Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17/22.4IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE MULTA POR ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 105 DO RGIT; 60º DO CÓDIGO PENAL.
Sumário:
I- A pena de admoestação é aplicável a indivíduos culpados de factos de escassa gravidade e relativamente aos quais não há, de um ponto de vista preventivo, a necessidade de serem utilizadas outras medidas penais que importem a imposição de uma sanção substancial, situando-se próxima da dispensa de pena.
II- Os elevados índices de criminalidade, os sentimentos de impunidade e as especificidades do tipo de ilícito de abuso de confiança fiscal justificam uma especial atenção às exigências de prevenção geral negativa realizada através de sanções dissuasoras da prática de futuros crimes.
III- Para além disso, o valor de 9 501,15€ é, objectivamente, considerado pelo legislador um valor elevado e excede em muito o valor considerado diminuto, pelo que se não pode considerar o crime cometido de escassa ou reduzida gravidade, condição para aplicação da pena de admoestação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por sentença datada de 29 de junho de 2023, foi o arguido, AA pela prática, em autoria material e forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º nºs. 1, 2 e 4, do R.G.I.T. , numa pena de 120 (cento e vinte) dias à razão diária de €5,00 (cinco euros), num total de €600,00 (seiscentos euros) que se substitui por admoestação.

Mais foi decidido não declarar perdidas a favor do Estado português as vantagens económicas obtidas com a prática dos factos que constituem os ilícitos criminais suprarreferidos, porque, entretanto, já restituídas ao Estado Português.

2. Inconformado com a condenação, dela recorre o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1ª.- Por douta sentença, proferida a 29 de junho de 2023, foi decidido condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos arts.105º nºs. 1, 2 e 4, do R.G.I.T., na pena de 120 (cento e vinte) dias à razão diária de €5,00 (cinco euros), pena que foi substituída por admoestação;

2ª.- O Ministério Público vem recorrer da matéria de direito, na parte em que foi decidido substituir a pena de multa, aplicada ao arguido, por admoestação, entendendo que tal substituição carece de fundamento e sustentação legal, no caso concreto;

3ª.- O bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança fiscal - crime pelo qual foi o arguido condenado - tem por fundamento a proteção do património do Estado, mediante a tutela e proteção criminal da obrigação da entrega das quantias confiadas ao agente, para que este as entregue nos Cofres do Estado, pretende-se proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do mesmo Estado/entidades públicas, bem como a repartição justa dos rendimentos e da riqueza;

4ª.- Ora, para aplicação da pena de admoestação, pena prevista pelo artigo 60º, do Código Penal, além do mais, é exigida a emissão de um juízo de prognose positiva sobre a sua adequação e eficácia à ressocialização do agente de facto criminoso, bem como a verificação de que a aplicação da mesma pena não irá pôr em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias ou de prevenção de integração;

5ª.-Tratando-se da pena mais leve do nosso ordenamento jurídico criminal, as penas aplicadas nas denominadas de bagatelas penais, nas quais a ilicitude e ou a culpa são reduzidas, quer pelos factos em si mesmos, quer pelo comportamento anterior e posterior do agente, constituindo-se, pois, apenas como pena de substituição de multas, aplicadas pela prática de crimes de muito pequena gravidade;

6ª.- Com efeito, “Contrariamente ao regime geral regulado no artigo 72º do CP, o artigo 22º, nº 2 do RGIT não demanda nem consente a formulação de juízos de valor acerca da diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena como pressuposto da sua aplicação, impondo-se, de outra sorte, proceder à atenuação desde que verificados os requisitos no mesmo enunciados, a saber, ter o agente reposto a verdade fiscal – tendo pago a prestação tributária e demais acréscimos legais – e ter o pagamento ocorrido até à decisão final ou no prazo nela fixado.”   não sendo a aplicação de admoestação compatível com as normas do RGIT e nem com o nosso sistema penal, atento o disposto no mesmo artigo 60º., do Código Penal;

7ª.-Por outro lado, e “sendo o critério de aplicação da pena de admoestação exclusivamente preventivo, só pode concluir-se que a admoestação não é adequada à satisfação das necessidades de prevenção especial de socialização, sendo certo que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas, quando estão em causa crimes tributários, pelo que terá de ser afastada a possibilidade da sua aplicação.”;

