Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
620/14.6T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO DE RISCO
BOA FÉ
SEGURADO
TOMADOR
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 425º E SEGS. DO CÓDIGO COMERCIAL; ANEXO AO D.L. N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL.
Sumário: I – A declaração do risco é uma das obrigações fundamentais do tomador do seguro/ segurado e que se funda no princípio geral da boa-fé.

II - Agir de boa-fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondentes aos legítimos interesses da contra parte, numa linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da outra parte, é não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.

III – Esta característica não visa reforçar a necessidade das partes actuarem, tanto nos preliminares como na formação do contrato, de boa-fé (artigo 227.º, n.º 1, 1ª parte do CC), mas sim realçar a necessidade de o tomador de seguro (e o segurado) actuar com absoluta lealdade, uma vez que a empresa de seguros não controla a veracidade destas no momento da subscrição.

IV - Ao celebrar um contrato é obrigação do segurado não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato, (tanto mais que o art.º 18º do D.L. n.º 72/2008 impõe-lhe um dever geral de informação, que tem por objecto a prestação de elementos informativos e esclarecimentos necessários à compreensão do contrato de seguro por parte do tomador).

V - Sobre o segurado recai o ónus de não encobrir qualquer facto que possa contribuir para a apreciação do risco por parte da seguradora e se o fizer, tendo conhecimento de tais factos que de alguma maneira possam influir sobre a formação do contrato e as condições do mesmo, perde o direito à contra – prestação da seguradora.

Decisão Texto Integral:       








      Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

1. RELATÓRIO

1.1. M... veio propor a presente acção declarativa, que segue a forma de processo comum, contra F..., S.A., pedindo que a ré seja condenada no pagamento do valor contratado ao tomador - capital seguro actualizado à data do falecimento de J.... ... - e em dívida perante a beneficiária deste seguro de vida (apólice n.º ...), a C..., e para o caso de tal pedido ser julgado improcedente, a ré condenada a devolver todas as quantias que recebeu durante a vigência deste contrato de seguro de vida a título de prémios pagos pela autora e seu marido J.... ..., acrescidas de juros à taxa comercial, a liquidar em execução de sentença.

 Para tanto alega, em síntese, que a autora e o falecido marido outorgaram com a C... um acordo de mútuo com hipoteca, pelo qual o banco emprestou 52.500,00 €, a amortizar em prestações durante 30 anos, e um acordo de mútuo com hipoteca, pelo qual o banco emprestou o valor de 29.314,00 €, a amortizar em 20 anos; que no âmbito de tal empréstimo foram celebrados com a ré, companhia de seguros, em 23.03.2007, dois acordos de seguro, titulados pela apólice ..., nos quais a C..., enquanto entidade mutuante, é o tomador, garantindo o pagamento, que descreve, em caso de morte ou de invalidez absoluta e definitiva da autora e/ou do marido; que após a adesão ao seguro, o que não acontecia antes, foi diagnosticado ao marido da autora um tumor no cólon, tendo isso mesmo sido comunicado à ré, em Julho de 2008, e os acordos de seguro renovados anualmente, o que se não tivesse ocorrido teriam procurado um outro seguro junto de outra seguradora.

O marido da autora veio a falecer em 31.0.2013, porém a ré, sem fundamento, considera o contrato celebrado extinto desde o início devido à existência de omissões ou inexactidões nas declarações iniciais de risco.

1.2. A ré, citada para o efeito, contesta por excepção e por impugnação.

Por excepção invoca a ilegitimidade  da A. para a acção, por não estar acompanhada de todos os herdeiros do falecido marido e defender a cessação do contrato de seguro, porque o falecido marido da autora, no questionário clínico de adesão ao seguro não prestou informações relativas à doença que já então padecia, em consequência da qual viria a falecer, sendo que nunca lhe foram comunicadas as alterações de saúde aludidas na petição.

Por impugnação refere, em síntese, que: - nem nos boletins clínicos de adesão nem no respectivos questionários clínicos foi prestada, pelo falecido J.... ..., nenhuma informação respeitante a qualquer problema de saúde, que indiciasse sofrer de alguma patologia e justificasse a solicitação, por parte da R. (e da sua assessoria clínica), de qualquer esclarecimento e documentação complementares relativos ao risco que havia sido proposto á seguradora. O falecido, à data da adesão ao seguro, era portador, pelo menos, de carcinoma com marca reacção inflamatória e formação de folículos linfóides com centros germinativos, o que nunca comunicou á seguradora, sabendo que com as referidas omissões e inexactidões estava a ludibriar a R. que, se soubesse dos factos descritos, nunca negociaria aquele contrato e muito menos o negociaria nos termos em que o negociou.

