Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/24.6T8CNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: HERANÇA JACENTE
HERANÇA INDIVISA
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
LEGITIMIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2046.º, 2056.º, N.º 1, 2091.º DO CÓDIGO CIVIL, E 12.º, AL.ª A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Por força do disposto no art.º 2046º do Código a herança jacente - aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado – é dotada de personalidade judiciária, mas, mediante a demonstração da sua aceitação por parte dos sucessíveis, esta deixa a sua jacência – deixa de ser um património que, por não ter titulares, ou titulares determinados carece e goza de personalidade judiciária, nos termos do art.º 12.º al. a) do CPC.

II – Verificada a aceitação da herança, a mesma deixar de estar dotada de personalidade judiciária, passando os seus interesses, até à partilha, a serem exercidos, segundo as circunstâncias, pelo seu cabeça-de-casal ou pelos herdeiros conjuntamente, estando estes dotados de legitimidade para intervirem nos processos em que tais interesses se discutam - a verificação da falta de personalidade judiciária da herança exige a comprovação de que a sua aceitação por parte dos sucessores ocorreu.

III – A aceitação da herança é um acto jurídico unilateral, indivisível e irrevogável, que corresponde ao exercício do direito de suceder conferido a um sucessível através da manifestação de vontade de adquirir a herança, que não obedece a forma legal, podendo até ser levada a efeito de modo tácito - art.ºs 2056º, n.º 1 e 217º.

IV – A herança indivisa, que é aquela que, tendo sido aceite, não se mostra ainda partilhada, pelos sucessores, não é um património sem titulares, mas antes um património que tem como contitulares, numa situação de mão comum, os herdeiros.

V – A herança ilíquida e indivisa, já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição - activa ou passiva - no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança - art.ºs 2088º, 2089º e 2091º - , nomeadamente relativo ao direito de preferência na alienação a terceiros de bens pertença da herança não jacente - conjuntamente por todos os herdeiros, nos termos do disposto no art.º 2091.º do Código Civil.

VI – Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos herdeiros, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista - e centrada nos direitos e interesses a regular -, que quem interpõe a acção, nela figurando como autora é a herança, já aceite, mas ainda indivisa e não singularmente os provados e únicos herdeiros - atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

1.Relatório

AA e BB, por si e na qualidade de únicos herdeiros e interessados na Herança ainda ilíquida e indivisa que ficou por falecimento de CC, Herança portadora do NIF ...81, vieram intentar ação declarativa sob a forma de processo comum contra DD, EE, FF, GG (primeiros Réus) e HH e II (segundos Réus) peticionando, no que importa à presente instância recursiva, que sejam condenados a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio descrito no 6.º e ss da petição inicial, a reconhecer-lhes o respetivo direito de preferência na alienação do prédio rústico descrito no artigo 11.º da petição inicial, com base na cofinancia entre ambos estes prédios, a declarar-lhes atribuído o referido direito de preferência na compra do prédio rústico pelo preço indicado de €: 200,00, ordenando a substituição dos segundos réus pelos Autores nesse negócio, os quais ficaram a constar como compradores, mais condenando-os a abriram mão do referido prédio rústico em favor dos Autores.

Para o efeito, alegam:

Que, em ../../2020, faleceu na freguesia ..., cidade e concelho ..., CC, no estado de viúva de JJ, com última residência habitual na Quinta ..., Rua ..., em Coimbra, sucedendo-lhe no acervo hereditário, como únicos herdeiros, legitimários, os seus dois filhos: o aqui Primeiro Autor, AA, e o aqui Segundo Autor, BB, os quais ainda não procederam ainda à partilha entre si do acervo hereditário que ficou pelo falecimento daquela.

Entre os mais bens que integram a Herança de CC, ainda ilíquida e indivisa, encontra-se o prédio rústico descrito no artigo 6.º da petição inicial, o qual confronta com o prédio descrito no artigo 11.º da referida peça processual vendido pelos Primeiros Réus e adquirido pelos Segundos, sem que aos Autores tivesse sido atribuído o exercício do direito legal de preferência ao abrigo do disposto no n. º 1 e na alínea b) do n. º 2 do artigo 1380. º do Código Civil.

