Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219/10.6TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
PRESSUPOSTOS
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 03/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 456.º, N.ºS 1 E 2, ALIN.S B) E C), DO CPC
Sumário: I – Porque o direito de propriedade é pressuposto do direito de demarcação, não reconhecido aquele em acção de reivindicação de certa parcela de terreno, por sentença transitada em julgado, a força e autoridade do caso julgado impede seja proposta nova acção, agora com a pretensa finalidade de demarcação da parcela;

II – Sabendo os AA. não estar em causa conflito de estremas com os RR. e que já antes, por sentença transitada em julgado, lhes havia sido denegado o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno, vindo propor nova acção, agora sob a veste de demarcação de tal parcela, justifica-se a sua condenação a título de litigância de má fé.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           

            1. Relatório

            A..., B... e mulher C..., D... e mulher E...propuseram no 3.º Juízo Cível de Viseu contra F... e mulher G..., acção com forma de processo sumário pedindo a condenação dos RR. a reconhecer que a estrema entre os prédios de AA. e RR, pelo lado nascente do destes se define pelo local assinalado no croquis junto como doc. 9 (rectius, 7 – fls. 45) e a verem os prédios demarcados nessa sua confinância.

Alegaram, para tanto, em resumo, que na qualidade de herdeiros de H..., são proprietários do prédio composto de casa de habitação antiga com 152 m2 e quintal com 843 m2 sito em (...), inscrito na matriz sob o art. x... (urbano), tendo o dissolvido casal da primeira A. e falecido marido adquirido metade indivisa por doação e a restante metade através do exercício do direito de preferência na alienação da mesma pelo respectivo comproprietário, o qual por si e antecessores e há mais de 20 e 50 anos vêm habitando e cultivando o quintal, à vista de toda a gente, sem oposição, sempre agindo na convicção de exercerem o respectivo direito pelo que, à falta de outro título, o adquiriram por usucapião, mais alegando que os RR. são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo y (...) e descrito na CRP de Viseu sob o nº z (...), com a área de 165 m2, que  nunca surgiu qualquer conflituosidade relativamente às estremas poente, norte e sul do prédio dos RR., sendo que a estrema nascente não se acha demarcada devido à reduzida área da parte do terreno dos AA. com ela confinante.

Citados, contestaram os RR., invocando a sentença transitada no processo sumário nº 3309/05.3TBVIS, do mesmo Juízo, na qual não foi reconhecido aos AA. o direito de propriedade de que se arrogavam titulares em relação ao prédio dos RR., mais alegando que a estrema nascente do prédio destes na sua confrontação nascente e o prédio dos AA. na sua confrontação poente se encontra há muito definida, sendo que a confrontação nascente do prédio dos RR. é com a parede poente da casa dos AA. incluída no seu prédio, tendo os réus sempre possuído o seu prédio até essa parede poente da casa dos AA., que antes dessa parede existe um pequeno espaço para passagem de pessoas que faz parte integrante do prédio dos RR. e que para poente dessa parede, além do espaço dessa passagem, existe um tracto de terreno cultivadio com várias árvores sempre possuídos pelos RR. e seus antecessores até há cerca de meia dúzia de anos atrás, em termos conducentes à aquisição do direito de propriedade por usucapião e que o prédio dos RR. até se encontra num plano ligeiramente superior ao prédio dos AA. e que, ao longo de toda a estrema sul do prédio dos RR. existe um muro corrido de pedras, desde a parte nascente até à estrema poente, tendo o prédio dos RR. a área de 283,81 m2 em vez dos 165 m2 mencionados na matriz, concluindo pela improcedência da acção e pelo pedido de condenação dos AA. em multa e indemnização não inferior a € 2.000,00.

Em resposta os AA. concluíram como na petição inicial (p. i.) e negaram a litigância de má fé.

Na sequência de despacho de aperfeiçoamento da p. i. os AA. em novo articulado vieram descrever a linha divisória em causa mencionando decorrer a mesma da concreta área do prédio dos RR., o que estes impugnaram.

Seguir-se-ia novo convite aos AA. com vista esclarecer/concretizar os pontos duvidosos da estrema nascente do prédio dos RR., tendo em conta as questões já debatidas na acção anterior, respondendo que a causa de pedir da acção anterior não era a mesma e reiterando que o prédio dos RR. tem a área de 165 m2.