Termina pedindo que a A. seja julgada parte ilegítima, que a R. seja absolvida da instância, e declarar-se cessado o contrato de seguro supra identificado e excluídas das garantias da apólice as circunstâncias do sinistro alegado pela A., em virtude das omissões e declarações inexactas do falecido, absolvendo-se a R. do pedido.

1.3. A fls. 91 e 92 a A. veio requerer a intervenção provocada da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J.... ..., representada pelo cabeça de casal da herança, M...

1.4. Por despacho proferido nos autos, a fls. 100 a 103, foi admitida a intervenção principal provocada, do lado activo, de G..., representado pela autora sua mãe, enquanto herdeiro de J.... ... para, juntamente com a autora, representarem a herança deste.

1.5. No despacho saneador foi decidido, por força da intervenção principal provocada ocorrida, julgar improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa.

            1.6. Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, foi proferida sentença de fls. 165 a 179, tendo sido a acção julgada improcedente e, consequentemente, absolvido a ré F..., S.A., dos pedidos.

            1.7. Inconformado com tal decisão dela recorreu a A. terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...        

            1.8. A fls. 202 a 209 a R. apresentou as suas contra-alegações, onde, em sede das respectivas conclusões, defendeu que:

...

            1.9. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                               2. Fundamentação

                        2.1. Factos provados em 1.ª instância

...

           3. Fundamentação

3.1. É, em príncipio, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, n.º 2, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:

I - Se a matéria de facto deve ser alterada;

II –  Se a sentença recorrida deve ser substituída por outra que decida que a Ré seja condenada no pagamento do valor contratado à tomadora - capital seguro actualizado à data do falecimento de J.... ,,, - e em dívida perante a beneficiária deste seguro de vida.

Tendo presente que são duas as questões ventiladas por uma razão metodológica iremos a analisar cada uma de per si.

Porém, antes de se entrar na análise das questões aludidas cabe, como questão prévia, analisar se o recurso interposto é extemporâneo, como pretende o recorrido, ao referir: « vindo a ser rejeitado o recurso na parte relativa à reapreciação da prova gravada, o mesmo ficaria circunscrito à matéria de direito; no entanto, para esse efeito, já não pode a recorrente beneficiar do prazo de 10 dias previsto no artigo 638.º, n.º 2 do CPC, pelo que, considerando-se as partes notificadas da sentença no dia 1.03.2016 e tendo as – aliás doutas – alegações da apelante sido entregues, apenas, no dia 03.05.2016, há muito havia transcorrido o prazo de 30 dias (+ três dias, com multa) disponível para tal (último dia: 22.04.2016)» ]

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido art.º 607, n.º 5, do C.P.C.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Basto, Notas ao C.P.C. 3º, 3ªed. 2001, p.175.

            O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pelo que: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

Ademais, urge atentar que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não se destina a que o tribunal da Relação reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão - Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 9.07.2015, p.405/09.1TMCBR.C1.S1 e de 01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt.

Na verdade, e como dimana do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Como corolário deste princípio:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das

decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.»

«A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis…mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República…Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), – exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.» - Ac. do STJ de 01.10.2015, sup. cit.

Assim, preceitua o artº 640º do CPC:

“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

A - Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

B - Perante o estatuído neste ultimo segmento normativo tem-se entendido, por um lado, que:

«A exacta indicação das passagens da gravação…não se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio disponibilizado ao Tribunal de recurso, onde começa e termina cada um dos depoimentos em causa…Daí que ao recorrente…seja mister indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens, desse depoimento, em que se funda o seu recurso.» - Ac. da RC de 17-12-2014, p. 6213/08.0TBLRA.C1 in dgsi pt, bem como indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, cfr. Ac.s do STJ de 14/7/2016 e 7/7/216, onde foram relatores os Conselheiros António Joaquim Piçarra e Gonçalves Rocha, respectivamente, in www.dgsi.pt.

