Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
186/14.7GCLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: LEITURA DO AUTO DE NOTÍCIA
ADITAMENTO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DAS PENAS
PENA UNITÁRIA
CONCURSO DE CRIMES
PENA ACESSÓRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL DECORRENTE DA PRÁTICA DE CRIME
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL DA LOUSÖ J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 7.º, 82.º, 140.º, 356.º, 357.º E 379.º DO CPP; ARTS. 40.º, 69.º, 70.º, 71.º, 77.º E 129.º DO CP.
Sumário: I - Embora do aditamento [a auto de notícia] conste o relato da testemunha de uma conversa que teve com o recorrente, não integra o conceito de declarações de arguido, no sentido em que estas, enquanto meio de prova, se encontram reguladas nos arts. 140º e ss. do mesmo código.

II - A actividade investigatória de recolha informal de indícios tem cobertura legal, não estando as declarações que constam do aditamento como tendo sido prestadas pelo recorrente, sujeitas às restrições estabelecidas nos arts. 356.º, n.º 1, e 357º, n.º 1, ambos do CPP, pelo que, a sua leitura em audiência de julgamento não determinou a verificação de nulidade.

III - A moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena.

III - A medida concreta da pena irá resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos requerida por cada caso – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] –, temperada, quando possível, pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização], sempre, com respeito pelo limite inultrapassável da medida da culpa.

V - As circunstâncias atenuantes e previstas no n.º 2 do art. 71.º do CP terão que ser, naturalmente, objectivadas em factos e estes, para poderem, neste circunspecto, ser relevados, terão que constar dos factos provados.

VI - os crimes em concurso são apenas os que integram o objecto dos autos, os quais têm a particularidade de resultarem de uma mesma acção negligente pelo que, o circunstancialismo a ponderar será precisamente o mesmo que foi ponderado na determinação da medida das penas parcelares, acrescendo agora, apenas, a personalidade do agente.

VII - As penas acessórias têm a natureza de penas criminais. Por tal razão, não prevendo o CP regras específicas para a determinação da sua medida, são-lhes aplicáveis os critérios gerais de determinação da medida das penas, previstos naquele código.

VIII - Assim, tendo o recorrente praticado dois crimes de homicídio por negligência, a sua responsabilização penal impunha a determinação de duas concretas penas principais e, depois, a fixação de uma pena principal única, o que foi feito, e impunha também a determinação de duas concretas penas acessórias e, depois, a fixação de uma pena acessória única, o que não foi feito.

IX - Ao não determinar a pena acessória a aplicar a cada crime de homicídio negligente, o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, pelo que, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, c) do CPP, padece a sentença de nulidade por omissão de pronúncia.

X - A prática de um crime pode dar origem, para além de responsabilidade penal, a responsabilidade civil e, portanto, a uma indemnização de perdas e danos de natureza exclusivamente civil.

XI - Para o ressarcimento de danos pelo lesado, o CPP consagra o sistema de adesão obrigatória, no seu art. 71º; contudo, o princípio admite excepções.

XII - O princípio da suficiência, estabelecendo o n.º 1 do art. 7.º do CPP, que comporta excepções conforme previsto no n.º 2, significa que o tribunal criminal assume competência própria para se pronunciar sobre todas as questões, independentemente da sua natureza, penal ou outra, que interessem à decisão da causa.

XIII - Se o tribunal a quo, para decidir quem era responsável pelo pagamento da indemnização peticionada, tinha que, previamente, fixar a legitimidade passiva dos demandados, se para tanto, tinha que decidir se existia ou não contrato de seguro válido e eficaz na data do acidente, o que dependia da simulação ou não da venda do veículo, temos por certo que, ao conhecer de todas estes aspectos, se limitou a emitir pronúncia sobre questões que devia apreciar, pelo que não enferma a sentença, nesta parte, de excesso de pronúncia e, portanto, da nulidade prevista na 2.ª parte da alínea c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Lousã – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nºs 1 e 2 do C. Penal, e de uma contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 1º, f) 146º, o), do C. da Estrada.

            O Centro Hospitalar e Universitário de B..., EPE, deduziu pedido de indemnização contra a Companhia de Seguros C... , SA, contra o Fundo de Garantia Automóvel, contra o arguido e contra D... , com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 22.330,73, acrescida de juros de mora desde a ‘citação’ e até integral pagamento, pela assistência hospitalar prestada a E... .

 

            O assistente F... e o demandante civil G.... deduziram pedido de indemnização contra a Companhia de Seguros C... , SA e, subsidiariamente, contra o Fundo de Garantia Automóvel, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 177.250 por danos patrimoniais e não patrimoniais.

            Por despacho proferido na audiência de julgamento de 1 de Fevereiro de 2016 [acta de fls. 524 a 531] foi indeferida a nulidade do acto de leitura do aditamento ao NUIPC de fls. 10, invocada pelo arguido.



Por despacho proferido na audiência de julgamento de 8 de Março de 2016 [acta de fls. 640 a 643] foi comunicada uma alteração da qualificação jurídica, que passou, também, a ser feita pelo art. 69º, nº 1, a) do C. Penal, sem que tenha havido oposição.

Por despacho proferido na audiência de julgamento de 11 de Março de 2016 [acta de fls. 735 a 738] foi comunicada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo sido oposto ou requerido.

            Por sentença de 11 de Março de 2016, depositada a 14 do mesmo mês [fls. 739] e corrigida por despacho de 16 de Junho de 2016 [fls. 880] foi o arguido condenado, pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 137º, nº 1 e 69º, nº 1, a) do C. Penal, na pena de vinte e oito meses de prisão por cada um e, em cúmulo, na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de vinte e quatro meses, e pela prática da imputada contra-ordenação muito grave na coima de € 100.

            Mais foi decidido absolver da instância civil, por ilegitimidade passiva, o Fundo de Garantia Automóvel, o arguido e o demandado D... e condenar a demandada Companhia de Seguros C... , SA. no pagamento ao demandante Centro Hospitalar e Universitário de B... , EPE, da quantia de € 22.330,73, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a ‘citação’ e até integral pagamento, e no pagamento ao assistente e ao demandante G... da quantia de € 177.250, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a notificação do pedido e até integral pagamento.


*

            Inconformado com o despacho de 1 de Fevereiro de 2016, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1. Entendeu a Mmª Juíza a quo, aquando do interrogatório da testemunha J.... , que prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 01.02.2016, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, cujo início ocorreu pelas 15:03:36 horas e termo pelas 15:45:34 horas, proceder à leitura "Aditamento ao NUIPC 186/14.7GCLSA", junto a fls. 10 dos presentes autos, elaborado pelo Órgão de Polícia Criminal, em 25.08.2014, leitura que ocorreu do minuto 19 ao minuto 24 da gravação supra citada.

2. Acontece que, constando de tal documento declarações alegadamente prestadas pelo arguido, ora recorrente, antes do mesmo assumir tal qualidade, foi arguida na sessão de julgamento de 01.02.2016, a nulidade da leitura de tais declarações, gravada através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, cujo início ocorreu pelas 16:47:58 horas e termo às 16:49: 00 horas.

3. Porém, por despacho proferido na mesma audiência de discussão de julgamento, que teve lugar em 01.02.2016 e que se encontra gravada através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, cujo início ocorreu pelas 17:21:45 horas e termo às 17:26:05 horas, foi indeferido o requerido.

4. Salvo o devido respeito, sem qualquer razão ou fundamento material e jurídico, como tentaremos demonstrar.

5. No art. 125° do CPP, o legislador português estabeleceu o princípio da legalidade da prova.

6. No caso em análise nos presentes autos estamos perante um “Aditamento” a uma Participação de Acidente de Acidente de Viação, junto a fls. 10 dos autos, efetuada por Órgão de Polícia Criminal e de onde efetivamente constam declarações alegadamente proferidas pelo arguido nos presentes autos, ainda que em momento anterior à assunção de tal qualidade processual.

7. Começará por se referir que, não consta nem da ata, nem da gravação da audiência de discussão e julgamento, que a Mma Juíza a quo, antes da decisão de proceder à leitura do “Aditamento” aqui em causa, tenha apresentado justificação legal para a permissão de tal leitura.

8. Acresce que, não foi igualmente conferido aos sujeitos processuais, em especial ao arguido, ora recorrente, a possibilidade de exercício do direito ao contraditório, quanto a tal questão, direito esse constitucionalmente consagrado e de especial relevância no âmbito das garantias constitucionais.

9. Assim, entendemos que, de facto, atento o disposto nos artºs 2°, 20° e 32° da Constituição da República Portuguesa e o disposto nos art.ºs 125.°, 327º e 356° do CPP, o ato de leitura do "Aditamento" aqui em causa, na parte referente às declarações do arguido, padece, efetivamente, de nulidade, uma vez que, por um lado não foi dada a possibilidade ao ora arguido de exercer o seu direito ao contraditório, e, por outro lado, visto não ser admissível a sua leitura por do mesmo constarem declarações do arguido nos presentes autos, o que se requer seja declarado, com as legais consequências.

Sem prescindir,

10. nos termos do disposto na alínea d), do nº 1. do art. 61° e do art. 343º ambos do CPP o arguido tem o direito de se remeter ao silêncio, direito que o arguido usou, até ao momento, na audiência de discussão e julgamento.

11. Tal direito ao silêncio decorre do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente consagrado no nº 2 do art. 32.° da Constituição da República Portuguesa.

12. O direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado, a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória.

13. Sendo certo que, da conjugação do direito ao silêncio com o princípio da presunção de inocência resulta, ainda, a proibição da leitura, na audiência de discussão e julgamento, das declarações que o arguido tenha prestado, durante a fase de inquérito, perante órgão de polícia criminal, bem como a proibição de testemunho do órgão de polícia criminal acerca dos depoimentos ou das conversas informais que tenha mantido com o arguido, no decurso do inquérito, caso o arguido faça uso do direito ao silêncio durante a audiência de discussão e julgamento, como ocorre nos presentes autos.

14. E é precisamente por isso que só as afirmações por ele produzidas no integral respeito de decisões de sua vontade podem ser utilizadas como meio de prova.

15. Na verdade, salvo o devido respeito por opinião diferente, entendemos que, se a conversa do arguido, com os órgãos de polícia criminal, ocorre antes de ter sido constituído arguido, por maioria de razão, não poderão tais conversas ser usadas como meio de prova.

16. Admitir-se o contrário é, em nosso entender, subverter por completo todo o sistema penal, permitindo que “entre pela janela o que não se permite que entre pela porta”!

17. Acresce que, tais declarações alegadamente prestadas pelo ora Arguido ao Órgão de Polícia Criminal e que constam do "Aditamento" de fls. 10 não foram obtidas no âmbito de qualquer atividade investigatória ou cautelar levada a cabo pelo Órgão de Polícia Criminal, como buscas ou apreensões.

18. Por outro lado, nessa ocasião, o Órgão de Polícia Criminal tinha já conhecimento de elementos que lhe permitiam saber estar perante o principal suspeito do cometimento dos alegados crimes em discussão dos presentes autos.

19. E por isso, tinha a obrigação legal de constituir o mesmo como arguido nesse momento, para que o mesmo pudesse socorrer-se do seu estatuto processual. Porém, não o fez (!) limitando-se a verter as suas alegadas declarações no "Aditamento" de fls. 10!

            20. Cumpre ainda referir que, apesar das alegadas declarações do Arguido constarem do "Aditamento" de fls. 10, não foram respeitadas pelo Órgão de Polícia Criminal as regras de recolha de prova, uma vez que o ora Arguido não teve qualquer possibilidade de controlar se as declarações que alegadamente prestou correspondem, de facto, às que constam vertidas no "Aditamento" aqui em causa, dado que o mesmo não teve conhecimento do seu teor, nem o assinou.

21. Sempre poderia dizer-se que, não correspondendo à verdade as declarações constantes do "Aditamento" aqui em causa, poderia o Arguido, em sede de Audiência e Discussão de Julgamento, contraditá-las

22. Porém, mais uma vez, estaríamos perante a mais atroz subversão do estatuto processual do arguido e perante uma clara violação do seu direito ao silêncio, uma vez que tal corresponderia a obrigar o arguido a falar contra a sua própria vontade!!

23. Pelo que, interpretar-se a norma do art. 356º do CPP, conjugada com a norma do art. 357º do mesmo diploma legal, como permitindo admitir-se como meio de prova as declarações prestadas perante Órgão de Polícia Criminal, antes da sua constituição de arguido, vertidas em auto elaborado por este e no qual o arguido não teve qualquer intervenção ou controlo, constituiria uma clara violação do disposto na alínea d) do nº 1 do art. 61º, do art. 125º e do nº 1 do art. 356º todos do CPP e no nº 2 do art. 32º da CRP (cfr. a título exemplificativo Ac. TRC de 29-05-2013, Ac. TRL de 03.05.2011, Ac. TRP de 7/03/2007 e Ac. STJ de 11/07/01).

24. Acresce ainda que, a interpretação dada pelo Tribunal a quo à conjugação do disposto no art. 356º e 357º do CPP, no sentido de entender ser admissível, em audiência de julgamento, a leitura de auto donde constam declarações de arguido, antes de assumir tal qualidade no processo e perante Órgão de Autoridade Policial, quando o arguido usa em tal audiência do direito ao silêncio, é inconstitucional, por violação do princípio do estado de direito, consagrado no art. 2º e no nº 3 do art.º 18°, ambos da Constituição da República Portuguesa, do princípio da legalidade, estabelecido no art. 29º da Constituição da República Portuguesa, e por violação do princípio da presunção de inocência previsto no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

25. Face a tudo o supra exposto, deverá ser revogado o despacho aqui em crise, determinando-se a nulidade da leitura do "Aditamento ao NUIPC 186/14.7GCLSA", elaborado em 25.08.2014, junto a fls. 10 dos autos, na parte que se refere às alegadas declarações do arguido, por violação do disposto nos art°s 2°, 61°, 125°, 343.º, 356° e 357° do CPP e dos art. 2°, 18°, nº 3, 29° e 32° da CRP, nos termos e com as legais consequências.

Assim decidindo, farão V.as Exas, Venerandos Desembargadores, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, JUSTIÇA!


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            Igualmente inconformado com a sentença proferida, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1. Entende o arguido, ora recorrente, que, face à factualidade dada como provada em juízo e ao direito aplicável, as penas parcelares, a pena única de prisão e a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados aplicadas ao Arguido revelam-se, salvo o devido respeito, pouco criteriosas e desequilibradamente doseadas.

a) Da Medida das Penas Parcelares e da Pena Única de Prisão:

2. O facto de o arguido alegadamente não ter feito chegar qualquer sentimento de pesar e lamentação, consternação, pesar ou outro aos dois filhos do casal falecido, bem como a conclusão que a penosidade que o Arguido vem sentindo se deve essencialmente à repercussão que a situação dos autos tem da sua vida quotidiana, não resulta da matéria de facto dada como provada nos presentes autos, nem corresponde minimamente à verdade!

3. Aliás, não tendo sido tal matéria levada à Acusação, nem tendo sido alegada nos Pedidos de Indemnização Civis, nunca foi dada a oportunidade ao Arguido de se defender de tal "imputação".

4. Acresce que, da matéria de facto levada ao ponto 123 dos factos provados, que supra se transcreveu, resulta exatamente a conclusão contrária.

5. Pelo que, não poderá o Tribunal a quo tomar em consideração tal facto na ponderação da medida da pena a aplicar ao Arguido.

6. Como se refere na decisão em crise, no que respeita à culpa, a mesma molda-se pela negligência inconsciente. O que significa um menor grau de culpa em relação à simples negligência.

7. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, não tendo averbado no seu RIC quaisquer infrações rodoviárias.

8. O arguido é normalmente um condutor prudente, tendo o acidente dos autos sido o seu primeiro acidente.

9. O arguido encontra-se bem inserido no meio social em que reside, não constando informações negativas a seu respeito, sendo certo que os factos que deram origem aos presentes autos o abalaram e tiveram enorme impacto na sua vida, uma vez que as vítimas do acidente eram seus amigos, o que tornou a situação ainda mais penosa, lamentando as consequências do mesmo.

10. Sendo, assim, as exigências de prevenção especial extremamente baixas.

11. Pelo que, estamos em crer que se mostra mais ajustado, adequado e satisfazendo de forma adequada as finalidade da pena, ser o arguido condenado a pena de prisão nunca superior a 18 meses, por cada um dos crimes de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137.º do Código Penal.

12. Devendo, face a tal, ser encontrada uma pena única que nunca poderá ser superior a 24 meses de prisão, suspensa na sua execução, tal como foi decidido pelo Tribunal a quo, por período igual ao da pena única de prisão, nos termos do disposto no art. 50º do Código Penal. (veja-se neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.09.2011, proc. 489/07.7GTLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt).

b) Da Medida da Pena Acessória:

13. Como resulta dos autos, e como supra já se referiu, os crimes pelos quais o arguido foi condenado são crimes negligentes, sendo certo que a culpa do arguido se molda pela negligência inconsciente, o que significa um menor grau de culpa em relação à simples negligência.

14. De acordo com a matéria de facto dada como provada nos presentes autos, presentemente o arguido dá apoio dois dias por semana à empresa “ y (...) ” e trabalha com stands seus conhecidos, ajudando no transporte de carros e/ou vendas e ganha comissões do que vende (cfr. ponto 119 do factos provados).

15. Pelo que, necessita de se deslocar de automóvel, diariamente. Sendo, obviamente, impensável, pela sua onerosidade e tendo em conta os rendimentos do Arguido, a contratação de um motorista.

16. Por outro lado, tendo em conta a idade do Arguido, as sua habilitações literárias, a sua experiência de trabalho – sempre dedicada ao ramo automóvel – e o atual mercado de trabalho, em especial na Lousã, onde o Arguido reside, é de todo impensável que o Arguido encontre outro trabalho fora do ramo automóvel e/ou que não lhe exija a condução diária de veículos automóveis.

