Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | CRISTINA PÊGO BRANCO | ||
| Descritores: | NATUREZA DO CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA CRIME SIMPLES E CRIME QUALIFICADO PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE DO PROCESSO PENAL LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER A ACÇÃO PENAL | ||
| Data do Acordão: | 11/05/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 153.º E 155.º DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 48.º A 53.º, N.º 1, E 328.º-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
| Sumário: | I - Os artigos 48.º, 49.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, do C.P.P. dão expressão ao princípio da oficiosidade do processo penal, segundo o qual compete ao Ministério Público exercer a acção penal, o que lhe confere legitimidade para a promoção do processo, na consideração das limitações derivadas da existência de crimes semipúblicos e de crimes particulares, bem como das normas penais de natureza substantiva que identificam os casos em que o procedimento criminal depende de queixa.
II - Se o procedimento criminal depender de queixa, a intervenção do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência da queixa ou da acusação particular, o que determina a extinção do procedimento por retirada do pressuposto de legitimidade para prosseguir com o processo III - O crime de ameaça agravada tem natureza pública. IV - A revogação da decisão de extinção do procedimento criminal por falta de legitimidade do Ministério Público para promover a acção penal pelo crime de ameaça agravada, devido à sua natureza semi-pública, proferida na sentença enquanto questão prévia, não acarreta a realização de novo julgamento, mas apenas a prolação de nova sentença pelo mesmo juiz. | ||
| Decisão Texto Integral: | Relator: Cristina Pêgo Branco Adjuntos: Maria Alexandra Guiné Sandra Rocha Ferreira Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 134/21.8T9CNF do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Cinfães, foi submetida a julgamento a arguida … pela prática - de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do CP, imputados na acusação pública; - de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do CP, e um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º do CP, imputados na acusação particular deduzida pela assistente, …, acompanhada pelo MP no que respeita ao crime de difamação. 2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença na qual foi decidido, para além do mais (transcrição): 3. Inconformada com esta decisão, interpôs a assistente, …, o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): 4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, … 5. Também a arguida respondeu ao recurso, … 6. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer … 7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foram oferecidas respostas. 8. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso … In casu, de acordo com as suas conclusões, a recorrente discorda, em primeiro lugar, da declaração de extinção do procedimento criminal, relativamente aos factos integradores dos dois crimes de ameaça agravada que vinham imputados à arguida. Insurge-se, por outro lado, contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, em cuja apreciação considera ter ocorrido erro de julgamento e que pretende ver alterada por forma a sustentar a condenação da arguida pela prática do crime de difamação pelo qual vinha acusada, bem como no pedido de indemnização civil formulado. * 2. Da decisão recorrida É do seguinte teor a sentença recorrida, na parte que importa para a apreciação da primeira questão suscitada (transcrição): Vejamos ainda a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida (transcrição): * 3. Da análise dos fundamentos do recurso Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão. Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação ampla, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. Por fim, das questões relativas à matéria de direito. Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas. * A primeira questão que cumpre apreciar é, pela sua precedência lógica, a de saber se a declaração de extinção do procedimento criminal, relativamente aos factos integradores dos dois crimes de ameaça agravada que vinham imputados à arguida na acusação pública deve manter-se. Conforme resulta da transcrição efectuada, o Tribunal decidiu nesse sentido por considerar, em síntese, que o crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º e 155.º, n.º 1, ambos do CP, assume natureza semi-pública e que, encontrando-se o respectivo direito de queixa já extinto à data em que foi exercido, o Ministério Público carecia de legitimidade para promover o processo penal.
