Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
236/10.6T2VGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: REGISTO PREDIAL
NEGÓCIO GRATUITO
NEGÓCIO ONEROSO
PRIVILÉGIO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 291º CC; 5º, Nº 1, 17º, Nº 2 E 122º C. REG. PREDIAL
Sumário: I – Os negócios jurídicos gratuitos, no confronto com os negócios jurídicos onerosos, manifestam alguma “fraqueza”, consubstanciando posições objecto de uma protecção menos intensa, que tenderá a ceder face a negócios onerosos incidentes sobre o mesmo bem.

II – Deduz-se este princípio, entre outras disposições, do artigo 291º do CC e dos artigos 17º, nº 2 e 122º do CRPred.

III – Para além destas situações de consagração expressa, a mesma regra de privilegiamento do negócio oneroso face ao negócio gratuito deve ser feita actuar no quadro referencial do artigo 5º, nº 1 do CRPred, fazendo prevalecer, independentemente do registo, o acto oneroso sobre o acto gratuito.

IV – Todavia, quando nesse mesmo quadro (artigo 5º, nº 1 do CRPred), se confrontam dois actos gratuitos (duas doações do mesmo prédio), vale a regra da prioridade do registo, afastando a regra da prioridade do acto.

V – Neste caso, o privilegiamento do acto gratuito registado, através da plena aplicação do artigo 5º, nº 1 do CRPred, afasta o prior iure não registado, bloqueando a actuação em concreto do artigo 956º, nº 1 do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 01/10/2010[1], I… (A. e aqui Apelante), demandou M… (1ª R. e Apelada) e D… e marido, A… (2ºs RR. e Apelados), invocando a existência de duas doações efectuadas pela 1ª R. do mesmo prédio, a primeira em 28/06/1989 a ela (A.) e a uma sua irmã e a segunda, ocorrida em 02/10/2006, à 2ª R. (esta última levada ao registo predial pelos 2ºs RR.). Assim, em função da nulidade da segunda doação [artigo 956º, nº 1 do Código Civil (CC)], formula a A. os seguintes pedidos:
“[…]
A) Declarar-se nula a escritura de doação celebrada em 02/10/2006, por força da qual a 1ª R. transmitiu a favor da 2ª R., casada sob o regime da comunhão geral com o réu A…, a nua propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia …, sob o artigo nº…, reservando para si o usufruto.
B) Declarar-se a nulidade de tal escritura, uma vez que o objecto da mesma se trata de um bem alheio, por ser da propriedade da A. e sua irmã S…, atenta a transmissão que foi operada em 28/06/89, a que se refere o doc.1 junto com a P.I.
C) Declarar-se ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura notarial de doação de 02/10/2006, por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado.
D) Ordenar-se o cancelamento das inscrições matriciais e prediais operadas com base na aludida escritura, a que se referem os artigos 16º a 20º da P.I.
E) Declarar-se plenamente válida e eficaz a escritura de doação celebrada em 28/06/89, a que se refere o doc.1 junto com a P.I., condenando-se os RR. a abster[em]-se da prática de qualquer acto ofensivo do direito da A. sobre o mesmo prédio.
[…]”
            [transcrição de fls. 12/13].

            1.1. Contestaram conjuntamente os três RR. defendendo, no que interessa ao presente recurso, a relevância da segunda doação, formulando pedido reconvencional de declaração de validade desta (da doação de 02/10/2006 à 2ª R.).

            1.2. Foi a acção decidida, entretanto, através do saneador-sentença de fls. 111/123este consubstancia a decisão objecto deste recurso – considerando-se válida a segunda doação[2] por efeito de aquisição tabular dos 2ºs RR. (através do registo predial do prédio em favor destes), nos termos do artigo 5º do Código do Registo Predial (CRPred).

            1.3. Inconformada reagiu a A. com o presente recurso, concluindo o seguinte a rematar a motivação do mesmo:
“[…]


II – Fundamentação

            2. Relatado no essencial o iter do processo que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante – foram elas transcritas no item anterior – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[3]. Com efeito, fora das conclusões só valem, em qualquer recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando o modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos do recorrente, sendo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos que vão sendo esgrimidos ao longo da motivação do recurso.