Os Réus contestaram, por excepção e por impugnação, mais tendo os Primeiros Réus deduzido reconvenção.

Por despacho de 25.09.2024 - ref.ª 96214595 - foi convocada audiência prévia nos termos do artigo 591.º do Código de Processo Civil, no qual se deu prazo para pronúncia aos Autores quanto à eventual à excepção de ilegitimidade activa dos Autores pessoas singulares, bem como para colmatarem a falta de procuração forense da Autora Herança, tendo sido explicado que o exercício do direito de preferência em causa cabe exclusivamente à herança e, uma vez reconhecido, o prédio preferendo haverá de integrar o património da herança em si mesma considerada e não ingressar no património individual de cada um dos herdeiros.

Por requerimento de 06.01.2025 [ref.ª 6976968] vieram os Autores pugnar pela sua legitimidade activa, por entenderem que já aceitaram a herança em causa, a qual se mantém ilíquida e indivisa, pelo que são os mesmos os titulares do direito que advogam no âmbito dos presentes autos.


*

No Juízo de Competência Genérica de Cinfães foi proferida a seguinte decisão final:

IV. Dispositivo:

Pelo exposto, de acordo com as considerações exaradas em conjugação com as disposições legais aplicáveis, julga-se procedente a exceção perentória da ilegitimidade material ativa invocada e, em consequência, decide-se ABSOLVER os Réus do pedido.

*

Custas da ação pelos Autores, ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.

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Registe e notifique.

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Valor: Atenta a natureza e o valor dos pedidos formulados, face ao disposto nos artigos 296.º, 297.º, n.º 1, 302.º e 306.º, n.ºs 1 e 2 todos do Código de Processo Civil, fixa-se o valor da causa em €: 5.776,95 (cinco mil setecentos e setenta e seis euros e noventa e cinco cêntimos).

Notifique.

***

Cinfães, 05 de Março de 2025


*

AA e BB, Autores no processo supra referenciado, por si e na qualidade de únicos herdeiros e interessados na Herança, já aceite mas ainda ilíquida e indivisa, que ficou por falecimento de CC, sua Mãe, Herança portadora do NIF ...81, não se conformando com a mesma dela interpõem recurso formulando as seguintes conclusões:

(…).


*

2. Do objecto do processo

2.1 – Da aceitação da herança;

Os Autores/Apelantes, AA e BB intentaram a presente acção, a 16.02.2024, por si e na qualidade de únicos Herdeiros e interessados na Herança, que qualificam como já aceite, mas ainda ilíquida e indivisa, que ficou por falecimento de CC, sua Mãe, pretendendo exercer o direito de preferência relativamente à alienação onerosa de um prédio rústico confinante com um prédio rústico pertencente àquele acervo hereditário.

No saneador/sentença - que constitui a decisão recorrida- foi posto termo imediato à causa, sem precedência de audiência de julgamento contraditória, por alegado conhecimento do mérito da causa, e também por alegadas invocação e ocorrência de ilegitimidade activa, material e peremptória, conhecida oficiosamente e, num segundo momento do decisório, alegadamente impeditiva do conhecimento do mérito da causa, mas ainda assim, na óptica do Tribunal, conducente à absolvição dos Réus do pedido, decisão da qual ora interpuseram os Autores o presente recurso.

Diga-se, desde já, salvo o devido respeito pela julgadora da 1.ª instância, que os Apelantes têm razão. É verdade, que por força do disposto no art.º 2046º do Código Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -, a herança jacente - aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado – é dotada de personalidade judiciária, mas, mediante a demonstração da sua aceitação por parte dos sucessíveis, esta deixa a sua jacência – deixa de ser um património que, por não ter titulares, ou titulares determinados  carece e goza de personalidade judiciária, nos termos do art.º 12.º al. a) do CPC.

Verificada a aceitação da herança, a mesma deixar de estar dotada de personalidade judiciária, passando os seus interesses, até à partilha, a serem exercidos, segundo as circunstâncias, pelo seu cabeça-de-casal ou pelos herdeiros conjuntamente, estando estes dotados de legitimidade para intervirem nos processos em que tais interesses se discutam - a verificação da falta de personalidade judiciária da herança exige a comprovação de que a sua aceitação por parte dos sucessores ocorreu.