Proferido despacho saneador, na procedência da excepção dilatória de caso julgado, em confronto com a sentença proferida no aludido Proc. Sum. n.º 3309/05.3TBVIS, foram os RR. absolvidos do pedido e os AA. condenados a título de litigância de má fé na multa de 3,5 UC e em indemnização a liquidar ulteriormente.

Inconformados, apelaram os AA., rematando as alegações recursivas com as seguintes conclusões, elas próprias delimitadoras do objecto do recurso:

a) – A presente acção de demarcação tem em vista a fixação das estremas e a sua materialização no local como forma de suprir a ausência de marcos, muros, vedações ou outros meios de demarcação;

b) – Estão reunidos os pressupostos para a acção prosseguir, quais sejam, a existência de dois prédios, a sua titularidade por AA. e RR. respectivamente e a inexistência de definição das estremas;

c) – O modo de proceder à demarcação prevista no art.º 1354.º, n.º 1, do CC, possibilita que a sentença do anterior processo seja tida em conta e que sejam apreciados todos os títulos que a partes invoquem e as respectivas posses;

d) – Na anterior acção os AA. não poderiam alegar qual o local da estrema uma vez que não reconheciam, sequer, a existência do prédio dos RR. por acharem que o mesmo foi criado artificialmente sobre o prédio dos AA.

e) – Não existem nos autos elementos que possibilitem formular um juízo de censura sobre os AA. de tal gravidade que justifique a sua condenação como litigantes de má fé e na medida em que o foram, antes, pelo contrário, os autos indiciam que os AA. se limitaram a exercer um direito que a lei lhes confere, para evitarem mais conflitualidade com os RR.

Houve lugar a resposta por parte dos recorridos, no sentido da confirmação da sentença recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar, sendo que duas são as questões que vêm suscitadas:

a) – Se a presente acção viola ou não o caso julgado formado na acção sumária n.º 3309/05.3TBVIS do mesmo Juízo da presente;

b) – Se é de manter ou não a condenação dos recorrentes em litigância de má fé.


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            2. Fundamentação

            a) – De facto
       A decisão recorrida ateve-se aos seguintes factos provados, tidos como relevantes para conhecimento da excepção do caso julgado:
1) Sob o nº 3309/05.3TBVIS do 3º Juízo Cível deste Tribunal, correu termos uma acção com processo ordinário proposta por A..., B... e mulher C..., D... e mulher E... contra F... e mulher G..., na qual pediram a condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores em relação ao prédio composto de casa de construção antiga com 152 m2 e quintal com 843 m2 sito em (...), concelho de Viseu, inscrito na matriz sob o art. x...º (urbano), a absterem-se de o possuir e de praticar nele quaisquer actos, dificultar ou impedir a sua posse pelos autores – doc. de fls. 160 e seg. do PP.
       2) Na acção referida em 1), alegaram os então autores, em síntese, que são donos do prédio referido em 1), igualmente descrito nos presentes autos, que do referido prédio faz parte o artigo matricial y (...), correspondente ao prédio identificado nesta acção como sendo o dos réus e que, na acção anterior, era identificado pelos autores como um artigo fictício respeitante a uma parcela de terreno integrada no seu próprio prédio e, mais concretamente, na parte norte do quintal existente no prédio dos autores - doc. de fls. 160 e seg. do PP.
       3) Na acção referida em 1), os réus contestaram, alegando em síntese que o terreno correspondente ao artigo matricial y (...)º constitui um prédio diverso do prédio dos autores inscrito na matriz sob o art. x...º (urbano) - doc. de fls. 160 e seg. do PP.

