminal».. Como já escrevemos noutras ocasiões, « O significado duma palavra ou dum texto é aquilo que torna uma proposição em algo de explicito e em instrumento de comunicação e compreensão, o que torna aquilo que de outro modo seria simples sons e inscrições (...) Daí que o significado emotivo de uma expressão é a atitude, ou outro estado emocional, que é convencionalmente tomada como aquilo que o seu uso normal exprime. Mas muitas das expressões através dos quais exprimimos aprovação ou desaprovação têm também componentes descritivos, ou seja, são termos que têm simultaneamente um conteúdo descritivo e valorativo ( “ termos densos ” ). A interpretação, isto é, a captação do significado e do sentido prático da linguagem falada no domínio do direito e das situações da vida real sujeitas ao escrutínio do direito penal ( que por definição avalia condutas, inclusive verbais ou gestuais ) não se compadece com construções desencarnadas do sentido prático e comum, por exemplo com avaliações literárias, estilísticas ou metafísicas que não encontrem uma compreensão no mundo dos seres comuns, ou seja, no mundo dos homens reais que usam uma determinada linguagem comum ( partilhada ) e dentro do contexto de utilização de tal linguagem, com os significados e o valor descritivo e valorativo que as palavras têm dentro de tal uso corrente e do respectivo contexto. Este aspecto pragmático da linguagem é colocado pelos próprios post-modernistas, vg. por Derrida ( com o que aliás Dewey e Wittgenstein teriam concordado ) : «Se as palavras e os conceitos recebem significado apenas em sequências de diferenças, podemos apenas justificar a nossa linguagem e as nossas escolhas de termos dentro de um tópico e de uma estratégia histórica. A justificação pode, desse modo, nunca ser absoluta e definitiva. Corresponde a uma condição de forças e traduz um cálculo histórico» (Cfr Grammatology, trad. Gayatn Chakravorty Spivak, Chicago: University of Chicago Press, 1976, p. 70 ).». Ou seja, a expressão “ fazer a folha” tem um uso na nossa linguagem. Assim, temos de distinguir aquilo que é estritamente dito ou afirmado daquilo que é sugerido ou implicado, não como consequência lógica, mas pelo modo como as coisas são ditas, já que a linguagem é um instrumento tão flexível e subtil que não há praticamente limites e regras fixas quanto ao modo como as nuances afectam o significado --- ou seja, temos de acentuar o que se designa precisamente no campo dos estudos da linguagem por pragmática : o enunciado básico desta perspectiva é que não podemos apenas considerar o que dizemos, mas fundamentalmente “o que queremos dizer” e o “como dizemos”, porquanto o âmbito semântico estrito, alheado do contexto e da intencionalidade, não nos dá o verdadeiro sentido das nossas elocuções. A moderna filosofia da linguagem, depois de uma deriva inicial pelo positivismo lógico, tem acentuado, para se compreender o próprio pensamento e o sentido das proposições que usamos e com que pensamos, este aspecto do valor de uso das palavras, afastando-se assim da tendência natural para conceber a linguagem como traduzindo um laço simples, directo, « essencialista», entre a linguagem e os objectos, voltando-se a atenção para o sentido em contextos sociais e de eventos, onde o sentido será determinado por um conjunto indefinidamente vasto de condições linguísticas, sociais e culturais, e não sobretudo ou apenas pelo seu referente, aquilo que o termo representa (cfr Wittgenstein, Investigações Filosóficas, I, 543 e O Livro Azul, p. 69 ). É o que Hillary Putnam designa de “principio da contextualização”, que, baseado no holismo semântico de Gottlob Frege, afirma que as palavras não têm significação nem referência fora do contexto do enunciado onde elas aparecem, e a significação de um enunciado não é a soma das significações das palavras que o compõem. No caso concreto, a expressão “fazer a folha” tem implícita uma ameaça, o fazer algo contra a pessoa, não podendo, dado o contexto de agressão física e de conflito do arguido com a assistente e o uso corrente da expressão, ter uma outra interpretação, não decerto querendo significar uma qualquer coisa benévola para a recorrente, por exemplo que se pretendia mimar a assistente, ter uma amável conversa, dar-lhe uma prenda