Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1131/10.4TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERESSE
COISA
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 428º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – O interesse que releva para efeitos de celebração de um contrato de seguro – e cuja inexistência determina a nulidade do contrato, nos termos do art. 428º do Código Comercial – pressupõe a existência de uma relação jurídica relevante, de natureza económica e patrimonial, com a coisa segura.

II – Ainda que, em dado momento, não tenha o seu uso e fruição, o proprietário da coisa tem, pelo menos por regra, efectivo interesse na celebração de um contrato de seguro que a tenha por objecto, porquanto, reflectindo-se no seu património o prejuízo económico inerente à perda ou deterioração da coisa, tem um efectivo interesse económico na sua conservação.

III – Não padece de nulidade a sentença que, na enunciação da matéria de facto provada, omite a reprodução de um facto que já havia sido considerado provado e não considera esse facto para efeitos de decisão; se esse facto não for relevante para a decisão da causa, estará em causa uma mera irregularidade processual sem qualquer consequência de relevo; caso contrário – ou seja, caso esse facto seja relevante e seja susceptível de alterar a decisão proferida – estará em causa um erro de julgamento que determinará a revogação da sentença em virtude de esta não se adequar à matéria de facto que, por ter sido considerada provada, tinha que ser considerada para efeitos de decisão.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente no lugar de (...), Abiúl, intentou acção, com processo sumário, contra Companhia de Seguros B... , S.A., com sede em Rua (...), Lisboa, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 23.939,00€, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até pagamento.

Alegava, para o efeito, que, no dia 13/06/2004, um veículo de sua propriedade foi interveniente num acidente de viação, em consequência do qual sofreu danos que implicaram a sua perda total, na medida em que o custo da reparação era superior ao seu valor venal. Mais alega que o valor venal do veículo, à data do acidente, era de 23.939,00€ e que, tendo outorgado com a Ré um contrato de seguro contra danos próprios, referente ao aludido veículo e com o capital seguro de 23.939,00€, está a mesma obrigada a pagar-lhe esse valor.

A Ré contestou, invocando a nulidade do contrato de seguro por declarações inexactas e dada a circunstância de o Autor ter declarado ser ele o condutor habitual do veículo, quando era o seu filho que o conduzia diariamente (como conduzia na ocasião do acidente), sendo que esta circunstância era relevante para a celebração do contrato e para o valor do prémio de seguro a pagar, em virtude de o filho do Autor ter 20 anos de idade e carta há menos de 2 anos; por outro lado, o Autor, ao participar o acidente, omitiu a intervenção no acidente do veículo IX, cujo condutor não era portador de carta de condução, nem de seguro e inspecção válidos, sendo que os condutores dos veículos – que eram amigos e regressavam de uma festa – combinaram omitir a participação deste veículo, quando é certo que o acidente ocorreu por encandeamento provocado pelo IX e cujo condutor não conseguiu imobilizar o veículo antes de embater no veículo do Autor depois de este ter chocado com um poste de iluminação. Mais alega que o valor venal do veículo era de 19.300,00€ e os salvados, que ficaram na posse do Autor, valiam 1.000,00€, para além de existir uma franquia de 478,78€.

Com estes fundamentos e impugnando alguns dos factos alegados conclui pedindo a sua absolvição, mais requerendo a intervenção acessória do Fundo de Garantia Automóvel, C... e D... , contra quem terá direito de regresso, caso venha a ser condenada.

O Autor respondeu, sustentando a validade do contrato de seguro e concluindo pela improcedência das excepções invocadas e pela procedência da acção.

Ouvido o Autor no que toca ao incidente de intervenção de terceiros, foi proferida decisão que rejeitou a requerida intervenção.

Foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando improcedente a excepção de nulidade do contrato e julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de 21.960,22€, acrescida de juros legais, a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

Discordando dessa decisão, a Ré veio interpor recurso de apelação, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:

1ª – Emerge o presente recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Pombal, a qual:

a. considerou que o capital seguro na Ré Recorrente, ao abrigo de um contrato de seguro contra danos próprios celebrado com o Autor, de € 23.939,00 em resultado de choque, colisão e capotamento do veículo de matrícula (...)UN, corresponde à indemnização devida pela Ré pela “perda total” deste veículo “UN”, na sequência do acidente versado nos autos; e

b. julgou improcedente a excepção peremptória da nulidade do contrato de seguro aduzida pela Ré, condenando esta a pagar ao Autor a quantia de € 21.960,22 e juros legais, após a citação.

É, pois, este o objecto da presente Apelação.

2ª – Afigura-se à ora Recorrente que a douta sentença recorrida faz inexacta apreciação dos factos provados, errando consequentemente na aplicação do direito.

3ª – Com relevância para o apontado na Conclusão que antecede, al.a., ficou nomeadamente assente a factualidade que segue:

1. O Autor outorgou, na qualidade de proprietário do veículo (...)UN, um contrato de seguro com a Ré em 23/01/03 em que, para além de outros riscos, se garantia o de choque, colisão e capotamento do veículo (...)UN (apólice nº 5070 /8015951 / 50).

2. Nos termos das condições particulares do contrato de seguro, o capital seguro pelos danos decorrentes de choque, colisão e capotamento era de €23.939,00, com a franquia de 2%, no valor de € 478,78.