4) Na acção referida em 1), foram considerados, no despacho saneador proferido, os seguintes:

FACTOS ASSENTES:
A) - Encontra-se inscrito, sob o artigo x... da Repartição de Finanças de Viseu, um prédio sito em (...), aí identificado com as seguintes confrontações: norte-estrada, sul- (...), nascente-caminho, poente-herdeiros (...), e com a seguinte descrição: “casa de construção antiga em regular estado, tem 2 pavimentos, sendo o rés-do-chão destinado a comércio e o 1º andar a habitação, páteo, forno e quintal”, “superfície coberta: 152 m2, quintal de 1000m2”  -  doc. de fls. 12 e por acordo das partes.
B) - Encontra-se descrito, na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu, sob o nº w (...)/20010810 da freguesia de (...), concelho de Viseu, um prédio aí identificado como urbano, sito em (...), inscrito na matriz sob o artigo x..., com as seguintes composição e confrontações:  “casa de habitação composta de andar e lojas, com quintal - norte, estrada, sul, (...), nascente, caminho, poente, herdeiros de (...)”, “área coberta: 152 m2, área descoberta: 1000 m2”, encontrando-se inscrito, pela ap. 37 de 2001-08-10, o facto relativo à aquisição de tal prédio por H... e mulher A..., por partilha dos bens doados por R... e marido e reconhecimento do direito de preferência na venda efectuada por I... e marido e J... e mulher a F... –doc. de fls. 108-112 por acordo das partes.
C) - Encontra-se descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº z (...)/20050614 da freguesia de (...), concelho de Viseu, um prédio aí identificado como rústico, inscrito na matriz sob o art. y (...), denominado Viso, sito em (...), com a área de 165 m2, com as seguintes composição e confrontações:  “terra de semeadura com oliveiras - norte, estrada, sul, (...), nascente, J (...), poente, (...)”, encontrando-se inscrito, pela ap. 15 de 2005-06-14, o facto relativo à aquisição de tal prédio por F... casado com G..., por compra a I (...) e marido O (...) e J (...) e mulher P (...) – doc. de fls. 125-127 e  por acordo das partes.
D) - Os autores são, no conjunto, os únicos titulares da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de H..., falecido em 3-09-2004, sendo a 1ª autora viúva dele e os restantes autores filhos e noras do falecido – doc. de fls. 9-11 e por acordo das partes.
E) - Da herança referida em D) faz parte um prédio composto de casa  de construção antiga e quintal, sito em (...), concelho de Viseu, inscrito na matriz sob o art. x... (urbano) –por acordo das partes.
F) - O dissolvido casal da primeira autora e falecido marido adquiriu metade indivisa por doação do prédio referido em E), titulada por escritura pública celebrada em 28 de Março de 1984 no 1º Cartório Notarial de Viseu – doc de fls. 33-55 e por acordo das partes.
G) - O dissolvido casal da primeira autora e falecido marido adquiriu a restante metade através do exercício do direito de preferência na alienação da mesma pelo respectivo comproprietário, tendo sido proferida sentença transitada em julgado em 05-02-2001, a reconhecer o direito à referida metade indivisa – doc de fls. 16-23 e por acordo das partes.
H) - Por si e antecessores, os autores, na qualidade referida em D), vêm possuindo o prédio referido em E) consecutivamente desde há mais de 20 e 50 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sempre agindo na convicção de exercerem o direito, habitando a casa, ocupando os seus anexos, cultivando o quintal, colhendo os seus frutos, melhorando-o, pagando as respectivas contribuições e praticando nele todos os demais actos normais de proprietários –por acordo das partes.
I) - Por escritura pública celebrada no dia 18 de Abril de 1996, em que intervieram, como primeiro outorgante, L... por si e na qualidade de procurador da sua esposa M... , como segundo outorgante, N... na qualidade de procurador de I (...) e marido O... e de J (...) e esposa P... e, como terceiro outorgante, Q... na qualidade de gestor de negócios de F..., foi declarado, pelos primeiro e segundo outorgantes nas mencionadas qualidades, que fazem venda ao gestido do terceiro outorgante, com a aceitação deste, “do usufruto da primeira outorgante e da raiz ou nua propriedade dos constituintes do segundo outorgante de uma terra de semeadura com oliveiras, sita ao Viso, limite da freguesia de (...), com a área de 165 metros quadrados, a confrontar do