Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
242/20.2T9PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
CHEQUE EXTRAVIADO
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 256º, Nº 1, ALÍNEA D), DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. A comunicação ao Banco do extravio do cheque poderá constituir crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, desde que estejam preenchidos todos os elementos constitutivos deste crime.
II. Não se tendo provado que, em escrito por si assinado, a arguida tivesse requisitado ao banco sacado o não pagamento do cheque, conclui-se pela inexistência de qualquer documento que a arguida tivesse falsificado, antes e apenas que prestou uma declaração falsa.

III. O crime de falsificação traduzir-se-ia na falsificação do documento particular entregue ao Banco, e não do próprio cheque.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

      A – Relatório

1. Pela Comarca ... (Juízo Local Criminal ...), sob acusação do Ministério Público, por um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, sendo a pessoa colectiva responsável nos termos do artigo 11º, nºs 1 e 2, alínea a), do mesmo diploma legal, foram submetidas a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, as arguidas

“A..., Lda”, pessoa colectiva com NIPC ...18, com sede na Rua ..., ..., ..., ...; e

AA, filha de BB e de CC, natural da freguesia ..., concelho ..., nascida a ../../1964, viúva, costureira, residente na Rua ..., ..., ..., ....

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 10.10.2023, decidindo-se nos seguintes termos:

Condenar a arguida “A..., Ldª” pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artºs 11º, nº 2, alínea a), 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o total de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);

Condenar a arguida AA pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artºs 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros);

Condenar cada uma das arguidas no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal”.

3. Inconformadas com a douta sentença, vieram as arguidas “B... Lda” e AA interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

(…)

4. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelas arguidas, pugnando pela sua improcedência e manutenção da sentença recorrida, concluindo que:

(…)

5. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da sua improcedência e manutenção da sentença recorrida, sufragando integralmente a argumentação da Sr.ª Procuradora da República na 1ª instância, que deu por reproduzida.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo as arguidas respondido ao douto parecer.

7. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência, nos termos do artigo 419º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

8. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

               *

       

        B - Fundamentação

 

1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal).

O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193).

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelas arguidas, as questões a decidir são as seguintes:

(…)

- se as arguidas devem ser absolvidas do crime de falsificação por que foram condenadas;

(…)

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade provada e motivação da sentença recorrida.

A) Factos provados

1) A sociedade “A..., Ldª” é uma pessoa colectiva com NIPC ...18, que tem por objecto o aluguer de máquinas e equipamentos com ou sem operador, terraplanagens, demolições, escavações e desterros e construções de poços.

2) A arguida AA é gerente da referida sociedade.

3) A arguida AA, em representação da sociedade arguida, celebrou um contrato de compra e venda com o “C..., Ldª”, adquirindo no dia 18/03/2020 um veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-ZP, pelo valor total de € 5.227,50 (cinco mil duzentos e vinte e sete euros e cinquenta cêntimos).

4) Como forma de pagamento a arguida entregou três cheques, sacados da conta n.º ...66, da Banco 1..., em nome da sociedade “A..., Ldª”, passados não à ordem do “C..., Ldª”, nomeadamente:

- o cheque n.º ...18, no valor de € 1.000,00 (mil euros), com data de vencimento de 31/03/2020;

- o cheque n.º ...19, no valor de € 1.498,00 (mil quatrocentos e noventa e oito euros), com data de vencimento de 30/04/2020;

- o cheque n.º ...20, no valor de € 1.499,50 (mil quatrocentos e noventa e nove euros e cinquenta cêntimos), com data de vencimento de 31/05/2020.

5) Os cheques foram assinados pela arguida AA.

6) No dia 27 de Abril de 2019 a arguida AA dirigiu-se ao Posto da GNR ... e declarou que o cheque no valor de € 1.499,50 (mil quatrocentos e noventa e nove euros), se tinha extraviado, referindo-se ao cheque n.º ...20, cuja cópia juntou.

7) De seguida a arguida comunicou ao banco sacado que o cheque tinha sido extraviado, bem sabendo que tinha sido entregue ao “C..., Ldª”, como forma de pagamento.

8) O “C..., Ldª” apresentou o cheque n.º ...20, no valor de € 1.499.50, com data de vencimento de 31/05/2020, a pagamento, sendo devolvido na compensação com a informação, com a indicação “chq revogado p/justa causa - extravio”.