A aceitação da herança é um acto jurídico unilateral, indivisível e irrevogável, que corresponde ao exercício do direito de suceder conferido a um sucessível através da manifestação de vontade de adquirir a herança, que não obedece a forma legal, podendo até ser levada a efeito de modo tácito - art.ºs 2056º, n.º 1 e 217º.

2.2-Da herança indivisa;

Ora, a herança indivisa, que é aquela que, tendo sido aceite, não se mostra ainda partilhada, pelos sucessores, não é um património sem titulares, mas antes um património que tem como contitulares, numa situação de mão comum, os herdeiros.

No entendimento da 1.ª instância:

Decorre, pois, que os Autores não beneficiam do direito de preferência à data da venda do imóvel em causa dos autos, pois que antes da partilha existe apenas comunhão e a herança indivisa constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio, sendo os herdeiros apenas titulares de um direito indivisível, enquanto não se fizer a partilha. Até à partilha o direito recai sobre o conjunto da herança e não sobre certos bens, pelo que não se pode atribuir ao co-herdeiro, antes da partilha, a qualidade de proprietário ou comproprietário de qualquer bem da herança – assim, veja-se Tribunal da Relação do Porto de 07-11-2023, relatora Ana Lucinda Cabral, disponível em www.dgsi.pt.

Como refere R. Capelo de Sousa [in Sucessões, Tº - 2, pág. 90], “ havendo vários herdeiros e antes da partilha se efetuar, cada um deles - embora não tenha um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer uma quota-parte de cada um deles - detém um direito de quinhão, ou seja, à respetiva quota-parte ideal da herança global em si mesma, direitos estes de que tais herdeiros tem a propriedade”, ou seja, só depois de efetuada a partilha da herança e adjudicados esses bens ou definida a quota-parte de cada um nesses bens concretos, é que o herdeiro passa a ser titular dos bens em concreto.

Por isso, enquanto a herança se mantiver indivisa é ela mesma a titular do direito de preferência, devendo ser exercido por todos – cfr. Acórdão do T. Rel. Porto, de 14/3/1990, BMJ, 395.º-365; e Acórdão do T. Rel. de Coimbra de 28/6/2005, Col. Jur. 2005, 3.º-35. No mesmo sentido se pronunciou a Relação de Évora [de 3/10/1991, BMJ, 410.º-896], segundo a qual “I. A herança indivisa, no seu aspeto ativo, é um caso de titularidade de direitos em que todos os herdeiros têm sobre os bens um direito indivisível. II. Quando o direito de preferência competir à herança é a esta que cabe o respetivo exercício, (…), ainda que não haja inventário).

Deste modo, não tendo havido partilha no caso dos autos, mesmo considerando que os autores são os únicos herdeiros, titulares da totalidade das quotas-partes ideais na herança global, o que sobreleva é que os Autores apenas podem exercer o direito de preferência em questão em nome e em representação da herança, que não em nome e no interesse pessoal, pelo que não tendo havido partilha, o prédio preferente pertence à herança, pelo que o direito de preferência seria da herança, e não dos herdeiros, como fizeram os Autores na petição inicial – assim, veja-se Supremo Tribunal de Justiça em aresto de 04.10.2018, relator Acácio das Neves, e num caso em tudo idêntico ao dos presentes autos, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2023, acima supra mencionado. disponível em www.dgsi.pt.

In casu, não há dúvida que o prédio em questão pertence à herança indivisa pelo que enquanto houver indivisão não pode o direito de preferência invocado ser destacado dessa unidade, pois que cabe exclusivamente à herança e, uma vez reconhecido, o prédio preferendo haverá de integrar o património da herança em si mesma considerada e não ingressar no património individual de cada um dos herdeiros, mesmo que todos venham a exercê-lo – assim, o Supremo Tribunal de Justiça já por acórdão de 05.07.1990, relator Almeida Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt .

A qualidade de herdeiro é distinta da qualidade de proprietário dos bens da herança pelo que a habilitação de herdeiros junta aos autos, donde não consta qualquer partilha, constitui logo uma demonstração de que os autores não são proprietários, de per se, dos prédios em causa.