8ª.- A admoestação, apenas vocacionada para crimes de pequena gravidade, desde logo, nunca poderia ser aplicada ao arguido, como pena de substituição da multa que lhe foi aplicada, já que se trata de crime tributário – crime de abuso de confiança fiscal, o qual não se configura como crime de pequena gravidade, antes pelo contrário e, por outro lado, a sua aplicação, no caso, irá pôr em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias, atentas as elevadíssimas necessidades de prevenção geral;

9ª.- No caso dos autos, a fundamentação da sentença proferida, para substituição da pena de multa aplicada ao arguido, por admoestação, restringe-se ao seguinte:

“No caso dos autos: - a pena de multa aplicada é inferior a 240 (+e aliás metade desse valor); - o dano está totalmente reparado, já que o valor de IVA em causa na acusação e até os acréscimos legais, se mostram ressarcidos na pendência destes autos; - esta em causa um único período (trimestre) e um montante não muito superior aos 7500 mínimos do patamar criminal - o arguido não tem averbada qualquer condenação ao seu registo criminal e está inserido, tendo já terminado a atividade em causa; - pese embora as exigências de prevenção geral sejam elevadas, concordamos com o Ac- do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.11.2020 (…) Assim, substitui-se a pena de multa aplicada por admoestação, a concretizar após trânsito em julgado da presente sentença.”;

10ª.- Não podemos concordar, com efeito, os infratores, que não cumprem as suas obrigações legais, não entregando ao Estado as quantias devidas, prejudicam Estado e prejudicam os outros cidadãos e as empresas que cumprem as suas obrigações legais, contrariando as regras da livre concorrência, contrariando o disposto no artigo 13º., da Constituição da República Portuguesa, ou seja, em violação do princípio da igualdade;

 11ª.- O cidadão cumpridor não iria compreender, não seriam cumpridas as elevadíssimas exigências de prevenção geral (e contrariamente ao que consta da sentença, que considera tais exigências como medianas) nem o direito penal fiscal e nem o Estado de direito em que vivemos o poderia permitir;

12ª.- A aplicação de admoestação, encontra-se prevista apenas para situações denominadas de meras bagatelas penais, em que a ilicitude e ou a culpa são reduzidas, o que nem sequer é o caso em apreço, tal não consta da fundamentação da sentença, aí constando: - o grau mediano da ilicitude; - a intensidade da culpa (por força do dolo direto); - as exigências de prevenção geral são medianas; as exigências de prevenção especial são diminutas, pelo que, em qualquer caso e em nosso entender, nunca se encontrariam verificados os pressupostos para aplicação de admoestação, nos termos gerais;

13ª.- Tratando-se de crime fiscal, a lei tributária não permite que o julgador considere sequer, a aplicação de admoestação, atentos os limites do disposto no artigo 22º, do R.G.I.T., não prevendo este e nem consentindo, a formulação de juízos de valor acerca da diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, como pressuposto da aplicação de admoestação (apenas prevendo, a dispensa e atenuação especial da pena, com os respetivos pressupostos);

14ª.- Com efeito, ainda que o arguido tenha procedido à reparação do dano e confessado os factos, não tenha antecedente criminais e se encontre familiar e socialmente integrado -e como sucede muitas vezes nestes casos - mais uma vez, são elevadíssimas as exigências de prevenção geral, neste tipo de crime, não apenas por o crime de abuso de confiança fiscal ser, atualmente, dos mais frequentes, mas também pela necessidade de “ promover a consciência ética fiscal”,  não podendo esquecer-se a banalização da prática de crimes tributários, o que se encontra comprovado pelos elevados índices de criminalidade contra os interesses tributários do Estado Fiscal Social /erário público, existindo, pois, um sentimento generalizado de impunidade, face a este tipo de ilícitos;

15ª.- Para além de não ser legalmente admissível, em nosso entender, e sem prescindir, a aplicação de admoestação, no caso “sub judice”, atenta a prática de crime tributário, nunca se revelaria, sequer, um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição, afigurando-se como uma pena completamente desadequada (apesar dos factos assentes como provados), parecendo “premiar” a conduta do arguido;