9) Tal ocorreu porque a arguida comunicou ao banco sacado que o cheque tinha sido extraviado, declaração que sabia que era falsa.

10) Pretendendo a arguida com a sua conduta, impedir o pagamento pelo banco sacado da quantia titulada nesse cheque, com intenção assim alcançar um benefício económico.

11) A arguida AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, por si e em representação da sociedade arguida, com a consciência que tal declaração não correspondia à realidade, uma vez que AA preencheu o referido cheque e o entregou ao “C..., Ldª”, para pagamento de uma dívida e, ainda assim, ordenou à entidade bancária que não procedesse ao seu pagamento informando que o cheque se tinha extraviado.

12) A arguida sabia que com a sua conduta colocava em causa a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, valor essencial tutelado pelo Estado Português.

13) A arguida actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de declarar perante a GNR e a entidade bancária que o cheque se tinha extraviado, tendo consciência que essa declaração não correspondia a realidade e sabendo que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração, com o objectivo concretizado de determinar o banco a recusar o pagamento do cheque e assim prejudicar terceiros, impedindo-os de receber a quantia a que tinham direito.

14) A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

15) O pedido de cancelamento do cheque junto da Banco 1... teve por base diversas avarias verificadas na viatura Scania 124 matrícula ..-..-ZP adquirida á participante “C..., Ldª”.

(…)

              *

             *

4. Cumpre agora apreciar e decidir.

(…)

              *

A primeira questão a apreciar é a de saber se os factos provados dos pontos 6, 7 e 13 foram incorrectamente julgados.

Afirmam as arguidas que da prova produzida em julgamento o que resultou foi algo diferente, ou seja, do depoimento da arguida AA, corroborado pelo depoimento do seu companheiro DD, resultou provado que a arguida dirigiu-se primeiramente ao banco (Banco 1... e ..., balcão de ...) e aí informou a funcionária do balcão que a atendeu que pretendia cancelar o cheque e à mesma explicou o porquê. Foi a funcionária do balcão da Banco 1... que induziu a arguida em erro e, com vista ao cancelamento do cheque, solicitou à mesma que se dirigisse ao Posto da GNR ... para efetuar uma participação. Após, a arguida AA dirigiu-se de imediato sozinha ao posto da GNR e comunicou ao agente que ali a atendeu que pretendia efetuar uma participação por causa do cheque emitido à ordem do C... Lda, tendo sido efectuada indevidamente pela arguida uma participação por extravio do cheque, quando na realidade não era bem isso que pretendia, mas foi o que, por falta de conhecimento e experiencia, acabou por ser feito, e lhe foi dado a assinar pelo sr guarda da GNR que redigiu o Auto. A arguida AA, totalmente inexperiente no que aos cheques se refere, apesar de não concordar com a participação de extravio, pensou que talvez aquele fosse o procedimento normal, quando na realidade e bem sabemos não era. Mas a arguida AA convenceu-se naquele momento que sim.

Pois bem.

Como estipula o artigo 428º do Código de Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de revista alargada; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Na chamada revista alargada, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

Na impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Assim, enquanto os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada – cfr. Ac. da RL de 9.5.2017, in www.dgsi.pt.

Ora, o que as recorrentes pretendem é discutir a matéria de facto vertida nos pontos 6, 7 e 13, por entenderem que foi incorretamente julgada pelo tribunal a quo, que foi cometido um erro de julgamento por errónea apreciação da prova.

Estamos, assim, no domínio dos artigos 412º, nº 3, e 431º, ambos do Código de Processo Penal.

Estipula o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

No caso sub judice as questões não se prendem com a alínea c) mas sim com as alíneas a) e b).

A especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.

Nos termos do nº 4 da mesma norma legal, “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação”.

Não basta, pois, a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos.

De qualquer forma, neste particular, o STJ, no Ac. nº 3/2012, publicado no DR, 1ª série, de 18.4.212, fixou jurisprudência no sentido de que:

«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Requisitos que foram respeitados, minimamente, pelas recorrentes já que especificaram os factos concretos que consideram incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com as quais fundamentam a impugnação.

Relativamente à prova indicada, pessoal, consideram-se respeitados os requisitos em relação às declarações da arguida AA e depoimento da testemunha DD, com a identificação das passagens relevantes, transcrição de algumas e indicação dos respectivos minutos da gravação.