Ou, noutra nuance:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve observar o ónus de impugnação previsto no artº 640º do nCPC, nomeadamente deve indicar as exatas passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se baseia para discordar do decidido, sob pena de rejeição do recurso quanto à reapreciação da prova.» - Ac. da RC de 16.03.2016, p. 1598/14.1T8LRA.C1.

Na verdade, ainda que o tribunal da Relação tenha de fundar a sua própria convicção, tal não significa que tenha de realizar um novo julgamento com total reapreciação de todos os meios probatórios produzidos.

Como se viu, a letra da lei não permite tal eventual entendimento.

E nem tal perspetiva se compadeceria com a índole e natureza deste tribunal ad quem, a qual exige uma tendencial depuração das questões, aliás, sempre necessaria a uma desejável celeridade decisoria que, obviamente, sairia prejudicada.

Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genéricamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas ou das objetivas evidencias e emanações probatórias, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.

Tudo, aliás, para se poder cumprir a exigência de o recorrente transmitir à parte contrária os seus argumentos, concretos e devidamente delimitados, de sorte a que esta possa exercer cabalmente o contraditório – cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 16.06.2015, p. nº48/11.0TBTND.C2, ainda inédito; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt;

Finalmente:

«. No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações.» - Acs. do STJ 15.09.2011, p. 455/07.2TBCCH.E1.S1 de 09.02.2012, 1858/06.5TBMFR.L1.S1, aquele citando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, pg. 157, nota 333, de 14/7/2016 e de 7/7/216 , in www.dgsi.pt.

Dito isto vejamos o caso concreto.

Muito embora a recorrente quer na motivação de recurso quer nas conclusões não referira em concreto o ponto/s que considera incorrectamente julgado/s, da leitura das mesmas vê-se de uma forma clara e inequívoca que pretende ver como provado o facto dado como não provado no ponto 2.2.4.  – « Em 29 de Julho de 2008, por sugestão do mediador de seguros, foi entregue documento à ré, onde se informa da alteração do estado de saúde, em que se assinala no ponto 3 “antecedentes pessoais”».

Assim, ainda que de forma deficiente, temos para nós, que deu cumprimento ao preceituado no art.º 640º do C.P.C., por ser evidente o facto que a recorrente pretende por em causa, pelo que o recurso interposto é tempestivo.

3.1.1. Saber se a factualidade dada como provada em 1.ª instância deve ou não ser alterada.

...

Em suma, não vemos qualquer elemento onde se possa assentar para se inferir que o tribunal a quo não apreciou a prova de forma assertiva, ou de forma ilógica.

Assim, face ao exposto, a pretensão da recorrente em ver alterado o facto supra aludido de não provado para provado não pode proceder.

 3.1.2. Saber se a sentença recorrida deve ser substituída por outra que decida que a Ré seja condenada no pagamento do valor contratado à tomadora - capital seguro actualizado à data do falecimento de J.... ... - e em dívida perante a beneficiária deste seguro de vida.

Tendo presente ao referido em 3.1.1. a matéria de facto a atender é a dada como provada em 1.ª instância.

Segundo a recorrente a sentença recorrida deve ser substituída por outra que decida que a R. seja condenada no pagamento do valor contratado à tomadora – capital seguro actualizado à data do falecimento de J.... ... – e em dívida perante a beneficiária deste seguro de vida (com a apólice n.º ...) a C...

Vejamos

            Como se sabe e como bem se refere na sentença recorrida o regime jurídico dos contratos de seguro, que antes fazia parte do Código Comercial (art.ºs 425 e ss.), consta hoje de anexo ao D.L. n.º 72/2008, de 16 de Abril, dispondo o art.º 1 que: « Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente».

            No caso em apreço, estamos perante um contrato de seguro de grupo que, segundo o art.º  76.º do citado diploma, cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar.

            O tomador de seguro é o sujeito que celebra o contrato de seguro com a seguradora, enquanto que o segurado é a pessoa segura. Como se escreve no Ac. S.T.J. de 29/5/2012, in www.dgsi.pt, a formação de um contrato de seguro de grupo estabelece-se em dois momentos distintos: num primeiro, o contrato é  celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, estando prevista a possibilidade de virem a existir pessoas seguras, que serão aquelas vierem a aderir e que terão o seguro com as coberturas e nos termos que foram contratados: -num segundo momento, o tomador de seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo, começando o contrato a produzir efeitos, como seguro, no momento da primeira adesão, ou num momento posterior se tal for acordado pelas partes.

