Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/16.2T8PNH-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DA QUALIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
QUALIFICAÇÃO CULPOSA
PRESUNÇÃO LEGAL
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - PINHEL - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.186 Nº1 , Nº 2 D), F), G), Nº3 A) CIRE
Sumário: 1. No incidente de qualificação de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados, bem como, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com, recolher as provas e informações que entender convenientes.

2. O incumprimento do dever de apresentação à insolvência, acarretando uma presunção de culpa qualificada na insolvência [art. 186º, nº3, al. a)], dispensa a prova do nexo causal entre tal facto e a criação ou agravamento da insolvência, onerando o devedor com o ónus da prova de que não foi a sua conduta que deu causa à insolvência ou ao seu agravamento, mas outro fator externo ou independente da sua vontade.

Decisão Texto Integral:









Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

 Decretada a insolvência de M (…) S.A., por sentença de 05 de julho de 2016,

O Administrador de Insolvência (A.I.) veio requerer a qualificação da insolvência como culposa, propondo que sejam afetados por tal qualificação o administrador da insolvente M (…),

Alegando a seguinte factualidade que, em seu entender, integraria a qualificação da insolvência como culposa por preenchimento do artigo 186º, nº1 e nº2, alíneas a), b), d), e) a g) e nº3, al. a), do CIRE:

o administrador (único) da insolvente, M (…) é ainda gerente de uma outra empresa denominada de M (…) ECOP, tendo colocado ao serviço desta vários equipamentos pertencentes à Insolvente;

 o administrador da devedora entregou vários equipamentos (sob a forma de dação em pagamento) a determinados fornecedores, privilegiando-os relativamente a outros.

O Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, nos termos propostos pelo A.I.

Citada a devedora e o seu administrador, estes vieram deduzir oposição, alegando, em síntese:

 todos os equipamentos da insolvente utilizados pela M (…) ECOP foram faturados e remunerados;

com vista a concluir os trabalhos contratados que a insolvente tinha em curso até ao final de 2014, e não podendo apresentar-se a novos concursos públicos, porque decorria o plano especial de recuperação da insolvente, de modo a poder concorrer a obras públicas contratou “M (..), Unipessoal, Lda”;

a insolvente passou assim a faturar os trabalhos realizados à M (…) ECOP, Lda. (em subempreitada);

desde meados de 2014, a insolvente deixou de ter acesso à banca, não podendo movimentar quaisquer contas bancárias; assim, pelo fornecimento de maquinaria e mão-de-obra efetuado pela insolvente à M (…) ECOP, Lda., esta procedeu ao pagamento de diversas despesas correntes e ainda salários e impostos e outras dívidas da insolvente, na expectativa de que as condições de mercado e económicas melhorassem para que a insolvente pudesse novamente ter a confiança da banca e concorrer a concursos públicos;

quanto ao destino dos bens elencados pelo AI como estando em falta, os mesmos deixaram de integrar o património da insolvente por ato judicial (penhoras no âmbito de execuções) ou por atos extrajudiciais (pagamento de dívidas com vista a evitar as respetivas ações de cobrança), diminuindo o passivo da insolvente.

desde 2013 a 2015, o passivo da insolvente foi diminuindo progressivamente.

Conclui no sentido da declaração da insolvência como fortuita.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a:

“a) Qualificar como culposa a insolvência de “M (…)S.A.”, pessoa coletiva n.º (...) , com sede na Urbanização (...) , na Guarda, sendo o seu administrador M (…) o afetado pela presente qualificação;

b) Decretar a inibição de M (…) para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de três anos; e

c) Determinar a perda de quais quer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por M (…).

d) Condenar M (…) a indemnizar os credores da devedor insolvente “M (…)S.A.” no montantes dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo prejuízos sofridos por aqueles credores, a fixar em sede de liquidação de sentença, nos termos do n.º 4 do artigo 189.º do CIRE.”


*

Não se conformando com a mesma, o requerido M (…), dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem parcialmente[1]:

(…)*

A Massa Insolvente e o Ministério Público apresentam contra-alegações no sentido da manutenção do decidido.
Cumpridos que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº2, in fine, do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são unicamente as seguintes:
1. Nulidades da sentença
2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3. Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento das alíneas d), f), g), do nº2, do art. 186º do CIRE
4. Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da alínea a) do nº3 do art. 186º do CIRE
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Nulidade da sentença por omissão da apreciação do requerimento apresentado pelo A.I. a 25 de janeiro de 2017.
Notificada para juntar aos autos as faturas que titulam as prestações de serviço, aluguer de equipamento e/ou cedência de mão-de-obra entre ambas as sociedades, bem como o correspetivo comprovativo de pagamento daquelas faturas, a Insolvente veio juntar aos autos inúmeros documentos.
Notificado de tal junção, o AI pronunciou-se sobre tais documentos, alegando que, quanto “à demonstração da existência de prestações de serviço, aluguer de equipamento e/ou cedência de mão-de-obra entre ambas as sociedades, nada provam”. Aí se concluiu que “Assim, face à persistente omissão no cumprimento do solicitado deverá ser declarada a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 519º, nº2 do CPC e 344º CC”.
Segundo o Apelante, tal questão ficou por decidir, pelo que a Mma. Juíza deixou de se pronunciar sobre a questão da inversão do ónus da prova que deveria apreciar, o que não fez, encontrando-se a sentença recorrida ferida de nulidade.
Cumpre apreciar a invocada nulidade.
Para além da alegada omissão da apreciação expressa da “questão” levantada pelo A.I. em tal requerimento, não constituindo um vício da sentença, não ser suscetível de a afetar[2], não podemos dar razão ao apelante ainda por outro motivo: o apelante não terá atentado em que, por despacho de 8 de março de 2017 (fls. 559 e 560 do processo físico), o juiz a quo veio pronunciar-se expressamente sobre a requerida inversão do ónus da prova, inversão que indeferiu, além do mais, por “no caso sub iudice, o ónus da prova acha-se já invertido em face das presunções legais que servem de fundamento.
Não se tem por verificada omissão, que, a existir também não constituiria qualquer nulidade da sentença.
2. Nulidade por omissão da apreciação do pedido de condenação do A.I. como litigante de má-fé.
Compulsados os autos, constata-se que, ainda antes da interposição do recurso por parte do requerido, o juiz a quo, constatando não se ter pronunciado sobre a invocada existência de má-fé por parte do A.I., veio, por despacho de 24-04-2017, pronunciar-se sobre tal questão, encontrando-se, assim prejudicada, a apreciação da invocada nulidade por omissão de pronúncia.
3. Nulidade por excesso de pronúncia.
Segundo a apelante, embora não tenha sido imputada ao recorrente a violação do disposto na al. b) do nº2 do artigo 186º do CIRE, o juiz a quo apreciou a matéria relacionada com a eventual violação desta alínea, violando o disposto no art. 608º, nº2 do CPC.
Não assiste qualquer razão ao apelante.
Como resulta da síntese que no relatório do presente acórdão é feita sobre o Parecer apresentado pelo A.I. e que deu início ao presente incidente de qualificação da insolvência, um dos fundamentos em que o A.I, faz assentar a qualificação da insolvência como culposa é precisamente o preenchimento do circunstancialismo previsto na al. b), do nº2 do artigo 186º (cfr., nº23 do seu Parecer).
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2. Impugnação da matéria de facto
Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.
Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:
1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:
a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;
b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 
Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.
Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[3], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.
*
(…)
Improcede, assim, a impugnação deduzida à matéria de facto.
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A. Matéria de Facto:
O tribunal recorrido deu como provados, entre outros, os seguintes factos, que aqui se mantêm inalterados:
1. “M (…) S.A”, pessoa coletiva n.º (...) , com sede na Urbanização (...) , na Guarda, foi declarada insolvente por sentença de 5 de Julho de 2016, transitada em julgado, conforme teor de fls. 45 a 48 dos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Tem como objeto social a Construção civil e obras públicas, vias de comunicação, obras de urbanização e outras infraestruturas, construção e reparação de estradas, trabalhos de pavimentação, calcetamentos, construção de todo o tipo de edifícios residenciais, restauro de edifícios, montagem de edifícios pré-fabricados, construção de pontes e túneis em quaisquer materiais, construção e reparação de redes de água, sistemas de esgotos, construção e reparação de redes de energia elétrica e comunicações urbanas e de longa distância, aéreas ou subterrâneas, construção de complexos industriais, comércio por grosso e a retalho de materiais de construção e transportes públicos, ocasionais rodoviários de mercadorias.
3. A insolvente encontra-se matriculada na conservatória do registo comercial de (...) desde 26-01-1995, tendo nessa data sido constituída como sociedade por quotas.
4. Do registo da conservatória do registo comercial de (...) decorre que M (…) foi nomeado gerente da insolvente, conforme ap. 2/20060508, tendo cessado aquelas funções em 4-01-2010, pela ap. 1/20100107.
5. Mostra-se registado na conservatória do registo comercial de (...) que, em 22-04-2010, pela ap. 1/20100426, procedeu-se à transformação da insolvente em sociedade anónima, constando como sócios (…), tendo este último cessado funções em 16-01-2012, conforme inscrição ap. 1/20120123, passando, desde então, o primeiro a constar como administrador único da insolvente.