3. Das ditas condições particulares do contrato de seguro, consta que o valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total como consequência dos riscos de choque, colisão e capotamento é o valor venal do veículo à data do acidente.

4ª – Da “Fundamentação de Facto” da douta sentença não resulta qual era o valor venal (ou de mercado) do veículo (...)UN à data do acidente, em 13/6/04.

Circunstância que releva, atento o referido em 3.da Conclusão anterior.

5ª – Em sede de “Fundamentação de Direito”, a fls 9, da douta sentença recorrida, diz-se que: “…o automóvel propriedade do Autor ficou quase integralmente destruído … de tal forma que o seu custo de reparação, era superior ao seu valor venal, isto é, o valor que o veículo teria no mercado …, pelo que ocorreu a “perda total” do veículo UN”.

E, a fls 14 da mesma douta sentença, diz-se que:

“…recairá sobre a mesma a obrigação de suportar o pagamento dos danos materiais sofridos pelo veículo seguro, no montante de € 23.939,00, correspondente ao valor seguro atenta a perda total do mesmo”.

6ª – Constata-se deste modo a inteira insubsistência, e incongruência, dos Fundamentos da douta sentença, pelo que a Ré não pode deixar de respeitosamente discordar da mesma, dado que:

- não se sabe a quanto montaram os danos materiais do veículo – apenas sabemos que o custo da reparação era superior ao seu valor venal, valor este que contudo se desconhece; e,

- o capital seguro inicialmente contratado de € 23.939,00 não vincula para os efeitos de indemnização em caso de “perda total” do veículo, na medida em que o que in casu relevaria, face ao teor das condições particulares indicadas na Conclusão 3ª/3, seria o valor venal do mesmo à data do acidente, facto este contudo não comprovado nos autos.

7ª – Por conseguinte, não fazem sentido as contas feitas pelo douto Tribunal recorrido, de se deduzir o provado valor dos salvados de € 1.500,00 e o provado valor da franquia de € 478,78 ao valor do capital seguro em danos próprios inicialmente contratado com o Autor, de € 23.939,00, porquanto este “valor segurável” à data de 23/01/03 não constitui o “ponto de referência” para se avaliar e quantificar a indemnização porventura devida em 13-6-04.

8ª – Deste modo, espera - se ver alterada a douta decisão recorrida, em moldes de se vir a julgar totalmente improcedente a acção e a Ré Recorrente absolvida do pedido.

9ª – A douta sentença recorrida fez incorrecta apreciação da factualidade apurada e violou nomeadamente o disposto no art.º 562º do CC e no art.º 427º do Código Comercial, norma esta em vigor à data do acidente.

10ª – Com relevância para o Fundamento referenciado na Conclusão 1ª.b., resultou provada, nomeadamente, a seguinte matéria de facto, para além da apontada em II. A) I. (a fls 3), facto este que aqui se dá também por reproduzido para os devidos efeitos legais:

1. Aquando do preenchimento da proposta de seguro de fls 40 a 43 pelo Autor, em 23/1/03, referente ao veículo “UN”, o Autor nada fez constar sob a epígrafe “condutor habitual”, sendo certo contudo que, quem o utilizava a maior parte da semana nas suas deslocações para a escola e afazeres era o filho do Autor, G..., o que não obstava a que designadamente durante o fim de semana tal veículo fosse igualmente utilizado pelo resto da família.

2. À data do acidente, o referido condutor tinha carta há menos de dois anos, sendo que, quando um condutor habitual tem carta há menos de dois anos, o prémio das coberturas de responsabilidade civil, choque, colisão e capotamento é agravado em 50%.

3. A idade do condutor do “UN” e o facto de ter carta há menos de dois anos à data do acidente repercutem-se no montante do prémio de seguro, por ser maior o risco.

E, o acidente de viação sub judice, em que o condutor do “UN” era o indicado G..., filho do Autor, ocorreu num dia de domingo (CPC, art.º 514º, nº 1), concretamente em 13/6/2004, pelas 02.30h.

11ª – Com base na aludida matéria anteriormente transcrita, o douto Tribunal recorrido concluiu pela validade e eficácia do contrato de seguro, por a Ré não ter logrado demonstrar que não teria celebrado o contrato, ou que não o teria celebrado em termos muito próximos, se tivesse conhecimento da factualidade descrita na al. U) da matéria assente; e que essa mesma factualidade, por si só, não permitia que se extraísse a conclusão de que o Autor prestara declarações inexactas aquando do preenchimento da proposta de seguro, de forma dolosa ou negligente

12ª – Sem quebra de respeito pela tese sustentada em sede da douta sentença, pretende a Ré manifestar a sua discordância e pugnar pela procedência da nulidade do contrato de seguro, com fundamento no disposto no art.º 428º do Código Comercial (em vigor à data do acidente), com a consequente absolvição do pedido.

13º - Da factualidade provada, nomeadamente em U), V), W) e X) da Matéria Assente, poder-se-à resumir a situação da forma seguinte: quem detinha, efectiva e realmente, interesse na coisa segura não era o Autor / proprietário do veículo, antes sim seu filho, o condutor G... atenta a sua qualidade de usual e frequente detentor, ou mero possuidor, do “UN: era ele quem o utilizava a maior parte da semana nas suas deslocações para a escola e afazeres e, sem prejuízo de o resto da família também poder ocasionalmente usá-lo no final de semana, era também ele que o conduzia durante o fim de semana.