2.1. Os factos a considerar aqui, aqueles em função dos quais a primeira instância decidiu a acção logo no saneador, fazendo prevalecer a segunda doação, são os seguintes:
“[…]
1- Por escritura publica datada de 28.06.1989, outorgada no Cartório Notarial de Vagos, a R. M… declarou ser dona e legítima possuidora do prédio composto de casa de rés-do-chão, destinada a habitação, com a área coberta de 140 m2 e logradouro com 705 m2, sito no lugar …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos sob o nº …, da dita freguesia de …, registada a favor de M… pela inscrição G-2 de 19/05/1989, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 822.
2- Na escritura referida em 1, a R. M… declarou fazer doação do prédio descrito, em comum e partes iguais, a suas sobrinhas S… e I…, filhas da sua irmã R...
3- Por escritura pública de doação, datada de 02.10.2006, outorgada no Cartório Notarial de Vagos, a R. M… declarou doar à R. D…, casada com A… sob o regime da comunhão geral de bens, com reserva de usufruto a seu favor, e com o encargo de a mesma a tratar com todo o carinho, enquanto viva, de lhe dar habitação, alimentação, vestuário e assistência médica, ou em caso de impossibilidade assegurar esse tratamento por outra pessoa, o seguinte imóvel: prédio urbano composto de casa de rés-do-chão destinada a habitação, com dependência e logradouro, sito no lugar …, cujo direito de propriedade se encontra registado a favor da doadora pela inscrição G-2.
4- Na certidão de teor matricial do prédio inscrito na matriz sob o artigo … da freguesia de …, consta como usufrutuária a R. M…, constando como proprietário de raiz a R. D...
5- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos sob o nº …, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão destinada a habitação, com a área de 140 m2, dependência de 55 m2 e logradouro com 705 m2, a confrontar …, correspondendo-lhe a inscrição na matriz sob o artigo ...
6- Encontra-se inscrita pela Ap. nº 5 de 2006/10/04, a aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos sob o nº …, favor de D… e marido A…, por via de doação, encontrando-se inscrita pela mesma apresentação uma reserva de usufruto a favor de M...
[…]”
            [transcrição de fls. 116/117].

            2.1.1. A questão central que nos é colocada pela decisão apelada – e será através da solução dessa questão que apreciaremos o recurso – prende-se com o relacionamento das duas doações contraditórias, referidas ao mesmo prédio e separadas por quase 26 anos de distância, face à incidência da segunda delas ter sido objecto de registo – o que não aconteceu com a primeira em favor da A. –, funcionando ambas as donatárias envolvidas (a A. e a 2ª R.) como terceiros para efeitos desse registo, nos termos do artigo 5º, nº 4 do CRPred[4]. Trata-se aqui, pois, de controlar a asserção operante na decisão recorrida segundo a qual o registo da aquisição pela 2ª R. conduziria à prevalência do direito desta enquanto efeito substantivo desse registo (em rigor deveremos acrescentar que a 1ª R. registou na mesma ocasião um usufruto em seu favor que não existia na primeira doação). Ora, assente, como antes dissemos, estarmos quanto à 2ª R. e à A. perante terceiros (uma relativamente à outra), a incompatibilidade substantiva das respectivas posições resolver-se-á, existindo – como aqui existe – registo de uma das adquirentes, fazendo actuar a regra contida no artigo 5º, nº 1 do CRPred da prioridade do registo em detrimento da regra da prioridade do acto[5], sendo que esta última (a que se expressaria através da prioridade do acto) conduziria neste caso, em que se confrontam sucessivas doações do mesmo bem, à nulidade da segunda doação nos termos do artigo 956º, nº 1 do CC[6]. É, pois, a solução dada ao problema colocado na acção, que se traduziu no privilegiamento do registo em detrimento do acto, que importa controlar na presente apelação. A isto corresponde, pois, o fundamento efectivamente relevante do recurso, sendo que a solução do privilegiamento do registo – já assumida neste texto como correcta –, será justificada na subsequente exposição. 