6. Da certidão de matrícula da insolvente emitida em 2-05-2016 consta o depósito da prestação das contas relativas aos exercícios de 2007 a 2014, depositadas, respetivamente, em 4-09-2007, 27-06-2008, 4-08-2009, 16-07-2010, 29-09-2011, 5-04-2012, 16-04-201216-07-2013 e 3-12-2014.
7. Em 31 de Julho de 2014 a insolvente requereu a sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação que deu origem ao processo especial de revitalização n.º 105/14.0TBPNH que correu termos neste Tribunal.
8. Do plano de recuperação da insolvente ali apresentado a 27 de Janeiro de 2015 resultava, designadamente nos pontos 47 a 50, o seguinte: “Propõe-se ainda a transformação da sociedade anónima para sociedade por quotas de responsabilidade limitada; aquisição de 99.900 ações pelo sócio M (…)  à sociedade M (…), unipessoal, Lda, passando o sócio individualmente a deter 199.900 ações e a sociedade unipessoal, designada M (…) unipessoal Lda a deter 100 ações da M (…) Lda (…) por outro lado, e nesta fase transitória, ficaria a M (…) com a sua imagem mais debilitada, o que com esta proposta haverá uma oportunidade, para que alguns negócios que por motivos financeiros não estejam acessíveis diretamente à M (…) possam vir a ser contratados por esta sociedade unipessoal, Lda que, seguidamente, procederá à subcontratação M (…), para execução dos mesmos (…)”.
9. O referido plano de recuperação foi aprovado pela maioria dos credores cujos créditos constituíam mais de um terço do total dos créditos com direito de voto, recolheu mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados.
10. Sobre o referido plano viria a recair despacho de não homologação, datado de 2 de Fevereiro de 2015, de fls. 1393 a 1397 daqueles autos, cujo teor se dá por reproduzido, transitado em julgado em 18 de Julho de 2015.
11. Em 28 de Abril de 2016 foi requerida a declaração de insolvência da insolvente por (…)conforme teor de fls. 3 a 6 verso dos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido, com fundamento em créditos laborais detidos por aqueles sobre a insolvente, designadamente € 15.746,41, devidos a A (…), € 17.654,52, devidos a J (…), € 11.098,67, devidos a M (…), € 5.945,50, devidos a R (…) e € 7.220,62, devidos a € N (…).
12. Foram reclamados e reconhecidos pelo AI os créditos elencados a fls. 178 a 204 do apenso de reclamação de créditos, cujo teor se dá por reproduzido, num total de € 2.560.913,5.
13. Em data não apurada, mas após a declaração de insolvência da insolvente e a realização da respetiva assembleia de credores, o AI solicitou a M (…) a entrega de bens pertencentes à massa e não localizados, a saber:
- 2 Tratores Massey Ferguson;
- 1 Carrinha Iveco
- 1 Carrinha Mitsubishi Strakar
- 1 Carrinha Nissan
- 1 Multifunções JCB
- 1 Giratória PC 138 Cimartex
- 1 Aparelho de Tipografia
- 1 Pá Carregadora
- Vários Tubos Acessórios
14. Em resposta ao solicitado, M (…) informou o AI que tais bens já não pertenciam à insolvente por terem sido vendidos em sede de ações judiciais de execução ou dados em pagamento de dívidas vencidas da insolvente.
15. As carrinhas Iveco, Mitsubishi e Nissan aludidas em 13, entre outros bens móveis, foram penhoradas em 29-04-2015, no âmbito da ação de execução sumária n.º 55/15.3T8PNH, que correu termos neste Juízo, em que era exequente “ Y (...) , Lda.” e executada a insolvente, bens esses que foram adjudicados àquela exequente.
16. Um dos tratores Massey Ferguson aludidos em 13 foi entregue ao Banco BNP Paribas após resolução de uma locação financeira ocorrida em 2014 e o outro foi alienado à empresa “M (…)”, em Julho de 2014, pelo valor de € 6.000,00 devido a rendas em atraso àquele Banco.
17. A multifunções JCB aludida em 13 foi alienada, em Julho de 2014, pelo valor de 25.000,00, a “B (…), Lda.” para pagamento de obrigações vencidas da insolvente para com esta, de montante não apurado.
18. A giratória aludida em 13 foi entregue, em data e montante não apurados a “C (…) Unipessoal, Lda.” para pagamento de obrigações vencidas da insolvente para com esta, de montante não apurado.
19. Os tubos e acessórios aludidos em 13 foram entregues, em julho e agosto de 2015 a P (…) Lda.” e “S (…), Lda.” para pagamento de obrigações vencidas da insolvente para com esta, de montante não apurado.
20. “M (…) Unipessoal, Lda.” pessoa coletiva n.º (...) , encontra-se registada na conservatória do registo comercial de (...) como sociedade por quotas com sede na Rua (...) , em Pinhel, constituída em 30 de Dezembro de 2009 pela ap. 2/20091230, constando como gerente único M (…).
21. A sociedade referida em 9 tem como objeto a Construção civil e obras públicas, vias de comunicação, obras de urbanização e outras infra-estruturas, construção e reparação de estradas, trabalhos de pavimentação, calcetamentos, construção de todo o tipo de edifícios residenciais, restauro de edifícios, montagem de edifícios pré-fabricados, construção de pontes e túneis em quaisquer materiais, construção e reparação de redes de água, sistemas de esgotos, construção e reparação de redes de energia elétrica e comunicações urbanas e de longa distância, aéreas ou subterrâneas, construção de complexos industriais, atividades de arquitetura, engenharia, peritagem, gestão e controlo de obra, concessão de direito de exploração temporária, gestão temporária de atividades e captação de direitos de exploração, gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas, consultoria e formação profissional.
22. P (…) Lda.”, pessoa coletiva n.º (...) , encontra-se registada na conservatória do registo comercial de (...) como sociedade por quotas com sede na Rua (...) , em Pinhel, constituída em 4 de Junho de 2009 pela ap. 2/20090604, constando como sócios (…) .
23. (…) são filhos de A (…) e M (…)
