Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
404/18.2TXCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS – JUIZ 3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL
Sumário: O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando, consequentemente, excluídos da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado em estabelecimento prisional.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                           


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            A - Relatório:

1. No âmbito do Processo n.º 404/18.2TXCBR-A, do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, Juízo de Execução das Penas de Coimbra – Juiz 3, em 30/4/2020, foi proferido o seguinte Despacho:

W. foi condenado, por decisão proferida em 10/10/2014, no âmbito do processo nº 32/14.1PFVIS, já transitada em julgado, na pena de 9 meses de prisão, substituída por 270 horas a favor da comunidade, pela prática de crimes condução em estado de embriaguez e condução sem habilitação legal.

Por decisão proferida em 30/01/2017, transitada em julgado em 13/03/2017, foi revogada a pena de substituição, determinando-se o cumprimento de 9 meses de prisão.

O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena, estando pendente mandado de detenção.

Do exame do respetivo CRC resulta que o condenado não tem qualquer outra pena de prisão para cumprir.

Em 11 de Abril de 2020, entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de Abril, que no art. 2º estatui que “1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos./ 2 – São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena./3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única./4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos./5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão./6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal. /7 – O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. /8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. /9 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.”

Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.

Com efeito, os crimes por que o arguido foi condenado no processo nº 32/14.1PFVIS, não são daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é de dois anos de prisão, sendo certo que do respetivo CRC não decorre a existência de outras condenações em penas de prisão efetiva.

No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra ainda recluído em estabelecimento prisional, estando pendente mandado de detenção.

Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma – em artigo publicado em e-bok do CEJ, em edição atualizada em 22 de Abril de 2020, disponível na página do CEJ – tal orientação não é constitucionalmente correcta.

Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o principio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá significar do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena suscetível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objeto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.

Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efetivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão de pessoas autores de factos idênticos aos libertados e punidos com penas iguais – ou até inferiores. Além de a solução ser manifestamente indefensável de um ponto de vista material e constitucional, faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão.

Assim sendo, a única leitura admitida pela norma em causa – sobre o ponto de vista constitucional mas também pragmático – é a do perdão ser aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor do examinado instrumento legal.

Dir-se-á, todavia, que as objeções supra referidas serão ultrapassadas desde que a emissão dos mandados e a detenção assim ordenada sejam suspensas, ficando a aguardar a cessação da declaração do estado de emergência.

Dessa forma, de facto, a atual situação – legalmente impeditiva da entrada de condenados nos estabelecimentos prisionais – deixará de existir, permitindo a prisão posterior dos arguidos nessas condições.

Considera-se, no entanto, que tal hipotética atuação não se coaduna com os ditames do estado de direito, bem como desatende as razões que motivaram a existência do perdão constante da Lei 9/2020.

Começando pela última das afirmações efetuadas, deve assinalar-se que o perdão de penas que se considera não se legitimou pela declaração do estado de emergência, mas sim pela condição sanitária que determinou tal declaração. Ou seja, uma eventual cessação do estado de emergência não representará, infelizmente, o afastamento da pandemia e a restauração de uma situação de inexistência da possibilidade de propagação do vírus que a causa.

Assim sendo, a delicada situação de saúde do país e o condicionalismo especifico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adoção de especiais cautelas contrárias a uma qualquer espécie de gestão temporal de mandados de detenção. Com efeito, o estado de saúde pública do país – e particularmente o de espaços públicos como as prisões – manterá a necessidade de se observar prudência nos contactos e cautelas com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.

Por outro lado, a sustação e adiamento da emissão dos mandados de detenção são práticas de passiveis de, também elas, colidirem frontalmente com as implicações do principio da igualdade. Equivalem, até, a uma manobra feita propositadamente para impedir que um eventual condenado com decisão transitada em julgado, cuja pena ainda não tenha começado a respetiva execução, seja tratado de forma diferente de outro, eventualmente condenado até em pena mais grave, com emissão de mandados de detenção mais lesta e, por isso, já recluso.

Ora tal prática não pode, em caso algum, ser admitida.

Finalmente, acrescenta-se, nos termos da L 9/2020 cabe ao TEP a declaração do perdão previsto na lei citada.

Assim, face ao exposto, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº 32/14.1PFVIS, perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infração, acrescerá à agora perdoada.

Por outro lado, determina-se a cessação da contumácia anteriormente declarada.

Cumpra-se o disposto no art. 337º, 6, in fine do CPPenal.