A questão que aqui se coloca, de saber se o crime de ameaça agravada se reveste de natureza pública ou semi-pública, divide a jurisprudência desde a alteração introduzida aos arts. 153.º e 155.º do CP pela Lei n.º 59/2007, de 04-09. Sobre essa querela jurisprudencial tomámos há muito posição, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2015, proferido no Proc. n.º 658/12.8PILRS.L1-9[1], entendimento do qual não vemos motivo para divergir e que, por isso, aqui seguimos de perto. Também no presente caso, a decisão recorrida sufraga o entendimento «sustentado, na doutrina, por Pedro Daniel dos Anjos Frias, in “Por quem dobram os sinos? A perseguição por crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?!”[2], cuja argumentação é citada no despacho posto em crise e por Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2012, págs. 588-589. E na jurisprudência pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-11-2013, proferido no Proc. n.º 335/11.7GCSTS.P1, a que a decisão alude. Alinhamos, contudo, como os que consideram que actualmente, após a alteração introduzida aos arts. 153.º e 155.º do CP pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, o crime de ameaça agravado se reveste de natureza pública, por nesse sentido apontarem os elementos literal, histórico e teleológico. Já no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-07-2009, proferido no Proc. n.º 968/07.6PBVLG.P1[3], a questão era proficientemente analisada, em moldes que tomamos a liberdade de transcrever: «Desde a versão primitiva do CP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, o tipo-de-ilícito de ameaça compreendia uma forma simples ou base [descrita no n.º 1 do preceito[1][4]] e uma forma qualificada [descrita no n.º 2], dependendo de queixa o procedimento criminal por qualquer delas, como se previa no n.º 3. Com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – que alterou o CP –, uma das alterações introduzidas ao CP respeita, precisamente, ao tipo-de-ilícito de ameaça. No artigo 153.º, n.º 1, permaneceu o tipo simples e, em relação a ele, foi mantida a natureza semipública, no n.º 2. O tipo qualificado passou para o artigo 155.º, onde se prevêem as circunstâncias e os resultados que qualificam tanto o tipo simples de ameaça como o tipo simples de coacção e as penas que cabem a cada um dos tipos, em função da sua verificação. Do artigo 153.º foi eliminada a ameaça qualificada [com a revogação do n.º 2 e passando a n.º 2 o anterior n.º 3] e esta passou a constar do artigo 155.º – onde, anteriormente, só era prevista a “coacção grave” – consagrando a opção legislativa de “o crime de ameaça passar a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”[2][5]. O artigo 155.º não contém norma que estabeleça a natureza semipública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artigo 155.º, a estabeleça, pelo que, na falta dessa expressa consagração, tem de concluir-se que os crimes de ameaça e de coacção qualificados, em função das circunstâncias elencadas nas alíneas do n.º 1 ou em função do resultado previsto no n.º 2, têm a natureza de crimes públicos. Com efeito, neste particular aspecto, a técnica legislativa é constante e de absoluta clareza. Para expressar a natureza semipública de um tipo legal, o legislador usa a fórmula ritual “o procedimento criminal depende de queixa” e fá-la constar de um número autónomo do da descrição típica, após essa descrição, integrando o mesmo artigo, ou em artigo autónomo, de um capítulo, reportado aos artigos precedentes, que o integram, especificando aqueles relativamente aos quais o procedimento criminal depende de queixa[3][6]. Na falta de norma expressa a indicar que o procedimento criminal depende de queixa, o crime tem natureza pública. Do facto de a ameaça agravada ter, antes da Lei n.º 59/2007, natureza semipública não se pode extrair qualquer argumento válido quanto a se dever entender que a continua a manter. Na actual redacção, o n.º 2 do artigo 153.º liga-se, exclusivamente, à descrição típica contida no n.º 1 precedente. No CP são inúmeros os exemplos de tipos de crime que, na forma simples ou base, têm natureza semipública, e que, quando qualificados ou agravados, passam a ter natureza pública[4][7]. No que se manifestam, justamente, os fundamentos da existência de crimes semipúblicos. Em certas formas do tipo de crime o legislador não sente a necessidade de reagir automaticamente contra o agente mas quando se verificam, na sua prática, certas e determinadas circunstâncias, o legislador, dando prevalência ao interesse público, não condiciona a promoção do processo pelo Ministério Público à existência de queixa dos particulares[5][8]. A solução legislativa de não manter a natureza semipública do tipo qualificado de ameaça é, por último, a mais harmónica com a opção de qualificar a ameaça pelas mesmas circunstâncias que qualificam a coacção.»