Dos factos provados não restam dúvidas, o que aliás nem é posto em causa, que estamos perante um contrato de seguro de grupo, como já referimos in supra, entre a C... e a R., o qual surge para serem associados a empréstimos bancários concedidos pela mesma, enquanto entidade bancária, aos seus clientes para compra de habitação própria (cfr. 2.1.5, da matéria provada). Nos termos do mesmo a R., enquanto seguradora, garante à C..., enquanto entidade que concede o empréstimo, tomadora do seguro e beneficiária do seguro, o valor do empréstimo (concedido) sendo, no caso em apreço a pessoa a segurar J.... ...

            Dito isto passemos à questão contravertida - saber se o seguro em causa sofre de alguma vicissitude.

A declaração do risco é uma das obrigações fundamentais do tomador do seguro/ segurado e que se funda no princípio geral da boa-fé.

            Agir de boa-fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondentes aos legítimos interesses da contra parte, numa linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da outra parte, é não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar – Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, pág. 93, 845 e 846; Antunes Varela, CJ, 1986, 3, 13 e 1987, 4, 28, citados no Ac. do STJ, de 21.09.93., in CJ, STJ, 93, 3, 21. A propósito da importância da boa-fé no contrato de seguro pode ler-se no Acórdão do STJ de 02.12.2013, in www.dgsi.pt  «uma das características essenciais do contrato de seguro é ser um contrato de boa-fé. Com efeito, se, na generalidade dos contratos, a boa-fé é um elemento extremamente importante, no contrato de seguro, a boa- fé é uma característica basilar ou determinante, uma vez que a empresa de seguros aceita ou rejeita um dado contrato de seguro com um eventual tomador de seguros e determina o valor do prémio de seguro que este deverá pagar com base nas declarações por ele prestadas.

Esta característica não visa reforçar a necessidade das partes actuarem, tanto nos preliminares, como na formação do contrato, de boa-fé (artigo 227.º, n.º 1, 1ª parte do CC) mas sim realçar a necessidade de o tomador de seguro (e o segurado) actuar com absoluta lealdade, uma vez que a empresa de seguros não controla a veracidade destas no momento da subscrição.

Ao celebrar um contrato é obrigação do segurado não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato, (tanto mais que o art.º 18º do D.L. n.º 72/2008 impõe-lhe um dever geral de informação que tem por objecto a prestação de elementos informativos e esclarecimentos necessários à compreensão do contrato de seguro por parte do tomador); acresce que nos seguros de vida – deferindo no art.º 183º do citado Decreto-lei  como o segurador cobrir um risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa segura -, acrescentado as informações aludidas no citado art.º 18º as previstas no art.º 185 do mesmo diploma -. Com efeito, sobre o segurado recai o ónus de não encobrir qualquer facto que possa contribuir para a apreciação do risco por parte da seguradora e se o fizer, tendo conhecimento de tais factos que de alguma maneira possam influir sobre a formação do contrato e as condições do mesmo, perde o direito à contraprestação da seguradora, sendo que, na vigência do contrato, releva a matéria de deveres de informação, em especial as aludidas nos art.ºs 91 e 186 do mesmo diploma, tratam-se de normas de reforço e transparência na relação de seguro (cfr. Pedro Romano Martinez e Outros, in Lei do Contrato de Seguro Anotada, fls. 272).  

Por outro lado, o art.º 429º do C Com, ao referir-se a "circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro" inclui não apenas e naturalmente as circunstâncias que se verificam no momento da subscrição da proposta de seguro/adesão (como é comum encontrar-se afirmado), mas todas as circunstâncias que se revelem no processo de formação do contrato, ou seja, todas as circunstâncias que se revelem em momento prévio á existência do contrato de seguro, que ocorre com a sua aceitação por parte da seguradora seja por um acto expresso, como é a emissão da apólice, seja por um acto que mostre a intenção de aceitar a proposta.

Na verdade, a pedra de toque da norma são todas as circunstâncias conhecidas pelo tomador ou pelo segurado e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, ou seja, todas as circunstâncias prévias á existência do seguro, a qual ocorre com a aceitação pela seguradora.

Uma interpretação do art.º 429º do C Com conforme ao princípio geral da boa-fé impõe que se em momento posterior á subscrição da proposta e anterior á aceitação se verifica uma circunstância que pode influir sobre a existência ou condições do contrato, o proponente deve comunicá-la à seguradora, sob pena de ver o contrato anulado.