Aliás, o acidente em apreço verificou-se em dia de domingo (CPC, artº 514º/1) ”

14ª – Era aquele condutor quem detinha real e concreto interesse na viatura, não obstante não figurar como tomador do contrato.

O qual não outorgou unicamente pelos motivos apontados em V), X) e W) dos factos assentes (CC, art.º 349º).

15ª – O interesse que o art.º 428º do Código Comercial pressupõe – o qual consagra um vício de maior gravidade do que o do artº 429º do mesmo Código - “…não resulta apenas da qualidade de proprietário, podendo também emergir de outras qualidades jurídicas, tais como a de …mero possuidor ou detentor… Tal interesse na coisa segurada não pode deixar de ser aferido também no momento do sinistro e não apenas no momento da celebração do contrato…” (Ac STJ, 9/6/05: p.º 05B1611.dgsi.net).

16ª – O Autor era, por conseguinte, alheio à usual e frequente circulação do veículo (...)UN.

O seguro foi contratado em seu nome com o único objectivo de ser pago um prémio muito mais reduzido.

Deste modo se “explica” a omissão no preenchimento da epígrafe “condutor habitual” aquando do preenchimento da proposta (CC, art.º 349º).

17ª – Estamos perante uma evidente falta de legitimidade substancial do Autor, como tomador no seguro do veículo.

Sendo de considerar de interesse público que não seja violado o princípio da legitimidade negocial.

Daí que este vício integre uma verdadeira nulidade, que a Ré invoca.

18ª – Importa pois concluir, contrariamente ao doutamente decidido, que o contrato de seguro não era válido e eficaz à data do acidente, porque ferido de nulidade.

19ª – A douta sentença recorrida fez indevida apreciação da factualidade carreada para os autos, de que adveio inexacta aplicação do direito.

Requer-se, por isso, que a mesma seja revogada e substituída por outra que julgue procedente a excepção da nulidade invocada pela Ré, sendo esta absolvida do pedido.

20ª – Foram nomeadamente violadas as normas dos artºs 428º do Código Comercial (em vigor à data do acidente) e do art.º 349º do Código Civil.

O Autor apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1º A douta sentença recorrida viola o disposto nos artigos 653.º, n.º 2 e 659.º, n.º 2, do CPC, uma vez que omite o seguinte facto “O valor venal do “UN” era de €19.300,00” (Quesito 20.º), dado como provado no despacho proferido na Audiência de Julgamento realizada no dia 05 de Novembro de 2012, pelas 14:00 horas, conforme Ata de Audiência de Julgamento (Leitura da Resposta aos Quesitos).

2º A sentença recorrida enferma, pois, da nulidade prevista no artigo 668.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC, nulidade essa que se arguí para os devidos e legais efeitos, designadamente do disposto na última parte do n.º 4, do artigo 668.º ex vi artigo 684.º-A, n.º 2, do CPC.

3º O Tribunal a quo omitiu, pois, um facto que o precedente despacho, que fixou a matéria de facto provada e não provada, julgou provado, pelo que deve o Tribunal ad quem sanar essa nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 715.º, n.º 1, do CPC, substituindo a decisão recorrida por outra que adicione à matéria de facto provada o seguinte facto: “O valor venal do “UN” era de €19.300,00” (Quesito 20.º aditado à base instrutória na sequência de reclamação contra a seleção da matéria de facto, conforme despacho de 06/05/2011).

4º A Recorrente nas suas alegações de recurso pugna pela improcedência da ação argumentado, para o efeito, que o Tribunal a quo não deu como provado qual era o valor venal do veículo de matrícula (...)UN à data do acidente, em 13/06/2004.

5º Contudo, conforme é do conhecimento da Recorrente, tal é despudoradamente falso, visto que o Tribunal a quo no despacho que fixou a matéria de facto provada e não provada deu como assente o quesito 20.º com o seguinte teor: “O valor venal do “UN” era de €19.300,00”.

6º Tal facto apenas não foi levado à matéria de facto provada constante na sentença por mero lapso do Tribunal a quo, devendo tal nulidade ser sanada pelo Tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no artigo 715.º, n.º 1, do CPC.

7º A Recorrente peticiona a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue procedente a exceção de nulidade com fundamento na violação do disposto nos artigos 428.º do Código Comercial e 349.º do Código Civil com base numa argumentação, salvo o devido respeito por opinião contrária, absolutamente falaciosa.

8º Com efeito, a Recorrente sustenta toda a sua alegação em meras suposições e/ou ilações por si ideadas, sem qualquer substrato factual dado como provado, como sejam as seguintes afirmações:

“O condutor usual e frequente do “UN” era pois, sem sombra alguma de dúvida, o filho do Autor, e não este.

Era aquele quem detinha concreto interesse na viatura, não obstante não figurar como tomador do contrato.

O qual não outorgou unicamente pelos motivos apontados em V), X) e W) dos factos assentes.

O Autor era, por conseguinte, e face a todo o exposto, alheio à usual circulação do “ (...)UN”.