            2.1.1. Entretanto, porque a Apelante suscita, paralelamente, a questão da admissibilidade da reconvenção, algo diremos a esse respeito. Todavia, parecendo-nos evidente enquadrar-se o pedido reconvencional da 2ª R. na situação da alínea c) do nº 2 do artigo 274º CPC, não cremos que se justifique aqui uma abordagem mais desenvolvida de uma questão que, quer-nos parecer, é de resposta evidente: é inquestionavelmente admissível a reconvenção visando fazer valer a segunda doação em detrimento da primeira[7].

            2.2. Apreciando agora a questão do registo – a questão da prevalência do direito que foi objecto de registo sobre o direito não registado –, diremos, preambularmente e enquadrando a opção do saneador-sentença pela afirmação da existência neste caso de uma aquisição tabular, que este efeito (o efeito substantivo do registo usualmente designado como aquisição tabular), expressa as situações – e várias são elas – em que a existência de um registo induz a aquisição de um determinado direito por um sujeito ao arrepio e em desconformidade com a realidade substantiva.

            Valem a tal respeito – rectius, expressam regras substantivas do registo e correspondem às situações de aquisição tabular previstas no nosso ordenamento jurídico – os artigos 5º, nº 1, 17º, nº 2 e 122º, todos do CRPred[8], e o artigo 291º do CC[9].

            Atendendo aos pressupostos de cada uma destas quatro situações, deparamo-nos logo com a singularidade da primeira delas, a do artigo 5º, nº 1 do CRPred (precisamente a situação aqui em causa, v. nota 6, supra e o texto que para ela remete), consistente em a letra do preceito não se restringir, contrariamente às outras situações, a direitos adquiridos a título oneroso. Existiria, assim, uma mais ampla abrangência da aquisição tabular prevista nessa situação (no artigo 5º, nº 1 do CRPred), na medida em que o registo poderia neste caso propiciar a tal aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva, mesmo estando em causa actos (registados) não onerosos, como é o caso paradigmático da aquisição por doação.

            Esta asserção – a aquisição tabular do artigo 5º, nº 1 do CRPred tanto vale para actos gratuitos como para actos onerosos – tem sido objecto de controvérsia doutrinária significativa, havendo quem considere também valer esse requisito da onerosidade do acto, no referido artigo 5º, nº 1, não obstante ele estar ausente, contrariamente ao que sucede nas outras situações indicadas, da letra do preceito[10], designadamente através do recurso à analogia com as outras três situações de aquisição tabular antes mencionadas[11], sendo que um outro sector doutrinário considera não valer, no caso do mesmo artigo 5º, nº 1, essa exigência de onerosidade do acto registado (substancialmente inválido) para se afirmar a sua prevalência sobre o acto anterior substancialmente válido mas não levado ao registo: o acto registado, para valer em sobreposição ao anterior, poderia corresponder, assim e como aqui sucede, a uma doação[12].

            A afirmação da necessidade de o acto translativo do direito ter natureza onerosa, para além do argumento sistemático e de coerência de regimes reportado às restantes aquisições tabulares previstas na lei, intui, alcandorando-o à categoria referencial de verdadeiro princípio de direito substantivo, uma menor protecção dos actos gratuitos, no confronto com os actos onerosos[13], no sentido em que o afirma António Menezes Cordeiro relativamente à realidade registal:
“[…]
[E]ntende a lei que sendo [a aquisição] a título gratuito, não há qualquer necessidade de protecção do tráfico jurídico: o interessado não realiza nenhum esforço económico que deva ser preservado e o transmitente poderá não ter meios para se efectivar qualquer responsabilidade patrimonial;
[…]”[14].

            É isto, enfim, que Pedro Ferreira Múrias caracteriza mais amplamente a propósito do que qualifica como limitação específica dos negócios gratuitos:
“[…]
Os negócios jurídicos, manifestações da autonomia privada, revelam uma certa «fraqueza» quando são gratuitos, por comparação com os onerosos. Os negócios gratuitos são uma «causa minor de aquisição», o que se detecta em muitas regras (v.g., artigos 237.º, 289.º/2, 291.º, 481.º, 612.º/1, 942.º/1, 947.º/2, 956.º e 957.º, 969.º e ss., 1134.º e 1137.º [CC], tal como no artigo 17.º/2 CRPred). Por outras palavras, a aquisição de vantagens a título gratuito é menos protegida do que a aquisição de vantagens a título oneroso. Por outras palavras ainda, há um fenómeno de «menor tutela das atribuições gratuitas».
Nalguns casos, a «fraqueza» dos negócios gratuitos gera invalidade (v.g., nos artigos 942.º/1 e 947.º/2 [CC]). Este limite à validade dos negócios parece ser ainda um limite «interno» da autonomia privada.
[…]”[15].