Os contratos de seguro são essencialmente regulados pelas disposições especiais, particulares e gerais constantes das respectivas apólices, de acordo com o princípio da liberdade contratual ínsito no art.º 405.º do CC.

Ao celebrar um contrato é obrigação do segurado não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato.

Com efeito, “sobre o segurado recai o ónus de não encobrir qualquer facto que possa contribuir para a apreciação do risco por parte da seguradora e se o fizer, tendo conhecimento de tais factos que de alguma maneira possam influir sobre a formação do contrato e as condições do mesmo, perde o direito à contra – prestação da seguradora”(cfr. Cunha Gonçalves, “Comentário ao Código Comercial, II, 540-541 e  Pinheiro Torres, “Ensaio sobre o Contrato de Seguro, 106”).

No mesmo sentido refere Moitinho de Almeida in“Contrato de Seguro”, 65, que: “sobre o segurado recai o dever de declaração do risco, pois se não completar a declaração realizada por quem fez o seguro, tendo conhecimento de factos ou circunstâncias que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, perde o direito à prestação do segurador”.

É efectivamente obrigação do segurado não omitir quaisquer factos ou circunstâncias que se possam considerar decisivos para a apreciação do risco que a seguradora se propõe assumir e que terá por ela de ser aferido e avaliado com rigor, munida, portanto, do conhecimento de todos os respectivos elementos referenciadores,  essa obrigação existe durante todo o período de formação do contrato, sendo de realçar em reforço desta afirmação o que nos diz J.C. Moitinho de Almeida, «O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado», Livraria Sá da Costa, 1971, pags. 73-74, o «contrato de seguro é um contrato assente na boa fé, pois o segurador, quer na sua decisão de assumir os riscos, quer na determinação da contraprestação (prémio), confia no segurado, nas informações por este fornecidas na declaração inicial do risco». Acrescentando mais adiante: «O segurado deve declarar todas as circunstâncias que tenham influência na opinião do risco do segurador, quer dizer, todas as circunstâncias que por qualquer forma sejam susceptíveis de tornarem o sinistro mais provável ou mais amplas as suas consequências».

A obrigação que impende sobre o segurado abrange todos os factos ou circunstâncias por ele conhecidas e susceptíveis de influírem na celebração ou no conteúdo do contrato.

No caso dos autos resulta provado que o falecido J.... ... aquando do preenchimento do questionário clínico dos seguros de vida, era portador de “carcinoma com marcada reacção inflamatória e formação de folículos linfóides com centros germinativos reactivos” e padecia de “adenocarcinoma do cólon”, o que conhecia e não comunicou à seguradora ré que  iniciou quimioterapia a 26 de Março de 2007, tendo realizado 12 sessões de quimioterapia, que finalizou em Outubro de 2007, que após as sessões de quimioterapia os exames de reavaliação, a esta altura, não mostraram nem persistência nem metastização, pelo que continuou a ser seguido em consulta de cirurgia oncológica, tendo a sua situação se mantido estável até Junho de 2009, quando em novo exame de reavaliação apurou que o seu estado de saúde se tinha deteriorado (com metastização carcinomatose peritoneal e metastização esplénica), o  J.... ... faleceu por “falência multiorgânica”, devida ou consecutiva a “neoplasia maligna do cólon metastizada”, que lhe foi diagnosticada em Fevereiro de 2007, se a ré seguradora conhecesse tais factos, não negociaria o seguro de vida, pelo menos, nos termos em que o fez (cfr. factos 2.1.9. a 2.1.15.).

Face a tais factos temos para nós que o falecido J.... ... agiu de má fé, aquando da celebração do contrato, omitindo a doença que já conhecia, não se tendo provado que após a celebração do contrato o tenha comunicado, pelo que a sua conduta se enquadra no art.º 429º do C.C.

Assim, face ao exposto, temos para nós, que a sentença recorrida não merece censura.

                                    4. Decisão

Desta forma, por todo o exposto, acorda-se:

I – julgar improcedente o recurso quanto á pretendida alteração da matéria de facto.

II - Julgar a presente apelação improcedente e, nesta medida, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 18/10/2016

                             Des. Pires Robalo (relator)

                             Des. Sílvia Pires (adjunta)

                             Des. Jorge Manuel Loureiro