Denote-se que, compulsado o teor quer da petição inicial como dos requerimentos que lhe foram subsequentes – mesmo aquando do contraditório que se lhes foi oferecido em sede de audiência prévia - os Autores sempre defendem a sua legitimidade, expondo que agem enquanto herdeiros, fundam-se nessa qualidade, sendo esta qualidade que sustenta os pedidos, nomeadamente o seu reconhecimento da qualidade de proprietários e do direito de preferência na alienação, referindo que está na lide quem pode exercer o direito e, mostrando-se comprovada a existência desse direito – pressupondo, assim, que a sua legitimidade processual é suficiente para a respetiva legitimidade material.

Acontece que, não cremos que a legitimidade processual dos Autores se confunda com a sua legitimidade material, nem que a alegação que os Autores sustentam na petição inicial, com os correspondentes pedidos, suportem a alteração de uma legitimidade para a outra através de meras interpretações jurídicas dos efeitos decorrentes dessa sucessão, não cabendo a este Tribunal alterar a interpretação jurídica daqueles conceitos e passar a considerar que, afinal, a propriedade está na titularidade da herança de que são os únicos herdeiros e reconhecer o direito de preferência não aos Autores, mas à herança.

Como se deixou ínsito no supracitado acórdão da Relação do Porto, «a situação em análise tem a ver com a inexistência do direito na esfera jurídica de quem se arroga ser seu titular e nada tem a ver com situações de uma mera qualificação jurídica dos factos verificados. Pelo contrário, é a própria substanciação do pedido e da causa de pedir que os autores apresentam que não pode ter acolhimento.»

Deste modo, cremos inexistir qualquer excesso de formalismo por parte deste Tribunal, pois basta atentar-se nos pedidos efetuados nos autos, no teor da petição inicial e nos requerimentos subsequentes, para verificar, à saciedade, que os Autores arrogam-se herdeiros e titulares, por essa via, do direito legal de preferência em causa, o qual pretendem que lhes seja reconhecido [a titulo direto e pessoal], bem assim como o direito de propriedade sobre o prédio alienado, substituindo-se aos segundos Réus.

Em qualquer momento destes autos ou em qualquer requerimento apresentado, os Autores alegam que se encontram a agir em nome da Herança, que a Herança é a titular do direito de propriedade que arrogam ou peticionam o reconhecimento da propriedade sobre o prédio rústico alienado e do direito legal de preferência para a Herança – fazendo-o apenas para si próprios na qualidade de herdeiros.

Deste modo, é irrelevante que os Autores sejam os únicos herdeiros e que após a partilha da herança lhes possam vir a ser e adjudicados bens concretos com o direito de preferência, pois que essa não é a realidade atual, mas antes que aqueles são herdeiros de uma herança indivisa à qual pertencem os bens sobre os quais há um direito de preferência e é este património comum que pode exercer o direito legal de preferência.

«A herança em causa é uma herança expressamente aceite e indivisa pelo que, carecendo de personalidade judiciária, os direitos que lhe são relativos devem ser exercido pelos herdeiros. Mas, como já se viu, os herdeiros nada mais têm do que o direito a uma quota-parte do património hereditário. Daí que para exercerem os direitos da herança tenham de intervir todos os herdeiros, só assim ficando completa a representação jurídica da herança como ente correspondente a uma universalidade de direito. Esta assunção da representação jurídica em nome e no interesse da herança é uma qualidade essencial que tem de ser inequivocamente afirmada com as inerentes consequências ao nível da causa de pedir e do pedido. E é este o ponto, é esta realidade substancial que nada tem a ver com meras interpretações jurídicas ou formalismos» - cfr. acórdão imediatamente supracitado.

Ora, esta qualidade é manifestamente inexistente nos presentes autos, não resultando da causa de pedir ou sequer mostrando-se expressa nos pedidos efetuados – a qual é essencial para o prosseguimento dos mesmos.

Ao inverso, se os autos prosseguissem nos termos em que se encontram, como poderia este Tribunal, em caso eventual de procedência da ação, reconhecer um direito à Herança quando tal não se encontra devidamente alegado ou sequer foi peticionado, e sabendo que o mesmo não pertence, de todo, aos Autores.