            2.2.1. A opção pela dispensa da natureza onerosa do acto levado ao registo, no quadro da construção interpretativa da mensagem normativa contida no artigo 5º, nº 1 do CRPred – que intuímos ter sido o caminho trilhado pela primeira instância –, resolver-nos-ia, desde logo, a questão colocada nesta acção, conduzindo à afirmação da prevalência da segunda doação com base na integração, pura e simples, da facti species da citada norma nessa construção: o facto sujeito a registo (a aquisição do direito de propriedade através de uma doação[16]) sempre produziria efeitos contra o terceiro (donatário da primeira doação que não registou a respectiva aquisição) a partir da data daquele registo (a partir de 04/10/2006, v. o item 6 dos factos provados).

            Seja como for, prescindindo aqui de uma tomada de posição definitiva sobre a interpretação mais adequada do artigo 5º, nº 1 do CRPred – designadamente em termos de detectar nele, na ausência de uma referência ao carácter oneroso do acto, uma espécie de “lacuna oculta”, por comparação identitária com as outras aquisições tabulares[17] –, prescindindo aqui, dizíamos, de uma tomada de posição a esse respeito, nem por isso deixaremos de considerar relevante (mais forte, se assim nos podemos exprimir), no confronto entre duas doações – não no hipotético confronto de uma venda com uma doação –, aquela que foi levada ao registo, mesmo que posterior à doação não registada e correspondente (a subsequente doação registada) a uma doação de bens alheios por ilegitimidade do doador.

            Vale neste caso o artigo 5º, nº 1 do CRPred, enquanto norma que afasta a regra da prioridade do acto de transmissão válido inicial, substituindo-a, quando se confrontem dois actos de aquisição gratuitos, pela regra da prioridade do registo. Neste caso – e este caso é o do autos –, em que os actos incompatíveis são ambos gratuitos e estão, por isso, em pé de igualdade valorativa, o princípio decorrente do artigo 5º, nº 1 do CRPred destina-se justamente a afastar o prior iure, sem que isso implique, necessariamente, a opção pela leitura desse preceito como contendo implicitamente o requisito da onerosidade. É que, embora possamos estar equivocados, não nos parece que esse artigo 5º, nº 1 – e estamos a afirmar, na economia decisória deste recurso, um simples obiter dictum pois a situação aqui em causa é distinta –, não nos parece que a disposição citada, dizíamos, dê prevalência a um acto gratuito registado contra um acto oneroso não registado, por incidência da regra geral (que entendemos ser de preservar aqui no quadro do que nos parece corresponder ao espírito do sistema[18]) de que os actos gratuitos são – devem ser – menos protegidos no confronto com os actos onerosos. Contudo – e esta asserção é, como se vê, estratégica na construção de uma solução para o caso concreto –, confrontando-se só actos gratuitos, essa menor protecção vale para os dois actos, que ficam, desse ponto de vista, em situação valorativamente idêntica. Assim, já o artigo 5º, nº 1 do CRPred se aplica plenamente, adquirindo um sentido verdadeiramente actuante, independentemente da construção interpretativa que dele façamos: tratar-se-á sempre, neste caso em que as aquisições sucessivas resultam de actos gratuitos, de fazer actuar o registo (a força consolidativa do registo relativa a uma determinada posição) contra terceiros.