17. Acresce que, como resulta do ponto 121 dos factos provados o Arguido tem três filhos, a quem tem de prestar alimentos no montante global de 3.600,00 € anuais (1.200,00 €/ano a cada um dos três filhos).

18. Ora, a inibição de conduzir veículos motorizados, por um período tão longo determinará que o arguido não possa continuar a prover ao seu sustento e da sua família, uma vez que deixará de poder exercer a sua atividade em pleno durante dois anos, o que, infelizmente, ditará a impossibilidade de continuar a proceder ao pagamento da pensão de alimentos dos seus filhos menores …

19. Tal facto, não deixará de determinar a violação dos princípios de dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha/acesso à profissão, bem como do dever de contribuir para o sustento da sua família, nos termos do disposto nos art.s 2°, 26º, 36º, nº 5, 47º e 67°, nº 1 da C.R.P.

20. Pelo que, a aplicação de tal medida nunca poderá deixar de ser considerada inadequada, por excessiva, e, em consequência, reduzida, pelo menos, a 12 meses.

21. Face a tudo o supra exposto, ao ter decidido como decidiu, violou a sentença recorrida a Lei, designadamente, o disposto nos art.ºs 40°, 70° e 71° do Código Penal e o disposto nos art.s 2°, 26°, 36°, nº 5, 47° e 67°, nº 1 da C.R.P. devendo, por isso, ser revogada, com as legais consequências,

assim se fazendo, Venerandos Desembargadores, sempre com mui suprimento de V.s Exas., JUSTIÇA!


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            Também inconformada com a sentença proferida, recorreu a demandada civil Companhia de Seguros C... , SA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1. Está em causa neste recurso, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo FJ (...) que o arguido alienou a favor de seu Irmão em 29/10/2013, averbamento na Conservatória do Registo Automóvel. Apresentação 07024 de 29/10/2013, Doc. 5 – fls. 2 junto pelos AA., que não estava validamente segurado na Recorrente, ou, se por eventual simulação entre eles, daí teria resultado que esta continuasse a segurá-lo.

2. A alienação do veículo, em 29/10/2013, determina a cessação da produção de efeitos do contrato de seguro, às 24 horas desse dia, independentemente de ser comunicada à seguradora, artºs 21º e 22º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto de 2007;

3. Existindo um seguro válido e eficaz, se o veículo for vendido, doado ou, por qualquer outra forma, alienado, caduca no prazo referido, recaindo sobre o adquirente (em qualquer das modalidades do n.º 1 do art.º 6º) Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto de 2007, a obrigação de celebrar novo contrato, por ter cessado a responsabilidade da primitiva seguradora, constante da primeira apólice;

4. A caducidade constitui facto impeditivo, dissolutivo ou resolutivo do direito ou negócio, facto jurídico stricto sensu que ocorre sem intervenção da vontade;

5. Irreleva, em absoluto, qualquer vício da vontade das partes, neste caso tenha ou não havido simulação na alienação do veículo, dado que a caducidade opera ipso jure, às 24 horas da alienação do veículo e sem necessidade qualquer manifestação vontade, seja real ou divergente para enganar terceiros;

6. O seguro dos autos, Apólice 2 (...) cessou os efeitos, por caducidade, às 24 horas de 29-10-2013, data anterior ao sinistro dos autos ocorrido em 24/8/2014, nos termos dos artºs 21º e 22º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto de 2007, e cláusula 19º das Condições Gerais Uniformes do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel;

7. Assim, não podia a sentença recorrida, depois de caducado o contrato de seguro dos autos, declarando a alienação nula, por simulação, para, de seguida, o fazer “reviver”, pois a tal obstam os artºs 240º, 243º do Cód. Civil e os artºs 21º e 22º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto de 2007, e cláusula 19º das Condições Gerais Uniformes do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, violados frontalmente;

8. A caducidade resolve ou dissolve o negócio jurídico ou extingue o direito; todos os efeitos desaparecem ex-tunc ou ex-nunc, o que a sentença recorrida não acatou;

9. As disposições dos arts. 21º e 22º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto de 2007 são de interesse e ordem pública, pois tratam da defesa dos interesses dos condutores e proprietários dos veículos, sua segurança, bem como da efectiva actuação dos seguros de responsabilidade civil automóvel;

10. Não podem, pois, as mesmas disposições ser postergadas por eventual pacto simulatório entre o arguido que aliena o veículo segurado a favor do seu irmão, com o intuito de o esconder da acção de credores;

11. Mesmo que existisse simulação, a Mma. Juiz a quo, ao condenar a Recorrente, absolutamente alheia ao pacto simulatório, atingiu grave e injustamente os seus direitos, em violação frontal do artº 243º nº 1 do Cód. Civil. Na verdade,

12. O art. 243º, nº 1, do CC estabelece um regime especial em relação ao regime geral das nulidades, mas apenas nas relações entre terceiros de boa fé e os simuladores, impedindo o simulador de arguir a simulação contra terceiro de boa fé.

13. A acção para destinada a declarar a nulidade por simulação deve conter os requisitos do artºs 240º e segtes., e não ter sido referida “a latere”, por Demandantes e Fundo de Garantia, disposições legais violadas na sentença recorrida;

14. O conhecimento e apreciação de eventual simulação entre o Arguido e seu Irmão na venda do veículo, exorbita a competência do Tribunal Criminal e viola o principio da adesão ao processo crime e o artº 72º nº 1 do C.P.P., já que só o pedido de indemnização civil «fundado na prática de um crime» pode ser «deduzido no processo penal respectivo»;

15. A responsabilidade civil do arguido, a apreciar em processo penal, se não é sempre consequência de uma condenação por infracção penal, tem no entanto por suporte a imputação de um crime, com verificação dos seus elementos constitutivos e de uma subsunção à fattispecie legal, não se destinando a conhecer da responsabilidade contratual ou de vícios de vontade ou simulação na venda de bens do arguido (Vide neste sentido o Assento nº 7/99 de 17 de Junho de 1999, aqui violado);

16. Os interessados, em acção própria, deviam ter alegado e provado os factos concretos da divergência entre o declarado e o real, quem procuravam enganar e porque razão e não ser a Julgadora a fazer o apanhado de alguns elementos, por exemplo avales, que se desconhecem, dívidas a quem e os valores que também se desconhecem, etc;

17. A pronúncia sobre questão de que o tribunal não podia conhecer constitui nulidade da sentença, nos termos do disposto no art. 379º nº 1 al. c) aplicável por força do disposto no art. 425º nº 4 do Código de Processo Penal.       

18. A decisão em causa levaria a resultado iníquo e imoral, o de presentear os ditos simuladores com as vantagens da mesma, libertando-os de ter de reembolsar o Fundo de Garantia Automóvel.

19. De resto, devem os lesados ser ressarcidos, salvo melhor opinião, através do Demandado Fundo de Garantia Automóvel, existente para suprir a falta do seguro obrigatório, tal como aqui acontece e assim não fazendo, foi violado o disposto no artº 4º Dec. Lei 291/2007 de 21 de Agosto de 2007;

Nestes termos e nos doutamente supridos por V. Ex.as deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, absolvendo-se a Recorrente de todos pedidos formulados pelos Demandantes e ora Recorridos, para se fazer JUSTIÇA!


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            O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu aos recursos do arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. A leitura de um meio de prova com um auto de aditamento, cujo teor versa sobre diligências probatórias encetadas em momento imediato à prática dos factos, ainda que instrumental e irrelevante para a descoberta da verdade material, é perfeitamente válida, nos termos do disposto no art. 125º e 127º, do C.P.P.

2. Sendo processualmente válida, carecia o Tribunal de conferir o direito ao contraditório dos restantes intervenientes processuais, porquanto não se trata de matéria probatória subsumível às hipóteses estatuídas nos arts. 356º e 357º, do C.P.P.

3. No caso em apreço, o órgão de polícia criminal limitou-se a verter em auto, em momento prévio sequer à reconstituição histórica da dinâmica do acidente e à aferição do verdadeiro envolvimento de A... nessa mesma dinâmica, as diligências encetadas com vista à realização de teste de alcoolemia, como ditam as regras cautelares de polícia.

4. Pelo que não versa o aludido auto, sobre eventuais conversas informais tidas pelo suspeito com órgãos de polícia criminal.

5. A este respeito pronunciou-se o STJ, em acórdão de 15/2/2007, esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

6. No caso em apreço, conforme referido, o militar da GNR limitou-se a realizar diligências cautelares de prova, mormente assegurando a realização de exame para detecção de álcool no sangue a um dos intervenientes em acidente de viação, antes sequer de perceber a dinâmica concreta do acidente, tanto mais que A... apenas foi constituído arguido cerca de 7 meses depois da colisão.

7. Também o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 4/6/2013, esclarece que, a questão não se centra em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido, já que são sempre proibidas após a constituição como arguido. E nunca são antes da constituição como arguido, excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição.

8. Pelo que em rigor, não se trata de qualquer preclusão premeditada de uma formalidade legal para permitir a valoração de declarações prestadas pelo arguido, mas antes a realização oportuna de diligências probatórias de cariz cautelar, vertidas em auto, e nessa medida, perfeitamente válidas e valoráveis.

9. Igualmente a este respeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18/6/2014, já assim não é quando os agentes da autoridade obtêm conhecimento dos factos por modo diferente das declarações do arguido reduzidas a auto; Assim, uma testemunha – agente da PSP – que em audiência de julgamento depõe relatando o que lhe foi transmitido pelo “futuro” arguido, não profere um depoimento indireto, antes sendo algo que aquele ouviu diretamente da sua boca, de viva voz; E um tal depoimento constitui prova que é legalmente admissível, sendo valorado dentro da livre apreciação pelo Tribunal, nos termos do art. 127 CPP.

10. Com a sua conduta, a qual, reitera-se, foi praticada de forma negligente, o arguido tirou a vida a duas pessoas que gozavam ainda de uma perspectiva futura, pelo que a gravidade e a consequência desta conduta não poderia ser punida de uma forma mais benevolente.

11. Compulsados os autos e a factualidade apurada, a fronteira entre a suspensão da execução da pena e o cumprimento de prisão efectiva é ténue e terá sido favorável ao arguido o facto de ser primário e se encontrar social e profissionalmente inserido.

12. Não obstante, sempre se dirá que não é uma decisão fácil e consensual, sobretudo se atentarmos aos critérios de prevenção geral que subjazem à aplicação de uma pena desta natureza, concluindo-se que a pena de 4 anos suspensa na sua execução foi ajustada, e em certa medida benevolente.

13. E o mesmo se diga relativamente à pena acessória, uma vez que dois anos de inibição de condução de automóveis pela morte de duas pessoas ocorrida precisamente na prática dessa condução, é efectivamente uma pena ajustada e adequada, sendo por isso isenta dos vícios alegados pelo arguido.

            Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso ora interposto, mantendo-se a decisão nos precisos termos em que foi formulada, fazendo, desta forma, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a costumada JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso do arguido, interposto da sentença, o assistente, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1 – Não se duvida que o arguido esteja reintegrado socialmente. As circunstâncias do acidente, a sua violência e o facto de ter brutalmente causado a morte a duas pessoas que conhecia, sendo uma delas das suas relações pessoais, certamente já fizeram com que o arguido, pelo menos, ora, pense duas vezes antes de conduzir irreflectidamente.

2 – No entanto, a função principal da pena é a protecção dos bens jurídicos e não a reintegração social do agente. Vide, por todos (ac. STJ de 09 de dezembro de 1998: proc. 1019/98-3.ª, SASTJ, n.º 26, 76) e (ac. STJ de 30 de novembro de 2000, proc. n.º 2541/2000-5.ª SASTJ, nº 45, 89).

3 – Se ao nível das exigências de prevenção especial, como referimos, aparentemente não existem problemas de ressocialização do arguido, neste e em qualquer acidente de viação com duas vítimas mortais, in casu, marido e mulher, é óbvio que os bens jurídicos a proteger são a VIDA e a prevenção dos acidentes rodoviários, que são um flagelo a combater a nível nacional.

4 – Como é sabido, as expectativas dos cidadãos em relação à punição das infrações rodoviárias cometidas com fortes evidências de culpa são sempre elevadas, tanto mais se existirem vítimas mortais, pois o cidadão comum espera que a Justiça não dê cobertura e deixe na quase impunidade comportamentos que, por pura incúria do agente põem em causa a vida e o património, e cause no futuro das vítimas e seus familiares, e mesmo ao Estado, consequências ao nível físico, psíquico e patrimonial.

5 – O cidadão comum quer a aplicação de penas dissuasoras, para se deixar de assistir ao desrespeito pela vida humana, por inobservância das normas estradais.

6 – Só com essas penas dissuasoras se cumprirá o sentimento de Justiça da comunidade e se dará também cumprimento à prevenção geral dos crimes rodoviários.

7 – Partilhamos inteiramente da opinião do Tribunal a quo e consideramos que terá de ser a Justiça a conseguir aquilo que o civismo, as escolas de condução e o estado não conseguem através das alterações ao Código da Estrada e às restrições ao modo de condução nas estradas portuguesas.

8 – Não é por existir um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que para a morte de duas pessoas impôs uma pena menor, que, no caso concreto, a medida da pena tenha de ser igual! Aliás, sequer, as circunstâncias e o modo de produção do acidente são idênticas. A única "coincidência" é ter dos acidentes advindo duas mortes!

9 – "A comparação de penas aplicadas a arguidos pela prática dos mesmos crimes não constitui princípio legal a atender para a sua fixação. Será assim a culpa com que cada um deles agiu que determinará a medida concreta da pena a aplicar." (ac. STJ de 06 de julho de 2000, proc. n.º 177/2000-5.ª; SASTJ, n.º 43, 61).

10 – Ao que pensamos saber, cada juiz é livre na sua decisão da escolha da pena a aplicar no caso concreto, desde que cumpra os ditames constantes dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do C.P., sempre com um limite na culpa do arguido.

11 – "O juiz penal dispõe de uma larga margem de poder discricionário juridicamente vinculada, sendo o seu uso susceptível de apreciação em via de recurso pelos tribunais superiores, incluindo o STJ a cujos poderes e censura apenas escapam certos componentes individuais do julgador, não inteiramente controláveis de um modo racional" (ac. STJ de 24 de fevereiro de 1988: BMJ, 374, 229).

12 – “Respeitados os critérios legais de fixação concreta da pena, há uma margem de liberdade do juiz insindicável ou dificilmente sindicável em recurso para o STJ." (ac. STJ de 04 de março de 2004, proc. n.º 456/04-5.ª).

13 – Elencamos outros factores, que, obviamente, o arguido fez questão de escamotear no seu recurso, que, nos termos e para os efeitos do artigo 71.º do C.P., levaram a que o Tribunal a quo, acertadamente, punisse da forma como puniu o arguido.

14 – No dia 24/8/2014, cerca das 08 horas e 30 minutos, um domingo, vindo de casa de uns amigos na Figueira da Foz, onde estavam mais de uma dúzia de pessoas, indiciando uma festa, onde esteve desde a tarde do dia anterior, adormeceu ao volante da viatura que conduzia, o automóvel ligeiro de passageiros, marca Ford, modelo Mondeo, matrícula FJ (...) , c na estrada nacional 342, estrada que conhecia bem, sendo a estrada constituída por pavimento betuminoso, em estado de conservação razoável e com boas condições de circulação. Sensivelmente ao quilómetro 53.5, em zona de ligeira curvatura à esquerda, tomando por referência o sentido de Lamas – Miranda do Corvo, o arguido transpôs a linha longitudinal contínua do eixo da via e invadiu a via destinada ao trânsito em sentido contrário.

15 – Como consequência da colisão frontal, a vítima H... teve morte imediata, tendo a vítima E... sido transportada em estado muito grave aos Hospitais da Universidade de B... , onde veio a falecer no dia 27/8/2014.

16 – O arguido, num domingo de agosto, adormeceu a conduzir às 08:30 horas da manhã, provindo de uma zona de praia, de uma residência onde esteve desde o dia anterior, onde também estavam cerca de uma dúzia de pessoas. Tudo indicia, efetivamente, que terá dormido muito pouco ou muito mal!!! São as regras da experiência comum que comandam o nosso raciocínio!

17 – Mais, quem, intencionalmente, se recusa, conforme consta dos autos e da motivação da sentença. a ser conduzido aos hospitais, onde obviamente lhe seria realizado o teste de alcoolemia, demonstra que, efectivamente, esteve a beber durante a noite e tinha receio que o teste de álcool tivesse um resultado positivo.

18 – Daí, também a tentativa frustrada do arguido de se ausentar do local do acidente, conforme indicado na motivação da sentença, referindo às testemunhas "deixe-me ir embora que é melhor para todos".

19 – Obviamente, como foi impedido por uma testemunha de se ausentar do local do acidente, esteve sempre a ingerir água, conforme também referido na motivação da sentença, certamente para diluir os efeitos dos seus excessos nocturnos.

20 – Todo o comportamento do arguido nos momentos após o acidente, conjugado com o facto de sabermos que provinha de manhã muito cedo da Figueira da Foz, onde esteve em casa de amigos desde o dia anterior, casa onde se encontravam mais de uma dúzia de pessoas, conforme consta da fundamentação, indiciando se não uma festa, pelo menos um grande convívio que potenciava ao consumo de bebidas alcoólicas num sábado à noite e pela madrugada a dentro. Tal é clamoroso e decorre das regras da experiência comum!

21 – É certo que o arguido ingerira bebidas alcoólicas.

22 – No entanto, como realizou o teste de alcoolemia somente às 10:50 horas nos H.D.C.. o resultado do teste foi negativo.

23 – Se o teste ao álcool tivesse sido feito logo após o acidente, às 08:30 horas da manhã, mesmo no local do acidente pela GNR, certamente o resultado não seria o mesmo!

24 – Efetivamente, ficou por apurar porque razão a GNR não procedeu de imediato ao teste de álcool ao condutor.

25 – Mas sabemos que, quando quiseram levar o arguido numa ambulância para os hospitais, este recusou-se a ir ao hospital e foi para casa do irmão.