norte com estrada, nascente casas do próprio, sul (...) e poente (...), inscrita na matriz predial rústica sob o artigo y (...), (...) descrita na Conservatória do Registo Predial de Viseu, sob o número noventa e quatro mil e seis” e, ainda, “do usufruto da primeira outorgante e da raiz ou nua propriedade dos constituintes do segundo outorgante, de metade indivisa de uma casa de construção antiga, em regular  estado, sito às (...), concelho de Viseu, com a superfície coberta de cento e cinquenta e dois metros quadrados e descoberta de mil metros quadrados, a confrontar do norte com caminho, poente herdeiros de (...), norte estrada e sul (...), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo noventa e dois (...)” – doc. de fls. 24-30 e por acordo das partes.
J) - Os autores propuseram uma acção de divisão de coisa comum que, sob o nº 309/96, correu termos no 2º Juízo Cível deste Tribunal e uma acção de preferência que, sob o nº 568/96, correu termos no 3º Juízo Cível deste Tribunal, contra os ora réus, ambas relativas ao prédio inscrito na matriz sob o art. x...º, sem que, na petição inicial de cada uma dessas acções, tenha sido feita qualquer referência ao prédio inscrito na matriz sob o art. y(...)º - doc. de fls 128-138 e por acordo das partes.
BASE INSTRUTÓRIA:
1º) - A casa referida em E) tem 152 metros quadrados?
2º) - O quintal referido em E) tem 843 metros quadrados?
3º) - O quintal referido em E) esteve desde sempre materialmente dividido em dois terrenos fisicamente demarcados e autónomos?
4º) - Aquando da primitiva divisão do quintal, coube à parcela a sul do quintal referido em E) a área de 563 metros quadrados?
5º) - Aquando da primitiva divisão do quintal, coube à parcela a norte do quintal referido em E) a área de 437 metros quadrados?
6º) - Houve um alargamento da estrada de acesso à povoação que absorveu parte da área do quintal a norte do prédio referido em E)?
7º) - Em consequência do referido em 6), o quintal a norte do prédio referido em E) ficou com a área de 280 metros quadrados?
8º) - O artigo matricial referido em C) foi atribuído após ter sido considerado o terreno de quintal a norte do prédio referido em E) como omisso, correspondendo a parte desse terreno?
9) - Os réus arrogam-se donos da parcela norte do quintal do prédio referido em E), alegando que o mesmo não é o artigo matricial x... mas sim o y(...)?
10) - Os réus têm vindo a cultivar o terreno do prédio referido em C)?
11) - E têm colhido os frutos das árvores de fruto e oliveiras do prédio referido em C)?
12) - E têm suportado os encargos do prédio referido em C)?
13) - Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida de 10) a 12) por muito mais de 15, 20 e 30 anos?
14) - Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida de 10) a 13) à vista de toda a gente?
15) - Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida de 10) a 14) sem oposição de ninguém?
16) -Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida de 10) a 15) com a consciência de não lesarem direitos de outras pessoas e ânimo de exercerem um direito próprio de proprietários?” - doc. de fls. 160 e seg. do PP.
       5) Na acção referida em 1), os “quesitos” 1 a 5, 8, da base instrutória foram considerados não provados - doc. de fls. 160 e seg. do PP.
       6) Na acção referida em 1), consta expressamente da respectiva motivação que “o teor do documento de fls. 559-560, requisitado a Estrada de Portugal, SA contraria, quanto a áreas, o alegado pelos autores e o croquis de fls. 31, na medida em que, sendo mencionada no documento de fls. 559-560 a expropriação de uma área de 245 metros quadrados, alcança-se uma área inferior a 843 metros quadrados subtraindo tal área à invocada área de 1000 metros quadrados, que, na versão dos autores, seria a área total do quintal” (…), “Cumpre aqui referir que não se deu relevo decisivo às áreas mencionadas na descrição registral e inscrição matricial dos prédios em causa, por ser jurisprudencialmente pacífico que as áreas, composição e confrontações dos prédios descritos em sede registral não são abarcados pela presunção legal da existência do direito registralmente inscrito, diversamente do que parece decorrer da versão dos factos sustentada pelos autores e da importância que pelos mesmos foi conferida às áreas mencionadas em sede matricial e registral” - doc. de fls. 160 e seg. do PP.