E o seguro foi contratado em seu nome com o único objetivo de ser pago um prémio muito mais reduzido.

Deste modo se “explica” a omissão no preenchimento da epígrafe “condutor habitual” aquando do preenchimento da proposta”.

9º A Recorrente não logrou provar que tivessem sido omitidos factos ou prestadas informações inexatas à data da subscrição do seguro, pelo que, é inequívoco que o Tribunal a quo não poderia ter deixado de julgar improcedente, por não provada, a exceção perentória de anulabilidade, estatuída no artigo 429.º, do Código Comercial.

10º Resulta das alíneas a) e m) da matéria de facto provada na douta sentença que o Recorrido é proprietário do veículo “UN”, pelo que é inequívoco o seu interesse patrimonial na cousa segura.

11º Acresce que, de acordo com a alínea u) da matéria assente, o facto de o filho do Recorrido utilizar o veículo (...)UN a maior parte da semana nas suas deslocações para a escola e afazeres, não obstava a que, designadamente, durante o fim-de-semana fosse igualmente utilizado pelo resto da família.

12º A Recorrente não logrou, pois, provar que o Recorrido nunca conduziu o veículo UN, resultando, antes, da alínea u) da matéria assente que o Recorrido também utilizava o veículo (...)UN quer durante a semana quer durante o fim-de-semana.

13º Conforme doutamente decidiu o Tribunal a quo, o facto de ser o filho do Recorrido, G..., quem utilizava o veículo UN a maior parte da semana nas suas deslocações para a escola e afazeres, não permite concluir que o tomar nenhum interesse tinha na coisa segura, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 428.º, do Código Comercial.

14º Deste modo, deve o Tribunal ad quem julgar improcedente a nulidade invocada pela Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 428.º do Código Comercial, mantendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que considerou o contrato de seguro válido e eficaz, nos seus precisos termos.

Nestes termos, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento às presentes contra-alegações de recurso e, em consequência, ser declarada a nulidade da decisão recorrida na parte em que omite da matéria de facto provada o seguinte facto “O valor venal do “UN” era de €19.300,00”, dado como provado no despacho proferido na audiência de julgamento realizada no dia 05 de Novembro de 2012, pelas 14:00horas, conforme Ata de Audiência de Julgamento (Leitura da Resposta aos Quesitos), devendo tal nulidade ser sanada pelo Tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no artigo 715.º, n.º 1, do CPC

Mais deve julgar-se improcedente a Apelação, e, consequentemente, confirmar-se a douta decisão recorrida.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o contrato de seguro em causa nos autos padece de nulidade, ao abrigo do disposto no art. 428º do Código Comercial, em virtude de o Autor (que nele outorgou) não ter interesse no veículo e na celebração do contrato;

• Caso se conclua pela validade do contrato, saber se a indemnização devida, em caso de perda total do veículo, deve ser calculada por referência ao capital seguro ou ao valor venal do veículo à data do acidente e apurar, em face da matéria de facto provada, a indemnização devida.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

A) No dia 13 de Junho de 2004, pelas 02h30m, G... circulava, fazendo-se acompanhar de E..., pela Estrada Municipal, sem número, na localidade de Quinta da Graça, freguesia de Abiul, concelho de Pombal, no sentido Carrapais/Aroeiras, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matricula (...)UN, de marca Audi A 4 Diesel, propriedade do autor – alínea A) da matéria assente.

B) Fazia-o próximo da berma direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha – alínea B) da matéria assente.

C) Atrás do veículo UN e no mesmo sentido de marcha, circulava D..., conduzindo o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula IX (...), propriedade de C... – alínea C) da matéria assente.

D) O condutor do veículo UN, após descrever uma curva para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, perdeu o controlo do veículo e deixou que este entrasse em despiste, seguindo na direcção da berma do lado direito da estrada, que invadiu até embater num poste de iluminação pública que aí se encontrava – alínea D) da matéria assente.

E) Com o embate do veículo UN no poste de iluminação este caiu primeiramente para cima desse veículo e depois par a estrada, ficando posicionado do lado direito daquele – alínea E) da matéria assente.

F) Depois da colisão no poste, o veículo do autor ficou imobilizado na faixa de rodagem, com a frente voltada para a berma direita – alínea F) da matéria assente.

G) O embate no poste de iluminação pública deu-se com a frente direita do veículo – alínea G) da matéria assente.

H) O local onde ocorreu o embate segue-se a uma curva, tendo a faixa de rodagem uma largura de 4,10 metros – alínea H) da matéria assente.

I) O piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação – alínea I) da matéria assente.

J) À saída da referida curva o condutor do IX entrou em despiste – alínea J) da matéria assente.

L) Em consequência directa e necessária do embate no poste de iluminação pública, o automóvel propriedade do autor ficou quase integralmente destruído, com gravíssimos danos na sua parte frontal e lateral direita, de tal forma que o seu custo de reparação era superior ao seu valor venal, isto é, o valor que o veículo teria no mercado, caso o autor pretendesse transaccioná-lo à data do acidente, pelo que ocorreu a “perda total” do veículo UN – alínea L) da matéria assente.

M) O veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (...)UN, propriedade do autor, é um Audi A 4 Diesel, construído em 1999 – alínea M) da matéria assente.