24. Desde meados de 2014 a insolvente deixou de ter acesso à banca, de poder movimentar contas bancárias, as quais se encontravam bloqueadas devido a penhoras, de concorrer a concursos de obras públicas, por ter dívidas à Segurança Social e às Autoridade Tributária, no valor, designadamente à Segurança Social, de cerca de € 270.000,00, viu sendo reduzido o número de trabalhadores relativamente aos quais, desde aquela data se registavam atrasos nos pagamentos dos respetivos salários.
25. Devido à situação descrita em 24 e desde aquele momento, a insolvente passou a ceder mão-de-obra e equipamentos a M (…) ECOP, melhor identificada em 20, no exercício da sua atividade, com o objeto elencado em 21, canalizando a sua atividade para esta sociedade.
26. As referidas cedências de mão-de-obra e de equipamentos da insolvente a “MM (…)ECOP” foram faturadas pela primeira a esta última mas não foram efetivamente liquidadas por esta, tendo a M (…) ECOP”, como contrapartida, assumido o pagamento de despesas correntes da insolvente, salários de trabalhadores da insolvente e impostos e obrigações devidos pela insolvente.
27. No ano de 2013 a insolvente apresentou um total de ativo no valor de € 3.179.257,96 e um passivo de € 2.897.941,47.
28. No ano de 2014 a insolvente apresentou um total de ativo no valor de € 1.938.413,47 e um passivo de € 2.831.768,53.
29. No ano de 2015 a insolvente apresentou um total de ativo no valor de € 1.712.731,42 e um passivo de € 2.717.395,36.
30. O AI dirigiu cartas a todas as testemunhas indicadas por si no presente incidente para acautelar um eventual indeferimento do Tribunal quanto à notificação das mesmas.
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Aditar-se-ão ainda os seguintes factos, com interesse para a decisão em apreço e que resultam da consulta dos autos de insolvência e do apenso da reclamação de créditos:
31. Na insolvência foram reclamados créditos no montante global de 3.400.00,00 €, encontrando-se até agora reconhecidos créditos no montante global de 2.695.414,15 € (relação definitiva de créditos junta a 23-03-2017, ao apenso da reclamação de créditos);
32. O produto dos bens apreendidos e descritos no relatório junto a 23-03-2016 ascende até agora a cerca de 120.000,00 €.
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B. O Direito
1. Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da al. d), do nº2 do artigo 186º do CIRE
O juiz a quo julgou verificado o circunstancialismo previsto em tal alínea com base na seguinte argumentação:
“Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”;
Com relevância para este efeito, temos por demonstrado que as carrinhas Iveco, Mitsubishi e Nissan aludidas em 13, entre outros bens móveis, foram penhoradas em 29-04-2015, no âmbito da ação de execução sumária n.º 55/15.3T8PNH, que correu termos neste Juízo, em que era exequente “Y (…), Lda.” e executada a insolvente, bens esses que foram adjudicados àquela exequente. Quanto a estes bens não se pode, pois, concluir que houve disposição dos bens da devedora em proveito pessoal ou de terceiros.
Já no que concerne aos tratores Massey Ferguson, a multifunções JCB, a giratória e os tubos e acessórios, aludidos em 13, independentemente do valor pelo qual foram vendidos (se a preço de mercado ou não – que não foi alegado nem apurado), o certo é que, considerando que a devedora, desde meados de 2014, como adiante melhor se fundamentará já estava em insolvência ou, pelo menos, perante a sua iminência, ao dispor dos indicados bens, para pagar ou não dívidas, fê-lo em proveito de certos credores, que até teriam créditos comuns, prejudicando os outros credores da insolvente, muitos deles privilegiados, como sejam os trabalhadores, entre outros do Estado (créditos esses que assumem um valor imenso conforme resulta do facto provado elencado em 12).
Acresce que, a atuação do administrador da devedora, ora afetado pelo presente incidente, M (…), decidiu inclusivamente, dar em pagamento bens da devedora (cfr. ponto 19) à P (…) Lda., de que é sócio o irmão de M (…) e é gerente o pai daquele (cfr. pontos 22 e 23), pessoas especialmente relacionadas com M (…)”.
O apelante insurge-se contra tal decisão, argumentando que não tendo sido apurada a data em que foi feita a entrega da giratória, não pode ser tal facto subsumido na previsão da al. d), do nº2 do art. 186º.
Contudo, ainda que assim se considerasse, sempre restaria a alienação dos demais bens, sendo que, quanto à giratória, a apelante invoca um acordo com o Paribas que não foi dado como provado; quanto à multifunções invoca um erro na data da alienação, este este que foi objeto de retificação em sede de impugnação da matéria de facto.
É assim de manter a qualificação da insolvência como culposa por preenchimento da referida al. d).
2. Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da alínea f) do nº2 do artigo 186º CIRE
O Juiz a quo dá por verificado o circunstancialismo previsto na alínea f) do nº2 do artigo 186º, com na sena seguinte argumentação:
“Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
Quanto a esta alínea temos como assente, desde logo, e por um lado, que a insolvente tinha um objeto social em tudo idêntico ao objeto social de M (…) ECOP Unipessoal, Lda. (apesar desta última ter mais atividade, mas que no essencial em tudo era idêntica à insolvente) – cfr. pontos 2 e 21 dos factos provados.
Por outro lado, a administração da devedora, ora insolvente, e a gerência da M (…) cabia à mesma pessoa – o requerido M (…) – coincidindo os períodos em que exerceram tais funções.
Resultou provado que, desde meados de 2014 a insolvente deixou de ter acesso à banca, de poder movimentar contas bancárias, as quais se encontravam bloqueadas devido a penhoras, de concorrer a concursos de obras públicas, por ter dívidas à Segurança Social e às Autoridade Tributária, no valor, designadamente à Segurança Social, de cerca de € 270.000,00, viu sendo reduzido o número de trabalhadores relativamente aos quais, desde aquela data se registavam atrasos nos pagamentos dos respetivos salários (cfr. ponto 24)
Devido a tal situação e desde aquele momento, a insolvente passou a ceder mão-de-obra e equipamentos a M (…) ECOP, melhor identificada em 20, no exercício da sua atividade, com o objeto elencado em 21, canalizando a sua atividade para esta sociedade (cfr. ponto 25).