     7) Na acção referida em 1), foi proferida sentença nos termos da qual foi reconhecido o direito de propriedade dos autores sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo x...º e absolvidos os réus dos pedidos contra eles formulados - doc. de fls. 120 e seg. do PP.

     8) Da sentença foi interposto recurso pelos autores para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo sido proferido acórdão já transitado em julgado a confirmar a sentença proferida, julgando improcedente o recurso - doc. de fls. 120 e seg. do PP.

     9) Consta desse acórdão que “se bem se reparar no teor da alegação dos recorrentes e nas conclusões que a finalizam tudo passa, ao fim e ao cabo, por declarar que o seu prédio tem a área descoberta que estes lhe atribuem (843 m2) e que o prédio inscrito na matriz sob o art. y (...) não existe. O que há no local é deles e de mais ninguém” -  doc. de fls. 120 e seg. do PP.

     10) Consta desse acórdão que “o problema, muito linearmente (e é aí que está o busílis), é que o prédio dos apelantes não terá a área que eles pretendem que tenha; diga-se, de resto, atendendo à sua própria alegação, que nunca poderia ter os apreigoados  843 m2, pela mera razão de que a área inicial (1000 m2) menos a área expropriada (245 m2, conforme se extrai do documento de folhas 559/560), daria 755 m2 e não 843 m2). Para além disso, não é líquido que a área inicial fosse de 1000 m2, até porque os quesitos que a tal se referiam (4º e 5º) receberam resposta negativa” -  doc. de fls. 120 e seg. do PP.

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b) - De direito

De acordo com o disposto nos art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC, na redacção aplicável do DL n.º 303/07, de 24.8 (como os demais a indicar sem menção), são as conclusões das alegações do recurso que delimitam o âmbito de conhecimento deste, não podendo conhecer-se de outras questões aí não suscitadas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

            As questões colocadas no presente recurso, do caso julgado e da litigância de má fé em acção (comum) de demarcação subsequente a acção de reivindicação de um tracto de terreno, entre as mesmas partes e julgada improcedente por decisão transitada em julgado, foram, em caso similar ao presente, objecto de recente acórdão desta Relação relatado pelo ora subscritor e assinado também pelos mesmos adjuntos[1] pelo que, brevitatis causa, iremos reproduzir parte do que então escrevemos.

            O caso julgado “trata-se, como é sabido, de uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (art.ºs 494.º, alín. 1), 495.º e 493.º, n.º 2).

            De acordo com o disposto no art.º 497.º, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a 1.ª ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (n.º 1) e visa prevenir que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (n.º 2).

Como seus requisitos aponta o art.º 498.º uma tríplice identidade, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, concretizando haver identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, de pedido quando numa e noutra acção se pretende obter o mesmo efeito jurídico e, de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, sendo que nas acções reais a causa de pedir é constituída pelo facto jurídico de que deriva o direito real correspondente.

Desenvolvendo este quadro legal e no que ao caso importa, a doutrina e a jurisprudência assentou em que para haver identidade de pedido entre duas acções não é necessária uma rigorosa identidade formal, bastando sejam coincidentes o objectivo fundamental de que depende o êxito de cada uma delas.[2]

É hoje predominante, também, mormente no STJ, quanto aos limites objectivos do caso julgado (art.º 673.º), o entendimento de que este se estende às questões preliminares que constituíram um antecedente lógico indispensável ou necessário à parte dispositiva do julgado.[3]

Já Manuel de Andrade ensinava que o princípio de que o caso julgado só se forma sobre a decisão não é absoluto, “nem exclui que se possa e deva recorrer à parte motivatória da sentença para interpretar a decisão (para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo): neste sentido é a communis opinio”.[4]

Quanto à causa de pedir, no que respeita às acções reais, v. g. reivindicação, seguindo a nossa lei a teoria da substanciação, sendo a causa de pedir o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade, como vimos, é pacífico não bastar a invocação de uma causa de aquisição derivada, v. g., a sucessão, que, não sendo modo de constituição do direito de propriedade, apenas translativo desse direito, importa demonstrar a existência do direito para o transmitente, ou seja, é preciso provar uma forma de aquisição originária, v. g., a usucapião, eventualmente tendo a conta as regras de sucessão e acessão da posse (art.ºs 1255.º e 1256.º, do CC).[5]

Voltando ao caso em apreço e comparando ambas as acções (a Sum. n.º 3309/05.3TBVIS, com sentença transitada em julgado e a presente (Sum. N.º 219/10.6TBVIS):

1. Quanto aos sujeitos processuais, as partes são manifestamente as mesmas, mesma sendo a posição jurídica que ocupam em ambas as causas.