Em suma, o direito de preferência em causa nos autos tem que ser exercido, pelos herdeiros (como foi), todavia em representação da herança e a favor da própria herança (real titular do direito) e não a favor dos herdeiros.

Destarte, esta situação configura a falta do direito invocado, enquanto legitimidade material dos Autores, diferente da legitimidade processual, a qual conforma uma questão de mérito equivalente à ausência de direito material, pois que os Autores não têm legitimatio ad causam, indeferindo-se-lhes o direito que propugnavam.

Ora, a legitimidade substancial ou substantiva, a qual respeita à efetividade da relação material, prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido, pelo que a verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido – assim, Tribunal da Relação do Porto em aresto de 04.10.2021, relatora Eugénia Cunha, disponível em www.dgsi.pt.

E conclui assim:

Termos em que, a ilegitimidade material ativa, enquanto exceção perentória, impede o conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição do pedido, sendo de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos artigos 576.º e 579.º ambos do Código de Processo Civil.

Ora, é verdade que a herança ilíquida e indivisa, já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição - activa ou passiva - no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança - art.ºs 2088º, 2089º e 2091º - , nomeadamente  relativo ao direito de preferência na alienação a terceiros de bens pertença da herança não jacente - conjuntamente por todos os herdeiros, nos termos do disposto no art.º 2091.º do Código Civil.

Tais normas – incluindo o n.º 1 do art.º 2130º (quando seja vendido ou dado em cumprimento a estranhos um quinhão hereditário (que abrange todos os direitos de carácter patrimonial que o constituem, pelo que todos esses direitos se mantêm como objecto da transmissão, o que forçosamente abrange o invocado direito de preferência), os co-herdeiros gozam do direito de preferência nos termos em que este direito assiste aos comproprietários) - visam a concentração do património familiar em elementos da família.

Como explica Antunes Varela - Código Civil anotado, volume VI, 1998, pág. 211-o direito de preferência que o artigo 2130º concede aos co-herdeiros na venda ou dação em cumprimento a estranhos do quinhão hereditário de qualquer deles nasce do interesse que a lei tem de reunir nas mãos do menor número deles a titularidade dos diversos quinhões em que a sucessão fraccionou a unidade da herança. E explica ainda que concedido aos co-herdeiros - contra os estranhos à herança-, ele só aproveita manifestamente, pelo seu espírito, àqueles que forem herdeiros à data da realização da venda ou dação em cumprimento, em relação à qual se pretende exercer a preferência – e já não àqueles que, tendo sido anteriormente herdeiros, tiverem, entretanto, vendido (ou dado em cumprimento) o seu quinhão hereditário.

Por isso, tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos herdeiros, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista - e centrada nos direitos e interesses a regular -, que quem interpõe a acção, nela figurando como autora é a herança , já aceite, mas ainda indivisa e não singularmente os provados e únicos herdeiros- atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil  que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância.

Como escrevem os Apelantes- cuja alegação seguimos:

4 - Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, nada obsta a que se considere que quem interpõe a acção, nela figurando como autores, são os herdeiros aí correctamente identificados, pois é evidente que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros, não devendo julgar-se a falta de personalidade judiciária da autora mas sim proceder a uma interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte.

5 - Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil".

(…)

Q) Foi correcta a propositura da presente acção pelos Autores Singulares, por si e na qualidade de únicos Herdeiros e interessados na Herança de sua mãe, sendo a respectiva qualidade de Herdeiros, e agindo a bem da Herança, indissociável das suas Pessoas Singulares, por se tratar de Herança já aceite, pelo que as procurações forenses que emitiram ab initio, e que se acham nos autos, pelas quais constituíram seu Mandatário o Signatário, apesar de o não mencionarem literalmente, abrangem os poderes necessários para o Mandatário os representar, precisamente enquanto Herdeiros e agindo a bem (a favor) da Herança.

R) Porém, no âmbito da audiência prévia, realizada a 28.11.2024 – foi enunciado, como ficou a constar da respectiva acta, o seguinte:

«Em face da complexidade das questões suscitadas, concede-se o prazo de 25 (vinte e cinco) dias às partes para contraditório quanto às questões levantadas em sede de réplica, bem como quanto ao pedido de litigância de má-fé e, ainda, para os Autores para se pronunciarem quanto à exceção de ilegitimidade ativa agora suscitada, bem como para colmatarem a falta de procuração forense da Autora Herança».