N) O autor outorgou com a ré um contrato de seguro contra danos próprios que teve por objecto o veículo UN e era titulado pela apólice nº 5070/8015951/50 – alínea N) da matéria assente.

O) Nos termos das cláusulas particulares do contrato de seguro este cobria, entre outros danos, os decorrentes de choque, colisão e capotamento, com o capital seguro de €23.939,00, com a respectiva franquia de 2%, no valor de € 478,78 – alínea O) da matéria assente.

P) Das ditas condições particulares do contrato de seguro consta que o valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total como consequência dos riscos de choque, colisão e capotamento é o valor venal do veículo à data do acidente – alínea P) da matéria assente.

Q) G... conduzia o veículo identificado em A) com autorização do autor – resposta ao ponto 1º da base instrutória.

R) O veículo IX circulava a cerca de 30 metros atrás do veículo UN – resposta ao ponto 2º da base instrutória.

S) O condutor do IX foi surpreendido pelo UN imobilizado na via e travou, não tendo conseguido parar o veículo – resposta ao ponto 4º da base instrutória.

T) Embateu no poste que se encontrava caído imediatamente ao lado do veículo UN e numa oliveira de pequeno porte, acabando por se imobilizar junto do veículo do autor – resposta ao ponto 5º da base instrutória.

U) Foi preenchida a proposta de seguro de fls. 40 a 43, cujo teor se dá aqui por reproduzido, proposta essa de seguro novo, com data de 23 de Janeiro de 2003, tendo como tomador A..., e por este assinada e relativa ao veículo (...)UN, na qual, e além do mais, no Ponto 9., sob a epígrafe “condutor habitual”, nada se fez constar, sendo certo quem o utilizava a maior parte da semana nas suas deslocações para a escola e afazeres era o filho do autor, G..., o que não obstava a que, designadamente, durante o fim-de-semana fosse igualmente utilizado pelo resto da família – resposta ao ponto 8º da base instrutória.

V) À data do acidente o referido condutor tinha carta há menos de dois anos – resposta ao ponto 9º da base instrutória.

W) A idade do condutor do UN e o facto de ter carta há menos de dois anos à data do acidente repercutem-se no montante do prémio de seguro por ser maior o risco – resposta ao ponto 10º da base instrutória.

X) Quando o condutor habitual tem carta há menos de dois anos, o prémio das coberturas de Responsabilidade Civil, Choque, Colisão e Capotamento é agravado em 50% - resposta ao ponto 10º-A da base instrutória.

Y) Na participação de sinistro de fls. 50 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, assinada pelo autor e datada de 13 de Junho de 2004, não consta alusão ao veículo IX – resposta ao ponto 11º da base instrutória.

Z) O condutor do IX, o identificado D...não era portador de carta de condução nem seguro e inspecção válidos do dito veículo – resposta ao ponto 12º da base instrutória.

AA) Os condutores do UN e do IX regressavam de uma festa em Vale Mourão – resposta ao ponto 13º da base instrutória.

BB) O valor dos salvados do UN, que ficaram na posse do autor era de 1.500,00 € - resposta ao ponto 18º da base instrutória.

CC) O valor venal do “UN” era de €19.300,00 – resposta ao ponto 20º da base instrutória[1].


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IV.

Analisemos, então, as questões suscitadas no recurso.

Validade do contrato de seguro

A sentença recorrida julgou improcedente a excepção de nulidade do contrato que havia sido invocada pela Ré, considerando, por um lado, que, sendo o Autor proprietário do veículo, a Ré não provou (apesar de estar onerada com o respectivo ónus) que o mesmo não tivesse qualquer interesse na coisa segura, nos termos e para os efeitos do art. 428º do Código Comercial, e considerando, por outro lado, que nada se provou que permita concluir que, ao omitir, aquando da celebração do contrato, qualquer referência ao facto de o veículo ser conduzido pelo seu filho, o Autor tenha prestado essas declarações de forma dolosa ou negligente (já que não se provou que, nessa data, ele tivesse conhecimento ou pudesse prever que o veículo viria a ter a utilização que foi dada como provada) e nada se provou que permita concluir que a Ré não teria celebrado o contrato se tivesse conhecimento daquelas circunstâncias ou que não o teria celebrado em termos próximos.

Discordando dessa decisão, considera a Apelante que o contrato de seguro é nulo, nos termos do art. 428º do Cód. Comercial – que sustenta ter sido violado pela sentença recorrida –, porquanto, como decorre da matéria de facto, quem tinha real e efectivo interesse na coisa segura não era o Autor, mas sim o seu filho, mais sustentando que o Autor era alheio à usual e frequente circulação do veículo e que o seguro foi contratado em seu nome com o único objectivo de ser pago um prémio mais reduzido.

Dispõe, efectivamente, o art. 428º, § 1.º do Código Comercial[2], que “se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na cousa segurada, o seguro é nulo”.

Considerou, portanto, o legislador que a existência de um interesse na coisa segurada é essencial à existência do contrato de seguro, condicionando a sua validade.