16ª.- Entendemos, assim, que a pena de multa aplicada ao arguido, pela prática do aludido crime de abuso de confiança fiscal, encontra-se em conformidade os princípios basilares do direito penal, mostrando-se proporcional e adequada, atentas as circunstâncias concretas, de acordo com as exigências de prevenção especial e geral, que o caso requer;

17ª.- Por todo o exposto a mesma pena de multa não podia ter sido substituída por ADMOESTAÇÃO, como decidido pela sentença proferida, o que foi decidido, em nosso modesto entender, ao arrepio das normas legais aplicáveis, e

18ª.- Pelo que, ao substituir por ADMOESTAÇÃO, a aludida pena de multa, aplicada ao arguido, a douta sentença proferida encontra-se em violação com o disposto nos artigos, 105º nºs. 1, 2 e 4, e 22º., ambos do R.G.I.T., 60º., 71º. e 72º, estes do Código Penal.

Atentos os fundamentos, acima referidos, deverá ser revogada a sentença proferida, na parte em que substituiu a pena de multa aplicada ao identificado arguido, AA, por admoestação, e mantendo-se a condenação do mesmo, pela prática do aludido crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo, 105º nºs. 1, 2 e 4, do R.G.I.T., na pena de multa aplicada pela mesma decisão.».

3. O arguido, em resposta, defende a manutenção da sentença recorrida.

4. O Digno Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. DA SENTENÇA RECORRIDA

A primeira instância julgou provados os seguintes factos:

1. O arguido esteve coletado para efeitos de IVA pelo regime normal, de periodicidade trimestral, pelo exercício da atividade de “comércio a retalho de vestuário para bebés e crianças, ao qual correspoABnde o CAE 47712, atividade que o arguido exerceu até 31 de Dezembro de 2019, data em que a cessou.

2. No terceiro trimestre de 2019 o arguido cobrou IVA nas faturas que emitiu aos seus clientes.

3. Nesse período, recebeu a título de IVA valor superior ao que deveria ter entregue aos cofres do Estado, tendo enviado ao serviço de cobrança de IVA a declaração periódica relativa ao terceiro trimestre de 2019.

4. No entanto, os valores relativos ao IVA não foram entregues pelo arguido, à Administração Tributária até ao prazo limite para o efeito.

5. O montante global de IVA apurado a favor do Estado relativo ao período de 2019/09T, ascende a 9 501,15 euros.

6. Já decorreram mais de 90 dias sobre o termo legal da entrega da prestação tributária.

7. O valor relativo ao montante de IVA retido e não entregue pelo arguido, não foi pago, acrescido dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias, não obstante o arguido ter sido notificado nesses termos.

8. O arguido usou o montante de imposto na satisfação de outros compromissos, dando-lhes o destino que entendeu, em prejuízo da Administração Fiscal que ficou privada de receber as ditas quantias, não obstante saber que tais quantias lhe não pertenciam e sim à Administração Fiscal.

9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção alcançada, de auferir uma vantagem patrimonial indevida, integrando no respetivo património, a quantia retida e não entregue, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e sim à Administração Fiscal.

10. Permanece assim, a Administração Tributária prejudicada no aludido montante que não recebeu.

11.  Não ignorava o arguido que tal conduta era proibida e punida por lei criminal.

12. A quantia suprarreferida, à data, levou a que o arguido, de forma direta, necessária e adequada tivesse engrandecido o seu património no montante em causa, sendo que, por lhe dado outro destino, não foi possível a sua apreensão em espécie;

Mais se provou que:

13. O arguido confessou os factos objetivos imputados;

14. O montante suprarreferido quanto à dívida fiscal e bem assim os acréscimos legais encontram-se atualmente pagos, na sua totalidade, à Administração Tributária;

15. No período referido supra, bem como nos últimos cerca de 5 anos anteriores a 2019, a atividade do arguido sofreu dificuldades económicas e falta de liquidez, sendo que o arguido sempre pagou salários, pagou aos fornecedores e ao que mantivesse a atividade em funcionamento. Em virtude de tais dificuldades veio a encerrar a atividade e as 3 lojas associadas no final de 2019.