As referidas cedências de mão-de-obra e de equipamentos da insolvente a “M (…)ECOP” foram faturadas pela primeira a esta última mas não foram efetivamente liquidadas por esta, tendo a “M (…) ECOP”, como contrapartida, assumido o pagamento de despesas correntes da insolvente, salários de trabalhadores da insolvente e impostos e obrigações devidos pela insolvente (vide ponto 26).
Ora, do exposto resulta evidente que M (…) administrador de M (…)(ora insolvente) e gerente de M (…) unipessoal, Lda., porque, na realidade, a insolvente, já não tinha atividade (não tinha acesso à banca, não tinha acesso às contas bancárias, não podia concorrer a obras públicas, tinha dívidas à SS de cerca de 270.000,00, tinha atrasos nos pagamentos dos salários dos seus trabalhadores, que foi reduzindo desde meados de 2014), decidiu canalizar toda a atividade (objeto) da insolvente que, na prática, não a podia exercer porque disso era financeiramente incapaz (já estava insolvente nesse data), passando a mesma a existir apenas “formalmente” para favorecer aquela “M (…)ECOP” na qual o requerido afetado M (…) tinha interesse direto. Apenas assim se justifica que a devedora M (…) não se tenha apresentado à insolvência. Com efeito, as regras da experiência e da lógica isso mesmo indicam, e tal conduta foi-o em benefício próprio – de M (…) e da sua outras empresa, tirando partido do que até ali M (…)já tinha feito.
E esta conclusão não é abalada ou beliscada pelo facto de, no plano de recuperação apresentado no PER a que vimos aludindo, ter-se previsto o aludido em 8 dos factos provados (isto sem colocar em causa da bondade do proposto pelo Sr. Administrador Provisório do PER) pois o que na prática ocorreu foi uma instrumentalização da insolvente em benefício e proveito de “M (…)ECOP Unipessoal Lda.”, não se compreendendo sequer, sendo muito duvidoso, porque razão, em Dezembro de 2009 M (…) constitui a M (…) ECOP e em Abril de 2010 assume a gerência da devedora M (…) agora insolvente, ambas com o mesmo objeto, e decide manter as duas empresas, altura em que a insolvência da primeira não estaria em perspetiva.
Por todo o exposto, afigura-se-nos que a factualidade em apreço e acima elencada cabe na previsão da alínea f), do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, sendo esta imputável ao proposto afetado, por se situar no seu período de administração.”
O Apelante insurge-se contra a decisão recorrida com a alegação de que o que ocorreu não foi uma canalização da atividade, mas sim uma contratação da insolvente pela ECOP para execução de trabalhos deviamente faturados e o pagamento através de dívidas da insolvente através de acerto de contas.
O Apelante faz assentar toda a sua discordância relativamente ao preenchimento desta alínea num circunstancialismo fático pelo qual pugnou em sede de impugnação da matéria de facto, pretensão que veio a ser julgada improcedente.
Improcede a pretensão deduzida pelo apelante nas conclusões Z a DD.
3. Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da alínea g) do nº2 do artigo 186º CIRE
O Juiz a quo dá por verificado o circunstancialismo previsto na alínea g) do nº2 do artigo 186º, com na sena seguinte argumentação:
“No tocante à alíneas g) do preceito, prescreve esta:
«g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência»
Contempla este preceito uma previsão do risco excessivo, da tomada de decisões de gestão que, no devir do tráfego jurídico e económico levarão, previsivelmente, na previsão de um gestor criterioso e ordenado (figura prevista no art. 64º nº1, al. a) do Código das Sociedades Comerciais) a uma situação impossibilidade do cumprimento de obrigações vencidas, desde que em proveito pessoal ou de terceiro.
O que o preceito em causa exige é uma verdadeira exploração deficitária, um excesso de riscos ou puro descontrole ou incapacidade que levam uma empresa ao ponto de não retorno da insolvência – não uma crise de tesouraria ou uma conjuntura desfavorável, mas a problemas estruturais económicos e financeiros.
In casu, considerando os factos acima elencados, permite-nos a imediata conclusão pela verificação deste fundamento de qualificação de insolvência.”
Segundo o apelante, considerar como verificados os requisitos da al. g), face ao que foi considerado para não serem verificados os requisitos da al. b), ambos do nº2, constituiu flagrante contradição; por outro lado não tendo ficado demonstrado que o recorrente tenha exercido qualquer atividade em proveito pessoa ou de terceiros, não ficou provado que o tenha feito em benefício da empresa.
O circunstancialismo exigido para o preenchimento da alínea b) e da alínea g), é distinto: embora tais alíneas tenham em comum a verificação de um prejuízo no património do insolvente e de um benefício para a pessoa que o pratica ou para terceiro, tal prejuízo e consequente benefício no caso da alínea b) o correm por via de uma “criação ou agravamento artificial de prejuízos” e da celebração de negócios ruinosos, enquanto no caso da alínea g) decorre do prosseguimento de uma exploração deficitária, apesar de saberem que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
E, concordando com a sentença recorrida, entendemos que a fatispecie da alínea g) se encontra preenchida:
7. A 31 de julho de 2014 a insolvente requereu a sua revitalização (…)
24. Desde meados de 2014 a insolvente deixou de ter acesso à banca, de poder movimentar contas bancárias, as quais se encontravam bloqueadas devido a penhoras, de concorrer a concursos de obras públicas, por ter dívidas à Segurança Social e às Autoridade Tributária, no valor, designadamente à Segurança Social, de cerca de € 270.000,00, viu sendo reduzido o número de trabalhadores relativamente aos quais, desde aquela data se registavam atrasos nos pagamentos dos respetivos salários;
25. Devido à situação descrita em 24 e desde aquele momento, a insolvente passou a ceder mão-de-obra e equipamentos a M (…)ECOP, melhor identificada em 20, no exercício da sua atividade, com o objeto elencado em 21, canalizando a sua atividade para esta sociedade.