26 – O arguido só foi conduzido aos Hospitais da Universidade de B... mais tarde, porque a isso foi obrigado pelas autoridades que, dirigindo-se a casa de seu irmão onde este se refugiou, o informaram que, havendo vítimas mortais era obrigatório ser realizado o despiste do álcool.

27 – Estamos convictos que não se conseguiu provar que o arguido conduzia sob o efeito de álcool, somente porque usou de todos os expedientes possíveis para evitar ou "atrasar" a realização do teste de alcoolemia.

28 – O arguido teve sempre um comportamento leviano e irreflectido, pois, conscientemente, sabendo que dormiu muito pouco, bebeu em excesso numa noite de amigos foi conduzir uma viatura automóvel sem estar em condições físicas para o efeito.

29 –Após o acidente, o arguido continuou a demonstrar o seu carácter e insensibilidade face à perda da VIDA HUMANA, pois a sua atitude foi tentar fugir do local do acidente, pedir garrafas de água para beber, NUNCA SE APROXIMAR DO CARRO DAS VÍTIMAS, sequer para ver se estavam vivas ou mortas! Depois, recusa-se a ser conduzido aos hospitais. Só vai ao hospital fazer o teste de álcool porque a GNR local vai informá-lo que é obrigado a fazê-lo.

30 – A acrescer a este "quadro" de "virtudes", de alguém cuja preocupação é somente consigo próprio e a sua desresponsabilização. NUNCA contactou qualquer familiar do casal que faleceu em consequência do acidente, mormente os filhos da falecido casal, que são dois jovens que o arguido bem conhecia, sequer para lhes prestar as suas condolências, homenagem ou pesar,

31 – Este último facto só surgiu no decorrer do julgamento e o arguido, que se encontrava presente e representado por Advogado, podia, a todo o tempo, requerer a "palavra" ou requerer a apresentação de prova em contrário, ao abrigo do artigo 340.º do C.P.P., o que não fez. Pelo que não pode vir dizer que lhe foi denegado o direito de defesa quanto a este facto. Vide (ac. do Trib. Constitucional n.º 258/2001 de 30 de Maio, proc. n.º 716/00; DR. II série, de 02 de novembro de 2001).

32 – Por outro lado, tal facto é mero facto instrumental, não fazendo parte do tipo de ilícito, servindo somente como mais um dos tantos elementos ao dispor do julgador para determinação da medida concreta da pena, das circunstâncias posteriores ao acidente, da personalidade do arguido, para aquilatar o como este encara o facto de ter ROUBADO à vida duas pessoas suas conhecidas, sendo uma delas das suas relações.

33 – Como facto integrante da conduta do arguido em momento posterior ao crime, integra a alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do CP, como circunstância a atender para a determinação da medida concreta da pena.

34 – Como tal, e cumprindo a LEI, o Tribunal a quo colocou esse circunstancialismo, de o arguido nunca ter tido um voto de pesar ou condolências com os filhos das falecidas vítimas na MOTIVAÇÃO da sentença, dando cumprimento ao n.º 3 do artigo 71.º do C.P..

35 – O arguido já beneficiou de "um voto de confiança" do Tribunal por um juízo de prognose favorável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para o afastar futuramente de comportamentos que levem a novos crimes de natureza estradal. Pelo que, logrou conseguir a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.

36 – O arguido requereu o benefício de apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o que lhe foi concedido. Pelo que, em CUSTAS PROCESSUAIS também não teve qualquer prejuízo.

37 – Se não for com a pena acessória de inibição de condução, o arguido passará "entre os pingos da chuva", incólume, de qualquer consequência efectiva da sua responsabilidade no acidente de viação e na MORTE DE DUAS PESSOAS.

38 – O arguido tem de interiorizar a gravidade e censurabilidade da sua conduta e perceber a necessidade de prevenir que incorra novamente na prática do mesmo crime. O que só será conseguido por via da punição adequada, nomeadamente da pena acessória de inibição de conduzir.

39 – A pena acessória de inibição de conduzir não cumprirá o seu desígnio se não alterar e perturbar o normal funcionamento e o dia-a-dia do arguido. Este terá de readaptar a dinâmica da sua vida, a gestão diária de forma a que, mesmo que com maior sacrifício, possa cumprir com os seus compromissos.

40 – O arguido reside na Lousã e o Stand “ y (...) ” é sito em Miranda do Corvo. Da Vila de Lousã para a Vila de Miranda do Corvo distam 08 quilómetros e existem transportes públicos de hora a hora. Pelo que, o arguido, embora com maior sacrifício, pode perfeitamente deslocar-se para o trabalho.

41 – É o próprio arguido que refere a sua polivalência nos serviços que presta para outros stands de automóveis seus conhecidos. Ou transporta ou vende carros. Uma vez que é tão polivalente, nesta fase da sua vida, poderá só dedicar-se às vendas de automóveis que, hoje, como é consabido, não necessitam de deslocações. Poderão ser realizadas por via de publicidade no facebook, e-mail, correio e outros meios de divulgação.

42 – O arguido é jovem, bem integrado socialmente, conhecido por todos os profissionais do ramo automóvel que, aliás, como refere, já trabalham com ele. Certamente não terá dificuldade, em consonância com aqueles, conseguir soluções de transporte, novas formas de venda e interacção com os clientes.

46 – A sentença recorrida deverá ser totalmente mantida e o arguido condenado nos seus precisos termos.

Termos em que deve ser mantida a douta sentença do Tribunal "a quo". JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso da demandada civil Companhia de Seguros C... , SA, o Fundo de Garantia Automóvel, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. A inscrição da propriedade do veículo em nome do irmão do arguido na Conservatória do Registo Automóvel resultou de negócio absolutamente simulado, logo nulo;

2. Apesar de tal registo, o arguido manteve o interesse no veículo e deteve e a sua direcção efectiva, em suma, a sua posse;

3. Acresce, como é sabido, que o registo automóvel não tem natureza constitutiva;

4. Não produzindo o negócio absolutamente simulado qualquer efeito, nunca sequer chegou a existir qualquer alienação do veículo;

5. O mesmo é dizer que nunca se chegou a verificar a caducidade do contrato de seguro, nos termos do disposto no artigo 21.º do SORCA;

6. Tendo o arguido mantido a posse e a direcção efectiva do veículo, manteve igualmente o interesse em segurá-lo;

7. Pelo que, ainda que se entendesse que a mera inscrição no registo de novo proprietário conduziria à caducidade do seguro – pela aparência da alienação subjacente – sempre ficaria suprida a validade do seguro pela circunstância do mesmo continuar seguro por iniciativa daquele que, na prática, o continuou a utilizar e a manter no seu interesse, por força do disposto no artigo 6.º, n.º 2 do SORCA.

Termos em que, mantendo o determinado da Douta Sentença recorrida, farão V. Ex.as a costumada JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso da demandada civil Companhia de Seguros C... , SA, o arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            a) inconformada com a douta sentença proferida nos presentes autos, quanto à condenação a pagar as indemnizações arbitradas aos demandantes e ao Centro Hospitalar Universitário de B... E.P.E, veio a Companhia de Seguros C... , S.A dela interpor recurso;

b) a Recorrente não põe em causa a matéria de facto dada como provada, apenas recorrendo quanto à matéria de direito;

c) porém, não lhe assiste qualquer razão, como se decidiu na douta sentença recorrida;

d) atenta a matéria de facto dada como provada nos presentes autos, pese embora o veículo aqui em causa se encontre registado em nome de D... , tal inscrição resultou de negócio nulo, porque absolutamente simulado;

e) o veículo aqui em causa era propriedade do arguido/demandado antes, durante e depois do acidente de viação ocorrido em 24.08.2014;

f) não tendo ocorrido qualquer transmissão da propriedade do veículo aqui em causa, não se verificou a caducidade do contrato de seguro;

g) o Tribunal a quo tinha poderes para conhecer da nulidade decorrente da simulação absoluta do negócio, quanto mais não fosse oficiosamente, sendo a simulação absoluta do negócio oponível à Recorrente;

h) da análise dos pedidos de indemnização civil deduzidos, resulta, de forma clara e inequívoca, que a causa de pedir assenta nos mesmos factos que servem de fundamento à condenação crime do arguido/demandado;

i) sendo os pedidos de indemnização civil formulados nos presentes autos admissíveis, terá o Tribunal a quo de apreciar, como o fez, todas as questões levantadas no âmbito dos mesmos, designadamente, terá de apreciar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, bem como terá de aferir de quem é a responsabilidade pelo pagamento da indemnização que for eventualmente arbitrada;

j) tendo sido, precisamente neste contexto – apuramento da responsabilidade pelo pagamento da indemnização – que o Tribunal a quo apreciou a questão da simulação entre o arguido/demandado e o seu irmão, que era questão de conhecimento imprescindível para se saber se o contrato de seguro tinha ou não caducado e para, em consequência, se determinar de quem é a responsabilidade pelo pagamento da indemnização;

k) é manifesto que, atento o disposto no art. 7°, 71°, 72° e 83° do CPP, o Tribunal a quo tem poderes para conhecer a simulação;

l) a decisão em crise, no que ao pedido de indemnização civil diz respeito, não merece qualquer cesura, tendo aplicado corretamente o direito à factualidade apurada, devendo a mesma ser integralmente mantida.

Assim decidindo, farão V. Exas, Venerandos Desembargadores, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, JUSTIÇA!


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando quanto a ambos os recursos do arguido a resposta do Ministério Público, com ressalva, quanto ao recurso da sentença, da determinação da medida concreta da pena única de prisão, que entende carecer de fundamentação, e concluiu pela improcedência do recurso intercalar e pela improcedência do recurso da sentença, excepção feita à questão da determinação da pena única.

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

A) Recurso intercalar do arguido:

- A nulidade da leitura do aditamento ao auto de notícia NUIPC 186/14.7GCLSA, de fls. 10 e verso, efectuada na audiência de julgamento;

B) Recurso do arguido interposto da sentença:

- A excessiva medida das penas principais, parcelares e única;

- A excessiva medida da pena acessória.

C) Recurso da demandada civil Companhia de Seguros C... , SA.:

- A incompetência do tribunal a quo, a violação por este, do princípio da adesão e a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, ao ter conhecido da simulação da venda do veículo conduzido pelo arguido;

- A caducidade do contrato de seguro pela venda do veículo segurado e a irrelevância, da simulação invocada e consequente absolvição.

A latere, haverá ainda que conhecer da nulidade da sentença invocada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu.


   *

            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta do despacho e da sentença recorrida. Assim:

            A) O despacho recorrido [transcrito pelo relator, após audição do registo áudio da audiência de julgamento de 1 de Fevereiro de 2016, acta de fls. 524 a 531] tem o seguinte teor:

            “ (…).

            O acto de leitura efectuado pelo Tribunal do "Aditamento" NUIPC de fls. 10, do nosso ponto de vista não constitui qualquer nulidade. Estamos, de facto, ainda em sede de leitura e não de valoração de qualquer meio de prova. Não se trata, também, a nosso ver, propriamente de qualquer conversa informal do arguido com o senhor agente policial. Nessa altura, ainda nem sequer se podia falar em arguido, uma vez que não estava constituído, uma vez que tal diligência ocorreu em 24 de Agosto de 2013, conforme decorre da data que aposta a fls. 10, (só um bocadinho por favor) 25 de Agosto de 2014, e a constituição de arguido só veio a ocorrer muito mais tarde, já durante, salvo o erro, o ano de 2015. Por outro lado, em nosso ver, afigura-se-nos também que o "Aditamento" em causa se alicerça nas diligências próprias efectuadas pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito das suas funções naquela altura referentes ao acidente de viação. Sendo assim, não está aqui qualquer proibição de leitura prevista, invocada, designadamente nos art. 356º e 357º do C. Processo Penal e portanto não se nos afigura existir qualquer nulidade do acto. Neste sentido, inúmeros acórdãos, não vou ser exaustiva, enfim, até porque o Supremo Tribunal de Justiça, vou apenas citar o de 15.02.2007, que efectivamente faz um bom resumo de tudo isto. Há um recente acórdão também de 2015, mas não vou ser exaustiva, como disse, portanto não vale a pena estar a citar mais. Indefere-se o requerido.

            (…)”.


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            B) Da sentença recorrida:

            1. Constam os seguintes factos provados:

            “ (…).

            [Da acusação:]

1. No dia 24/8/2014, cerca das 8 horas e 30 minutos, na Estrada Nacional 342, próximo da localidade de Miranda do Corvo, o arguido A... conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, marca Ford, modelo Mondeo, matrícula FJ (...) , na direcção Condeixa – Miranda do Corvo.

2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, mas em sentido contrário (Miranda do Corvo-Condeixa), seguia H... , ao volante do automóvel ligeiro de passageiros, marca Vokswagen, modelo Passat, matrícula (...) RD, transportando no lugar de passageiro frontal, a sua mulher E... ,

3. Sensivelmente ao quilómetro 53,5, em zona de ligeira curvatura à esquerda, tomando por referência o sentido de Lamas – Miranda do Corvo, o arguido após descrever a referida curva, em virtude do seu adormecimento, transpôs a linha longitudinal contínua do eixo da via e invadiu a via destinada ao trânsito em sentido contrário.

4. Indo colidir frontalmente com o veículo automóvel conduzido por H... , que seguia na sua faixa de rodagem.

5. Como consequência do embate, o automóvel conduzido pela vítima foi projectado, embatendo com a parte traseira no separador de betão, situado na berma da via.

6. Por sua vez, o automóvel do arguido rodopiou, vindo a imobilizar-se na sua faixa de rodagem, virado para o sentido oposto ao de rodagem.

7. Como consequência da colisão, a vítima H... teve morte imediata, tendo a vítima E... sido transportada em estado muito grave aos Hospitais da Universidade de B... , onde veio a falecer no dia 27 /8/2014.

8. Resulta da autópsia médico-legal efectuada a H... , que a sua morte foi devida às lesões traumáticas torácicas e abdominais, as quais constituem causa adequada de morte.

9. Mais se concluindo que, tais lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente, podendo ter sido devidas a acidente de viação como consta da informação.

10. Os resultados toxicológicos não revelaram a presença de álcool ou medicamento no organismo da vítima no momento do embate.

11. No que concerne à vítima E... foi internada de urgência nos B... , em momento imediatamente a seguir ao embate, com diagnóstico de traumatismo torácico (hemotórax à direita, fractura do esterno e da clavícula direita), traumatismo abdominal (hematoma retroperitoneal, contusão/laceração hepática e esplénica), e dos membros superiores, vindo a falecer no dia 27/8/2015, pelas 15 horas e 15 minutos.

12. De acordo com relatório de autópsia do IML, conjugando a informação clínica com o exame necroscópico a morte de E... foi devida às lesões traumáticas torácico-abdominais descritas complicadas de infecção aguda.

13. Mais se concluindo que tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte e denotam haver sido produzidas por instrumentos de natureza contundente podendo ter sido devidas a acidente de viação como consta da informação.

14. Por sua vez, o arguido sofreu ferimentos ligeiros, tendo primeiramente recusado o transporte às urgências dos B... , onde acabou por ser transportado, pelas 9 horas e 30 minutos, tendo tido alta médica nesse mesmo dia.

15. Tendo sido submetido a exame toxicológico cerca das 10 horas e 50 minutos, com resultado negativo a todas as substâncias testadas, mormente álcool.

16. O embate verificou-se em troço interurbano da Estrada Nacional 342, ao quilómetro 53,S, próximo da localidade de Miranda do Corvo.

17. Sendo a estrada constituída por pavimento betuminoso, em estado de conservação razoável e com boas condições de circulação.

18. Naquele local, existe uma via de trânsito para cada sentido de marcha, com uma largura global de cerca de 7,55 metros, e largura nas bermas de cerca de 1, 35 metros.

19. A separação das vias decorre de uma linha longitudinal mista de cor branca, visível e em bom estado de conservação.

20. A curva que antecede o local do embate tem um amplo campo de visibilidade e uma ligeira inclinação.

21. No momento do embate, o dia estava claro, o tempo estava ameno e seco.

22. Era Domingo, o trânsito na estrada era reduzido e não existia qualquer obstáculo no local.

23. O automóvel conduzido pelo arguido estava em perfeitas condições de circulação, não existindo qualquer anomalia mecânica susceptível de influenciar a condução.

24. Por sua vez, o automóvel conduzido pela vítima estava em perfeitas condições de circulação, não existindo qualquer anomalia mecânica susceptível de influenciar a condução.

25. O limite de velocidade no local é 90 quilómetros por hora para quem circula no sentido Condeixa – Miranda do Corvo e 50 quilómetros por hora para quem circula no sentido Miranda do Corvo – Condeixa.

26. O arguido, em virtude der ter adormecido, transpôs a linha longitudinal do eixo da via, e invadiu a faixa contrária.

27. Ao agir da forma descrita, sem cuidar de respeitar as regras rodoviárias, agiu sem o cuidado que lhe era exigível, de forma desatenta e descuidada, agindo sem observar a prudência e diligência a que estava obrigado e de que era capaz, e omitindo a prudência que o exercício da condução rodoviária exige, com desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que conhecia, tinha obrigação de observar e podia e devia ter adoptado de modo a evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, e que teve por consequência colisão com o veículo das vítimas e a resultar na morte dos seus ocupantes.

28. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

[Dos pedidos de indemnização cível e suas contestações:]

29. Os demandantes são os únicos filhos dos falecidos H... e E... conforme consta no Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros realizado na Conservatória do Registo Civil de Miranda do Corvo em 05 de Setembro de 2014, que aqui se dá por reproduzido.

30. Nas condições de tempo e lugar supra referidas, no dia 24 de agosto de 2014, domingo, cerca das 08:30 horas, um dia claro, de tempo seco e ameno, na estrada nacional 342, estrada esta de pavimento betuminoso e em razoável estado de conservação e boas condições de circulação, ocorreu um acidente em que intervieram duas viaturas.