Diz-se minimamente já que os requisitos não foram integralmente respeitados nas conclusões do recurso, mas apenas no corpo da motivação. De qualquer forma, as questões encontram-se identificadas, o que possibilita o seu conhecimento por esta Relação, apesar do deficiente cumprimento do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa – nº 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Por sua vez, dispõe o artigo 431º do mesmo diploma legal que, “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.

“A respeito da impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, no 3, do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte:

Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006, Procs. nos 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros». A gravação das provas funciona como uma válvula de escape para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (Neste sentido, acórdão do S.T.J. de 21.01.2003, disponível in www.dgsi.pt). E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26.11.2008, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, no 3960, págs. 176 e segs. «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância” - cfr. Ac. da RP de 28.2.2018, in www.dgsi.pt.

Veja-se igualmente o Ac. da RG de 6.12.2010, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que, no caso de impugnação da matéria de facto, a que se refere o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, “a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente”.

Mais se lê no mesmo aresto que “o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (- Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, de 23 de Maio de 2007e de 3 de Julho de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.). Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, como estipulado no artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal”.

Assim, estando a audiência devidamente documentada, não obstante o princípio da livre apreciação da prova, pode a Relação alterar a matéria de facto, quando entenda existir um erro na apreciação da prova – cfr. Ac. da RC de 15.3.2006, in www.jusnet.pt.

No caso concreto, por se verificarem todos os pressupostos, esta Relação deve averiguar se, relativamente aos factos indicados pelas recorrentes, o Tribunal de 1ª instância julgou bem.

Para o efeito, face às questões suscitadas, aos argumentos invocados quanto aos meios de prova e ainda à convicção formada pelo julgador vertida na motivação da decisão de facto, este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no nº6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, ouviu integralmente as declarações prestadas pela arguida AA e o depoimento da testemunha DD.

No mais, levou-se em conta a restante prova considerada pelo tribunal a quo, tal como foi indicada e examinada na sentença recorrida.

Reafirma-se que o recurso não visa a reapreciação de toda a prova produzida, mas apenas aquela com base na qual se pretende infirmar a convicção do julgador. Para o efeito, torna-se, pois, imprescindível que na motivação do recurso a mesma surja como fundamento da pretensão do recorrente e que respeite os pressupostos legais. Caso contrário, não existem razões para ser reapreciada.

Passa-se agora à análise dos factos impugnados.

Relembrando, os pontos 6 e 7 dos factos provados apresentam a seguinte redacção:

6) No dia 27 de Abril de 2019 a arguida AA dirigiu-se ao Posto da GNR ... e declarou que o cheque no valor de € 1.499,50 (mil quatrocentos e noventa e nove euros), se tinha extraviado, referindo-se ao cheque n.º ...20, cuja cópia juntou.

7) De seguida a arguida comunicou ao banco sacado que o cheque tinha sido extraviado, bem sabendo que tinha sido entregue ao “C..., Ldª”, como forma de pagamento.

Disse a arguida AA que foi ao Banco para cancelar o cheque para não ser pago e a Sra do Banco disse-lhe que não podia anular o cheque. Para o efeito teria que ir à GNR buscar um papel e foi o que fez.

Afirmou: Ela só disse para eu ir à Guarda buscar o papel. Se eu soubesse que não se podia fazer isso eu nunca o tinha feito.

Mais disse que comprou o camião e este vinha com problemas. Apesar de ter ido ao arranjo vinha sempre na mesma e, entretanto, o vendedor deixou de estar contactável. Então, ela e o seu companheiro, pensaram cancelar o cheque para o pressionar a arranjar o camião. Para o efeito, decidiram ir ao Banco cancelar o cheque.

Esclareceu que na GNR disse que o cheque se tinha extraviado, que o tinha perdido.

Tendo-lhe sido perguntado se sabia que estava a declarar uma coisa que não tinha acontecido, a arguida manteve-se em silêncio, não tendo respondido.

Por sua vez, a testemunha DD, companheiro da arguida AA e motorista da sociedade arguida, prestou um depoimento condizente com o daquela.

Disse que foi acordado que o pagamento do camião seria feito, em parte, em numerário e o restante com 3 cheques. O numerário e os dois primeiros cheques foram pagos. Quando se estava a aproximar o pagamento do último cheque o problema do camião não estava resolvido. Como o vendedor deixou de dar resposta aos seus contactos, pensaram que a solução seria não lhe pagar o cheque. Foram ao Banco e aí disseram que para o cheque não ser pago teriam que ir à GNR. A Sra do Banco disse-lhe que a única maneira de evitar o pagamento seria com um documento da GNR. A arguida disse-lhe depois que tinha dado o cheque como extraviado. Depois disso conseguiram resolver a situação com o vendedor.