S) Apesar de os Autores considerarem não ocorrer qualquer ilegitimidade activa, por excesso de cautela emitiram e juntaram aos autos segundas procurações, com ratificação dos actos processados, nos termos sugeridos pelo Tribunal, o que fizeram com o seu requerimento de 06.01.2025, junção que foi ignorada e não considerada na sentença, cumprindo colocar a seguinte questão, que fica sem resposta: se o Tribunal considerava ocorrer ilegitimidade activa, “material”, “peremptória”, “de conhecimento oficioso”, “insuprível”, alegadamente conducente à absolvição dos Réus “do pedido”, porque convidou então os Autores a juntarem aos autos procurações?

(…)

JJ) Sustenta-se na douta sentença que “o direito de preferência em causa nos autos tem de ser exercido, pelos herdeiros (como foi), todavia em representação da herança e a favor da própria herança (real titular do direito) e não a favor dos herdeiros”, mas tal contraria a melhor Doutrina, posto que, como assevera Francisco FERREIRA DE ALMEIDA, a partir da cessação da jacência, a herança “não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar e ser demandada”, pelo que quem deve intentar a acção são os sucessores, que assumem o papel de parte processual, evidentemente para defender os interesses de algo que se qualifica como um “património autónomo”.

KK) Os sucessores actuam, em nome próprio, para exercer o direito de preferência a favor da Herança, sendo esta um conjunto de bens que é objecto de alguma autonomia relativamente aos restantes bens dos herdeiros, porque sobre os bens a ela pertencentes incide uma titularidade “de mão comum”, carecendo ainda de ser partilhados.

LL) Em síntese, é impossível juridicamente identificá-los – aos Herdeiros – como representantes de uma entidade ou realidade, porquanto a mesma não tem personalidade, e porque a respectiva titularidade pertence a eles Herdeiros, pelo que os herdeiros têm legitimidade para litigar, em nome próprio, em prol dos interesses do acervo hereditário, como decorre da Lei e resulta de doutos arestos, por exemplo:

- Da Relação de Coimbra, de 24.09.2019:

“A herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros”.

- Da Relação de Guimarães, de 07.12.2016:

“A herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros; a falta de personalidade da herança não jacente decorre da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros”.

MM) Ao arrepio da Lei e do Direito (substantivo e processual), a Meritíssima Senhora Juiz do Tribunal a quo afirmou que estávamos perante uma ilegitimidade material, excepção peremptória que, no seu entender, impediria o conhecimento do mérito,

NN) Mas a sentença absolveu do pedido … sem conhecer do mérito!!!

OO) O que se detecta no seguinte trecho da sentença, revelador da contradição intrínseca que subjaz ao decisório:

“Termos em que, a ilegitimidade material ativa, enquanto exceção perentória, impede o conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição do pedido”.

PP) Ao decidir, no caso sub iudice, pelo modo como o fez, o Tribunal a quo interpretou por maneira menos correcta, e violou, portanto, o disposto nos artigos 2056.º e 2091.º do CC, e 12.º, 278.º, 576.º, 577.º, 578.º, 579.º e 590.º, todos estes do CPC, entre outros preceitos, o que expressamente aqui ora se invoca e acautela.

Assim, na procedência da apelação, revogamos o despacho proferido – que julgou procedente a excepção peremptória da ilegitimidade material activa invocada e, em consequência, absolveu os Réus do pedido – e, em consequência, ordenamos o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito, conforme for de Direito.

Sumário:

(…).


*

3.Decisão

Na procedência do recurso, revogamos a decisão proferida no Juízo de Competência Genérica de Cinfães – que julgou procedente a excepção peremptória da ilegitimidade material activa invocada e, em consequência, absolveu os Réus do pedido – e, em consequência, ordenamos o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito, conforme for de direito.



As custas são a suportar pelo(s) vencido(s) a final.

Coimbra, 16 de Setembro de 2025

(José Avelino Gonçalves - relator)

(Maria João Areias – 1.ª adjunta)

(Anabela Marques Ferreira – 2.ª adjunta)