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            2. Quanto ao pedido:

            I - Na 1.ª acção pediram a condenação dos RR:

            a) – A reconhecerem o direito de propriedade dos AA. enquanto herdeiros de H... do prédio inscrito sob o art.º x... da matriz que engloba o prédio de que os RR. se arrogavam e inscrito sob o art.º y (...);

b) – A absterem-se de o possuir e de praticar nele quaisquer actos ou dificultar ou impedir a sua posse pelos AA.

            II – Na presente acção, a condenação dos RR:

            a) – A reconhecerem que a estrema entre os prédios de AA. e RR. pelo lado nascente deste se define pelo local assinalado no croquis junto;

            b) – A verem os prédios demarcados nessa confinância.

            Na medida em que qualquer acção de demarcação pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade, afigura-se existir identidade quanto ao pedido expresso e implícito de reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo prédio e quanto ao pedido de demarcação só aparentemente é diverso, só divergindo quanto à extensão da área. Na 1.ª acção (de reivindicação) pretendia-se o reconhecimento do domínio sobre a totalidade do prédio dos RR. Na presente, apenas, o seu prolongamento até à linha que se pretende divisória.

            O conflito entre as partes não é, nem era, de estremas. Era e é de domínio. Antes sobre a totalidade do tracto de terreno, agora, de parte.

            Voltando ao que escrevemos no mencionado acórdão,”curiosamente, questão idêntica foi tratada no Ac. RG de 15.3.11[6] no qual a decisão recorrida grandemente se baseou e a que igualmente aderimos, quando concluiu que “o caso julgado não tem por que valer apenas como excepção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior.” “A pretensão dos AA. à demarcação parte do pressuposto inelutável de que são donos do referido espaço. Sucede porém que em anterior acção judicial (…) já os AA. ficaram vencidos quanto à propriedade sobre tal preciso espaço” (…) “o que os AA. estão a fazer na presente acção, embora de forma mais ou menos sibilina (sob a aparência formalmente lícita de uma acção diversa, a de demarcação) é obrigar a discutir de novo a sua suposta propriedade sobre um espaço cuja titularidade não lhes foi reconhecida naquela primeira acção. Pois que é precisamente esta propriedade que dá fundamento ou razão de ser à sua pretensão à demarcação (se a alegada propriedade dos AA. não existir, não faz sentido o pedido de demarcação)”.  

            É o que acontece no caso sub judice.

            Usando os AA. em ambas as acções o mesmo levantamento topográfico para situar o (mesmo) prédio em causa, mormente delimitando-o a sul com o prédio dos RR., o exercício do direito de demarcação, com tutela nos art.ºs 1353.º e 1354.º do CC, obviamente pressupõe a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio a demarcar.

            Ora, este direito (com a delimitação indicada da parcela) não foi reconhecido aos recorrentes naquela 1.ª acção, julgada improcedente com trânsito em julgado.

            Daí que se conclua pela identidade dos pedidos em ambas as acções.”

            Tal qual como na presente acção.


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3. Quanto à causa de pedir

            Na 1.ª acção invocaram os AA. recorrentes a usucapião, por si e antecessores, do prédio cujo artigo matricial x... abarcava na sua totalidade aquele de que os RR. se arrogavam.          Na presente acção invocaram a usucapião do prédio com a extensão até à pretendida linha divisória, o que significa que o que está em causa é o próprio título de aquisição desse tracto de terreno.

            Em suma, com irrelevantes nuances respeitantes às áreas, estamos na presença de uma mesma causa de pedir, sendo que a 1.ª acção o que apreciou em concreto foi o prédio dos AA. e o dos RR. tal qual existem na realidade .

            Foi com acerto, pois, que a sentença recorrida concluiu que “o prédio dos AA. em causa nestes autos é o mesmo que estava em causa na acção que sob o n.º 3309/05.3TBVIS correu termos no 3.ª juízo Cível deste Tribunal e que o prédio dos RR. em causa nestes autos é o mesmo que os AA. reivindicavam como seu na acção anterior, dizendo tratar-se de um artigo fictício cuja apropriação ilegítima aí era imputada aos RR., invocando as mesmas áreas ora imputadas a cada um dos prédios cuja demarcação ora é pretendida nos presentes autos”.