16. O arguido:

a. está desempregado, dedicando o seu tempo a ser cuidador da sua mãe, sendo sua intenção, logo que possa, emigrar;

b. Não beneficia de qualquer rendimento nem apoio social;

c. vive com a sua companheira em casa dos pais da mesma;

d. tem o 6.º ano de escolaridade;

e. tem uma conta penhorada no âmbito de uma ação executiva;

17. Em 02.06.2023, o arguido não tinha averbada qualquer condenação ao seu registo criminal;

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O tribunal recorrido condenou o arguido na pena de 120 dias multa que substituiu pela pena de admoestação, atenta: (i) a reparação do dano; (ii) o montante não muito superior aos 7 500€ do patamar criminal (iii) o tempo de execução da infração [apenas um único período (trimestre)]; (iv) a ausência de antecedentes criminais, (v) a inserção familiar e social do arguido e (vi) o não exercício da actividade em causa.

É contra esta decisão que se insurge o Recorrente por entender que no caso a admoestação não satisfaz as finalidades da pena que o caso requerer.

Que decidir?

Nos termos do artigo 60.º, do Código Penal, a admoestação depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) aplicação de pena de multa em medida não superior a 240 dias (n.º 1); (ii) reparação do dano causado pela prática do crime (n.º 2) e (iii) a adequação e suficiência da admoestação às finalidades da punição (n.º 2).

Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação (n.º 4), o que, a contrario significa que condenação do agente em qualquer pena nos três anos anteriores, faz presumir a inadequação e insuficiência da admoestação às finalidades da punição.    

A admoestação consiste numa censura solene feita em audiência pelo tribunal (artigo 60.º, n.º 4, do Código Penal) e expressa «o seu carácter sancionatório na declaração de culpabilidade, na determinação de uma pena proporcionada à ilicitude e à culpa e na admoestação em si. Trata-se, pois, de uma sanção “quase penal”: declarando-se a culpabilidade, determina-se a pena e desaprova-se publicamente o crime cometido, mas não se impõe a pena» (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Código Penal Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Rei dos Livros, 1982, pág. 328».

A admoestação é «aplicável a indivíduos culpados de factos de escassa gravidade e relativamente aos quais se entende (ou por serem delinquentes primários ou por neles ser mais vivo um sentimento da própria dignidade, por exemplo) não haver, de um ponto de vista preventivo, a necessidade de serem utilizadas outras medidas penais que importem a imposição de uma sanção substancial» [Considerando n.º 12 do Preâmbulo ao Código Penal (Versão originária) e Maia Gonçalves. Código de Processo Penal, Anotado e Comentado - Legislação Complementar, 16ª Edição, Almedina, pág. 226].

Próxima da dispensa de pena, a admoestação filia-se no entendimento de que o artigo 60º n.º 1 do Código Penal, ao referenciar pode o tribunal limitar-se a proferir (…) não confere um verdadeiro poder ou faculdade, mas antes um poder dever, uma faculdade vinculada à verificação dos respectivos pressupostos formais e materiais. [Figueiredo Dias, Direito Penal -  Consequências Jurídicas do Crime, pág. 388].

Tem a admoestação carácter puramente simbólico. Só pode ser aplicada e executada em vez da pena de multa de pequena monta - não superior a 240 dias – desde que haja de reparação do dano e se adeque e satisfaça as exigências de prevenção geral e especial (não compensações de culpa), assumindo a natureza de pena de substituição [Maria João Antunes in As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra 2007/2008, pág. 9].

O que quer dizer que, na articulação das exigências de prevenção geral e especial que o caso concreto suscite, deve o tribunal, por regra, optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme às exigências «de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) afastarem a aplicação das penas alternativas ou substitutivas. [cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa, pág. 266].

Torna-se, assim, necessário, verificar, mediante as circunstâncias concretas do facto e do agente, que a admoestação se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da prevenção geral e especial. O que vale por exigir que o tribunal se convença, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re)socialização; e ainda que a aplicação de uma mera admoestação não porá em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico» [Figueiredo Dias, Direito Penal -  Consequências Jurídicas do Crime, pág. 387].

Neste sentido, decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de maio de 2005 [Processo n.º 945/05; Relator: Oliveira Mendes, www.dgsi.pt , sítio a que nos referiremos de ora em diante sem menção do contrário], que a pena de admoestação «só deve ser cominada para censura de factos de escassa gravidade, gravidade que deve ser aferida em função do bem ou do interesse jurídico tutelado e o grau e a intensidade da violação ou lesão nele produzida.».