Para uma melhor compreensão do que fica dito atente-se na seguinte norma legal e jurisprudência.

Estipula o artigo 32º da Lei Uniforme relativa aos Cheques (Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931 Ratificada em Portugal pelo Decreto nº 23.721, de 29 de Março de 1934) que “a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”.

No caso concreto, o cheque tinha uma data de vencimento de 31.5.2020 e a declaração de extravio foi efectuada a 27.4.2020 (mencionando-se, por lapso, no facto 6 o ano de 2019). Assim, ainda não tinha terminado o prazo de apresentação do cheque (cfr. artigo 29º do referido diploma legal).

O Ac. do STJ nº 4/2008, de 4.4., publicado na Série I do DR de 4.4.2008, fixou a seguinte jurisprudência:

“Uma instituição de credito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LULL, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 4.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil”.

Como se pode ler no Ac. do STJ de 13.7.2010, in www.dgsi.pt, “O pagamento do cheque não pode ser impedido, por revogação, durante o prazo de apresentação, sendo ineficaz a ordem enquanto esse prazo não findar (art. 32.º da LUCh).

Revogar um cheque é, simplesmente, proibir o seu pagamento; dá-lo como não emitido. O sacador do cheque, depois de o fazer entrar em circulação, dá ordem ao banqueiro para que não o pague.

O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, de 28-02-2008, proferido pelo STJ (publicado no DR 67, Série I, de 04-04-2008) – no qual foi decidido que uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCh, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte, do decreto n.º 13004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil –, não se refere, na sua parte decisória, à hipótese de invocação de extravio, que não é uma situação que caiba no conceito de revogação.

Compaginada a redacção daquele art. 32.º com a do art. 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912 – que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (al. a) do art. 16.º do Anexo II) –, conclui-se que, do âmbito da previsão daquele normativo estão excluídos os casos de extravio, furto e outros de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.

O dito acórdão uniformizador de 2008 excluiu a sua aplicação àquelas hipóteses, que considerou distintas das de revogação propriamente dita, decidindo que tais casos, embora muitas vezes referenciados – por o titular da conta, com a sua comunicação ao Banco, ter criado uma aparência de revogação –, como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do art. 32.º da LUCh, não decorrendo por isso desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques nessas hipóteses pelo sacado.

O sacado não tem obrigação de pagamento do cheque, podendo recusá-lo, quando disponha de causa justificativa.

O aviso de extravio, a acompanhar a declaração de cancelamento, feito pelo sacador ao sacado, constitui uma forma de proibição de pagamento distinta da revogação, a que o Banco sacado se encontra sujeito face ao disposto no art. 1161.º, al. a), do CC, uma vez que o contrato de cheque constitui uma forma de contrato de mandato. Ou seja, a comunicação do sacador ao sacado de cancelamento do cheque por motivo de extravio constitui causa justificativa de recusa do pagamento do cheque pelo Banco que, consequentemente, não se encontrando obrigado ao pagamento, não viola, pela sua recusa, qualquer obrigação”

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RC de 16.3.2010, in www.dgsi.pt, segundo qual “não sendo obrigado cambiário, já que não intervém na relação cartular (de emissão de cheque), o Banco (sacado) está obrigado perante o sacador ao pagamento do cheque nos termos da convenção que celebrou com o depositante (titular da provisão).

Esta obrigação tem os contornos do artº 32º da L.U. s/Cheque, segundo o qual “a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”, sendo certo que, se não tiver sido revogado, “o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo”, que é de oito dias, contados da data indicada como da emissão.

Revogar um cheque é a declaração do sacador ao Banco para que não o pague, mau grado o mesmo já ter entrado em circulação, sendo diversas as justificações que o sacador pode fornecer ao Banco para que não efectue o pagamento de um cheque por si emitido apesar de dispor de fundos para o efeito.

O STJ tomou posição no sentido de pôr termo à controvérsia gerada na jurisprudência e na doutrina sobre a responsabilidade dos Bancos que recusem o pagamento de cheque apresentado dentro do prazo legal, com fundamento em ordem de revogação do sacador, através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008.