26. As referidas cedências de mão-de-obra e de equipamentos da insolvente a “M (…)ECOP” foram faturadas pela primeira a esta última mas não foram efetivamente liquidadas por esta, tendo a “M (…) ECOP”, como contrapartida, assumido o pagamento de despesas correntes da insolvente, salários de trabalhadores da insolvente e impostos e obrigações devidos pela insolvente.
27. No ano de 2013 a insolvente apresentou um total de ativo no valor de € 3.179.257,96 e um passivo de € 2.897.941,47.
28. No ano de 2014 a insolvente apresentou um total de ativo no valor de € 1.938.413,47 e um passivo de € 2.831.768,53.
29. No ano de 2015 a insolvente apresentou um total de ativo no valor de € 1.712.731,42 e um passivo de € 2.717.395,36.
Tendo a devedora requerido a sua revitalização em julho de 2014, quando se encontrava já na situação descrita sob o ponto 24 (que no entender do A.I., integrava já uma situação de insolvência, como por si é referido nas declarações por si prestadas na audiência final), o prolongar de tal situação durante quase mais dois anos e à qual só foi posto cobro pelo pedido de insolvência requerido por vários trabalhadores em abril de 2016, com o consequente avolumar de dívidas e de diminuição do ativo (com inúmeras dações em pagamento e alienações), integra o tal “prosseguimento da exploração deficitário” previsto na alínea g).
4. Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da alínea a) do nº3 do artigo 186º CIRE – prova do nexo causal entre a falta de apresentação atempada à insolvência e a criação ou agravamento da mesma.
O juiz a quo concluiu da pela qualificação da insolvência como culposa ainda por via pelo preenchimento do circunstancialismo previsto na alínea a), do nº3, do artigo 186º do CIRE.
Segundo o apelante, o juiz a quo desconsiderou a exigência de demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento da situação de insolvência.
Não questionando ter ocorrido violação do dever de apresentação à insolvência, levanta-se, tão só, a questão de saber se haverá ainda que demonstrar o nexo de causalidade entre a violação do dever em causa e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Antes de mais, e ao contrário do alegado pelo apelante nas suas alegações de recurso, não é verdade que o juiz a quo tenha “desconsiderado” a exigência de demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento da situação de insolvência.
O juiz a quo considerou como essencial a verificação de tal nexo causal, dando-o por demonstrado no caso em apreço:
“Ora, o n.º 3 do artigo 186.º, conforme já se expôs atrás, não dispensa a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência.
É, pois, necessário verificar se os comportamentos omissivos constantes daquela norma criaram ou agravaram a situação de insolvência.
Assim, não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Tal significa que estas presunções (ilidíveis) exigem a demonstração do nexo causal entre as atuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.10.2011, disponível in www.dgsi.pt.
A este propósito já vimos que, desde meados de 2014, a insolvente deixou de ter acesso à banca, de poder movimentar contas bancárias, as quais se encontravam bloqueadas devido a penhoras, de concorrer a concursos de obras públicas, por ter dívidas à Segurança Social e às Autoridade Tributária, no valor, designadamente à Segurança Social, de cerca de € 270.000,00, viu sendo reduzido o número de trabalhadores relativamente aos quais, desde aquela data se registavam atrasos nos pagamentos dos respetivos salários.
Porque a situação era esta (financeiramente incomportável por si só), desde aquele momento, a insolvente passou a ceder mão-de-obra e equipamentos a M (…) ECOP, melhor identificada em 20, no exercício da sua atividade, com o objeto elencado em 21, canalizando a sua atividade para esta sociedade.
As referidas cedências de mão-de-obra e de equipamentos da insolvente a “M (…) ECOP” foram faturadas pela primeira a esta última mas não foram efetivamente liquidadas por esta, tendo a “M (…) ECOP”, como contrapartida, assumido o pagamento de despesas correntes da insolvente, salários de trabalhadores da insolvente e impostos e obrigações devidos pela insolvente.
Portanto, do exposto, é evidente, que M (…) proposto afetado pela qualificação, administrador da devedora no período no em análise – desde meado de 2014 -, desde aquele período conhecia a situação de insolvência e nada fez, não se apresentando à insolvência. É certo que propôs o PER, mas perante a não homologação do mesmo, cujo trânsito em julgado ocorreu em Julho de 2015, também não se apresentou à insolvência o que seria a atitude de um administrador medianamente prudente e consciencioso.
E tal situação de insolvência é notória da análise do ativo e passivo da insolvente que, no ano de 2013 apresentou um total de ativo no valor de € 3.179.257,96 e um passivo de € 2.897.941,47; no ano de 2014 apresentou um total de ativo no valor de € 1.938.413,47 e um passivo de € 2.831.768,53; e no ano de 2015 apresentou um total de ativo no valor de € 1.712.731,42 e um passivo de € 2.717.395,36. Se é certo que o passivo diminui progressivamente, é igualmente certo que o ativo foi igualmente diminuindo significativamente.
Tudo isto, aliado aos atrasos dos salários, impossibilidade de aceder à banca, contas bancárias, obras públicas, ao facto de ser outra empresa (M (…) ECOP) a ter que pagar as despesas correntes, salários, impostos e outras obrigações da insolvente, levam à conclusão inequívoca de que desde meados de 2014 a devedora M (…) estava insolvente, “sobrevivendo” através da M (…) ECOP, leva-nos a concluir sem margem para dúvida que o administrador da devedora preteriu o dever de requerer a declaração de insolvência.
Assim sendo, inequívoco é que, face ao supra exposto, temos por formada a presunção, não ilidida de culpa grave por parte do proposto afetado pela qualificação M (…).