No que toca à definição e concretização desse interesse, tem sido considerado que o mesmo há-de consistir numa relação económica entre o sujeito e o bem exposto ao risco[3]. Como refere José Engrácia Antunes[4], tal relação terá que ser legítima e digna de protecção legal e terá que assumir uma natureza económica destinada a satisfazer necessidades de carácter patrimonial ou económico. O interesse no seguro – como se refere no Ac. do STJ de 22/03/2007 (proc. nº 07A230)[5] – “…deve ser específico, actual, lícito e de natureza económica, derivado de uma relação juridicamente relevante do segurado com o objecto do seguro que origine para ele a possibilidade de extrair da coisa segura utilidades ou vantagens de natureza económica, ou de sofrer dano também económico em consequência do exercício de actividades que com ou sobre esse objecto a sua relação jurídica que o abranja lhe permita exercer”.

Ora bem.

Está provada nos presentes autos a seguinte factualidade:

U) Foi preenchida a proposta de seguro de fls. 40 a 43, cujo teor se dá aqui por reproduzido, proposta essa de seguro novo, com data de 23 de Janeiro de 2003, tendo como tomador A..., e por este assinada e relativa ao veículo (...)UN, na qual, e além do mais, no Ponto 9., sob a epígrafe “condutor habitual”, nada se fez constar, sendo certo quem o utilizava a maior parte da semana nas suas deslocações para a escola e afazeres era o filho do autor, G... , o que não obstava a que, designadamente, durante o fim-de-semana fosse igualmente utilizado pelo resto da família.

V) À data do acidente o referido condutor tinha carta há menos de dois anos.

W) A idade do condutor do UN e o facto de ter carta há menos de dois anos à data do acidente repercutem-se no montante do prémio de seguro por ser maior o risco .

X) Quando o condutor habitual tem carta há menos de dois anos, o prémio das coberturas de Responsabilidade Civil, Choque, Colisão e Capotamento é agravado em 50%.

Conclui a Apelante, perante essa matéria de facto, que quem tinha real e concreto interesse na viatura não era o Autor, mas sim o seu filho, já que era este o seu usual e frequente detentor ou possuidor e que o seguro apenas foi contratado em nome do Autor dadas as circunstâncias (idade do filho e o facto de ter carta há menos de dois anos) que agravavam o prémio do seguro.

Estando provado que era o filho do Autor quem utilizava o veículo com maior frequência, podemos admitir que ele tivesse efectivo interesse no veículo, detendo, relativamente a esse veículo, uma relação juridicamente relevante que lhe permitia retirar utilidades ou vantagens económicas por força da sua fruição/utilização, reflectindo-se negativamente no seu património a possibilidade de perda desse uso e fruição. 

 Conforme refere a Apelante e como tem sido entendido pela nossa jurisprudência, o interesse na coisa segura não resulta apenas da qualidade de proprietário, podendo também emergir de outras qualidades jurídicas, tais como a de mero possuidor ou detentor ou qualquer outra relação jurídica que justifique esse interesse, já que aquela relação económica de interesse entre o segurado e a coisa segura não se esgota no instituto da propriedade[6] e, portanto, o contrato de seguro poderá ser validamente celebrado por quem não é o proprietário da coisa que dele é objecto.

Mas, ainda que o referido filho do Autor pudesse ser titular de um interesse juridicamente relevante na celebração do seguro, tal não significa que o Autor não possa ter também esse interesse.

Na verdade, o Autor é o proprietário do veículo (circunstância que a Apelante não impugnou) e, nessa qualidade, terá, à partida, interesse económico na coisa segura. Sendo titular de uma relação jurídica relevante sobre o veículo (direito de propriedade), é claro que essa relação terá, por princípio, uma natureza económica, porquanto, ainda que possa não ter, em determinado momento, o seu uso e fruição (por terem sido cedidos a outrem), é o proprietário quem detém o poder de dispor da coisa, utilizando-a como lhe aprouver – cedendo a outrem a sua utilização se assim o pretender –, dispondo dela e realizando pela sua venda, se assim o quiser, o valor monetário correspondente e é no seu património que se irá reflectir o prejuízo equivalente ao seu valor económico, caso a coisa se venha a perder ou deteriorar.

Como se refere no Ac. do STJ de 16/10/2008[7], cabia à Ré – empresa seguradora – o ónus de alegar e provar que o Autor não detinha sobre o veículo qualquer interesse legítimo que lhe permitisse celebrar o contrato, já que a nulidade do contrato, invocada com fundamento na inexistência desse interesse, constitui facto impeditivo ou extintivo do direito que contra si é invocado (cfr. art. 342º, nº 2, do C.C.).

Ora, tal prova não foi efectuada.

A Ré/Apelante não impugnou o direito de propriedade que o Autor alegava deter sobre a coisa segura e, consequentemente, o interesse económico na sua conservação que, por princípio, é inerente a tal direito, não resultando, sequer, da matéria de facto que o Autor nunca utilizasse o referido veículo. Por outro lado, a circunstância – a que alude a Apelante – de ser outro o condutor habitual do veículo não é bastante para concluir que o proprietário não tem qualquer interesse económico relevante na sua conservação e, consequentemente, na celebração do contrato de seguro.

Não se configura, pois, a nulidade do contrato, com fundamento no disposto no art. 428º do C.Comercial, improcedendo o recurso, no que toca a esta questão.