A circunstância de se considerar em vigor a 2ª parte do corpo do artº 14º do Dec. nº 13.004, de 12/0171927, não implica necessariamente a responsabilidade civil do sacado, decorrente da recusa de pagamento, nas situações em que o sacador declara a ocorrência do extravio do cheque.

A revogação e o extravio de um cheque são realidades distintas que não se confundem, o que implica que se não possa aplicar a este (ao extravio) as consequências da revogação do cheque.

A declaração ou simples informação de extravio de um cheque por parte do seu sacador torna lícita a sua recusa de pagamento pelo Banco sacado, constituindo uma justa causa para essa recusa, não configurando qualquer acto ilícito que gere a obrigação de indemnizar.

A informação de “extravio” prestada pelo sacador ao banco constitui motivo explícito bastante e sério para que este recuse o pagamento sem que lhe possa ser oposto que em face da eventual falta de provisão deveria exigir daquele maior informação por haver uma forte probabilidade de se não haver verificado essa anomalia”.

Assim se compreende a razão do Banco não atender ao pedido da arguida AA no sentido do cancelamento do cheque e a eventual explicação das circunstâncias em que o cheque poderia ser cancelado naquele momento, sendo uma delas o seu extravio.

No entanto, isso não significa que o Banco, mais precisamente a pessoa que falou com a arguida, lhe tenha dito para prestar as falsas declarações que prestou, isto é, lhe tenha dito para dizer na GNR que o cheque se extraviou quando tal não correspondia à verdade.

De qualquer forma, mesmo que tal lhe tivesse sido dito, a arguida agiu livremente, sendo a única responsável por tais declarações.

A verdade é que a arguida AA e seu companheiro, em virtude dos problemas que o camião apresentava, resolveram não pagar o último cheque.

Dirigiram-se para o efeito ao Banco com essa finalidade. Como a sua pretensão não foi acatada e ficando a saber em que circunstâncias o cheque poderia não ser pago na data de vencimento, resolveu a arguida agir para conseguir tal desiderato.

Para o efeito, dirigiu-se à GNR e disse que tinha perdido o cheque, que o tinha extraviado, prestando falsas declarações por saber que tal facto não correspondia à verdade. Posteriormente, prestou falsamente as mesmas declarações no Banco, tendo como único objectivo, como se disse, que o dito cheque não fosse pago.

É irrelevante para a decisão a proferir que a arguida tenha prestado as falsas declarações depois de informada das circunstâncias em que o cheque poderia ser cancelado.

Essa informação não implicava que cometesse o crime.

Aqui chegados, conclui-se facilmente que os factos dos pontos 6 e 7 devem manter-se como provados, sem prejuízo da correcção do ano no ponto 6 que deve passar a ter o seguinte teor:

6) No dia 27 de Abril de 2020 a arguida AA dirigiu-se ao Posto da GNR ... e declarou que o cheque no valor de € 1.499,50 (mil quatrocentos e noventa e nove euros), se tinha extraviado, referindo-se ao cheque n.º ...20, cuja cópia juntou.

Continuando.

O facto 13 apresenta a seguinte redacção:

13) A arguida actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de declarar perante a GNR e a entidade bancária que o cheque se tinha extraviado, tendo consciência que essa declaração não correspondia a realidade e sabendo que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração, com o objectivo concretizado de determinar o banco a recusar o pagamento do cheque e assim prejudicar terceiros, impedindo-os de receber a quantia a que tinham direito.

Afirmam as recorrentes que não se provou que as arguidas quisessem obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo, muito menos causar prejuízo a outrem. Como ficou demonstrado e resultou do depoimento das testemunhas AA e DD vincados na douta sentença e supra parcialmente transcritos, a sua intenção era única e exclusivamente que a C... Lda procedesse à reparação das avarias verificadas na SCania e nada mais do que isso. … Não tendo a arguida AA agido com dolo, nem sequer dolo eventual, não se verificou assim um dos elementos que integram o tipo legal do crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº1 alínea d) do CP, não se verificando como tal, quer por parte da arguida AA, quer por parte da arguida B..., a prática do ilícito criminal em causa, razão pela qual do mesmo deverão a final ser absolvidas.

Ora, se é certo que o objectivo final era a reparação da viatura, o meio para o atingir era a causação do prejuízo ao “C... Lda” com o não pagamento do cheque em causa nos autos.

Se o cheque era parte do pagamento do preço da viatura que foi vendida, naturalmente que não receber o montante do cheque iria causar prejuízo ao referido Stand. O que era do conhecimento da arguida AA e por isso agiu dessa forma.