Continuamos a subscrever, na íntegra, esta apreciação, cuja clareza e completude nos dispensam de alargadas considerações. Este entendimento corresponde, de resto, ao que tem sido sufragado, na doutrina, por Taipa de Carvalho[9], Paulo Pinto de Albuquerque[10] e Miguez Garcia e Castela Rio[11], e pela quase unanimidade da jurisprudência, de todos os Tribunais da Relação, em inúmeras decisões das quais, sem pretensões de exaustividade, já então destacávamos[12]: - do Tribunal da Relação de Lisboa, os acórdãos de 13-10-2010, Proc. n.º 36/09.6PBSRQ.L1-3; de 20-12-2011, Proc. n.º 574/09.0GCBNV.L1-5; de 30-04-2015, Proc. n.º 64/14.0PAPTS-A.L1-9; e de 19-05-2015, Proc. n.º 361/12.9GAMTA.L1-5; - do Tribunal da Relação de Coimbra, os acórdãos de 02-03-2011, Proc. n.º 550/09.3GCAVR.C1; de 30-03-2011, Proc. n.º 400/09.0PBAVR.C1; de 01-06-2011, Proc. n.º 1222/09.4T3AVR.C1; de 30-05-2012, Proc. n.º 94/10.0GASAT.C1; de 19-06-2013, Proc. nº 478/11.7GBLSA.C1; de 26-06-2013, Proc. n.º 207/10.2GAPMS.C1; de 10-07-2013, Proc. n.º 187/11.7GBLSA.C1; de 10-12-2013, Proc. n.º 183/09.4GTFVIS.C1; e de 25-06-2014, Proc. n.º 285/10.4TBVIS.C1; - do Tribunal da Relação do Porto, os acórdãos de 06-01-2010, Proc. n.º 540/08.3TAVLG.P1; de 15-09-2010, Proc. n.º 354/10.0PBVLG.P1; de 29-09-2010, Proc. n.º 162/08.9GDGDM.P1; de 27-04-2011, Proc. n.º 53/09.6GBVNF.P1; de 07-09-2011, Proc. n.º 63/09.3GDSTS.P1; de 02-05-2012, Proc. n.º 284/10.6GBPRD.P1; de 09-01-2013, Proc. n.º 160/11.5GEVNG.P1; e de 09-09-2015, Proc. n.º 105/13.8GBPRD.P1[13]; - do Tribunal da Relação de Évora, os acórdãos de 12-11-2009, Proc. n.º 2140/08.9PAPTM.E1; de 09-03-2010, Proc. n.º 59/08.2PBBJA.E1; de 15-05-2012, Proc. n.º 16/11.1GAMAC.E1; de 08-04-2014, Proc. n.º 775/12.4TAOLH.E1; e de 07-04-2015, Proc. n.º 517/12.4PAOLH.E1; - do Tribunal da Relação de Guimarães, os acórdãos de 15-11-2010, Proc. n.º 343/09.8GBGMR.G1; de 09-05-2011, Proc. n.º 127/08.0GEGMR.G1; de 09-05-2011, Proc. n.º 1028/09.0GBGMR.G1; de 23-05-2011, Proc. n.º 368/10.0GEGMR; e de 12-01-2015, Proc. n.º 59/13.OGVCT.G1.
Desde então, foram proferidas muitas outras decisões no mesmo sentido. Assim, os acórdãos[14]: - da Relação de Lisboa de 31-01-2017, Proc. n.º 190/16.0SXLSB.L1-5; de 20-03-2018, Proc. n.º 1514/16.6GLSNT.L1-5; de 13-11-2019, Proc. n.º 841/17.0PBPDL.L1-3; de 09-07-2020, Proc. n.º 478/15.8PBLRS.L1-9; e de 29-10-2020, Proc. n.º 223/19.9 PCRGR.L1-9; - desta Relação de Coimbra de 03-02-2016, Proc. n.º 164/11.8GAPNC.C1; de 07-06-2016, Proc. n.º 164/11.8GAPNC.C1; de 06-07-2016, Proc. n.º 467/13.7GASEI-A.C1; de 08-05-2019, Proc. n.º 62/17.1GBCNF.C1; de 14-07-2020, Proc. n.º 667/18.3PCCBR.C1; de 22-11-2023, Proc. n.º 62/21.7GCTND.C1; e de 26-03-2025, Proc. n.º 446/23.6T9CLD.C1; - da Relação do Porto de 17-02-2016, Proc. n.º 509/12.3GBAMT.P1; de 15-06-2016, Proc. n.º 6928/13.0TDPRT; de 26-05-2021, Proc. n.º 775/18.0GBVFR.P1; de 28-02-2024, Proc. n.º 111/23.4GAVFR.P1; de 10-04-2024, Proc. n.º 657/19.9PAPVZ.P1; de 15-05-2024, Proc. n.º 23/22.9GAFLG.P1; de 25-09-2024, Proc. n.º 109/23.2PAVFR.P1; de 04-12-2024, Proc. n.º 4020/23.9T9MTS.P1; de 18-12-2024, Proc. n.º 219/20.8GBILH.P1; e de 15-01-2025, Proc. n.º 2792/22.7T9VNG.P1; - da Relação de Évora de 26-10-2019, Proc. n.º 538/17.0PBELV.E1; de 18-02-2020, Proc. n.º 141/18.8GBADV.E1; e de 20-10-2020, Proc. n.º 157/18.4GACTX.E1; e de 06-02-2024, Proc. n.º 54/22.9PAENT.E1; - da Relação de Guimarães de 07-11-2022, Proc. n.º 41/19.4GBVNF.G1.