            2.3. Aqui chegados, resolvido o recurso no sentido da confirmação da decisão recorrida na afirmação de uma aquisição tabular por banda dos RR., resta-nos, antes de formular o competente pronunciamento decisório reportado ao recurso, sumariar este Acórdão:
I – Os negócios jurídicos gratuitos, no confronto com os negócios jurídicos onerosos, manifestam alguma “fraqueza”, consubstanciando posições objecto de uma protecção menos intensa, que tenderá a ceder face a negócios onerosos incidentes sobre o mesmo bem;
II – Deduz-se este princípio, entre outras disposições, do artigo 291º do CC e dos artigos 17º, nº 2 e 122º do CRPred;
III – Para além destas situações de consagração expressa, a mesma regra de privilegiamento do negócio oneroso face ao negócio gratuito deve ser feita actuar no quadro referencial do artigo 5º, nº 1 do CRPred, fazendo prevalecer, independentemente do registo, o acto oneroso sobre o acto gratuito;
IV – Todavia, quando nesse mesmo quadro (artigo 5º, nº 1 do CRPred), se confrontam dois actos gratuitos (duas doações do mesmo prédio), vale a regra da prioridade do registo, afastando a regra da prioridade do acto;
V – Neste caso, o privilegiamento do acto gratuito registado, através da plena aplicação do artigo 5º, nº 1 do CRPred, afasta o prior iure não registado, bloqueando a actuação em concreto do artigo 956º, nº 1 do CC.


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na improcedência da apelação, decide-se confirmar o saneador-sentença recorrido.

            Custas pelos Apelantes.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Marca esta data – a data da propositura da acção – a aplicação do regime dos recursos introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Por essa razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante de tal Diploma.
[2] Este o teor dessa decisão:
“[…]

Em face de todo o exposto, e decidindo, decide-se:

- julgar improcedente, por não provada a presente acção, absolvendo-se os réus do que contra eles vinha peticionado; e,

- julgar procedente por provada a reconvenção, declarando-se a validade e eficácia da escritura pública outorgada em 02.10.2006 entre a R. M… e a R. D...
[…]”
                [transcrição de fls. 123].
[3] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[4] Estabelece este, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, que “[t]erceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Ora, funcionando a 1ª R. aqui como o “autor comum” nas duas doações, dela adquiriram a A. e a 2ª R., sucessivamente, embora com mais de 20 anos de intervalo, direitos incompatíveis, no sentido em que ambos incidem sobre o mesmo bem, excluindo-se mutuamente (está em causa, relativamente à A. e à 2ª R., um direito de propriedade exclusivo de cada uma o que, por isso mesmo, afasta a convivência ou compatibilidade com o direito adquirido pela outra). Com efeito, é nestes termos que funciona o conceito (restrito) de terceiro consagrado em 1999 no nº 4 do artigo 5º acima transcrito [caracterizando as diversas posições doutrinárias que se confrontam a este respeito (não obstante a opção clara do Legislador em 1999, assumida até no preâmbulo do DL 533/99), v. A. Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra, 2007, pp. 66/72 e Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2006, pp. 130/131].
[5] “Terceiro é todo aquele que, ao participar por qualquer forma no tráfego imobiliário, adquire um interesse relativamente a um negócio em que não foi parte. No caso da dupla alienação sucessiva, o terceiro de boa fé que adquire a non domino tem interesse em que o anterior negócio não o prejudique. A norma que reconhece esse interesse – e que ao mesmo tempo o regulamenta, por assim dizer – é próprio artigo 5º, nº 1 do CRPred” (Gabriel António Órfão Gonçalves, Aquisição Tabular, Lisboa, 2004, p. 17).
[6] “É nula a doação de bens alheios […]”, diz o trecho inicial da norma.
No caso de doações sucessivas do mesmo bem – e estamos a expor o regime substantivo atinente à doação sem a sobreposição da questão do registo aqui colocada – a segunda doação funciona como doação de bem alheio, sendo que o doador, com a primeira doação, transfere a proprietário para o (primeiro) donatário (artigo 954º, alínea a) do CC, configurando o contrato de doação como real quoad effectum) e deixa de estar legitimado para uma posterior doação do mesmo bem, que passa a constituir bem alheio (v. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 223).
[7] “[P]ela alínea c), a reconvenção é admissível quando o pedido reconvencional tende ao mesmo efeito jurídico a que tende o pedido deduzido pelo autor: autor e réu pretendem, por exemplo, a declaração de propriedade sobre o mesmo bem […]. A exigência da identidade do efeito não impede que um dos pedidos vise a sua constituição no processo, enquanto no outro se afirma que ele pré-existia […]” (José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 531).
[8] Aqui os transcrevemos integralmente sublinhando os trechos relevantes:

Artigo 5º
(Oponibilidade a terceiros)
1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:

a) A aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º;
b) As servidões aparentes;

c) Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.
3 - A falta de registo não pode ser oposta aos interessados por quem esteja obrigado a promovê-lo, nem pelos herdeiros destes.