É certo que o pedido de cancelamento do cheque junto da Banco 1... teve por base diversas avarias verificadas na viatura Scania 124, de matrícula ..-..-ZP, adquirida à participante “C..., Ldª” (facto 15).

Porém esta matéria do ponto 15 revela-se manifestamente insuficiente para fundamentar um eventual direito de retenção previsto no artigo 754º do Código Civil, desde logo por não ter resultado provado qualquer crédito das arguidas.

Deve, pois, manter-se como provada a matéria do ponto 13.

             *

Nenhuma censura merece o juízo feito pelo tribunal a quo ao dar como provada a factualidade dos pontos 6 (com a correcção supra referida), 7 e 13. O julgador valorou correctamente a prova, fazendo uso das regras da experiência e formou a sua convicção de forma a não merecer qualquer reparo.

A prova indicada pelas recorrentes não impõe, de forma alguma, uma decisão diversa.

             *

Acresce que, relativamente à fixação da matéria de facto, o tribunal a quo foi quem beneficiou da imediação e oralidade na recolha da prova, sempre valiosas na formação da convicção do julgador.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova”.

Por sua vez, o Ac. da RC de 28.1.2015, in www.dgsi.pt, refere que “o julgamento da matéria de facto é feito pelo tribunal de 1ª instância. É na audiência de julgamento que o facto é revelado, de forma e em circunstâncias que não mais poderão ser repetidas, e é este tribunal o único que beneficia plenamente da imediação e oralidade da prova. O recurso da matéria de facto é sempre um remédio para sarar o que é tido por excepcional naquele julgamento, o cometimento de erro na definição do facto, não podendo nem devendo ser perspectivado como um novo julgamento, tudo se passando como se o realizado na 1.ª instância pura e simplesmente não tivesse existido”.

Também o Ac. da RE de 19.5.2015, in www.dgsi.pt, afirma que “o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância. Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela”.

Ora, como resulta do que já ficou dito supra,  não se verifica que tenha sido cometido qualquer erro de julgamento na primeira instância, muito menos qualquer erro clamoroso, evidente e/ou óbvio, na apreciação dos factos impugnados.

Pelo contrário, a conclusão probatória a que o tribunal a quo chegou encontra-se correcta.

Face ao exposto, improcede a pretensão das recorrentes, devendo manter-se como provados os factos impugnados com a redacção que lhes foi conferida pelo julgador, devendo, contudo, ser corrigido o ponto 6 nos termos supra referidos.

               *

   A próxima questão é a de saber se as arguidas devem ser absolvidas do crime de falsificação de documento por que foram condenadas, previsto e punido pelos artigos 255º, alínea a), e 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal.

Afirmam as recorrentes que, não tendo a arguida AA agido com dolo, nem sequer dolo eventual, não se verificou assim um dos elementos que integram o tipo legal do crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº1 alínea d) do CP, não se verificando como tal, quer por parte da arguida AA, quer por parte da arguida B..., a prática do ilícito criminal em causa, razão pela qual do mesmo deverão a final ser absolvidas.

Vejamos.

Nos termos do artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

O documento (no sentido exposto no artigo 255°) constitui o objecto da acção; será sobre ele que incidirá a conduta do agente.

“Integra o tipo legal de crime de falsificação, não só a falsificação material como a falsificação ideológica, o que abrange a falsificação intelectual e a falsidade em documento. … Assim, sabendo que documento, para efeitos do crime de falsificação, é a declaração e não o objecto em que esta é incorporada, fácil é compreender que aquilo que constitui a falsificação de documentos é não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento.

Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.

Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico.

Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração do facto falso juridicamente relevante; trata-se, pois, de uma narração de facto falso” (Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos – da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento 1999, 87 ss. e 181 ss.).

Frisa-se, assim, que “uma das modalidades da acção é a “falsidade em documento ou a narração de facto falso juridicamente relevante. Trata-se de fazer constar falsamente um facto juridicamente relevante. E apenas nestes casos se pode considerar que existe uma falsidade em documento. Trata-se de uma declaração falsa em documento regular” – cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, anot. ao artigo supra referido.

No que respeita ao bem jurídico, o que o crime de falsificação protege é a verdade intrínseca do documento enquanto tal. É a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, no que respeita à prova documental. Não é toda a segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger mas apenas a relacionada com os documentos – cfr. obra supra citada.