Em sentido contrário, para além do já referido acórdão da Relação do Porto de 13-11-2013, proferido no Proc. n.º 335/11.7GCSTS.P1, em que também se sustenta a decisão aqui recorrida, apenas encontrámos o acórdão da mesma Relação de 06-04-2022, Proc. n.º 1301/19.0PBAVR.P1 (do mesmo relator)[15].
Por fim, e com relevo para os autos, também o Supremo Tribunal de Justiça[16] se pronunciou recentemente sobre a divergência em causa, no acórdão de 25-09-2024, proferido no Proc. n.º 2327/22.1PBPDL.S1, no qual se lê: «(…) A questão suscitada diz respeito, pois, às relações entre o tipo fundamental de crime de ameaça da previsão do artigo 153.º e o tipo de crime agravado da previsão do artigo 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. Dispõem estes preceitos, na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto (alteração ao artigo 155.º), nas partes que agora relevam: «Artigo 153.º (Ameaça) 1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - O procedimento criminal depende de queixa.» «Artigo 155.º (Agravação) 1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos (…), o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.» Dispunha o artigo 155.º, na redação anterior a 2007: «Artigo 155.º (Coacção grave) 1 - Quando a coacção for realizada: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (…) o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.» Como vem referido, a alteração ao artigo 155.º visou agravar o crime de ameaça (artigo 153.º) em termos idênticos aos anteriormente previstos para o crime de coação (artigo 154.º), como foi anunciado na Proposta de Lei n.º 98/X, que originou esta alteração (DAR II Série-A, n.º 10, 18.10.2006, p. 4): «O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção» (assim também Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, Coimbra, 18.ª ed., 2007, anotação ao artigo 155.º, p. 602). 15. É conhecida a controvérsia que esta alteração motivou, o que levou Taipa de Carvalho a afirmar que «o disposto na al. a) [do n.º 1 do artigo 155.º] não tem aplicação», devendo, assim, a seu ver, «considerar-se que só fundamentam a qualificação/agravação dos crimes de ameaça e de coação as circunstâncias referidas nas alíneas b), c) e d), circunstâncias que configuram um acrescido desvalor de ação». A questão surgia assim formulada: «Uma vez que o n.º 1 do art.º 153.º considera como crime de ameaça (simples e não qualificada/agravada) a ameaça de morte ou de danificação de bens patrimoniais de considerável valor, levanta-se a questão teórica e sobretudo prático-punitiva de saber se a utilização destes meios (ameaça de crime contra a vida ou de crime contra bens patrimoniais de considerável valor) para ameaçar ou coagir deverão levar (na medida em que o crime de homicídio e o crime de dano qualificado são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos) ou não (uma vez que o legislador considera expressamente, no n.º 1 do art.º 153.º, estas ameaças como crime de ameaça simples) à qualificação ou agravação do crime de ameaça e do crime de coação» (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, maio de 2012, pp. 588-589). Daí concluindo que a ameaça agravada – mas só pelas alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 155.º, por não aplicação da al. a) – é um crime público (loc. cit. p. 593). Desta perspetiva, a ameaça pelos meios previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º constituiria sempre um crime de ameaça simples da previsão do artigo 153.º, cujo procedimento criminal depende de queixa. 16. A questão da incriminação foi, posteriormente, resolvida jurisprudencialmente no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2013 (DR Série I de 20.3.2013) que fixou jurisprudência nos seguintes termos: «A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal». Nele se considerou, para além do mais, que «a relação que se estabelece entre o tipo do art.º 153.º e o previsto no art.º 155º n.º 1 do Cód. Penal é, sem dúvida, uma relação de especialidade, estando o tipo-base previsto na primeira norma, à qual foram acrescentados elementos modificativos (quanto ao limite máximo da pena do crime ameaçado) que deram origem a um crime agravado na segunda norma, a qual contém necessariamente todos os elementos constitutivos da primeira. Sendo assim, resulta da estrutura da relação de especialidade que a norma especial prevalece sobre a norma geral e afasta inteiramente a aplicação desta (lex specialis derogat legi generali). Daí que, sendo o crime objeto da ameaça punido com pena de prisão superior a três anos, o agente deva ser punido pelo crime agravado previsto no artº 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal, excluindo-se definitivamente a aplicação do crime simples previsto no artº 153º nº 1». Assim, não vindo questionada a incriminação dos factos, a questão suscitada resume-se a saber se o crime da previsão do artigo 155.º tem natureza pública (porque o procedimento não depende de queixa) ou semipública (porque depende de queixa). 17. A resposta convoca diretamente os artigos 48.º, 49.