4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
5 - Não é oponível a terceiros a duração superior a seis anos do arrendamento não registado.
Artigo 17º
Declaração de nulidade
1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado.
2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade
.
122º
Efeitos da rectificação
A rectificação do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiros de boa-fé, se o registo dos factos correspondentes for anterior ao registo da rectificação ou da pendência do respectivo processo.
[9]
Artigo 291º
(Inoponibilidade da nulidade e da anulação)

1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.

2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.

3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.
[10] É a posição (exigência do requisito da onerosidade em todas as aquisições tabulares, incluindo a do artigo 5º, nº 1 do CRPred) defendida por José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 5ª ed., Coimbra, 2000, pp. 361 e 378 e por António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint 1979, Lisboa, 1993, pp. 276/280 (refere-se este Autor, nesta obra, ao Código de Registo Predial vigente em 1979, o Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 47611, de 28/03/1967, valendo neste os artigos 85º e 7º nº 1, propugnando Menezes Cordeiro uma interpretação extensiva daquele, que previa o carácter oneroso do acto, como fonte de uma presunção inilidível que propiciaria a aquisição tabular). Também exigindo o carácter oneroso do acto a fazer prevalecer, no quadro do artigo 5º, nº 1 do CRPred, v. Gabriel António Órfão Gonçalves, Aquisição Tabular, cit., pp. 48/54.
[11] “Para a aquisição tabular prevista no artigo 5º, nº 1 do CRPred, a lei exige apenas uma dupla alienação ou oneração e o prévio registo da segunda disposição. Por analogia com os restantes casos de aquisição tabular, a doutrina maioritária exige, no entanto, que a segunda disposição seja realizada a título oneroso e de boa fé, sem o que se entende que o direito do primeiro adquirente não poderá ser posto em causa” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Coimbra, 2009, p. 288).
[12] A não exigência do requisito da onerosidade no caso do nº 1 do artigo 5º do CRPred é afirmada por Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, cit., pp. 134/135.
[13] Poderíamos aqui falar, configurando-se uma situação de colisão de direitos, de ponderação abstracta da situação com essa base: maior protecção ao acto oneroso com tendencial prevalência deste sobre o acto gratuito (v., sem se referir expressamente a esta situação, sobre a ponderação abstracta no quadro da colisão de direitos, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol I, Parte Geral, tomo IV, Coimbra, 2005, p. 392; de alguma forma era este o sentido do artigo 14º do Código de Seabra sobre conflitos de direitos: “[q]uem, exercendo o próprio direito, procura interesses, deve, em colisão e na falta de providência especial, ceder a quem pretende evitar prejuízos”).
[14] Direitos Reais, Reprint 1979, cit., p. 276.

[15] Citação extraída do texto “Limites à Validade Negocial das Declarações das Partes”, in http://muriasjuridico.no.sapo.pt/eQuadroLimitesValidade.htm. Sublinha-se a circunstância de um dos exemplos se referir, precisamente, às aquisições tabulares dos artigos 291º do CC e 17º, nº 2 do CRPred. V. também, do mesmo Autor, Por uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, p. 103 e nota 275, cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Coimbra, 2005, p. 824 (“[…] a aquisição gratuita é considerada uma causa minor de aquisição […]”).
[16] V. o artigo 2º, alínea a) do CRPred.
[17] V., sobre o conceito de “lacuna oculta”, Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 5ª ed., tradução da 6ª ed. Alemã de 1991, Lisboa, 2009, p. 535.
[18] Também será este, de alguma forma, a essência do princípio donatio non praesumitur (v. Black’s Law dictionary, 6ª ed., St Paul Minnesota, 1990, p. 488; Pedro Ferreira Múrias, Por uma Distribuição Fundamentada…, cit., p. 103).