Quanto ao elemento subjectivo (dolo), como requisito essencial do delito em apreço, cumpre referir que se traduz na intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.

A primeira componente (intenção danosa) tanto pode ser de natureza patrimonial como moral ou envolver até redução de direitos ou outras garantias, em resultado da falsificação.

Quanto à segunda componente (benefício ilegítimo) deve entender-se que é da essência do crime a obtenção ou possibilidade de obtenção de uma vantagem ilícita ou injusta, isto é, não protegida pelas leis em vigor. Com esta exigência o legislador teve em consideração certas situações em que dificilmente se vislumbra um prejuízo causado a outrem ou ao Estado, mas o legislador ou terceiro conferem vantagens jurídicas ou de facto a que não têm direito - cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “Código Penal de 1982”", vol. III, págs. 141 a 154.

Reafirma-se que documento para efeitos da lei Penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizado (…) o que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro – escrito, registo de em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico – que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante.

Donde, sem necessidade de outros desenvolvimentos, se constata que documento é a própria declaração humana destinada a provar um facto juridicamente relevante, que em regra estará corporizada num suporte, mas que se não confunde com ele, podendo tal suporte ser uma fotocópia ou qualquer outro, “(…) na verdade, a utilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documentos – cfr. Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, pág. 666.

Face à especificidade do caso concreto, cumpre atentar no Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência, nº 9/2013, de 24 de Abril, publicado no DR, Série I, de 24.4.2013, nos termos do qual

“O sacador de um cheque que nele apuser uma data posterior à da emissão, e que em ulterior escrito por si assinado, requisitar ao banco sacado o seu não pagamento, invocando falsos extravio, subtração ou desaparecimento, com a intenção de assim obter o resultado pretendido, preenche com esse escrito o tipo de crime de «falsificação de documento», previsto pela alínea b) (redação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março), hoje alínea d) (redação da Lei 59/2007 de 4 de Setembro), do n.º 1 do art. 256.º do Código Penal”.

Voltando ao caso concreto, vejamos o que resultou provado:

6) No dia 27 de Abril de 2019 a arguida AA dirigiu-se ao Posto da GNR ... e declarou que o cheque no valor de € 1.499,50 (mil quatrocentos e noventa e nove euros), se tinha extraviado …

7) De seguida a arguida comunicou ao banco sacado que o cheque tinha sido extraviado, bem sabendo que tinha sido entregue ao “C..., Ldª”, como forma de pagamento.

9) Tal ocorreu porque a arguida comunicou ao banco sacado que o cheque tinha sido extraviado, declaração que sabia que era falsa.

11) A arguida AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, por si e em representação da sociedade arguida, com a consciência que tal declaração não correspondia à realidade …

13) A arguida actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de declarar perante a GNR e a entidade bancária que o cheque se tinha extraviado, tendo consciência que essa declaração não correspondia à realidade …

Ora, da análise desta factualidade facilmente se conclui que não resultou provada a existência de qualquer documento que a arguida AA tivesse falsificado, mas apenas que prestou uma declaração falsa.

Não se provou que em escrito por si assinado, a arguida tivesse requisitado ao banco sacado o não pagamento do cheque.

Apenas se provou que a arguida emitiu uma declaração, comunicou ao banco sacado que o cheque tinha sido extraviado.

Poder-se-ia dizer que estamos perante o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº2, alínea a), do Código de Processo Penal.

Acontece que a matéria que resultou provada é precisamente a mesma que consta da acusação.

Como se refere no Ac. da RE de 26.5.2020, in www.dgsi.pt, “a sentença recorrida não enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, se for esgotado o objeto do processo definido na acusação”.

Aliás, a declaração desse vício, com a inevitável remessa dos autos à 1ª instância tendo em vista a sua sanação, iria colidir necessariamente com o fim dos institutos de alteração não substancial e/ou substancial dos factos.

Como se refere no aresto acabado de citar “os institutos de alteração não substancial ou substancial dos factos não visam colmatar lacunas da acusação ou pronúncia, com origem na desconsideração de elementos que já aquando da respetiva prolação constavam dos autos, imprescindíveis à conformação de ilícito penal. Posição contrária corresponderia a admitir a transformação de uma realidade que, ab initio, por ausência da descrição completa dos respetivos elementos típicos, não configurava crime em conduta penalmente típica”.