Na verdade, «a sociedade tolera uma certa «perda» de efeito preventivo geral – isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição; mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal». [Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida concreta da pena privativa da liberdade e a escolha da pena, RPCC (Revista Portuguesa de Ciência Criminal), 1991, p. 256].

Em causa está o crime de abuso de confiança fiscal relativamente à omissão de entrega do IVA referente ao terceiro trimestre de 2019, no valor de 9 501,15 € previsto e punido pelo artigo 105º nºs. 1, 2 e 4, do R.G.I.T.

O bem jurídico protegido com esta incriminação «é constituído pelas receitas fiscais no seu conjunto e a base normativa, cuja violação integra o desvalor da ação, é constituída pelos deveres de colaboração que municiam tecnicamente o dever geral de pagar o imposto; ou a contribuição à Segurança Social, dever fundamental de cidadania que, relacionando a conduta típica com as receitas fiscais e as respetivas finalidades, lhe confere ressonância e desvalor ético-social. O sistema fiscal é visto como meio privilegiado de realização da justiça distributiva (a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, artigo 103°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa). Esta justificação confere ao dever de pagar o imposto a natureza de dever de cidadania. É dever fundamental de todo o cidadão contribuir para a formação de um património público que torne possível a realização das políticas distributivas, corretoras de desigualdades e assimetrias sociais, tendo em vista a constituição de uma sociedade mais justa e mais ordenada» [Augusto Silva Dias, Os crimes de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal: alguns aspetos dogmáticos e político-criminais, 1999, pág. 49].

A eticização do direito fiscal é hoje um dado adquirido «o que legitima a expansão do direito penal a um domínio tradicionalmente alheio a esta dignificação. Este fundamento ético do imposto, está contido claramente na Constituição (artigos 103.º e 104.º), que aponta ao sistema fiscal uma finalidade de repartição justa dos rendimentos e da riqueza, a diminuição das desigualdades, a igualdade dos cidadãos e a justiça social» [Anabela Miranda Rodrigues, Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal, Direito Penal Económico e Europeu, II vol. Pág. 481 ss.]

Porém, o «fenómeno da evasão fiscal continua a constituir uma «realidade endémica e quase cultural» a reclamar «uma atitude mais firme e exigente por parte do Estado, no sentido de ser efectivado, o cumprimento dos deveres fiscais, por todos os cidadãos e em condições de igualdade de tratamento», [Jorge dos Reis Bravo, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, outubro/dezembro 1999, pág. 630] ou nas palavras de Anabela Rodrigues «a promover a consciência ética fiscal» [Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal, - Direito Penal Económico e Europeu, volume II, pág. 484].

Os elevados índices de criminalidade, os sentimentos de impunidade e as especificidades deste tipo de ilícito onde a verificação do crime e a respetiva prova são mais difíceis, face à complexidade dos factos e dos ilícitos e dos próprios agentes, justificam uma especial atenção às exigências de prevenção geral negativa realizada através de sanções dissuasoras da prática de futuros crimes.

São, pois, manifestamente elevadas as necessidades de prevenção geral associadas ao crime de abuso de confiança fiscal.

Assim se pronunciaram-se, entre outros:

- O Tribunal da Relação de Guimarães, nos Acórdãos de 13 de janeiro de 2020 [Processo n.º 564/19.GAFAF.G1] e de 13 de julho de 2021 [Processo n.º 318/13.2IDBRG.G3], ambos relatados pela Senhora Desembargadora Cândida Martinho, cujo sumário deste último é o seguinte:

«Sendo o critério de aplicação da pena de admoestação exclusivamente preventivo, tendo-se concluído que a mesma não é adequada à satisfação das necessidades de prevenção especial de socialização e que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas quando estão em causa crimes tributários, mostra-se afastada a possibilidade da sua aplicação.»