etc. Qualquer pessoa naquelas circunstâncias e qualquer cidadão conhecedor da situação só podia interpretar aquela locução como uma ameaça de um mal futuro.. O carácter vago da expressão não retira o seu carácter de ameça, pois de outro modo a quem queira ameaçar outrem basta ter um uso habilidoso da língua para ameaçar sem o dizer expressamente, ou até para utilizar palvras que siginificam o contrário do que querem dizer. Por exemplo, e os exemplos podem ser vários, se alguém numa situação de conflito com outra pessoa lhe diz em tom agressivo « amanhã quando te encontrar trato-te da saúde », não está obviamente a exprimir o desejo de proporcionar um cuidado à saúde dessa outra pessoa, pois, toda a gente sabe que está ali uma ameaça Estatui o art. 153.º do CódPenal (crime base): « 1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (...)». O bem jurídico tutelado pelo dito crime, p. e p. pelo art. 153.º do CodPenal, é a liberdade de decisão e de acção, porque estas, ao provocarem um sentimento de insegurança. intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectando naturalmente a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade ( Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo 2, p. 342 ) O mal ameaçado tem de ser futuro, o que significa que o mal não pode ser iminente, pois que aqui estaremos diante de uma tentativa, sendo ainda necessário que a ameaça seja adequada a provocar-lhe (no ameaçado) medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Conforme se escreve em Comentário Conimbricense do Código Penal, T 1, 342/343, são três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente «(... ) o mal tem de ser futuro. Isto significa que o mal objecto da ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Assim, por ex., haverá ameaça quando alguém afirma hei-de matar-te; já se tratará de violência quando alguém afirma vou-te matar ( já) ". Contudo, porque se trata de um crime de perigo concreto, não basta a simples ameaça : é necessário ainda que tal ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar o medo --- sem que se exija que, em concreto, as ameaças hajam provocado o medo ---, sendo relevantes, para tal apreciação, as circunstâncias em que a ameaça é proferida, a personalidade do agente, a susceptibilidade de intranquilizar o homem normal e, por fim, as características pessoais (físicas e mentais) do sujeito passivo ( autor e ob. cit., p. 343 ; Ac RL , de 9-2-2000 , CJ, ano XXV , t. I , p. 147 ; Ac RL , de 9-2-2000 , CJ, ano XXV , t. I , p. 149 ) O crime em causa, na configuração actualmente descrita no art. 153º do CódPenal, que resultou da revisão introduzida ao CódPenal pelo DecLei nº 48/95, de 15/03, não exige que a ameaça provoque medo ou inquietação. Basta que seja adequada a provocar medo, a afectar ou inibir, de modo relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada. Tratando-se, não de um crime de resultado, mas de um crime de acção e de perigo (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, vol. II, Lisboa, 1997, p. 185 ; A. Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 341/343 ). Quanto à modalidade da acção, escreve A. TAIPA DE CARVALHO (ob. cit., p. 344) que é indiferente a forma que revista a acção de ameaçar. O que importa é que o mal ameaçado configure em si mesmo um facto ilícito típico, que constitua um dos crimes compreendidos na previsão legal. Ou seja, o que se exige dizendo que o que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características, adequadas a provocar medo ou inquietação, não sendo necessário que, em concreto, chegue a provocar o medo ou a inquietação. Voltando ao caso concreto, a expressão usada, com a significação que lhe está associada, numa situação de conflito e precedida de uma agressão física, tina a aptidão para, em relação a qualquer pessoa, traduzir a possibilidade da execução de uma acção agressiva, e portanto estão preenchidos os elementos típicos do crime em causa. + DECISÃO Pelos fundamentos expostos: I- Concede-se provimento ao recurso, devendo ser proferido despacho que pronuncie o arguido pelo crime referido, seguindo-se os demais termos do processo. II- Sem custas. - Tribunal da Relação de Coimbra, 30 de Outubro de 2013 ( Paulo Valério - Relator) ( Frederico Cebola ) |