31. O arguido A... conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Ford Mondeo, com a matrícula FJ (...) , na direcção de Condeixa – Miranda do Corvo, doravante designado como veiculo 1 (V1).

32. H... conduzia em sentido contrário, Miranda do Corvo – Condeixa, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo Passat, matricula (...) RD, transportando no lugar de passageiro frontal a sua mulher E... (V2).

33. Sensivelmente ao quilómetro 53,50, após descrever uma ligeira curva à esquerda, mas com um amplo campo de visibilidade, no sentido de trânsito Lamas – Miranda do Corvo, o condutor do Veiculo V1 transpôs a linha longitudinal contínua do eixo da via e invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário.

34. Vindo a embater frontalmente com o veículo V2.

35. A violência da colisão foi de tal forma que, o V2 foi projectado, ficando em suspensão com a parte traseira presa em cima do separador de betão, situado na berma da estrada.

36. Por sua vez, o V1 com a brutalidade do embate, rodopiou, vindo a imobilizar-se na faixa de rodagem virado no sentido de trânsito contrário ao da sua marcha, Miranda – Condeixa.

37. O condutor do veículo V1 não adequou a velocidade da sua viatura às condições específicas do local, não teve rapidez de reacção, reflexos e presença de espírito suficientes para, sequer, travar a sua viatura e desviá-la ao aproximar-se da viatura V2.

            38. Em consequência do acidente} o condutor do V2, H... , teve morte imediata, conforme resulta dos relatórios médicos e relatórios de autópsia juntos aos autos.

39. A sua mulher, E... ficou ferida em estado muito grave e foi transportada para os Hospitais da Universidade de B.. onde veio a falecer no dia 27/8/2014.

40. As lesões traumáticas torácicas e abdominais que H... apresentava constituíram causa de morte adequada;

41. O acidente a causa directa e necessária das lesões que causaram a morte de H... .

42. E... deu entrada nos serviços de urgência dos Hospitais da Universidade de B... pelas 10:06 horas, apresentando traumatismo torácico (hemotórax à direita, fractura do esterno e da clavícula direita), traumatismo abdominal (hematoma retroperitoneal, contusão/laceração hepática e esplénica) e fractura dos membros superiores (fractura do cúbito e rádio esquerdos e do rádio direito).

43. Foi submetida a intervenção cirúrgica aos dois membros superiores, a fim de corrigir as fracturas.

44. No dia 25/08, nos serviços de UCCI de cirurgia, o quadro clínico de E... agravou-se, com um quadro de abdómen agudo, com choque séptico refractário.

45. Na tentativa de salvar a vida de E... , os médicos procederam a uma laparoscopia e constaram perfurado do delgado e do cólon e peritonite generalizada.

46. Foi efectuada colectomia total e sutura de laceração do delgado com ileostomia.

47. No entanto, manteve um quadro de choque séptico refractário com hiperlactacidémia mantida, coagulopatia e quadro de isquemia intestinal e hepática, vindo a falecer no dia 27/08/2014, pelas 15:15.

48. As lesões traumáticas torácico-abdominais supra descritas complicadas por choque séptico, constituíram causa adequada de morte de E... .

49. O acidente foi causa directa e necessária das lesões que causaram a morte de E... .

50. Em consequência do embate frontal levado a cabo pelo condutor do VI, a parte frontal e lateral esquerda, o habitáculo lateral esquerdo, do veículo V2 ficaram totalmente destruídas.

51. Atentos os avultados prejuízos provocados na viatura VI, a sua reparação integral foi orçada em 46.821,43 € (fls. 304 e doc. 3).

52. A viatura VI, pertença dos pais dos demandantes, tinha à data do acidente o valor de 7.250,00 €.

53. Os falecidos eram casados em primeiras núpcias de ambos desde 19/07/1977.

54. Desse casamento nasceram dois filhos, que à data do acidente tinham, F... 36 anos, e G... 32 anos.

55. Apesar das suas idades os demandantes, à data do acidente, continuaram solteiros e a residir harmoniosamente com os seus pais.

56. E isto porque, apesar de cada um ter a sua profissão, como ainda não tinham casado, a mãe, que sempre se dedicara ao lar conjugal e à família, para prouver ao seu conforto e necessidades, foi prolongando aconchego do lar aos seus filhos, pelo tempo que estes necessitassem.

57. H... era um homem de família, dedicado, bondoso, amigo do seu amigo, reputado empresário do ramo da reparação automóvel.

58. Era sócio-gerente da sociedade por quotas “ x... , L.da”, com sede em Espinho, Miranda do Corvo, oficina que explorava em sociedade com o seu sócio e amigo L... e com tal actividade e os sacrifícios de uma vida proporcionara à família uma casa de habitação unifamiliar, umas poupanças e algum conforto.

59. Tudo com vista a uma reforma sossegada e sem sobressaltos.

60. À data da sua morte, H... tinha 60 anos.

61. Gozava de uma saúde razoável, uma vida despreocupada e feliz, tudo indiciando saúde e longevidade.

62. E... era uma mãe e esposa dedicada, ocupava os seus dias a cuidar da casa, do jardim e de outros terrenos da família.

63. E cuidava dos seus “homens”, preparando as refeições, tratando da roupa e fazendo estas tarefas com o carinho de uma mãe e esposa.

64. Era uma mulher feliz, sem preocupações, com uma família unida.

65. Gozava de uma saúde razoável para a sua idade de 58 anos, tudo indicando que iria ter uma grande longevidade.

66. A vida e os sonhos foram ceifados prematuramente.

67. Todos os ferimentos descritos nos factos provados 42 a 49 sofridos por E... (entre o internamento na urgência dos B... e o falecimento no dia 27/08/2014) e as complicações c1inicas que dos mesmos derivaram, as intervenções cirúrgicas e demais tratamentos e suturas ao nível do intestino e abdómen, causaram 78 horas de sofrimento atroz a E... , apresentando entre o dia 25 até ao momento da sua morte um quadro de septicemia em consequência das lacerações intestinais.

68. A instabilidade permanente do seu quadro clínico, as dores terríveis que sentia, a fraqueza generalizada, as perdas de consciência, fizeram com que E... tivesse a antevisão e consciência de que a sua morte se avizinhava.

69. Os filhos demandantes, apesar de trabalharem e de terem à data do acidente 36 e 32 anos, continuavam a viver na companhia e na casa de seus pais H... e E... , com estes privando diariamente, partilhando as refeições, comendo à mesma mesa, pernoitando e recebendo a correspondência na casa dos seus pais, aí convivendo com amigos e familiares.

70. Os quatro eram por todos reputados como uma família unida e feliz, onde reinava o amor, a amizade, a união e a concórdia.

71. Os demandantes sofreram o maior golpe das suas vidas com o falecimento do pai e da mãe da forma brutal, chocante e trágica, em consequência de um mesmo acidente.

72. Ficaram em verdadeiro estado de choque, num primeiro momento com a morte do pai ao saberem que o mesmo teve morte imediata, depois passaram ao desespero, ao choro e sentimento de perda inigualável.

73. Mal tinham capacidade para gerir o sofrimento causado pela morte do pai e as preocupações com o estado de saúde da mãe quando receberam a notícia do falecimento desta.

74. Vivenciando, pela segunda vez, o que é receber a notícia do falecimento de familiar próximo, a mãe, no espaço de três dias.

75. Todo o sofrimento, desespero, sentimento de perda, desgosto, angústia e tristeza profunda, sensação de impotência e injustiça que sentiram com a morte do seu pai foi, depois, redobrado, com a morte da sua mãe.

76. Não há dia algum que os demandados não continuem a pensar nos pais, a visualizá-los no leito de morte.

77. A visualizar o local do acidente e o estado em que a viatura de seus pais ficou.

78. Mantêm uma enorme saudade dos pais, e, sobretudo, uma dor incalculável da sua perda.

79. Até hoje têm dificuldade em falar sobre o acidente e as suas circunstâncias, ou sequer falar sobre os pais.

80. Quando eram ou são inquiridos por alguém sobre o acidente ou sobre os pais, remetem-se ao silêncio, desviando o olhar, para que não vejam que os seus olhos ficam rasos de lágrimas.

81. Começaram a apresentar momentos de grande nervosismo, falta de concentração, angústia e profunda tristeza, tudo disfunções de que nunca sofreram antes do acidente.

82. Foram prematuramente privados do convívio de seus pais, que ainda tinham muitos anos de vida para viver (tinham 60 e 58 anos e gozavam, ambos de razoável estado de saúde para a sua idade e condições de vida)

83. Convívio esse que era muito estreito, afectuoso, carregado de amor, compreensão e cumplicidade.

84. Daí que os demandantes sintam ainda com maior pesar a dor da perda de seus pais.

85. A dor, a angústia e tristeza dos demandantes é incomensurável quando se sabe que perderam pai e mãe com um intervalo de três dias, fruto do mesmo acidente de viação.

86. Que ocorreu de forma brutal, inesperada e de modo violento.

87. A responsabilidade civil emergente de acidente de viação relativa ao veículo automóvel com a matrícula FJ (...) foi transferida para a demandada "Companhia de Seguros C... , SA", por contrato de seguro, titulado pela apólice nº 2 (...) (conforme resulta documento junto a fls. 379 e segs. 383, e em sede de audiência de julgamento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), com efeitos a partir das 12:11 horas de 07/11/2012, figurando como tomador desse seguro A... .

88. O contrato referido no ponto anterior era válido até 21/11/2014.

89. A dita seguradora, em processo interno, decorrente do acidente em apreço, viria a declinar o sinistro.

90. A... adquiriu em 27-12-2012 o veiculo V1, com a matrícula FJ (...) , interveniente no acidente.

91. Em 29-10-2013, foi efectuada a transferência da titularidade do registo de propriedade sobre o veículo matrícula FJ (...) na Conservatória do Registo Automóvel, de A... para o seu irmão D... , aqui demandado.

92. O veículo matrícula FJ (...) foi registado a 27-12-2012 em nome do arguido/demandado A... e a 29-10-2013 em nome de seu irmão D... , aqui também demandado (conforme documento junto a fls. 376/378 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

93. O veículo matrícula FJ (...) sempre se manteve, desde a aquisição daquela viatura em 27-12-2012 até ao dia do acidente, ao cuidado e guarda ("posse"), gozo e fruição de A... .

94. A... , fazia uso diário do veículo matrícula FJ (...) , como veículo pessoal, para as suas deslocações de casa para o trabalho e de lazer.

95. Continuou a fazer pleno uso da referida viatura, conduzindo-a diariamente de casa para o trabalho e vice-versa, e nas suas viagens de lazer, fazendo da mesma a viatura familiar, pagando os respectivos impostos (IUCL procedendo às reparações necessárias manutenções mecânicas, realizando as inspecções periódicas obrigatórias, definia os seus percursos, abastecia-a de combustível, pagava o seguro de responsabilidade civil automóvel.

96. E isto de forma continuada e ininterrupta, desde que adquiriu a viatura em 27/12/2012 até, pelo menos, à data do acidente.

97. O nome do demandando D... , aparece no registo automóvel como titular do direito de propriedade sobre o FJ (...) porque o seu irmão A... lhe pediu por razões de ordem familiar e patrimoniais para que o veiculo passasse a constar na Conservatória do Registo Automóvel em seu nome, o que este aceitou face aos estreitos laços familiares e de amizade.

98. D... , quer antes quer no momento do acidente, nunca conduziu o veículo matrícula FJ (...) , nem permitiu ou autorizou que outrem o fizesse; nunca definiu os seus percursos, nunca o abasteceu de combustível, nunca procedeu à sua manutenção mecânica; nunca o levou à inspecção periódica; nunca contratou ou pagou qualquer seguro automóvel; nem nunca pagou qualquer imposto de circulação, pelo que nunca teve a sua direcção efectiva.

99. No dia 24/08/2014 deu entrada no Centro Hospitalar e Universitário de B... , EPE, E... , tendo sido assistida no Serviço de Urgência, a que se seguiu internamento de 24/08/2014 a 27/08/2014.

100. A assistência prestada foi originada pelos ferimentos apresentados por E... , em consequência do acidente ocorrido no dia 24/08/2014, cerca das 09:30horas, na EN 342, próximo da localidade de Miranda do Corvo nos termos supra expostos, cujos encargos importaram na quantia de 22.330,73 €.

[Mais se provou que:]

101. O arguido A... pediu ao irmão D... que o veiculo passasse a constar na Conservatória do Registo Automóvel em seu nome, para além das razões de ordem familiar supra referidas, também por motivos patrimoniais (por ter assumido a qualidade de avalista em livranças em processos executivos, e outras dívidas, vendo-se confrontado com a possibilidade de ver o seu património penhorado), com o fito de não ter o veículo FJ (...) registado em seu nome para que o automóvel não fosse penhorado e respondesse por dívidas, sendo que o segundo o aceitou apenas porque desse acto não resultava qualquer outro encargo decorrente dessa transmissão.

102. O arguido/demandado A... pagou todas as despesas referentes ao veículo FJ (...) em face do acordo assumido com o irmão A... .

103. O arguido/demandado A... utilizou o veículo FJ (...) de forma continuada e ininterrupta, desde que o adquiriu em 27/12/2012 até à data do acidente, sendo que o veículo continuou na sua posse até à data em que dispôs do mesmo a favor de uma sucateira.

104. Não obstante ter continuado a ser debitado na sua conta bancário o prémio do seguro da apólice em causa, no dia 29/10/2013 foi feito estorno pela C... no valor de 6,5 €, referente ao período de 1/08 a 1//11/2013; e após procedeu ao estorno de 733,53 €, que englobou quatro recibos (entre 1/11/2011 e 1/11/2014); todavia, apenas procedeu ao estorno do valor de 250,99 € no dia 4/03/2016 (após a penúltima sessão de julgamento).

[Condições pessoais:]

105. O arguido é o mais velho de dois filhos de uma família convencional, com pai motorista e mãe doméstica.

106. Desde há cerca de quatro anos, o pai ficou desempregado e tornou-se taxista.

107. O arguido fez os seus estudos em Miranda do Corvo, com repetição do 7º e 8º ano por não gostar de estudar.

108. Com 17 anos veio para Coimbra trabalhar para a fábrica M... , propriedade de uns tios, na qual trabalhou até aos 20 anos, altura em que saiu para cumprir o serviço militar obrigatório.

109. Cumpriu 18 meses na Marinha, e quando saiu voltou a trabalhar cerca de um ano para a M... .

110. Com cerca de 24/25 anos tornou-se empresário em nome individual: comprava e vendia carros.

111. Em 1986 casou com uma técnica de serviço social e desse casamento nasceram 3 filhos: a mais velha tem agora 17 anos e frequenta o 12º ano, a filha do meio tem 14 anos e frequenta o 9º ano, e o filho mais novo tem 8 anos e frequenta o 4º ano do ensino básico.

112. O casal separou-se em 2006 mas o divórcio apenas se concretizou em janeiro de 2008.

113. Desde a separação em 2006 vive sozinho num apartamento de renda na Lousã.

114. Após o divórcio o arguido ficou com a empresa que tinha criado e a mulher com os restantes bens.

115. Os filhos vivem com a mãe e passam fins de semana de quinze em quinze dias com o pai na sua nova morada na Lousã, onde o arguido vive só.

116. Em 1997 criou a empresa z(...) , Lda, que chegou a ter oito funcionários, mas que a partir de 2010 diminuiu significativamente a sua actividade, face à diminuição do volume de negócios de compra de carros e à insolvência de alguns dos seus clientes com débitos que não lhe foram pagos

117. Em Outubro de 2013 o arguido vendeu o stock da “ z(...) ” à “ w(...) ”, empresa de reparação, compra e venda de carros, a qual não lhe pertencerá, apenas ocupando as instalações anteriormente ocupadas pela 1ª.

118. A sua empresa “ z(...) ” ficou praticamente inactiva, com uma sede provisória, numas instalações emprestadas por um amigo, em que o único funcionário é o arguido, também gerente e titular.

119. Presentemente o arguido dá apoio dois dias por semana à “ y (...) ” e trabalha com stands seus conhecidos, ajudando-os no transporte de carros e/ou vendas e ganha comissões do que vende.

120. O arguido declarou em 2014 em sede de IRS, um rendimento colectável resultante de trabalho dependente de 2.417,53 € e de rendimentos profissionais e comerciais, declarados em sede de IRS 2.196,89 €.

121. Paga 1.200,00 € de prestação de alimentos a cada um dos 3 filhos; a renda da casa em que habita é suportada pelo pai, ficando apenas as despesas de electricidade, água e gás, cerca de 60 € mês e alimentação.

122. Em termos pessoais não tem dívidas, mas a empresa tem dívidas à Segurança Social e às Finanças. No que respeita à primeira fez um acordo no sentido de pagar toda a dívida em ano e meio e está a tentar vender um terreno da firma para pagar às finanças. Também tem algumas dívidas à Banca e tem estado a pagar dívida a fornecedores.

123. Os factos que deram origem ao presente processo, abalaram o arguido e tiveram um enorme impacto na sua vida, já que as vítimas do acidente eram seus amigos, o que tornou a situação ainda mais penosa, lamentando as consequências do mesmo.

124. O arguido é normalmente um condutor prudente, tendo sido este o seu primeiro acidente.

125. Não consta averbado no Registo Individual de Condutor (RIC) qualquer averbamento por infracções rodoviárias.

126. Não consta averbado no CRC quaisquer antecedentes criminais.

127. Encontra-se bem inserido no meio em que reside, não contando informações negativas a seu respeito.

128. Não foram lavrados autos de contraordenação sobre a infracção cometida da transposição da linha longitudinal (cfr. fls. 266 do relatório).

129. O arguido conhecia bem e era frequentador habitual da via em causa.

(…)”

2. Constam os seguintes factos não provados:

“ (…).

- Que E... dizia muitas vezes que queria andar cá muitos anos para criar os netos;

- Que a viatura apenas tenha sido "propriedade" do tomador A... desde 27/12/2012 até 29/10/2013, tendo sido alienada a D... em 29/10/2013;

 - Que a Companhia de Seguros C... apenas tenha tomado conhecimento da alienação do veículo em 17/08/2015.