Também a RC já se tinha pronunciado no mesmo sentido no Ac. de 21.6.2017, in www.dgsi.pt, onde se lê que:

“Os institutos de alteração não substancial ou substancial dos factos não visam colmatar lacunas da acusação ou pronúncia, com origem na desconsideração de elementos que já aquando da respectiva prolação constavam dos autos, imprescindíveis à conformação de ilícito penal, caso em que não tem sentido afirmar resultarem os novos factos acrescentados [provados] da audiência de discussão e julgamento.

Ainda que outro fosse o entendimento, os aditamentos verificados, não se traduzindo em factos meramente circunstanciais ou numa descrição da mesma realidade fáctica de maneira diferente, antes consubstanciando a necessária concretização em termos factuais de conceitos de direito, indeterminados ou conclusivos inscritos na acusação … , sem os quais não era possível concluir pelo preenchimento do tipo, escapam à ratio dos artigos 358.º e 359.º do CPP.

Posição contrária corresponderia a admitir a transformação de uma realidade que, ab initio, por ausência da descrição completa dos respectivos elementos típicos, não configurava crime em conduta penalmente típica.

Percepção diferente não decorre da fundamentação do acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, na parte em que consigna: “Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art.º 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art.º 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial) ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais”.

Por conseguinte, a questão situa-se a montante do preceito convocado [artigo 358.º do CPP], norma que surgiu a justificar a alteração dos factos, prendendo-se, sim, com a estrutura acusatória que, por imposição constitucional, domina o processo criminal e que, grosso modo, se revela no facto do julgamento se circunscrever dentro dos limites ditados por uma acusação deduzida por entidade diferenciada.

A consequência num caso, como o presente, em que por ausência da necessária narração dos factos se mostrava a acusação ferida de nulidade e, por conseguinte, deveria, no momento próprio, ter sido rejeitada [artigo 311.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, alínea b), do CPP], não pode deixar de ser, na presente fase processual, outra senão a da absolvição do arguido/recorrente”.

Em suma, uma vez que o cheque foi emitido com data posterior à da sua entrega e, por isso, não se verificam os elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão, sempre a comunicação ao Banco do extravio do cheque poderia constituir crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo  256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, desde que estivessem preenchidos todos os elementos constitutivos deste crime, frisando-se que a dita falsificação traduz-se na falsificação de documento  particular entregue ao Banco e não do próprio cheque – neste sentido veja-se o corpo do aresto do STJ nº 9/2013 de 24.4.

Aqui chegados e face ao exposto, facilmente se conclui que as arguidas terão que ser absolvidas do crime de falsificação por que foram condenadas, por não se verificarem todos os elementos típicos do crime de falsificação, em concreto, pela inexistência de um documento falsificado.

Estipula o artigo 403º, nº 3, do Código de Processo Penal que “a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”.

Chegando o tribunal à conclusão que a matéria vertida na acusação e julgada como provada não consubstancia o crime de falsificação sub judice, deve dar-se como não provada a factualidade do ponto 14 (a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal) apesar de não ter sido objecto de impugnação ampla na peça recursória.

A ser assim, com fundamento diverso do invocado pelas recorrentes, procede esta sua pretensão, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.

             *

Pelo exposto, procedendo a pretensão das arguidas, deve ser concedido provimento ao recurso.

             *

         C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelas arguidas AA e “A..., Lda” e, em consequência, decidem:

a) - alterar o ponto 6 dos factos provados que passa ter a seguinte redacção:

6) No dia 27 de Abril de 2020 a arguida AA dirigiu-se ao Posto da GNR ... e declarou que o cheque no valor de € 1.499,50 (mil quatrocentos e noventa e nove euros), se tinha extraviado, referindo-se ao cheque n.º ...20, cuja cópia juntou.

b) – Julgar não provado o seguinte facto:

14. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

c) – Revogar a sentença recorrida na parte em que:

1. Condenou a arguida “A..., Ldª” pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artºs 11º, nº 2, alínea a), 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o total de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);

2. Condenou a arguida AA pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artºs 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros);

3. Condenou cada uma das arguidas no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.

c)Absolver a arguida “A..., Ldª” pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 11º, nº 2, alínea a), 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal; 

d) Absolver a arguida AA pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal.

                 *

Sem custas (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, a contrario).

             *

               Notifique.

              *

              Coimbra, 20 de Março de 2024.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

          Rosa Pinto – Relatora

          Maria José Guerra – 1ª Adjunta

          Maria de Fátima Calvo – 2ª Adjunta