E, podendo, eventualmente e em teoria, ser configurada a situação descrita no art. 429º do citado diploma (anulabilidade[8] do contrato com fundamento em declarações inexactas ou omissão de factos ou circunstâncias), a verdade é que tal questão não foi incluída no objecto do recurso.  A sentença recorrida apreciou essa questão, concluindo não estar configurada tal situação e a Apelante não se reporta a essa matéria nas alegações do presente recurso, onde se limita a invocar o disposto no art. 428º do aludido diploma, sem qualquer referência ao disposto no art. 429º e à anulabilidade do contrato que aí se encontra prevista, sendo que esta não é de conhecimento oficioso.

Valor da indemnização

No que toca a esta matéria, considerou a sentença recorrida que, estando em causa a perda total do veículo, o valor a pagar pela Ré corresponderá ao valor seguro (23.939,00€), deduzido do valor da franquia (478,78€) e do valor dos salvados que ficaram na posse do Autor (1.500,00€).

Discordando da decisão, considera a Apelante que, nos termos do contrato, o valor relevante para efeitos de indemnização, em caso de perda total, é o valor venal do veículo à data do acidente e este valor não ficou comprovado nos autos, razão pela qual deverá ser absolvida do pedido.

Assiste inteira razão à Apelante, quando refere que o valor relevante para efeitos de indemnização, em caso de perda total, não é o valor seguro (como considerou a sentença recorrida), mas sim o valor venal do veículo à data do acidente. É isto que resulta, clara e expressamente, das condições particulares do contrato de seguro.

Mas já não lhe assiste razão, quando afirma que esse valor não ficou comprovado.

De facto, ficou.

Como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto, o ponto 20º da base instrutória – onde se perguntava se o valor venal do “UN” era de 19.300,00€ - foi julgado provado e, portanto, está efectivamente provado o valor venal do veículo, nos exactos termos em que esse facto havia sido alegado pela Ré/Apelante.

Sucede apenas que a sentença recorrida – certamente por lapso – omitiu esse facto na enunciação da matéria de facto provada e não o considerou para efeitos de decisão, razão pela qual o Apelado vem invocar, ao abrigo do disposto no art. 684º-A, nº 2, do C.P.C., a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art. 668º, nº 1, alíneas b), c) e d) do mesmo diploma, mais requerendo que este Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 715º, nº 1, substitua a decisão recorrida por outra que adicione à matéria de facto o aludido facto.

Temos, no entanto, algumas dúvidas em qualificar a situação descrita como verdadeira nulidade da sentença.

Vejamos porquê.

No que toca à alínea b) da norma acima citada – da qual resulta que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – entende-se normalmente que tal nulidade apenas ocorre quando está em causa uma falta absoluta de motivação[9], seja ao nível dos factos que estiveram subjacentes à decisão, seja ao nível dos argumentos legais e jurídicos que a justificam. A nulidade da sentença reportar-se-á, pois, aos casos em que a decisão dela constante surge sem qualquer justificação ou explicação relativamente aos motivos e razões que a determinaram e não aos casos em que tais motivos são perceptíveis, ainda que sejam deficientes ou errados.

Ora, no caso sub judice, a sentença indica os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão, importando notar que a decisão não se baseou no facto que, apesar ter sido julgado provado, foi omitido na enunciação da matéria de facto.

E também não ocorre – na nossa perspectiva – a nulidade da sentença a que se reporta a alínea c) do nº 1 do art. 668º, porquanto não existe qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.

Como se refere no Ac. do STJ de 16/09/2008, processo 08A1438[10], “Está aqui em causa um erro lógico, derivado de os fundamentos usados não estarem em sintonia com a decisão tomada. No processo lógico, as premissas de direito e de facto apuradas pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao oposto”.

Ora, não é o que acontece aqui.

Os fundamentos utilizados na sentença estão em conformidade lógica com a decisão que veio a ser tomada, importando notar que a mera circunstância de não ter sido reproduzido um determinado facto que havia sido considerado provado não teve qualquer interferência no raciocínio do julgador e no processo lógico que o conduziu à decisão, porquanto esse facto não foi considerado, tudo se tendo passado como se ele não existisse; a decisão foi tomada com fundamento noutros factos, inexistindo qualquer oposição ou contradição entre a decisão e os concretos fundamentos – de facto e de direito – que o julgador utilizou para a justificar.

E, na nossa perspectiva, também não está configurada a nulidade da sentença a que alude a alínea d) da norma acima citada, porquanto a sentença recorrida não omitiu a apreciação de qualquer questão que devesse apreciar. Importa referir que, na sentença, o juiz não tinha que proferir qualquer decisão sobre o aludido facto; sobre esse facto já havia sido proferida decisão que o julgou provado, sendo que, na sentença, o juiz apenas tinha que enunciar/reproduzir a matéria de facto que já havia sido considerada provada e proferir decisão em face da lei e dos factos que considerasse relevantes. A sentença não tem que fazer uma análise e apreciação expressa de cada um dos factos provados; o que importa é que a sentença aprecie todas as questões que lhe foram colocadas, mas tal não implica que tenha que apreciar todos os fundamentos ou argumentos, sejam eles de facto ou de direito, em que as partes se apoiam para defender a sua posição ou pretensão.