(…)”.

3. Consta a seguinte fundamentação quanto à escolha e determinação da medida concreta das penas:

“ (…).

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar o tipo de pena a aplicar e a fixação da sua medida concreta.

O crime de homicídio por negligência tem a moldura abstracta de pena de prisão de 30 dias até três anos ou pena de multa (artigo 137º, n.º 1, e 41º, nº 1, ambos do Código Penal), sendo que a multa pode ir de 10 a 360 dias, nos termos do artigo 47º, n.º 1, do Código Penal.

As finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.40º, nº 1 e 2, do CP).

Na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, o tribunal atenderá à culpa do agente e às exigências de prevenção bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele (art. 71º, nº 1 e 2, do CP).

Logo, num primeiro momento, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto "reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida" (Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", Aequitas. Editorial Notícias, 1993, pags. 72-73).

 Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.

Por último devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.

Nos termos do artigo 70º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ou seja ter-se-á que formar para escolher a pena não privativa da liberdade um juízo de prognose favorável que esta por si fará com que o arguido, no futuro, se abstenha de prática de ilícitos criminais de idêntica natureza, sendo que tal juízo de prognose só será possível atendendo aos factos concretos do caso.

Segundo o Conselheiro Maia Gonçalves esta norma consubstancia "o critério de orientação para a escolha, quando ao crime são aplicáveis pena privativa ou pena não privativa de liberdade, e traduz vincadamente o pensamento legislativo do Código de reagir contra penas institucionalizadas ou detentivas, sempre que os fins das penas possam atingir-se por outra via " (in Código Penal Português Anotado e Comentado. anotação ao artigo 70º, 15ª Edição, 2002 Almedina, pág. 240). 

Assim, o legislador dá preferência a pena não privativa da liberdade sempre que esta puder realizar a recuperação social do delinquente e as particulares exigências de prevenção não imponham a aplicação de pena privativa da liberdade.

Acresce que, tal como refere o Conselheiro Robalo Cordeiro “ … determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências da reprovação e da prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas ou não detentivas. Pelo que competirá, em última instância, aos tribunais a selecção rigorosa dos delinquentes que hão-de ser sujeitas a umas e a outras. Selecção rigorosa e – repete-se – sempre fundamentada, não obstante o artigo 71º parecer sugerir esta fundamentação apenas nos casos em que a preferência do legislador se dirigir para as penas não detentiva” (Escolha e Medida da Pena, in Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, pág. 239).

Nos termos do n.º 1 do artigo 71º do Código Penal a “determinação da medida da pena, dentro dos limites legais definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, n.º 2, do Código Penal).

Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo a culpa concreta do agente, o que implica, por um lado que não há pena sem culpa, e por outro, que esta decide da medida daquela, afirmando-se como seu limite máximo, havendo que ter presente as razões de prevenção geral (protecção dos bens jurídicos) quanto aos fins das penas (artigo 40º, n.º 1, do Código Penal), e os fins de prevenção especial.

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas do n.º 2 do artigo 71º do Código Penal.

Vertendo os princípios supra descritos ao caso concreto, temos que:

O grau de ilicitude mostra-se de elevadíssima gravidade.

No que concerne à culpa a mesma molda-se pela negligência inconsciente [art. 15º, nº 1, al. b) do C Penal].

As exigências de prevenção geral são também elevadas.

O acidente estradal é hoje, reconhecidamente, um flagelo, pelo que a pesada sinistralidade das nossa estradas e a falta de civismo e de perícia dos condutores impõem uma forte acção de prevenção geral no doseamento das penas por delitos estradais. Na verdade, atento o número crescente de acidentes de viação, resultantes de uma condução descuidada, desatenta ou imprudente que constituem verdadeiro flagelo, tornando temíveis as nossas estradas, há que combatê-los e recorrer à severidade dos Tribunais chamados a julgá-los, como meio dissuasor e preventivo dos mesmos.

Conforme doutamente salientou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/01/1986, que não obstante data em que foi proferido mantém plena actualidade "não há dúvida perante a realidade que tragicamente as nossas estradas que se torna necessária uma exacerbação da punição para que se tente convencer os loucos das estradas que não é com uma simples indemnização - no geral a satisfazer pelo seguro - e com uma curta pensão que se paga a morte de um ser humano" (in BMJ 173, pág. 168).

O arguido não tem antecedentes criminais, nem antecedentes por delitos rodoviários, tinha na altura dos factos 44 anos, estando social, familiar e profissionalmente integrado.

Acresce que, o arguido não confessou os factos, mas a sua postura em sede de julgamento e o teor do relatório social permitem afirmar que não é insensível ao valor da vida humana, tanto mais que mantinha relação de amizade com H... , tendo ficado naturalmente afectado com o sucedido, que teve consequências drásticas já que implicou a perda de duas vidas humanas. Todavia, também é certo que nunca fez chegar qualquer sentimento de lamentação, consternação, pesar ou outro aos dois filhos do casal falecido, mostrando-se que a penosidade que vem sentido se deverá essencialmente à repercussão que toda esta situação tem nas sua vida quotidiana.

Tudo ponderado, tendo presente as necessidades de prevenção geral do crime em causa, a gravidade do mesmo, bem como a protecção dos bens jurídicos, sendo certo que a situação ora em análise se deveu a culpa exclusiva do arguido, temos que a pena de multa não se mostra minimamente adequada nem suficiente para exprimir um juízo de censura sobre a conduta do arguido, pelo que o tribunal opta por lhe aplicar uma pena privativa da liberdade, concretamente de 28 (vinte e oito) meses de prisão para cada um dos crimes.

Atendendo às regras de punição do concurso previstas no art. 77º do Cód. Penal, temos que a moldura penal abstracta a atender para efeitos de cúmulo jurídico será de 28 meses de prisão a 56 meses, sendo que se considera proporcional e adequada, face aos factos e à personalidade do arguido a pena única de quatro anos de prisão.


*

Importa, por fim, apreciar se deve ser aplicada uma pena de substituição

Aplicadas ao arguido uma pena de 4 de prisão, impõe-se, neste momento, apurar se se encontram verificados os pressupostos de aplicação de uma pena de substituição.

Considerando a ausência de qualquer critério estabelecido na lei, temos para nós que a bitola de preferência da escolha da pena de substituição passa por saber qual a que melhor realize as finalidades da punição, acompanhando, por isso, a posição do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 817395, datado de 20 de Abril de 2009, relatado por Luís Teixeira (in www.dgsi.pt) o qual considerou que as penas de substituição podem ser apreciadas pela ordem seguinte: multa, suspensão da execução da pena, prestação de trabalho a favor da comunidade, regime de permanência na habitação, prisão por dias livres e regime de semi-detenção, dando-se, deste modo, preferência às penas de substituição não privativas da liberdade.

Considerando que estando o arguido familiar, social e laboralmente inserido importa averiguar se deverá ser aplicada, em concreto, a pena de substituição de suspensão da pena de prisão nos termos dos artigos 50º e do C Penal.

Com efeito, determina o artigo 50º do Código Penal que o Tribunal, no exercício de um poder-dever e não mera faculdade em sentido técnico jurídico, suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 40º, nº 1).

O critério primordial que preside à escolha desta pena de substituição assenta primordialmente em finalidades exclusivamente preventivas e não de compensação da culpa, com prevalência para as considerações de prevenção especial de socialização relativamente às quais a prevenção geral funciona como limite para a sua actuação.

A finalidade essencial é, assim, a ressocialização do agente na vertente de prevenção da reincidência cujas probabilidades de êxito são aferidas no momento da decisão em função dos indicadores previstos no artigo 50º, n.º 1, do Código Penal.

A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da prática de crimes, assentando o juízo de prognose não numa absoluta certeza mas numa esperança fundada de que a socialização em liberdade seja realizada, importando sempre um risco para o julgador derivado dos elementos de facto a que tem acesso – cfr. Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português, Parte geral 11. As Consequências Jurídicas do Crime", Editorial Notícias, 1993 pág. 344.

No caso em apreço, o arguido vi ser condenado numa pena de prisão inferior a cinco anos de prisão, pelo que o pressuposto formal da suspensão está observado.

Ora no caso concreto, e para além do que já ficou expresso sobre as exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial, considerando que o arguido é pessoa bem inserida na sociedade e não tem antecedentes criminais, vislumbram-se esperanças sobre a sua capacidade de inverter positivamente o seu posicionamento relativo à prática de nos crimes, de molde a justificar como razoável um juízo de prognose positivo no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar da prática de novos crimes, mediante um processo de renovação de um projecto de vida compatível com o respeito, que é seu dever, pelos valores cuja ofensa integra crimes, e com a possibilidade, como é seu interesse, de uma realização pessoal e comunitária positiva.

Como é sabido o período de suspensão tem, face ao estatuído no actual nº 5 do citado preceito legal, duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano.

Face ao exposto, entende-se por adequado suspender a execução da pena pelo período alargado de quatro anos de prisão.


*

b) Da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor:

Dispõe o nº 1, do art. 69º do Código Penal que "É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º"

Esta pena acessória encontra o seu fundamento na perigosidade do agente e destina-se a actuar psicologicamente sobre o imprudente condutor visando, pela privação do uso do veículo ou da sua condução, influir preventivamente na conduta futura do infractor.

E, atendendo aos efeitos que, em matéria de sinistralidade rodoviária, não pode deixar de considerar-se a condução do arguido violadora das mais elementares regras de trânsito que pretendem assegurar que a actividade de conduzir se processe dentro das margens do chamado "risco permitido".

Quanto ao número de meses da proibição, considera-se que o pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 24 (vinte e quatro) meses é suficientemente elevado, sopesando o facto de ter sido interveniente em acidente de viação, em consequência do qual vieram a falecer duas vítimas, e a necessidade deste interiorizar a censurabilidade da sua conduta e de prevenir a incursão futura do mesmo na prática do mesmo crime, em conjugação com o facto de não ter antecedentes criminais, nem contra-ordenacionais, desta ou de outra natureza e se encontrar bem integrado.

(…)”.

3. E consta a seguinte fundamentação quanto à responsabilidade civil [na parte em que agora releva]:

“ (…).

Sobre a responsabilidade:

Tendo em consideração que o acidente de viação aqui em apreço ocorreu no dia 24-08-2014, é-lhe aplicável o REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL aprovado pelo DL nº 291/2007, de 21/08.

Prevê este diploma legal:

No seu art. 4º, nº 1 “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”.

No art. 6º, nº 1 “A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.”

Preceitua o art. 16º, nº 1 que “O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.Q e dos legítimos detentores e condutores do veículo”.

O art. 21º preceitua:

1 – O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo.

2 – O titular da apólice avisa a empresa de seguros por escrito, no prazo de vinte e quatro horas, da alienação do veículo.

3 – Na falta de cumprimento da obrigação prevista no número anterior, a empresa de seguros tem direito a uma indemnização de valor igual ao montante do prémio correspondente ao período de tempo que decorre entre o momento da alienação do veículo e o termo da anuidade do seguro em que esta se verifique, sem prejuízo de o contrato ter cessado os seus efeitos nos termos do disposto no n.º 1.

4 - O aviso referido no n.º 2 deve ser acompanhado do certificado provisório do seguro, do certificado de responsabilidade civil ou do aviso-recibo e do certificado internacional («carta verde»).

Dispõe o art. 22º sobre a oponibilidade de excepções aos lesados.

O art. 49º rege que “Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”.

O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:

a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros;

b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz;

c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente.

2 – Para os efeitos previstos na primeira parte da alínea c) do número anterior, consideram-se danos corporais significativos a lesão corporal que determine morte ou internamento hospitalar igualou superior a sete dias, ou incapacidade temporária absoluta por período igualou superior a 60 dias, ou incapacidade parcial permanente igualou superior a 15 %.

3 – Para os efeitos previstos na segunda parte da alínea c) do n.º 1, considera-se aplicável ao veículo abandonado a exclusão prevista na alínea a) do n.º 4 do artigo 14.º

O art. 64º do citado diploma, sobre a “Legitimidade das Partes e outras regras”: “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:

a) Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório;

b) Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior.

2 – Nas acções referidas na alínea a) do número anterior pode a empresa de seguros, se assim o entender, fazer intervir o tomador do seguro.

3 – Quando, por razão não imputável ao lesado, não for possível determinar qual a empresa de seguros, aquele tem a faculdade de demandar directamente o civilmente responsável, devendo o tribunal notificar oficiosamente este último para indicar ou apresentar documento que identifique a empresa de seguros do veículo interveniente no acidente.

4 – O demandado pode exonerar-se da obrigação referida no número anterior se justificar que é outro o possuidor ou detentor e o identificar, caso em que este é notificado para os mesmos efeitos.

5 – Constitui contra-ordenação, punida com coima de (euro) 200 a (euro) 2000 o incumprimento do dever de indicar ou de apresentar documento que identifique a empresa de seguros que cobre a responsabilidade civil relativa à circulação do veículo interveniente no acidente no prazo fixado pelo tribunal.

6 – Nas acções referidas no n.º 1, que sejam exercidas em processo cível, é permitida a reconvenção contra o autor e a sua empresa de seguros.

7 – Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.

8 – Para os efeitos do número anterior, o tribunal deve basear-se no montante da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência, relativamente a lesados que não apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores à RMMG.

9 – Para os efeitos do n.º 7, no caso de o lesado estar em idade laboral e ter profissão, mas encontrar-se numa situação de desemprego, o tribunal deve considerar, consoante o que for mais favorável ao lesado:

a) A média dos últimos três anos de rendimentos líquidos declarados fiscalmente, majorada de acordo com a variação do índice de preços no consumidor, considerando o seu total nacional, excepto habitação, nos anos em que não houve rendimento; ou

b) O montante mensal recebido a título de subsídio de desemprego.

Aqui chegados, temos que da aplicação deste enquadramento legal ao caso dos autos resultará um de dois cenários incompatíveis entre si.

Ou existe contrato de seguro válido e eficaz na data do acidente e, dado que o valor do pedido é inferior ao limite fixado no artigo 64º, nº 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08 para o capital mínimo do seguro obrigatório, a legitimidade processual passiva pertence única e exclusivamente à Ré “ C... .”

Ou não existe contrato de seguro válido e eficaz na data do acidente e a legitimidade processual passiva pertence única e exclusivamente ao “F.G.A.” e aos demandados A... e D... (detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidento enquanto responsável civil) – art. 64º, nº 3 do mesmo diploma legal.

Sobre a matéria apurou-se que:

O arguido A... pediu ao irmão D... que o veiculo passasse a constar na Conservatória do Registo Automóvel em seu nome, para além das razões de ordem familiar supra referidas, também por motivos patrimoniais (por ter assumido a qualidade de avalista em livranças em processos executivos, e outras dividas, vendo-se confrontado com a possibilidade de ver o seu património penhorado), com o fito de não ter o veiculo FJ (...) registado em seu nome para que o automóvel não fosse penhorado e respondesse por dividas, sendo que o segundo o aceitou apenas porque desse acto não resultava qualquer outro encargo decorrente dessa transmissão.

O arguido/demandado A... pagou todas as despesas referentes ao veículo FJ (...) em face do acordo assumido com o irmão A... .

O arguido/demandado A... utilizou o veículo FJ (...) de forma continuada e ininterrupta, desde que o adquiriu em 27/12/2012 até à data do acidente, sendo que o veiculo continuou na sua posse até à data em que dispôs do mesmo a favor de uma sucateira.

Pergunta-se, então, se existiu ou não, contrato verbal de compra e venda pelo qual o A... vendeu a D... , seu único irmão em data anterior à do acidente e que fez caducar o contrato de seguro nos termos e para os efeitos previstos no artigo 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12.

No âmbito da falta e vícios da vontade da declaração negocial, prevê a lei que:

Artigo 240.º (simulação) do Código Civil:

1 – Se, por acordo entre declarante e declaratório, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.

2 – O negócio simulado é nulo.”.

Acompanhando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-04-2012 (em www.dgsi.pt – Processo n.º 261/2000.C1.S1). e bem assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-03-2014 (1956/09.3TBFIG.C1), cujo sumário aqui deixamos transcrito: “1. A inoponibilidade consagrada no art.º 243.º do Código Civil não está limitada aos terceiros que com o acto simulado os simuladores visavam enganar ou prejudicar. II. Todavia, a proibição vale apenas em relação aos terceiros interessados na manutenção do acto para os quais a declaração de nulidade acarreta um prejuízo, não já em relação àqueles em que apenas os priva de uma vantagem.”

A dogmática da simulação encontra-se na emissão de uma declaração negocial sem sintonia com a vontade real do declarante, sendo que essa divergência resulta de um acordo entre este e o declaratário, tal como dispõe o n.º 1 do artigo 240.º do Código Civil.

A lei fulmina de nulidade o negócio simulado (n.º 2 do artigo 240.º do Código Civil) sem que, contudo, distinga entre a simulação inocente, ou seja, apenas com o intuito de enganar terceiros mas sem os prejudicar (“animus decipiendi”) e a fraudulenta, onde ocorre o “animus nocendi” ou propósito de lesar os terceiros.

Note-se que, para efeitos de simulação, o terceiro abrange "quaisquer pessoas, titulares de uma relação jurídica ou, praticamente, afectada pelo negócio simulado e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros (depois da morte do “de cujus”) – Professor Mota Pinto “apud” “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª edição, página 481 (confrontar, ainda, o Professor Manuel de Andrade, obra e volume citados, página 198 – São terceiros, para efeitos de simulação, quaisquer pessoas que não sejam simuladores, nem seus herdeiros (ou legatários) a menos que (quanto a estes) se trate de herdeiros legitimários que venham impugnar o negócio simulado para defender as suas legítimas”).

A simulação gera uma nulidade atípica já que os simuladores não a podem invocar contra terceiro de boa fé (artigo 243.º, n.º 1 e Professor Menezes Cordeiro, in "Tratado de Direito Civil", página 845).