-  O Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 22 de novembro de 2022 [Relatora: Des. Maria Clara Figueiredo]:

«A admoestação, prevista no artigo 60º do CP é a pena mais leve que o nosso ordenamento jurídico criminal comporta, encontrando o seu campo de aplicação apenas nas denominadas de bagatelas penais, nas quais a ilicitude e ou a culpa são reduzidas, quer pelos factos em si mesmos, quer pelo comportamento anterior e posterior do agente, subsistindo, pois, apenas como pena de substituição de multas aplicadas pela prática de crimes de muito pequena gravidade.»

Dito isto,

O Tribunal recorrido, na esteira do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de novembro de 2020 [Processo n.º 330/18.5IDLSB.L1-5, Relator: Paulo Barreto], considerou que a pena de admoestação satisfaria as expectativas comunitárias, considerando o valor reduzido do IVA (não muito superior a 7 500,00€) e a circunstância de ter ocorrido num único episódio (um único semestre).

Com o devido respeito por esta opinião, com ela não concordamos.

Desde logo, porque é o próprio tribunal recorrido que, na determinação da medida concreta da pena, considera o grau de ilicitude mediano, porquanto se trata «apenas de um trimestre ainda que, por si só, num montante de 9.501,15 euros.»

Ora, se um dos critérios para aferir o grau da ilicitude é precisamente o valor da prestação tributária, não descortinamos, nem a sentença sindicada justifica a razão pela qual um ilícito de gravidade mediana passa a ilícito de gravidade reduzida. Nenhum outro facto ou critério legal sustenta tal afirmação.

Ademais, o valor de 9 501,15€ é, objectivamente, considerado pelo legislador um valor elevado, porque ultrapassa o montante 5 100,00€ equivalente a cinquenta unidades [artigo 202.º, alínea a) do Código Penal nas aplicável por força do artigo 11.º, alínea d) do RGIT], e excede, em muito, o valor considerado diminuto – 102,00€ equivalente a uma unidade de conta [artigo 202.º, alínea c) do Código Penal] -  o que afasta a classificação de reduzido.

Por outro lado, ao contrário do afirmado no ponto de facto n.º 15, o arguido nem sempre terá pago tudo o que era necessário para prosseguir com a actividade, porque de acordo com o facto provado n.º 16, alínea e) – tem uma conta penhorada no âmbito de uma ação executiva, o que supõe necessariamente a existência de um divida por falta de pagamento de um crédito, o que nos conduz a uma contradição (aparente) entre a fundamentação.

Diz-se aparente, porque resulta de designações genéricas - “dificuldades económicas”, “falta de liquidez”, “nos últimos 5 anos o arguido sempre pagou salários, aos fornecedores e a ao que mantivesse a actividade em funcionamento” e “tem uma conta penhorada no âmbito de uma ação executiva” – que abrangem múltiplas situações, podendo ou não ser contraditórias entre si. Tal imprecisão impõe sejam excluídas do elenco dos factos provados. 

É que a compatibilidade das duas matérias em referência só será possível se a divida exequenda não respeitar à actividade do arguido.

Nesta indefinição, nenhum dos considerandos apontados pode ser ponderado como atenuação, e muito menos como atenuação especialmente relevante, na aferição da reduzida ilicitude e/ou culpa que a admoestação implica. 

É certo que a reparação do dano e a inserção social, familiar e profissional do arguido relevam circunstâncias atenuantes na determinação da medida da pena, mas não é menos certo que, em confronto com o valor da prestação tributária em falta, com o período de tempo que esteve em divida e com a intensidade do dolo, não assumem dignidade bastante para qualificar o crime de abuso de confiança fiscal cometido pelo arguido, de escassa ou reduzida gravidade, cujas finalidades se satisfaçam com a pena de admoestação.

Desta feita e porque as exigências de prevenção geral relativamente a condutas como a descrita nos presentes autos, são elevadíssimas, na sua vertente de garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma, como na dissuasão do arguido à prática de ilícitos fiscais, exige uma pena que se afaste da função quase simbólica cometida à admoestação.

Não se verificam, pois, os pressupostos de aplicação da substituição da pena de multa pela admoestação, procedendo assim o recurso.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os Juízes na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que substitui a pena de multa pela pena de admoestação.

Coimbra, 24 de janeiro de 2024

Relatores: Alcina Costa Ribeiro

1.º Adjunto: Ana Carolina Cardoso

2.º Adjunto: João Novais