Face à decisão proferida dão-se sem efeito os mandados anteriormente emitidos.

Notifique e comunique, designadamente aos OPC competentes, solicitando a devolução dos mandados emitidos.

Comunique ao registo criminal.


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2. Inconformado com tal despacho, o Ministério Público, em 27/5/2020, veio interpor recurso, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

“1ª - O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;

2ª - O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março de 6 de abril, suspendeu todos os prazos para a prática de atos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;

3ª - Pelo que, enquanto durar a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2edadoençaCOVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;

4ª - Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;

5ª - Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;

6ª – Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido W. no âmbito do processo nº 32/14.1PFVIS, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n. º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, n.º 1, desse mesmo diploma legal.


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3. O recurso, em 29/5/2020, foi admitido.

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4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 29/9/2020, emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento. 

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5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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6. Colhidos os vistos legais, realizou-se a legal conferência.

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B - Cumpre apreciar e decidir:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), uma questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal:

- Saber se o condenado W. deve beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.


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  Como princípio geral de direito com relevo para o que agora ocupa a nossa atenção, tem sido entendido, pela doutrina e pela jurisprudência, que as medidas de graça, como providências de exceção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.

Por isso mesmo, são excecionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.º, do Código Civil), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa. 

Neste sentido, por considerarmos pertinente, citamos, de seguida, parte do Acórdão de Fixação de Jurisprudência, datado de 25/10/2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt:

“(…) Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os atos de graça são atos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se refletiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objetividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.

É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de atos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).

Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contra face do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).

Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «exceção», revestindo-se de «excecionais» todas as normas que o enformam.

É pela natureza excecional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de exceção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas suscetíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).

Sendo, assim, insuscetíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.

Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185. (…)” – negrito e sublinhado nossos.


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A questão da aplicabilidade do perdão a que se refere a Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, é controversa, como resulta dos presentes autos.

Há que salientar que, na interpretação da norma jurídica, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

E na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, do Código Civil).

Ora, a lei a que nos reportamos neste momento refere-se a “reclusos”, cujo significado é “pessoa que está privada da liberdade, que cumpre pena de prisão em estabelecimento prisional”, conforme consta do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, II Volume, edição de 2001, página 3118.

Se o legislador pretendesse que tal medida de graça fosse aplicada a pessoas ainda em liberdade, teria consignado no respetivo diploma legal que este respeitaria a “reclusos e condenados que pudessem vir a ingressar em estabelecimento prisional”, desde que verificadas certas circunstâncias, além de que não teria atribuído competência exclusiva para a sua aplicação aos Tribunais de Execução de Penas.

  Logo, salvo o devido respeito, o perdão ora em causa não pode ser aplicado a um condenado que esteja, ainda, em liberdade.

Concede-se que o legislador pudesse ter pensado em tal possibilidade.

Porém, se o fez, não o deixou expresso em lei.

Tem sido este, aliás, o entendimento da Relação de Coimbra – ver, neste sentido, os recentes Acórdãos de 9/9/2020, Processo n.º 178/20.7TXCBR.B.C1, 30/9/2020, Processo 47/20.0TXCBR-B.C1, 7/10/2020, Processo n.º 719/16.4TXPRT-F.C1, 14/10/2020, Processo n.º 175/20.2TXCBR-B. C1, todos in www.dgsi.pt.

Pela sua pertinência para o caso presente, citamos um excerto do acórdão referido em segundo lugar, relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Maria José Nogueira, ora Adjunta:

“Como justificar a aplicação do perdão ao arguido/condenado, cuja entrada no estabelecimento prisional poderá nunca vir a ocorrer? Que benefício para o propósito subjacente à adoção do regime de exceção decorre da aplicação, ao mesmo, do perdão? Indo mais além: mantendo-se o despacho em crise, admitindo agora, para efeito da aplicação da Lei n.º 9/2020, que a condição de recluso possa ocorrer até à cessação de vigência do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (artigo 10.º), como explicar, com respeito pelos elementos teleológico e histórico, vindo o condenado a ser detido ou a apresentar-se – só a partir de então passando à reclusão - após cessada a vigência do regime excecional, o perdão já anteriormente concedido?”


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C. Decisão:

Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que concedeu o perdão previsto na Lei n.º 9/2020 ao condenado W..

Sem custas.


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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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Coimbra, 28 de Outubro 2020

José Eduardo Martins - relator

Maria José Nogueira - adjunta