Como julgou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 1995 – CJSTJ, 1995, II, 118 – a simulação identifica-se com o propósito de "criar uma aparência" e é nesse “fingimento” que se situa "o desígnio de provocar uma ilusão normalmente destinada a enganar terceiros" - confrontar, ainda, e “verbi gratia”, os Acórdãos de 4 de Novembro de 2010 (381/03.4TBVLN.G1.S1); de 23 de Novembro de 2011 (783/09.2TBLMG.P1.S1); e de 12 de Julho de 2011 (2378/06.3TBBCL.G1.Sl).

Enfim, e como ensina o Doutor Henrich Ewald Horster, “a simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir determinado negócio, e na realidade nenhum negócio querem celebrar” (in “Parte Geral do Código Civil Português”, 1992, 536).

Em síntese conclusiva, os requisitos da simulação são os seguintes:

- Divergência entre a vontade real e a vontade declarada (que, ressalvando o merecido respeito pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2007 – 06A4009 – entendemos ser o 1.º requisito e não o 2.º);

- Acordo simulatório;

-Intuito de enganar (“animus decipendi”) ou de prejudicar (“animus nocendi”) terceiros.

Quanto ao primeiro dos requisitos as vontades real e declarada são aferidas em termos psicológicos, que não jurídicos; o acordo simulatório implica um encontro de vontades entre os simuladores com um objectivo comum; se o propósito for apenas o “decipiendi”, a simulação é, como já se deixou dito, inocente, sendo, contudo, fraudulenta se os dois propósitos (“decipiendi” e “nocendi”) se cumulam.

Mas o negócio simulado é absolutamente nulo tanto na simulação absoluta como na relativa.

E esta conclusão não é afastada mesmo perante a inoponibilidade a terceiros de boa fé (confrontar o artigo 243.º do Código Civil e o Professor Rui de Alarcão, BMJ, 84-307); Professor Beleza dos Santos, in "A Simulação em Direito Civil", Coimbra, 1921).

Na simulação absoluta inexiste qualquer negócio por detrás.

Há apenas uma ostensiva aparência negocial (“colorem habet, substantiam vero nulam”).

A importância do pacto simulatório é enfatizada pelo Professor Pedro Pais de Vasconcelos (“apud” “Teoria Geral do Direito Civil”, 6.ª edição, página 682) nos termos seguintes: “Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso, e a regulamentação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real.”.

E como acima deixámos dito, este acordo, que surge em momento posterior à formação da vontade (com divergência entre o pensado e o declarado), é que constitui o núcleo distintivo entre a simulação e figuras da área (reserva mental e declarações não sérias) sendo, por conseguinte, o elemento fundamental da figura que tratámos.

Aqui chegados e consagrando a lei a nulidade do negócio simulado extraem-se as consequências dos artigos 286.º, 288.º e 289.º do Código Civil:

- invocabilidade a todo o tempo por qualquer interessado – sendo que no caso concreto foi arguida quer pelo Fundo de Garantia Automóvel, quer pelos demandantes G... e F... ; -declaração oficiosa pelo Tribunal;

- declaração oficiosa pelo Tribunal;

- impossibilidade de sanação por confirmação.

No dizer do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 02-10-2007 (em www.dgsi.pt – Processo n.º 56/03.4TBVGS): “A divergência entre a vontade real e a vontade declarada das partes traduz-se, na simulação, em cindir os efeitos vinculativos do negócio jurídico [internos, entre as partes], dos seus efeitos reflexos [externos, perante terceiros], desejando apenas estes, destacados do seu fundamento normal, que é o próprio vínculo negocial, porquanto, ao celebrarem o negócio, as partes não querem para si o que declaram querer, pretendendo, tão-só, criar uma aparência negocial para enganar terceiros … “divergência que resulta de” … acordo simulatório, que constitui uma recíproca manifestação de vontade das partes sobre a divergência entre a declaração e a sua vontade efectiva, e, também, no intuito de enganar terceiros.”.

Revertendo ao caso em apreço, no nosso entendimento, e salvo melhor opinião, verificam-se todos os três elementos que conduzem à declaração de negócio absolutamente simulado.

Efectivamente houve divergência entre aquilo que o D... e o A... declararam no contrato verbal de compra e venda do veículo Ford Mondeo matrícula FJ (...) e aquilo que era a vontade real dos declarantes, isto é, o 1.º declarou que comprava, e 2.º declarou que vendia, quando nenhum deles tinha qualquer efectiva intenção de celebrar o contrato de compra e venda que resultava do conteúdo das declarações de vontade negociais emitidas ou qualquer outro negócio que envolvesse o FJ (...) .

Tal aconteceu porque entre os dois (únicos irmãos) houve um encontro de vontades que resultou num acordo simulatório pelo qual emitiram as referidas falsas declarações negociais com vista a criar a mera aparência de um contrato de alienação do FJ (...) que permitiu fazer substituir na Conservatória do Registo Automóvel o A... pelo D... na titularidade do direito de propriedade sobre o FJ (...) .

O objectivo era claro, e consistia em fazer com que no registo público deixasse de constar em nome do A... um automóvel que facilmente poderia ser localizado e penhorado pelos seus credores, alguns dos quais era até avalista de livranças, aos quais assim pretendiam, pelo menos, enganar, ocultando sob o nome do D... o património que era propriedade do A... .

Deste modo, em síntese, reafirmamos que estamos perante um negócio nulo porque absolutamente simulado (artigo 240.º do Código Civil), donde resulta a conclusão de que o FJ (...) era propriedade do A... antes e depois do acidente de viação ocorrido a 24/08/2014, pelo que não se verificou a caducidade do contrato de seguro por aplicação do artigo art. 21º DL nº 291/2007, de 21/08.

É possível então afirmar que na data do acidente de viação era plenamente válido e eficaz como contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o acordo titulado pela apólice n.º 2 (...) , pelo qual o A... tinha transferido para a Ré “ C... , S.A.” a obrigação de indemnizar terceiros em caso de responsabilidade civil decorrente da verificação dos riscos cobertos inerentes à circulação do FJ, sendo que, por isso, será apenas esta DEMANDADA quem suportará os custos com o cumprimento da obrigação de indemnizar que impende sobre o condutor, detentor e proprietário do veículo.

Situação análoga (com decisão no mesmo sentido) pode ser encontrada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-02-1992 (em www.dgsi.pt – Processo n.º 081533, cujo sumário é: “O contrato de compra e venda do tractor não depende da observância de qualquer formalidade especial e o registo não e constitutivo de direitos. Não existe declaração da vontade válida quando se diz comprar e vender, mas apenas se quis garantir o uso do tractor, sem que houvesse tradição deste e pagamento do preço.”).

Cumpre ainda dizer, como complemento, que sendo a conclusão no sentido de que o contrato de seguro se manteve válido e eficaz porque o FJ sempre permaneceu na propriedade do A... , é claro que este também nunca perdeu interesse nem no FJ nem no seguro do mesmo, logo o contrato também não é nulo à luz do § 1.º do artigo 428.º do Código Comercial.

Assegurada que está a legitimidade processual passiva nos presentes autos unicamente pela Ré “ C... , SA” (art. 21º, nº 1 al. a) do DL nº 291/2007, de 21/08) cumprirá absolver da instância o demandado “FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL” e os demandados A... e D... nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 30.º, 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, 577.º, alínea e), e 578.º, todos do Código de Processo Civil, e art. 21º, nº 1 al. a) do DL nº 291/2007, de 21/08.

(…)”.


*

A) Recurso intercalar do arguido


Da nulidade da leitura do aditamento ao auto de notícia NUIPC 186/14.7GCLSA, de fls. 10 e verso, efectuada na audiência de julgamento

1. Alega o recorrente que constando do aditamento ao NUIPC 186/14.7GCLSA de fls. 10 declarações, alegadamente, por si prestadas antes mesmo de constituído arguido, a leitura do mesmo, pela Mma. Juíza a quo, na audiência de julgamento de 1 de Fevereiro de 2016, no decurso da inquirição da testemunha J... , sem que tenha sido dada a possibilidade aos intervenientes processuais de, previamente, se pronunciarem sobre tal leitura, viola o direito ao contraditório e gera nulidade da leitura do aditamento por não poder usado como meio de prova, uma vez que não foi obtido no âmbito de actividade investigatória ou cautelar pelo OPC.

O aditamento cuja leitura vem questionada tem o seguinte teor [na parte em que agora releva, indo a negrito as declarações atribuídas ao recorrente]:

“ (…).

No dia 25 de agosto de 2014, J... , Cabo n.º (...) , a prestar serviço no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de Miranda do Corvo, dou conhecimento da seguinte ocorrência:

Que neste dia 24, pelas 08h30, quando me encontrava de serviço de ocorrências, acompanhado pelo Guarda n.º (...) , N... , foi solicitada a nossa comparência na Estrada Nacional 342 - Miranda do Corvo devido a ocorrência de um acidente.

Chegado ao local verifiquei que um dos condutores se encontrava encarcerado e o outro se encontrava com ferimentos ligeiros, pelo que foi solicitado aos Bombeiros Voluntários de Miranda do Corvo que lhe prestassem a devida assistência. Enquanto me encontrava a recolher dados para elaboração da participação de acidente e a controlar o transito verifiquei que a viatura (ambulância) onde o condutor do veiculo nº 1 ( A... ) já não se encontrava no local do acidente. Questionados os bombeiros presentes os mesmos informaram que a viatura tinha transportado o ferido para os Hospitais de Universidade de B... .

Cerca das 09.20 horas chegou ao local o irmão do condutor ferido que me informou que o mesmo se encontrava em casa deste pelo que me desloquei ao local acompanhado pelo Guarda M... do Posto Territorial da Lousã. Ao chegar junto do condutor verifiquei que se encontrava deitado numa cama e a queixar-se de dores nas costas e no peito. Perguntei -lhe se tinha ingerido bebidas alcoólicas ao que me respondeu que tinha bebido uns finos ao jantar e uns 4 finos até às 4 da manhã e que a partir dessa hora não ingeriu mais nenhuma bebida alcoólica.

Devido aos ferimentos e as dores que apresentava e por se tratar de um acidente com um ferido grave e um morto informei o mesmo que teria de ser transportado aos Hospitais da Universidade de B... para efectuar a recolha de sangue para despistagem do álcool e de substâncias psicotrópicas, ao que o mesmo acedeu. Foi solicitado uma ambulância para o transporte do mesmo. A ambulância saiu de Miranda do Corvo cerca das 09.40, conforme cópia da ficha relatório dos bombeiros n.º 185/ABTD. Junta-se também cópia do Verbete de Socorro/Transporte do Inem referente ao 1º transporte em que o ferido se recusou a ser transportado aos Hospitais da Universidade de B... , segundo informação dos bombeiros.

Foi solicitado ao cabo dia do Comando de B... para se deslocar aos Hospitais para fazer a recolha de sangue, ao que o mesmo efetuou essa diligência.

(…)”.

Vejamos então.

2. O art. 32º da Constituição da República Portuguesa dispõe no seu nº 5 que, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório

Nota Figueiredo Dias, que o que verdadeiramente está em causa no princípio do contraditório e que o torna indispensável para o pleno e eficaz direito de defesa, é a relação entre a Pessoa e o Direito, mais particularmente, a relação entre a pessoa e o «seu» direito. O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão da justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado-de-direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como «comparticipação» de todos os interessados na criação da decisão. O princípio do contraditório e/ou da audiência traduz, portanto, a existência de uma norma objectiva de condução do processo que deve que deve assegurar ao titular do direito a possibilidade de alegar as suas razões e desse influir no ‘dizer’ do direito (Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, pág, 157 e ss.).

A nível infraconstitucional, o princípio do contraditório mostra-se presente em todas as fases do processo penal, ainda que com muito distintas intensidades.

Assim, na fase do inquérito, pela natureza e objecto deste, o princípio apenas se manifesta na tomada de declarações para memória futura, na medida em que podem ser valoradas em julgamento e, por isso, decorrem perante o juiz de instrução (art. 271º, nº 1 do C. Processo Penal). Na fase da instrução, para além da tomada de declarações para memória futura (art. 294º do C. Processo Penal, alarga-se ao debate instrutório (arts. 298º e 301º, nº 2, do C. Processo Penal).

Na fase do julgamento o princípio alcança a sua máxima amplitude, estando toda a audiência a ele subordinada, como decorre do disposto no art. 323º, nº 1, f) [no que respeita à direcção da diligência pelo juiz], 327º [em especial, para a questão sub judice, o seu nº 2, no que respeita aos meios de prova apresentados na audiência], 360º, nºs 1 e 2 [no que respeita a alegações orais] e 361º, nº 1 [últimas declarações do arguido], todos do C. de Processo Penal.

Dito isto.

O aditamento ao auto de notícia NUIPC 186/14.7GCLSA de fls. 10 constitui uma prova documental. Por seu intermédio, o OPC que o elaborou dá conta de uma determinada diligência por si efectuada, no âmbito do acidente de viação que integra o objecto dos autos e que consistiu em deslocar-se à residência onde soube encontrar-se um dos condutores intervenientes – o ora recorrente – onde lhe comunicou que, uma vez que tinha sido interveniente num acidente de viação, teria que ser sujeito a exame de pesquisa de álcool no sangue, tendo então sido solicitada uma ambulância que o transportou até aos Hospitais da Universidade de B... , onde foi efectuada recolha de sangue para exame.

É certo que no aditamento, o OPC refere que perguntou ao recorrente se tinha ingerido álcool e que este respondeu que tinha bebido ‘finos’ ao jantar e uns quatro ‘finos’ até às 4h, altura em que deixou de beber. E a pergunta feita era, obviamente, desnecessária, uma vez que a condição sine qua non para a sujeição de qualquer condutor ao dito exame é que tenha sido interveniente em acidente de viação, independentemente de ter ou não ingerido antes bebidas alcoólicas, como claramente resulta do disposto no art. 156º do C. da Estrada. 

Enquanto prova documental constante dos autos, neste caso, desde o seu início, sendo, por esta circunstância, pressuposto o seu conhecimento pelo recorrente, é evidente que o contraditório poderia ter sido oportunamente exercido, relativamente ao seu conteúdo, independentemente de a Mma. Juíza a quo ter ou não procedido à sua leitura na audiência de julgamento.

Questão diferente, é a da conformidade da sua leitura com a lei do processo e da sua eventual valoração probatória.

Estamos perante uma diligência efectuada por OPC, no âmbito das competências atribuídas pelos arts. 249º e ss. do C. Processo Penal, visando assegurar a realização, em tempo útil, de um específico meio de prova, o referido exame.

Embora do aditamento conste o relato da testemunha de uma conversa, desnecessária, como vimos, que teve com o recorrente [relato que, contudo, foi repetido pela testemunha na audiência de julgamento – circa 00:18:58 do depoimento –, no seguimento de instância feita por Ilustra Mandatária], o mesmo [relato] não integra o conceito de declarações de arguido, no sentido em que estas, enquanto meio de prova, se encontram reguladas nos arts. 140º e ss. do mesmo código. Com efeito, a diligência relatada no aditamento ao autos, ocorreu num momento de recolha informal de indícios, quando ainda não havia inquérito e, muito menos, arguido constituído pelo que, mesmo que a dita conversa tenha tido como interveniente alguém que seria já suspeito, ela não pode ser qualificada como declarações, em sentido processual (cfr. Acs. do STJ de 15 de Fevereiro de 2007, processo nº 06P4593 e de 12 de Dezembro de 2013, 292/11.0JAFAR.E1.S1, in, www.dgsi.pt).

3. Em suma, a actividade investigatória de recolha informal de indícios tem cobertura legal, não estando as declarações que constam do aditamento como tendo sido prestadas pelo recorrente, sujeitas às restrições estabelecidas nos arts. 356.º, n.º 1 e 357º, nº 1, ambos do C. Processo Penal, pelo que, a sua leitura em audiência de julgamento não determinou a verificação de nulidade.

Em todo o caso, mas se entende, ressalvado sempre o devido respeito, a arguição deduzida quando, sendo negativo o respectivo exame toxicológico forense [cfr. relatório de fls. 43], o recorrente não foi acusado da prática de crime ou de contra-ordenação cometidos sob influência de álcool, de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas estupefacientes.


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B) Recurso do arguido interposto da sentença


Da excessiva medida das penas principais, parcelares e única, e da pena acessória

4. Alega o recorrente – conclusões 2 a 20 – que as penas parcelares e única bem como, a pena acessória, são desequilibradas desde logo porque, na respectiva ponderação, foi considerado circunstancialismo que, não constando da acusação nem dos pedidos de indemnização, também não consta dos factos provados, e é contraditório com matéria que consta efectivamente, destes factos, depois, porque, como consta da sentença, a negligência presente foi a negligência inconsciente, o que significa um menor grau de culpa, acrescendo que não tem antecedentes criminais nem por infracções rodoviárias, é um condutor prudentes e está inserido socialmente sendo, por isso, baixas as exigências de prevenção especial, devendo, por tudo isto, serem as penas parcelares fixadas em 18 meses de prisão e a pena única em 24 meses de prisão, mantendo-se a suspensão da respectiva execução, e devendo a pena acessória, dada a necessidade diária de uso de carta de condução por razões profissionais, a impossibilidade de encontrar outra actividade que não requeira tal utilização, e a sua obrigação de pagar a pensão de alimentos devida a seus filhos, sob pena de violação do princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha e acesso à profissão e do dever de contribuir para o sustendo da família, ser reduzida a 12 meses de proibição de conduzir veículos com motor. 

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

4.1. Prevenção e culpa são os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida (art. 40º, nºs 1 e 2 do C. Penal). A primeira reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a segunda, dirigida ao agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, pág. 214 e ss.). A medida concreta da pena irá então resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos requerida por cada caso – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] –, temperada, quando possível, pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização], sempre, com respeito pelo limite inultrapassável da medida da culpa. Por isso que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84). 

Muito frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação da sua escolha.