            E porque “na acção anterior os RR. foram absolvidos de todos os pedidos formulados pelos AA., nomeadamente do pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o terreno que descreveram como integrando o artigo x... (nos limites do qual e em cuja área integravam o inscrito sob o artigo y (...) e não tendo ficado demonstrado o direito de propriedade dos AA. fundado na usucapião sobre a totalidade da área por si reivindicada naquela acção e designadamente sobre a área novamente invocada nesta acção, não podem agora pretender ver demarcados os prédios em causa com base nas mesmas áreas já discutidas na acção anterior”.

            “Se na acção anterior não se reconheceu que os AA. fossem proprietários da totalidade da área pelos mesmos assinalados como sendo a do seu prédio, apenas se tendo reconhecido que os mesmos são proprietários do prédio (…), não podem, por isso, os AA. prevalecer-se novamente das mesmas áreas para fundar o pedido de demarcação ora formulado”.

            Em suma, por força do caso julgado formado na 1.ª acção estava vedado ao AA. ora recorrentes pedir a demarcação do prédio em relação ao prédio dos RR. com base em áreas já anteriormente alegadas e não provadas, não podendo, como bem se concluiu, vir arrogar-se novamente proprietário de uma concreta área de terreno e que por sentença transitada não se lhes reconheceu.

            Improcedem, assim, as conclusões recursivas atinentes ao alegadamente inexistente caso julgado.

Quanto à questão da má fé igualmente não merece censura a decisão recorrida.

Não estando em causa, como vimos, um litígio sobre estremas, mas uma questão de propriedade, cujo domínio quanto à totalidade do prédio dos RR. os AA. viram negado na 1.ª acção e que agora vieram reeditar quanto a parte da área desse terreno, sob a falsa roupagem de uma demarcação, os recorrentes não só deduziram pretensão cuja falta de fundamento não ignoravam, como fizeram do processo um uso manifestamente reprovável com vista a alcançar um objectivo que a lei lhes vedava.

Assim e à luz do art.º 456.º, n.ºs 1 e 2, alin.s b) e c), do CPC, devida foi a condenação dos recorrentes a título de litigância de má fé, em multa cujo montante se tem por adequado.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – Porque o direito de propriedade é pressuposto do direito de demarcação, não reconhecido aquele em acção de reivindicação de certa parcela de terreno, por sentença transitada em julgado, a força e autoridade do caso julgado impede seja proposta nova acção, agora com a pretensa finalidade de demarcação da parcela;

                II – Sabendo os AA. não estar em causa conflito de estremas com os RR. e que já antes, por sentença transitada em julgado, lhes havia sido denegado o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno, vindo propor nova acção, agora sob a veste de demarcação de tal parcela, justifica-se a sua condenação a título de litigância de má fé.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


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Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] Ac. de 6.3.12, na Apelação n.º 3170/09.9TBVIS.
[2] Calvão da Silva, “Estudos de Direito Civil e Processo Civil”, 1996, pág. 234, cit. por A. Neto, “Código de Proc. Civil, Anot.”, 2008, pág. 700.
V., também, Ac. STJ de 21.3.00, Sumários, 39.º-19.
[3] Ac. STJ de 256.11.04, Proc. 04B3703, in www.dgsi.pt.
[4] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pág. 317.
[5] P. Lima e A. Varela, “CC, Anot.”, III, pág. 115 e A. Varela e Outros, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 245, nota 2.
V., também, Remédio Marques, “Acção Declarativa à luz do Cód. Revisto”, 2.ª ed., que a pág. 656 sustenta que “não obstante, creio que, mesmo nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real não é apenas o acto translativo da propriedade para o autor desta acção – os actos anteriores e ultima ratio, a posse conducente à usucapião e à aquisição originária são também factos jurídicos de que deriva o direito real invocado. De sorte que, o que interessa da conceitualização da causa de pedir para este efeito do caso julgado é, sobretudo, a alteração do núcleo fáctico essencial ou os factos essenciais que se tenham alegado na acção anterior.
No mesmo sentido apontava Manuel de Andrade (ob. cit., pág. 322) quando referia que “dentro da teoria da substanciação poderia aventar-se a ideia de que o título aquisitivo da propriedade é sempre a usucapião, pois os outros apenas podem transmitir a propriedade, mas não constituí-la”.
[6] Proc. 1292.2TBGMR.G1, in www.dgsi.pt.