Parece-nos, pois, que a situação descrita não configura propriamente uma nulidade da sentença, nem parece que se justifique o recurso ao disposto no art. 715º do C.P.C. (art. 665º do C.P.C. actualmente em vigor) para que se pudesse agora, em substituição do tribunal recorrido, apreciar e considerar aquele facto.

O facto em questão foi considerado provado por decisão proferida nos autos e tanto basta para que possa e deva ser considerado, importando notar que já incluímos esse facto no elenco dos factos provados constante do item III. do presente acórdão.

A circunstância de a sentença recorrida ter omitido a indicação desse facto no elenco dos factos provados constituirá mera irregularidade sem qualquer consequência relevante, caso esse facto não tenha relevo para a decisão da causa ou não seja susceptível de alterar a decisão proferida; caso contrário, ou seja, caso esse facto seja relevante e caso implique decisão diversa da proferida, o que existe, é um erro de julgamento em virtude de esse facto, não obstante ter sido julgado provado, não ter sido considerado para a decisão.

Feitas estas considerações e assente que o aludido facto, por ter sido julgado provado, terá que ser considerado, caso seja relevante, resta-nos apreciar a questão de saber se a sentença recorrida decidiu ou não correctamente, face à matéria de facto que se encontrava provada e face às normas legais aplicáveis.

E a verdade é que tal decisão não nos parece correcta, já que, como referimos supra, o valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total – como aqui acontece[11] – não é o valor seguro (como considerou a sentença recorrida), mas sim o valor venal do veículo à data do acidente, já que, como decorre da matéria de facto provada, é isso que consta das condições particulares do contrato de seguro.

Está provado, por outro lado, que: o valor venal do veículo era de 19.300,00€; nos termos das cláusulas particulares do contrato, existia uma franquia de 478,78€ e que os salvados (que ficaram na posse do Autor) tinham o valor de 1.500,00 €.

Assim, efectuando os cálculos nos mesmos termos em que foram feitos na sentença recorrida (e que não foram questionados), mas substituindo o valor de 23.939,00€ (considerado na sentença) pelo valor de 19.300,00€ (correspondente ao valor venal do veículo), obtém-se o valor de 17.321,22€.

Será esse, portanto, o valor da indemnização que é devida ao Autor.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O interesse que releva para efeitos de celebração de um contrato de seguro – e cuja inexistência determina a nulidade do contrato, nos termos do art. 428º do Código Comercial – pressupõe a existência de uma relação jurídica relevante, de natureza económica e patrimonial, com a coisa segura.

II – Ainda que, em dado momento, não tenha o seu uso e fruição, o proprietário da coisa tem, pelo menos por regra, efectivo interesse na celebração de um contrato de seguro que a tenha por objecto, porquanto, reflectindo-se no seu património o prejuízo económico inerente à perda ou deterioração da coisa, tem um efectivo interesse económico na sua conservação.

III – Não padece de nulidade a sentença que, na enunciação da matéria de facto provada, omite a reprodução de um facto que já havia sido considerado provado e não considera esse facto para efeitos de decisão; se esse facto não for relevante para a decisão da causa, estará em causa uma mera irregularidade processual sem qualquer consequência de relevo; caso contrário – ou seja, caso esse facto seja relevante e seja susceptível de alterar a decisão proferida – estará em causa um erro de julgamento que determinará a revogação da sentença em virtude de esta não se adequar à matéria de facto que, por ter sido considerada provada, tinha que ser considerada para efeitos de decisão. 


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V.
Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao presente recurso e, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de 17.321,22€ (dezassete mil, trezentos e vinte e um euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
As custas devidas em 1ª instância e no presente recurso serão suportadas na proporção do decaimento.
Notifique.

Maria Catarina R. Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Este facto – apesar de constar da base instrutória e ter sido julgado provado na decisão proferida sobre a matéria de facto – não foi incluído no elenco dos factos provados constante da sentença.
[2] Que, apesar de ter sido revogado pelo Dec. Lei nº 72/2008 de 16/04, é aplicável à situação dos autos, atendendo à data da celebração do contrato, à data do sinistro e à data da entrada em vigor deste diploma.
[3] Cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pág.142, e José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, págs. 708 e 709.
[4] Ob. cit., pág. 709.
[5] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Vejam-se, designadamente, os Acórdãos do STJ  de 31/05/2011 (processo nº 2693/07.9TBMTS.S1), de 16/10/2008 (proc. nº 08A2362) e de 09/06/2005 (proc. nº 05B1611), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] Já citado em anterior nota de rodapé.
[8]Não obstante a norma em causa aludir a nulidade, tem sido considerado que o que está aqui em causa é uma anulabilidade – cfr. Ac. do STJ de 02/12/2008, processo nº 08A3737, disponível em http://www.dgsi.pt., bem como a doutrina e jurisprudência aí citadas.
 
[9] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, pág.139.
[10] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[11] Refira-se que não constam da matéria de facto quaisquer factos concretos que nos permitam aferir se existe ou não uma situação de perda total do veículo, já que o que consta da matéria de facto a este respeito corresponde apenas a um juízo conclusivo – pois que se limita a concluir que o custo da reparação era superior ao valor venal do veículo, pelo que ocorreu “perda total” – mas a verdade é que ambas as partes estão de acordo quanto a esse ponto, sendo certo que a Ré nunca questionou a “perda total” do veículo e, portanto, assim o consideramos.