Assim acontece quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. Nestes casos, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E assim sucede também com a operação da escolha das penas de substituição.

Escolhida a pena, na subsequente tarefa de determinação da sua medida concreta, a ser feita, como já dissemos, em função da culpa e das exigências de prevenção (art. 71º, nº 1 do C. Penal), há que considerar que a moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena.

Por isso, relevando tais limites, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime, havendo, entre outras, que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (art. 71º, nº 2 do C. Penal).

4.2. Revertendo para a questão sub judice, temos que o recorrente foi condenado em 1ª instância, além do mais e como já referido, pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 137º, nº 1 e 69º, nº 1, a) do C. Penal, em duas penas parcelares de vinte e oito meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de dois anos.

A 1ª instância optou, portanto, pela aplicação de pena privativa da liberdade, opção que se mostra correcta, sendo certo que não vem questionada no recurso. Como também não integra o objecto deste, a igualmente decidida substituição da pena única de prisão pela suspensão da respectiva execução [que, em todo o caso, também se nos afigura correcta].

4.2.1. Na verdade, o primeiro ponto de dissensão alinhado pelo recorrente prende-se com a afirmada ponderação pelo tribunal a quo na determinação da medida concreta das penas parcelares e única, de circunstancialismo que não consta da matéria de facto provada, consistente em não ter feito chegar qualquer sentimento de pesar e lamentação, consternação, pesar ou outro aos dois filhos do casal falecido, retirando, daí, a conclusão que a penosidade que o Arguido vem sentindo se deve essencialmente à repercussão que a situação dos autos tem da sua vida quotidiana, circunstancialismo este que, em seu entender, está também em contradição com a matéria que consta do ponto 123 dos factos provados [cujo teor é, «Os factos que deram origem ao presente processo, abalaram o arguido e tiveram um enorme impacto na sua vida, já que as vítimas do acidente eram seus amigos, o que tornou a situação ainda mais penosa, lamentando as consequências do mesmo.»].

Como vimos, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal deve sopesar as circunstâncias relevantes, algumas, exemplificativamente, constam do nº 2 do art. 71º do C. Penal. Estas circunstâncias terão que ser, naturalmente, objectivadas em factos e estes, para poderem, neste circunspecto, ser relevados, terão que constar dos factos provados.

O facto de o recorrente não ter manifestado perante os filhos das vítimas qualquer sentimento de pesar pelo sucedido não consta, efectivamente, dos factos provados da sentença e crise. Não obstante, na determinação da medida concreta das penas a Mma. Juíza a quo a ele se referiu da seguinte forma, «Acresce que, o arguido não confessou os factos, mas a sua postura em sede de julgamento e o teor do relatório social permitem afirmar que não é insensível ao valor da vida humana, tanto mais que mantinha relação de amizade com H... , tendo ficado naturalmente afectado com o sucedido, que teve consequências drásticas já que implicou a perda de duas vidas humanas. Todavia, também é certo que nunca fez chegar qualquer sentimento de lamentação, consternação, pesar ou outro aos dois filhos do casal falecido, mostrando-se que a penosidade que vem sentido se deverá essencialmente à repercussão que toda esta situação tem nas sua vida quotidiana.» o que, inquestionavelmente, significa que a apontada omissão pesou ‘negativamente’ na operação em curso. 

Não deveria pois, ter sido ponderada esta ‘circunstância’, sendo por isso já irrelevante a apontada contradição, ainda que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, e com o respeito devido, ela não exista, pois a omissão de manifestação de pesar aos filhos das vítimas não exclui o sentimento de pesar que o recorrente sinta pelo sucedido.  

4.2.2. Atentemos agora na forma como a 1ª instância chegou à medida das penas parcelares.

A Mma. Juíza a quo considerou ser de elevadíssima gravidade o grau de ilicitude, sem que tenha densificado esta afirmação. Porém, tendo o acidente ficado a dever-se, exclusivamente, à circunstância de o recorrente ter adormecido ao volante e de, nesta decorrência, ter permitido que a viatura por si conduzida invadisse a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido em que seguia, onde foi embater frontalmente numa viatura que por aí circulava, em sentido oposto, vindo os seus dois ocupantes, em consequência do embate, a sofre lesões físicas que lhes causaram, directa e necessariamente, a morte, não descortinamos um desvalor da acção que permita concluir como acima, antes se tendo o grau de ilicitude do facto como elevado [com efeito, este grau não pode ser determinado pelo resultado morte, uma vez que este integra o próprio tipo legal].

A Mma. Juíza a quo considerou que a culpa do recorrente se moldou pela negligência inconsciente, sem que tenha referido a sua intensidade.

Por seu turno, pretende o recorrente que, tendo agido com negligência inconsciente, actuou com um grau de culpa menor, em relação à simples negligência. Temos dificuldade em entender o sentido da alegação. É que, a simples culpa ou mera negligência – por oposição à negligência grosseira – pode ser, consciente ou inconsciente, consoante o agente representa como possível a realização do facto mas não se conforma com tal realização, ou nem sequer chega a representar a possibilidade de realização do facto (cfr. art. 15º do C. Penal). E assim, a contraposição deveria ser feita entre negligência consciente e negligência inconsciente.

Não se pense, porém, que a negligência consciente, na medida em que significa a representação pelo agente do resultado típico, consiste sempre numa maior gravidade da negligência, face à negligência inconsciente, onde essa representação está ausente, pois que a distinção visa apenas estabelecer os requisitos puramente psicológicos – positivos ou negativos – que pode assumir a negligência no seu conjunto, e a distinção desta quanto ao dolo eventual. E assim, como nota Figueiredo Dias, em termos de medida da pena tudo dependerá das exigências de prevenção que no caso se façam sentir e da gravidade da realização do tipo de ilícito e do tipo de culpa (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 862).

Considerando que a transposição da linha longitudinal contínua e invasão da metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, do veículo conduzido pelo recorrente, e embate no veículo onde seguiam as vítimas, se ficou a dever ao adormecimento daquele, nada mais constando dos factos provados [pontos 3 e 26] relativo às razões que determinaram o verificado adormecimento ao volante, admitindo-se que do ponto 27 dos factos provados [cuja redacção é, com o devido respeito, confusa e, em parte, meramente conclusiva] resulte ter o recorrente conduzido com negligência inconsciente, a intensidade da negligência é elevada.

A Mma. Juíza a quo considerou, e bem, serem elevadas as exigências de prevenção geral, dada a elevada sinistralidade rodoviária que o país regista, com negras estatísticas causadas.

A Mma. Juíza a quo considerou ainda a inexistência de antecedentes criminais e a inexistência de antecedentes pela prática de contra-ordenações rodoviárias, bem como a idade do recorrente e a sua inserção social, laboral e familiar e a circunstância de ter ficado afectado com o sucedido. A circunstância de o recorrente ser um condutor normalmente prudente e de ter sido este, o seu primeiro acidente [ponto 124 dos factos provados], nada mais acrescenta à inexistência de antecedentes, uma vez que, prudência na condução, é o que se exige a todo e qualquer condutor. Com efeito, a condução automóvel, apesar de ser uma actividade socialmente vulgarizada, é também uma actividade perigosa, o que parece ser desconhecido da maioria dos condutores.

Em todo o caso, não se fazem sentir as exigências de prevenção especial.

Considerando a moldura penal propostas que varia entre um mês e três anos de prisão, cremos que a pena de 2 anos e 4 meses de prisão para cada um dos crimes, decretada pela 1ª instância, comporta alguma compressão, sem que perca a capacidade de assegurar as exigências de prevenção in casu requeridas.

Deste modo, sendo elevadas as exigências de prevenção geral e uma vez que as circunstâncias agravantes sobrelevam às circunstâncias atenuantes, considera-se mais adequada uma pena situada acima do ponto médio da moldura aplicável mas ainda significativamente abaixo dos ¾ da mesma moldura, considerando-se, por isso, mais adequada e plenamente suportada pela medida da culpa, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão por cada um dos crimes praticados.

4.2.3. A modificação das penas parcelares impostas pela 1ª instância impõe verificar se deve ou não manter-se a pena única fixada.

E neste ponto há que conhecer da nulidade da sentença invocada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto que, no seu parecer, opinou no sentido de padecer aquela de fundamentação específica no que respeita à determinação da medida da pena aplicada ao concurso, até porque a mesma em muito ultrapassou o ponto médio da moldura aplicável.

É verdade que a sentença recorrida é, quanto a este aspecto, excessivamente lacónica, na medida em que se limita a um parágrafo, com o seguinte teor: «Atendendo às regras de punição do concurso previstas no art. 77º do Cod. Penal, temos que a moldura penal abstracta a atender para efeitos de cúmulo jurídico será de 28 meses de prisão a 56 meses, sendo que se considera proporcional e adequada, face aos factos e à personalidade do arguido a pena única de quatro anos de prisão.».

Sucede que os crimes em concurso são apenas os que integram o objecto dos autos, os quais têm a particularidade de resultarem de uma mesma acção negligente pelo que, o circunstancialismo a ponderar será precisamente o mesmo que foi ponderado na determinação da medida das penas parcelares, acrescendo agora, apenas, a personalidade do agente.

Acresce que, como se decidiu, a medida das penas parcelares foi modificada pelo que, sempre teria a Relação que verificar, com outros pressupostos, de deve manter-se a pena única ou se deve ser fixada uma outra pena única.

Em suma, embora não isenta de crítica, pela exiguidade da fundamentação expendida, entende-se que a sentença recorrida contém ainda a necessária para que sejam perceptíveis aos destinatários as razões que determinaram a fixação da pena única decretada.

Posto isto.

A punição do concurso de crimes, conforme dispõe o art. 77º, nºs 1 e 2 do C. Penal, é feita pela aplicação de uma pena única, a extrair de uma nova moldura penal que tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa (nº 2), ponderando-se na determinação respectiva medida concreta, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente (nº 1).

O elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única, é a personalidade do agente. Para este efeito, impõe-se a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, tal cumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, nota Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, pág. 291 e ss.), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). 

A moldura penal aplicável, face à redução das penas parcelares, passou a ter como limite mínimo, 1 ano e 6 meses de prisão e como limite máximo, 3 anos de prisão.

Os crimes praticados têm a mesma natureza e são, como se disse já, o ‘resultado’ de uma mesma acção negligente.

Ainda que não tenha assumido uma qualquer conduta reveladora de ter interiorizado a sua culpa, o recorrente mostra-se afectado e penalizado pelo sucedido, pelo que não se indicia a existência de uma personalidade com traços problemáticos.

Acresce que não se fazem sentir as exigências de prevenção especial.

Deste modo, porque não estamos, seguramente, perante o início de uma carreira criminosa, que radica na personalidade do recorrente, não deve a acumulação de crimes funcionar como uma agravante dentro da moldura proposta, considera-se adequada a pena única de 2 anos e 4 meses de prisão.

4.2.4. Mantém-se a suspensão da execução da pena única de prisão agora fixada, com a alteração do prazo respectivo, imposta pelo nº 5 do art. 50º do C. Penal, que passa agora a ser o de dois anos e quatro meses, a contar do trânsito do presente acórdão. 

5. Atentemos agora na medida da pena acessória, que o recorrente considera excessiva e violadora, como vimos, do princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha e acesso à profissão e do dever de contribuir para o sustendo da família, pugnando pela sua redução para 12 meses de proibição de conduzir veículos com motor. 

Sucede que a sentença recorrida padece, quanto a este aspecto, de nulidade por omissão de pronúncia. Explicando.

A pena acessória prevista no art. 69º do C. Penal é aplicável, nos termos do seu nº 1, a), ao autor de crime de homicídio negligente ou de crime de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário.

São penas acessórias as penas que só podem ser decretadas conjuntamente com uma pena principal ou com uma pena de substituição.

As penas acessórias têm a natureza de penas criminais. Por tal razão, não prevendo o C. Penal regras específicas para a determinação da sua medida, são-lhes aplicáveis os critérios gerais de determinação da medida das penas, previstos naquele código.

Assim, tendo o recorrente praticado dois crimes de homicídio por negligência, a sua responsabilização penal impunha a determinação de duas concretas penas principais e, depois, a fixação de uma pena principal única, o que foi feito, e impunha também a determinação de duas concretas penas acessórias e, depois, a fixação de uma pena acessória única, o que não foi feito.

Na verdade, lê-se na fundamentação da sentença, no que respeita à pena acessória, «Quanto ao número de meses da proibição, considera-se que o pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 24 (vinte e quatro) meses é suficientemente elevado, sopesando o facto de ter sido interveniente em acidente de viação, em consequência do qual vieram a falecer duas vítimas, e a necessidade deste interiorizar a censurabilidade da sua conduta e de prevenir a incursão futura do mesmo na prática do mesmo crime, em conjugação com o facto de não ter antecedentes criminais, nem contra-ordenacionais, desta ou de outra natureza e se encontrar bem integrado.», o que significa que foi fixada uma só pena acessória, não resultante de qualquer cúmulo de penas parcelares, para os dois crimes de homicídio negligente praticados.

Ao não determinar a pena acessória a aplicar a cada crime de homicídio negligente, o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, pelo que, nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, c) do C. Processo Penal, padece a sentença de nulidade por omissão de pronúncia. 

Esta nulidade prejudica o conhecimento da questão suscitada pelo recorrente – excessiva medida da pena acessória – e deve ser suprida pela 1ª instância.


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C) Recurso da demandada civil Companhia de Seguros C...


Da incompetência do tribunal a quo, da violação do princípio da adesão e da nulidade da sentença por excesso de pronúncia [ao ter conhecido da simulação da venda do veículo conduzido pelo arguido]

6. Alega a recorrente – conclusões 14 a 17 – que o tribunal recorrido exorbitou a sua competência e violou o princípio da adesão, pois só o pedido de indemnização civil fundado na prática de crime pode ser deduzido no processo penal respectivo, não se destinando o mesmo, no entanto, a conhecer da responsabilidade contratual ou de vícios de vontade, designadamente, simulação na venda de bens do arguido, invocando em abono da sua tese o Assento nº 7/99, de 17 de Junho, e ainda que, ao ter-se pronunciado sobre questão de que não podia conhecer, cometeu nulidade da sentença.

Brevitatis causa, a questão apresenta-se nos seguintes termos:

- O assistente e o demandante civil deduziram pedido de indemnização contra a C... , SA e, subsidiariamente, contra o Fundo de Garantia Automóvel, o arguido e D... , alegando, quanto à responsabilidade pela reparação dos danos peticionados, que o veículo conduzido pelo arguido e exclusivo causador do acidente a este pertencia, por o ter comprado e fazer uso diário dele, estando o mesmo, a partir de Outubro de 2013, registado em nome de seu irmão D... por razões meramente formais, não tendo existido qualquer venda que tivesse por objecto o veículo;

- Contestou o Fundo de Garantia Automóvel, dizendo que na data do acidente, o veículo causador do mesmo tinha seguro válido e eficaz, pois não existiu qualquer alienação do mesmo, constituindo apenas a alteração do registo uma simulação para proteger os interesses dos dois irmãos no sentido de salvaguardarem o património, acrescendo que sempre o tomador do seguro manteve o interesse no mesmo, pois manteve a direcção efectiva do veículo;

- Contestou a C... SA, dizendo que tendo o veículo interveniente no acidente sido alienado em 29 de Outubro de 2013 a D... , com a respectiva aquisição registada, o contrato de seguro que havia celebrado com o arguido, tendo por objecto a responsabilidade civil do dito veículo, cessou os seus efeitos às 24h do dia da alienação, e por causa desta, situação que é oponível aos lesados, acrescendo que, tendo embora os demandantes alegado, no pedido deduzido, a existência de simulação na compra e venda do veículo, sem referirem os factos pertinentes;

- Contestou D... , dizendo que nunca foi dono do veículo, apenas acedeu ao pedido de seu irmão, o arguido, para que o mesmo, por razões de ordem familiar, passasse a constar como seu na conservatória, nunca tendo tido a sua direcção efectiva, nunca o tendo conduzido ou permitido ou autorizado que alguém o fizesse; e,

- Contestou o arguido, dizendo que não transmitiu ou alienou o veículo ao seu irmão, apenas lhe pediu que, por razões de ordem familiar, o veículo passasse a constar em nome deste na conservatória, e que sempre teve a sua direcção efectiva sendo o seu exclusivo condutor e quem assegurou a sua manutenção e o cumprimento das inerentes obrigações fiscais, sendo válido o contrato de seguro celebrado com a C... , na data do acidente.

Vejamos, então, se assiste ou não razão à recorrente.

6.1. A prática de um crime pode dar origem, para além de responsabilidade penal, a responsabilidade civil e, portanto, a uma indemnização de perdas e danos de natureza exclusivamente civil. A este propósito, dispõe o art. 129º do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil

Assim, coloca-se a questão de saber como pode o lesado exercer o direito à indemnização, separados que há muito se encontram, o processo penal e o processo civil. Três caminhos são possíveis: um sistema de independência absoluta, em que o crime e a indemnização civil são conhecidos e decididos no foro penal e no foro civil; um sistema de adesão alternativa, em que, quer a jurisdição penal, quer a jurisdição civil, podem conhecer da indemnização civil, cabendo a opção da jurisdição ao lesado e; um sistema de adesão obrigatória, em que a indemnização civil tem que, obrigatoriamente, ser conhecida e decidida no processo penal.

 O C. Processo Penal consagra o sistema de adesão obrigatória, dispondo no seu art. 71º, sob a epígrafe «Princípio de adesão» que, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

Contudo, o princípio admite excepções: Assim, a lei permite que o pedido de indemnização seja deduzido em separado, no tribunal civil, entre outras situações, quando ocorra demora excessiva no andamento do processo penal, quando este tiver sido arquivado ou extinto antes do julgamento, quando o procedimento respeite a crimes semi-públicos e particulares, quando, ao tempo da acusação, não houver danos ou notícia da sua existência, quando a sentença penal não se tenha pronunciado sobre o pedido, ou quando a forma de processo o não comporte (cfr. art. 72º, nº 1 do C. Processo Penal).