 A materialidade descrita não deixará dúvidas de que o adiar de que o atraso na apresentação à insolvência levou ao agravar de tal situação: se em 2014 a devedora apresentava um passivo no valor de 2.831.768, 53 € e um ativo no valor de 1.938.413,47 €, em 2016, à data declaração de insolvência, o passivo passou para o valor 3.400.000,00 € (valor dos créditos reclamados) e o produto dos bens apreendidos ascende a cerca de 120.000,00 €.

De qualquer modo haverá ainda que acrescentar que, segundo o nosso entendimento, não seria necessária a prova efetiva de tal nexo de causalidade, como já temos defendido em decisões anteriores[4].

O nº1 do artigo 186º do CIRE dá-nos a seguinte definição geral de insolvência culposa:

“A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Seguidamente, tal definição geral é complementada e concretizada através da enumeração, nos seus ns. 2 e 3, de um elenco de situações tidas como de insolvência culposa:

“2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor, de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionados;

(…)

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº2 do art. 188º.

3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor, que não seja pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete-las à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial.

4. (…)

Da noção legal de insolvência culposa constante do nº1, a doutrina vem extraindo os seguintes os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa:

i) uma ação ou omissão do devedor ou dos seus administradores ou gerentes;

ii) dolo ou culpa grave na ação ou omissão;

iii) produção ou agravamento do estado de insolvência;
iv) nexo causal entre o facto e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[5].

Como salienta o Acórdão do TRC de 07.02.2012[6], a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor ou dos seus administradores e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar essa qualificação, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar a sua existência.

Complementando a definição geral dada pelo nº1, o legislador enumera, sob o nº2 da citada norma, um conjunto de situações em que a insolvência se “considera sempre culposa” e, sob o nº3, situações em que se “presume a existência de culpa grave”.

A interpretação de tais normas e a articulação entre as diversas situações previstas nas alíneas dos ns. 2 e 3 e os pressupostos gerais previstos no nº1, não tem sido pacífica, tendo dado lugar a acesa discussão.

A doutrina[7] e a jurisprudência dominantes vêm defendendo que as situações do nº2 consubstanciam presunções iuis et iure, absolutas ou inilidíveis de insolvência culposa, por contraponto aos comportamentos enumerados sob o nº3, que constituiriam meras presunções iuris tantum, relativas ou ilidíveis, da existência de culpa grave.

As presunções constantes do nº3 distinguir-se-iam das anteriores, não só porque permitiriam o seu afastamento mediante prova em contrário, mas também porque com o seu funcionamento apenas resultaria demonstrado um dos pressupostos do nº1, a culpa grave[8].

Na determinação do alcance das presunções consagradas no nº2 do artigo 186º (e, ainda com maior acuidade, relativamente às presunções contidas sob o nº3), vem-se questionando se, para a qualificação da insolvência como culposa, a par da prova do circunstancialismo previsto nalguma das suas alíneas, haverá ainda que demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre os factos aí previstos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência.

Relativamente às situações descritas sob o nº2, Catarina Serra dá uma resposta inequívoca a tal questão: “uma vez apurado qualquer do(s) facto(s) descrito(s), presume-se, sem possibilidade de prova em contrário, que existem os dois requisitos fundamentais da insolvência culposa (a culpa qualificada e o nexo de causalidade), ficando o juiz vinculado a declarar esta qualificação”[9].

Tendo lugar alguma das situações previstas, presume-se a culpa (grave) – estando precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação –, bem como a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência, sem que haja lugar a prova em contrário[10].

Para Rui Estrela de Oliveira[11], a questão terá de ser resolvida caso a caso, sublinhando que neste número não estamos perante presunções que facilitam a prova de um dos pressupostos da qualificação, mas perante presunções que facilitam o próprio sentido da decisão.

E, no que respeita às alíneas h) e i), tal autor insere-as no domínio das causas puramente objetivas da insolvência culposa: “Nestas duas alíneas, não está, em abstrato, pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado que impediu e/ou impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência. Sendo assim, mostra-se justificado que aquele que impediu a descoberta da verdade material não beneficie mais do que o responsável que não impediu tal descoberta. Ou seja, estamos aqui perante sanções quase diretas: deve ser sancionado quem impediu que se desenvolvesse uma normal discussão factual sobre os pressupostos da insolvência culposa. Destarte, e para fazer funcionar as presunções, apenas deve ser alegada e provada a literal factualidade com virtualidade para preencher a hipótese normativa das alíneas, não sendo necessário invocar qualquer facto para preencher os pressupostos de insolvência culposa constantes da noção geral do nº1, designadamente o nexo de causalidade entre tais comportamentos e a produção/agravamento da situação de insolvência[12]”.

Também Catarina Serra, reconhecendo que a inobservância do dever de manter a contabilidade organizada, embora dificultando a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, não gera, nem, em princípio, agrava a insolvência, faz assentar o juízo de reprovabilidade de tal conduta na circunstância de “a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respetivos documentos permite supor que o sujeito tem algo a esconder, que ele terá praticado actos que contribuíram para a insolvência e quis/quer ocultá-los[13]”.

No entender de tal autora, o legislador terá entendido submeter as hipóteses das alíneas h) e i) também ao regime da insolvência culposa, não porque pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um ato ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também: a lei estabeleceu nestas duas alíneas, não presunções, mas “verdadeiras ficções[14].