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, do CPP, que dão expressão ao princípio da oficiosidade do processo penal, dimanado do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual compete ao Ministério Público exercer a ação penal, o que lhe confere legitimidade para a promoção do processo, na consideração das limitações derivadas da existência de crimes semipúblicos e de crimes particulares (sobre este ponto, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004, pp. 115ss, e Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, GestLegal, Coimbra, 2022, p. 156), bem como às normas penais de natureza substantiva que identificam os casos em que o procedimento criminal depende de queixa. Se o procedimento criminal depender de queixa, a intervenção do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência da queixa ou da acusação particular (artigo 51.º, n.º 1, do CPP), o que determina a extinção do procedimento por retirada do pressuposto de legitimidade para prosseguir com o processo (cfr. Jorge dos Reis Bravo/Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Vol. I, 5.ª ed., UCP Editora, maio de 2023, p. 174). Trata-se de matérias de competência e de legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo, que exigem lei expressa, como defende o Senhor Procurador-Geral Adjunto, em argumentação solidamente fundada. 18. Estabelece o artigo 48.º do CPP (sob a epígrafe «Legitimidade») que «[o] Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º». De acordo com o n.º 1 do artigo 49.º – a única destas disposições que agora interessa, sob a epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa» – «[q]uando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo». Compete em especial ao Ministério Público (artigo 53.º, n.º 1, do CPP): «a) Receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes; b) Dirigir o inquérito; (…)», sendo que, «ressalvadas as excepções previstas neste Código» – em que se incluem as restrições referidas no artigo 48.º –, «a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito» (n.º 2 do artigo 262.º do CPP). Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, do CPP, no caso previsto no artigo 49.º, isto é, quando o procedimento criminal depender de queixa, «a intervenção do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência da queixa». Não havendo norma que restrinja a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo (artigo 48.º do CPP) fazendo-a depender de apresentação de queixa (artigo 49.º), como sucede no caso do artigo 153.º do CP relativamente ao crime de ameaça simples, impõe-se concluir que é irrelevante a declaração de desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravada da previsão do artigo 155.º do CP.»
Em decorrência de todo o exposto, considerando que os dois crimes de ameaça agravada que nestes autos vêm imputados à arguida, p. e p., respectivamente, pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP (na pessoa da assistente, CC) e pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do CP (na pessoa de AA), têm a natureza de crimes públicos, não pode manter-se a sentença recorrida, na parte em que, relativamente a eles, declarou extinto o procedimento criminal, por falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal. Essa extinção do procedimento criminal foi decidida na sentença, a título de questão prévia, após realização da audiência de julgamento, pelo que a revogação da decisão, nessa parte, não acarreta a realização de (novo) julgamento, com a inerente produção de prova, que já teve lugar. Mas, uma vez que, por força da decisão ora revogada, não foram vertidos na sentença os factos provados e não provados relativamente aos ilícitos imputados na acusação pública, terá de ser proferida nova sentença, pelo mesmo juiz (cf. 328.º-A, do CPP), que se pronuncie também sobre a factualidade constante desse libelo acusatório (sem prejuízo do esgotamento do poder jurisdicional relativamente à matéria de facto já apreciada na anterior sentença), podendo para o efeito, se se revelar absolutamente necessário, reabrir a audiência para produção de prova suplementar, restrita ao objecto assim delimitado, com todas as legais consequências. Procede, assim, parcialmente o recurso, ficando, naturalmente, prejudicada a apreciação da demais questão suscitada. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em, concedendo parcial provimento ao recurso interposto pela assistente, …, revogar a sentença recorrida, na parte em que declarou extinto o procedimento criminal relativamente aos dois crimes de ameaça agravada que vinham imputados à arguida na acusação pública, devendo ser elaborada nova sentença, pelo mesmo juiz, que se pronuncie também sobre a factualidade constante desse libelo acusatório (sem prejuízo do esgotamento do poder jurisdicional relativamente à matéria de facto já apreciada na anterior sentença), podendo para o efeito, se se revelar absolutamente necessário, reabrir a audiência para produção de prova suplementar, restrita ao objecto assim delimitado, com todas as legais consequências, ficando prejudicado o conhecimento da demais questão suscitada pela recorrente. Sem tributação (art. 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, a contrario). * * Coimbra, 05 de Novembro de 2025
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