Como vantagens do sistema de adesão obrigatória apontam-se: razões de economia processual, pois no mesmo processo são resolvidas todas as questões suscitadas pela prática do crime; razões de economia de meios, pois os interessados não são obrigados a despender custos acrescidos, e; razões de prestígio institucional, pois a existência de um único processo impede a verificação de julgados contraditórios. Figueiredo Dias assinala ainda o contributo do sistema para o fim retributivo e preventivo da pena, dando particular ênfase a uma mais rápida, mais barata e mais eficaz realização do direito do lesado à indemnização (Direito Processual Penal, 1ª Edição 1974, Reimpressão 2004, Coimbra Editora, pág. 562).          

Naturalmente que a dedução do pedido de indemnização civil no processo criminal requerer o conhecimento pelo tribunal de questões, adjectivas e/ou substantivas que, para além da sua maior ou menor complexidade, podem ter reflexo na marcha do processo.

No processo penal vigora o princípio da suficiência, estabelecendo o nº 1 do art. 7º do C. Processo Penal que, o processo penal é promovido independentemente de qualquer outros e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa. Este princípio significa que o tribunal criminal assume competência própria para se pronunciar sobre todas as questões, independentemente da sua natureza, penal ou outra, que interessem à decisão da causa.

O princípio comporta excepções, como decorre do nº 2 do mesmo artigo, mas a devolução da questão não penal ao tribunal competente depende da formulação de um juízo de conveniência por parte do juiz do processo penal.

Na mesma linha surge a 1ª parte do nº 2 do art. 82º do C. Processo Penal, o qual dispõe que, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

            6.2. Nos autos, o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente e pelo demandante G... funda-se na prática de dois crimes de homicídio por negligência pelo arguido. E foi deduzido, como permite o art. 73º, nº 1 do C. Processo Penal, também, contra pessoas com responsabilidade meramente civil.

            Aliás, porque a prática dos crimes decorreu no exercício da condução automóvel, pelo arguido e no âmbito de um acidente rodoviário, o pedido foi deduzido contra a C... SA, pressuposta a existência de contrato de seguro na data do acidente, como é imposto pelo art. 64º, nº 1, a) do Dec. Lei 291/2007, de 21 de Agosto, que aprovou o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel [doravante, RSSORCA], para assegurar a legitimidade da demandada. Porém, certamente cientes das posições da seguradora, do Fundo de Garantia Automóvel, do arguido e do titular inscrito no registo quanto à propriedade do veículo, criadoras de fundamentada dúvida sobre o sujeito ou os sujeitos passivos da obrigação de indemnizar, lançando mão do instrumento processual previsto no art. 39º do C. Processo Civil, demandaram subsidiariamente, no pressuposto da inexistência de contrato de seguro válido e eficaz, e em estrita obediência ao disposto no art. 62º, nº 1 do RSSORCA, o Fundo de Garantia Automóvel, o arguido e o titular inscrito.

            Assim, da existência ou inexistência de contrato de seguro válido e eficaz na data do acidente, celebrado entre o arguido e a C... SA, dependia a legitimidade desta ou a legitimidade do Fundo de Garantia Automóvel, do arguido e do titular inscrito, para serem demandados no processo crime.

            Pretendendo o Fundo de Garantia Automóvel, o arguido e o titular inscrito, que na data do acidente existia contrato de seguro válido e eficaz porque, apesar de, nos termos do registo automóvel, a propriedade do veículo interveniente, antes do acidente, ter sido transmitida para o titular inscrito, tratou-se apenas de um negócio simulado, visando outros fins, não sendo por isso, responsáveis pelo pagamento da indemnização, e entendendo a demandada C... SA que a alegada simulação lhe é ineficaz e que por isso, tendo o contrato de seguro cessado os seus efeitos no dia da alienação do veículo, o pagamento da indemnização não é responsabilidade sua, é evidente que uma das questões que o tribunal a quo tinha que conhecer era a da legitimidade passiva relativamente ao pedido de indemnização deduzido a qual dependia da existência ou inexistência de contrato válido e eficaz de seguro, na data do acidente. E a resposta a dar a esta questão dependia da resposta dada a uma, chamemos-lhe assim, questão prévia, a de saber se o veículo interveniente no acidente, conduzido pelo arguido, foi por este realmente vendido ao seu irmão, titular inscrito no registo ou se, pelo contrário, a venda e subsequente inscrição registal foi um negócio simulado.

            Deste modo, e uma vez que a Mma. Juíza a quo não reconheceu a existência de questão não penal que não pudesse ser convenientemente resolvida nos autos [e também não vemos que o devesse ter feito], a questão da simulação e dos seus efeitos foi suscitada no processo e interessa, pelas razões apontadas, à decisão da causa, na matéria civil, mas que competia ao tribunal a quo decidir pelo que, atento o princípio da suficiência do processo penal, não só não exorbitou a sua competência, como não se vê como possa ter sido violado o princípio da adesão e muito menos, o art. 72º, nº 1 do C. Processo Penal [como se afirma na conclusão 14], já que se não conheceu de responsabilidade contratual [se é verdade, como alega a recorrente, que a simulação (ou não) da venda do veículo não é causa nem consequência dos crimes praticados pelo arguido, ela é, no entanto, e como se disse, pressuposto necessário da determinação do responsável pelo pagamento da indemnização devida pela prática daqueles crimes], carecendo de fundamento, com o respeito devido, a invocação da jurisprudência fixada pelo Assento nº 7/99.

            Por outro lado, se o tribunal a quo, para decidir quem era responsável pelo pagamento da indemnização peticionada, tinha que, previamente, fixar a legitimidade passiva dos demandados, se para tanto, tinha que decidir se existia ou não contrato de seguro válido e eficaz na data do acidente, o que dependia da simulação ou não da venda do veículo, temos por certo que, ao conhecer de todas estes aspectos, se limitou a emitir pronúncia sobre questões que devia apreciar, pelo que não enferma a sentença, nesta parte, de excesso de pronúncia e, portanto, da nulidade prevista na 2ª parte da alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal.


*

Da caducidade do contrato de seguro pela venda do veículo segurado e da irrelevância da simulação invocada e consequente absolvição

            7. Alega a recorrente – conclusões 2, 3, 5, 7, 8 e 10 a 13 – que tendo o veículo sido vendido no dia 29 de Outubro de 2013, nesse mesmo dia cessou efeitos o contrato de seguro que havia celebrado com o arguido, recaindo sobre o adquirente a obrigação de o segurar, sendo irrelevante a existência ou não de simulação para subtrair o veículo à acção de credores, pelo que não podia a sentença recorrida, reconhecendo a simulação, fazer ‘reviver’ o contrato, uma vez que a verificada caducidade o extinguiu tendo desaparecido todos os seus efeitos, acrescendo que a simulação não podia ser arguida contra terceiro de boa fé e devendo a acção destinada a declarar a nulidade do negócio por simulação conter os requisitos previstos nos arts. 240º e ss. do C. Civil.

            Vejamos.

            O contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel garante a reparação dos danos causados a terceiro em consequência de acidente de trânsito cuja responsabilidade seja imputável ao respectivo segurado. Trata-se, com efeito, de um contrato celebrado intuitu personae e por isso, dispõe o art. 4º, nº 1 do RSSORCA que objecto do seguro é a responsabilidade da pessoa que possa ser responsável pelos danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor e não, o veículo, em si mesmo.

Nesta decorrência, estabelece o art. 21º, nº 1 do mesmo diploma que, o contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do própria dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo. Em complemento, determina o art. 22º ainda do mesmo diploma que a seguradora pode opor aos lesados, além do mais, a cessação do contrato de seguro nos termos do nº 1 do art. 21º.

Não subsistindo dúvidas quanto à repercussão que a alienação do veículo segurado tem sobre o contrato de seguro, que se traduz na cessação dos efeitos do contrato ou, preferindo-se, na sua caducidade [salvo se usado, pelo tomador, para segurar outro veículo], a questão que se coloca é então a de saber quem era, efectivamente, o proprietário do veículo conduzido pelo arguido, na data do acidente.

8. Em síntese, vem provado que, no dia 7 de Novembro de 2012, entre o arguido A... e a demandada C... SA, foi celebrado um contrato de seguro tendo por objecto a responsabilidade civil emergente de acidente de viação relativa ao veículo automóvel de matricula FJ (...) [ponto 87 dos factos provados], o arguido A... comprou o veículo com a matricula FJ (...) no dia 27 de Dezembro de 2012 [ponto 90 dos factos provados], em 29 de Outubro de 2013 foi efectuada a transferência do registo de propriedade do FJ (...) , do arguido para o seu irmão, D... [pontos 91 e 92 dos factos provados], não obstante, desde 27 de Dezembro de 2012 e até 24 de Agosto de 2014 o FJ (...) foi sempre, cuidado, guardado, reparado, abastecido, usado e fruído pelo arguido, que dele fez uso diário, como veículo pessoal, nas suas deslocações profissionais, familiares e de lazer, de forma continuada e ininterrupta, pagando também as respectivas obrigações fiscais e o prémio do seguro [pontos 93, 94, 95, 96 e 103 dos factos provados], nunca tendo o D... conduzido o veículo, permitido ou autorizado que alguém o fizesse, nem pago o imposto respectivo ou o prémio do seguro [ponto 98 dos factos provados], ficando a alteração da titularidade do veículo a dever-se a pedido que o arguido fez ao seu irmão D... , e que este aceitou, por razões de ordem patrimonial do primeiro, designadamente, para evitar a penhora do veículo devido às responsabilidades que assumira em livranças em execução e outras dívidas [pontos 97 e 101 dos factos provados]. 

Dispõe o art. 240º, nº 1 do C. Civil que, se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.   

Aqui, os estipulantes, mancomunados, criam a aparência de um contrato, que efectivamente não querem no seu conteúdo (Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, 2002, Coimbra Editora, pág. 165). O contrato é meramente aparente, pretendendo as partes, com ele, enganar ou mesmo, prejudicar terceiros, e não regular os seus interesses do modo que decorre do contrato. Em suma, declara-se o que não se quer, e esta em desarmonia entre o lado exterior e o lado interior do contrato é intencionalmente criada, como fruto do entendimento entre os contraentes, os quais procedem assim com o objectivo de forjar uma ilusória aparência, que induza os terceiros em engano (aut., ob. e loc. cit.).

São requisitos da simulação, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o intuito de enganar terceiros e o acordo simulatório, o pactum simulationis.

A lei distingue entre simulação absoluta – quando as partes, celebrando aparentemente um contrato, na verdade, nenhum contrato quiseram celebrar [existe apenas um acto jurídico, o contrato simulado] – e simulação relativa – quando as partes celebraram efectivamente um contrato, mas para enganar terceiros, o celebram sob a veste de um outro contrato, com diferente função e natureza, ou apenas diferente em algum aspecto particular [existem dois actos jurídicos, o contrato simulado e o contrato dissimulado] – fixando o regime da simulação relativa no art. 241º do C. Civil. A lei distingue ainda (cfr. 242º, nº 1 do C. Civil), se bem que, sem estabelecer qualquer consequência ou efeito práticos, entre simulação inocente – a que visa apenas enganar – e simulação fraudulenta – a que visa prejudicar. 

O nº 2 do art. 240º do C. Civil estabelece que o negócio simulado é nulo. A nulidade opera ipso jure, sendo por isso, invocável a todo o tempo por qualquer interessado, e podendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286º do C. Civil). Assim, a simulação pode ser invocada por qualquer interessado e declarada oficiosamente pelo tribunal, e a sua arguição pode ser feita a todo o tempo, quer por acção, quer por excepção (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, 1987, Coimbra Editora, pág. 227).

8.1. Alega a recorrente que a acção destinada a declarar a nulidade do negócio, por simulação, deve conter os requisitos previstos nos arts. 240º e ss. do C. Civil e não, ser referida, a latere, por demandantes e Fundo de garantia Automóvel.

Sem razão porém.

Com efeito, e como já referido, a simulação não tem, necessariamente, que ser invocada por acção, podendo também sê-lo por excepção, e foi o que aconteceu nos autos.

8.2. O documento de fls. 376 a 378, cujo teor foi dado por integralmente reproduzido no ponto 92 dos factos provados da sentença, constitui um Requerimento de Registo Automóvel, relativo ao veículo com a matrícula FJ (...) , do qual consta que o vendedor (sujeito passivo) o arguido A... declarou ter celebrado no dia 29 de Outubro de 2013 um contrato de compra e venda verbal (como resulta da instrução de preenchimento 7) confirmando-o sem quaisquer restrições. No mesmo requerimento figura como comprador (sujeito activo) o demandado D... .

Assim, ainda que com imperfeita tradução na matéria de facto provada, onde as atenções convergiram para o registo do veículo [cfr. pontos 91, 92 e 97 dos factos provados], quando este não tem efeito constitutivo mas meramente declarativo, constituindo apenas presunção juris tantum da titularidade do direito (cfr. arts. 1º, nº 1 e 29º do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro e art. 7º do C. do Registo Predial), o que temos é que entre o arguido e o seu irmão foi, formalmente, celebrado um contrato de compra e venda tendo por objecto o FJ (...) , contrato que visou apenas subtrair à acção dos credores do arguido, o veículo em questão. E tanto assim foi, como se retira dos factos provados que, não obstante o negócio, o veículo continuou como até então tinha estado, isto é, no gozo e fruição plenos do arguido, nunca tendo o formal adquirente exercido qualquer acto de domínio sobre ele.

Não subsistem, portanto, dúvidas, de que o arguido e o demandado seu irmão, no contrato, declaram o que não quiseram isto é, o contrato não consubstancia um verdadeiro acordo de vontades no sentido da transferência do bem. Por isso, não existindo vontade de vender, não há contrato de compra e venda.

Por outro lado, por de trás do contrato formalmente celebrado, não quiseram arguido e demandado celebrar qualquer outro negócio jurídico mas apenas subtrair o bem à acção dos credores do primeiro, o que significa, atento o que supra se deixou dito, que estando presentes os requisitos da simulação, esta é fraudulenta e absoluta.

8.3. A recorrente aceita que a simulação está patente na factualidade apurada mas que, sendo a ela alheia ao negócio simulado, lhe é inoponível a respectiva declaração, invocando, para o efeito, o art. 243º, nº 1 do C. Civil.

Vejamos.

Dispõe o art. 243º, nº 1 do C. Civil que, a nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé. Por seu turno, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que, a boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos.  

Desconhecendo-se a data em que a recorrente teve conhecimento da simulação [cfr. 3º facto não provado da sentença], e ainda que não existam razões para afastar a sua boa fé, a norma em questão é-lhe inaplicável uma vez que, para além dos simuladores, outros terceiros invocaram este vício da vontade como seja, o Fundo de Garantia Automóvel, e também este estará de boa fé.

Por outro lado, sendo admissível, no âmbito da simulação, a existência de conflito entre terceiros com interesse na nulidade do acto simulado e terceiros com interesse na validade desse acto, entendemos que, em qualquer caso, terceiro será apenas aquele que, tendo entrado em relações com os simuladores, através da situação aparente criada pela simulação, adquirem ou garantem um direito.

Manifestamente, não é esta a situação da demandada, uma vez que nenhum direito dos simuladores tendo por objecto o veículo, nem nenhum direito, pré-existente ou constituído posteriormente ao negócio simulado tem, que seja garantido pelo bem em questão. Pelo contrário, o que a demandada pretende é valer-se da superveniência de um facto para obter a cessação dos efeitos do contrato de seguro, quando tal facto – porque correspondendo a um negócio simulado – não tem a categoria jurídica – negócio que signifique a alienação do veículo – que a lei requer para desencadear aquela cessação de efeitos. Na verdade, sendo sempre reprovável a conduta dos simuladores, os efeitos legais da simulação não têm o alcance pretendido pela demandada pois que, se não houve alienação do veículo, não ocorreu, com tal fundamento, a caducidade do contrato de seguro.

Acresce que, in casu, tão-pouco se agravou o risco da demandada, relativamente ao que havia assumido no contrato de seguro, posto que se mantiveram inalterados, quer o veículo, quer o tomador e condutor habitual.

Em suma, não tendo existido compra e venda do veículo FJ (...) , segurado na demandada, e mantendo-se, por isso, a titularidade do respectivo direito de propriedade na esfera patrimonial do arguido, tomador do contrato de seguro na data do acidente, este contrato era válido e eficaz pelo que, deve a demandada cumprir as obrigações dele decorrentes (cfr. Ac. do STJ de 18 de Fevereiro de 1992, processo nº 081533, in www.dgsi.pt). Sendo o arguido, condutor do FJ (...) , o único e exclusivo culpado na verificação do acidente de viação que integra o objecto dos autos, medindo-se a responsabilidade da demandada pela responsabilidade daquele, deve esta satisfazer a indemnização devida pelos danos verificados.

Assim, não merece a sentença recorrida censura, na parte em que condenou a demandada no pagamento da indemnização fixada.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

A) Negar provimento ao recurso intercalar do arguido.

            B) Conceder parcial provimento ao recurso do arguido interposto da sentença e, em consequência, decidem:

            1. Declarar a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, relativamente à determinação e fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, determinando, nesta parte, a sua substituição por outra, que supra a apontada nulidade, nos termos sobreditos.

2. Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido A... nas penas parcelares de vinte e oito meses de prisão e de vinte e oito meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, e condenar o arguido nas penas parcelares de um ano e seis meses de prisão e de um ano e seis meses de prisão e em cúmulo, na pena única de pena única de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, a contar do trânsito do presente acórdão.  

C) Negar provimento ao recurso da demandada Companhia de Seguros C... , SA.

            D) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

            E) 1. Custas do recurso intercalar pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

            2. Sem custas o recurso do arguido interposto da sentença, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).

3. A demandada Companhia de Seguros C... , SA., suportará as custas do recurso respectivo (arts. 523º do C. Processo Penal e 527º, nºs 1 e 2 do C. Processo Civil).

Coimbra, 9 de Janeiro de 2017



(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)