Quanto aos factos previstos no nº3, as suas alíneas a) e b), pouco se distinguiriam das alíneas h) e i) do nº2, sob o ponto de vista da sua aptidão para serem causas da criação ou do agravamento da insolvência: tais presunções não são simplesmente de culpa qualificada – no facto praticado –, são de culpa qualificada na insolvência: “Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respetivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura ou as condições de mercado[15]”.

Resumindo, a única diferença entre o alcance das presunções contidas nas als. h) e i), do nº2 e o das contidas nas alíneas a) e b), do nº3, consistiria na possibilidade de prova em contrário relativamente a estas últimas: dispensando a prova do nexo causal entre os factos aí previstos e a criação ou agravamento da situação de insolvência, onera-se o devedor com o ónus de provar que, apesar de terem ocorrido, aqueles factos não criaram nem agravaram a situação de insolvência[16].

Assim invertido o ónus da prova, seria ao administrador da insolvente que incumbiria a prova de que, apesar de não ter apresentado a sociedade devedora à insolvência, levando a que a mesma só viesse a ser declarada a 5 de julho de 2016, tal atraso não terá contribuído para o deflagrar ou agravar da situação de insolvência.

Ora, essa prova não se mostra feita nos autos.

Antes pelo contrário. Declarado extinto o PER em 2015, quando a insolvência vem a ser requerida, não pela devedora, mas por terceiros, decorrido cerca de uma ano, o produto dos bens apreendidos é de cerca de 120.000,00 €, quando se encontra já reconhecido um passivo no valor total de 2.695.414,00 €.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

As custas da apelação serão suportadas pelo apelante.

   Coimbra, 12 de julho de 2017

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Vítor Amaral

2º Adjunto: Luís Cravo

            

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. No incidente de qualificação de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados, bem como, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com, recolher as provas e informações que entender convenientes.

2. O incumprimento do dever de apresentação à insolvência, acarretando uma presunção de culpa qualificada na insolvência [art. 186º, nº3, al. a)], dispensa a prova do nexo causal entre tal facto e a criação ou agravamento da insolvência, onerando o devedor com o ónus da prova de que não foi a sua conduta que deu causa à insolvência ou ao seu agravamento, mas outro fator externo ou independente da sua vontade.


[1] Face ao nítido incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso, imposto pelo artigo 239º, nº1 do CPC.
[2] Lebre de Freitas explica o alcance de tal nulidade pelo seguinte modo: “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constituiu nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença que as partes hajam invocado” – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora 2008, p.704.
Na sentença o juiz não tem de percorrer todos os requerimentos que vão sendo apresentados pelas partes ou por outros intervenientes processuais, para o efeito de apreciar toda e qualquer “questão” ou argumento utilizado pelas partes nos seus articulados.
[3] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[4] Acórdãos do TRC de 20-06-2016 e de 22-11-2016, relatados pela aqui relatora e disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 60.
[6] Acórdão relatado por Henrique Antunes, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Maria Elisabete Ramos fala em presunções absolutas de insolvência culposa sob o nº2 e em presunções relativas de culpa grave dos administradores de facto ou de direito, sob o nº3, in “Insolvência da Sociedade e Efetivação da Responsabilidade Civil dos Administradores”, pág. 479.
[8] José Manuel Branco, “Novas Questões na Qualificação da Insolvência”, in “Processo de Insolvência e Ações Conexas”, pág. 313, E Book, Dezembro de 20014, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Processo_insolvencia_acoes_conexas.pdf
[9] Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 64; em igual sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, “A Qualificação da Insolvência e a Administração da massa insolvente pelo devedor”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 262; Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016-2ª ed., Almedina, p.419; e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, 2011, pág. 284. Adelaide Menezes Leitão defende igualmente que o artigo 186º, nº2, prescinde em parte dos pressupostos do artigo 181º, nº1, designadamente no que respeita a que a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dos administradores – “Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei nº 16/2012”, in I Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pág. 275.
[10] Manuel Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos administradores na insolvência”, disponível in http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=50879&ida=50916.
[11] “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, nº11- 2010, pág. 237.
[12] Artigo e revista citados, pág. 242.
[13]Decoctor ergo fraudator” (…)”, pág. 66.
[14] Artigo e local citados, pág. 69.
[15] Catarina Serra, artigo e local citados, pág. 69.
[16] Como se afirma no Acórdão do TRP de 22.05.2007, o legislador entendeu, e bem, que apenas o devedor está em posição de demonstrar que, apesar de não se ter apresentado à insolvência no prazo legal e de não ter depositado as contas na conservatória, tal não criou nem agravou a situação de insolvência – Acórdão relatado por Mário Cruz, disponível in www.dgi.pt. Em igual sentido, se pronuncia Nuno Manuel Pinto Oliveira, considerando que o nº 3 consagra uma presunção de culpa na insolvência, dispensando o lesado da prova da causalidade fundamentadora da responsabilidade: “O risco de não esclarecimento (seguro) do evento causador (da insolvência) deslocar-se-á (deverá deslocar-se) para o administrador da sociedade” – “Responsabilidade Civil dos Administradores pela Insolvência Culposa”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, pág. 208. Também Maria do Rosário Epifânio defende que a insolvência pode ser considerada fortuita quando, apesar da violação do dever de apresentação à insolvência ou do dever de depositar as contas, ficar provado que a impossibilidade de cumprimento se deveu, por ex. à insolvência de uma sociedade sua devedora – “Manual do Direito da Insolvência”, 2016º-6ª ed., Almedina, pp.133-134.