Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/22.0PBLMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ASSISTENTE
PRONÚNCIA
PRAZO DO PEDIDO CÍVEL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LAMEGO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.77º, N.ºS 1 E 2, E 284º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário:
1. Um assistente deve deduzir o pedido de indemnização civil na própria acusação ou no prazo em que esta deve ser deduzida/formulada (podendo deduzir acusação nos momentos constantes dos artigos 284° e 285° do CPP).

2. Da conjugação do disposto nos artigos 77º, nº 1 e 284º, nº 1 do CPP, resulta que o assistente, como tal constituído à data da acusação do Ministério Público, deve deduzir o pedido cível, por crimes públicos ou semi-públicos, no prazo de 10 dias após a notificação de tal acusação (e isto independentemente de requerer ou não a abertura da instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido a dita acusação).

3. Num caso em que não existe prévia acusação do MP, o que delimita o processo em fase de julgamento, em termos absolutos e definitivos (inexistindo qualquer outra peça anterior que o faça), é a Decisão Instrutória que pronuncia o arguido (a única peça que, nos autos, fixa o objecto do processo).

4. Não obstante ser pacífico que o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente ter de corresponder a uma verdadeira acusação, mormente, no que se refere à imputação dos factos, entende-se que tal não tem a virtualidade de, no seguimento do disposto no artigo 77º, nº 1, do CPP, fazer com que o assistente apresente o pedido de indemnização civil, nesse momento, quando se desconhece o concreto teor da decisão instrutória que irá ser proferida, mormente, no que se refere aos factos suficientemente indiciados e à respectiva qualificação jurídica.

5. Havendo lacuna legal, haverá que a preencher, à luz do artigo 4º do CPP, lançando aqui mão do lugar paralelo do nº 2 do artigo 77º do CPP, contando-se o prazo de 10 dias (e já não de 20 dias pois não faz sentido aproveitar o assistente de um prazo só concedido a um lesado não assistente, devendo antes aplicar-se o prazo paralelo do artigo 284º do CPP) para a dedução de PIC, por parte de um assistente, num caso em que há um prévio arquivamento de inquérito por parte do MP, a partir da notificação do despacho de pronúncia entretanto proferido.


Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:
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Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. O DESPACHO RECORRIDO

No processo comum singular nº 22/22.0PGLMG do Juízo Local Criminal de Lamego, foi proferido despacho com a referência 942548875, com o seguinte teor (transcrição), na parte que respeita ao recurso intentado:  
            «Autue como processo comum com intervenção do Tribunal singular.
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O Tribunal é competente (art. 16º, nº 1 e nº 2, al. b) e art. 19 do Código de Processo Penal e art. 132º, nº 1 e nº 2 da Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto).
*
            Na sequência do decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07-2023 - a fls. 266-303 - foi proferido despacho de pronúncia em 17-41-2023 – a fls. 319-321 – pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal pelos factos contantes de fls. 301 e 302 do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que os considerou fortemente indiciados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos nos termos e para os efeitos do art. 311º -A, nº 1 e nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, estando, nestes termos, o arguido AA – auto de constituição de arguido a fls. 127; prestação de Termo de Identidade e Residência a fls. 128 – pronunciado por um de violação de domicílio previsto e punido pelo 190º, nº 1 e nº 3 do Código Penal.
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            Por intempestivo não se admite o Pedido de Indemnização Cível deduzido pela assistente em 27-10-2022:
Com efeito e como se decidiu no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-04-2017 (Relatora Maria José Nogueira, Processo nº 44/10.4TASBG-A.C2, disponível em www.dgsi.pt.) que, doravante, seguiremos de perto, é pacífica, na doutrina e jurisprudência, o entendimento que qualifica o requerimento da abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência do despacho de arquivamento do Ministério Público - no campo dos crimes públicos e semipúblicos - como uma verdadeira acusação alternativa, “na qual – desde logo por via do princípio do acusatório e da vinculação temática - tem de constar os elementos descritos nas alíneas b) e c) do nº 3 artigo 283º do CPP a saber: A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; A aplicação das disposições legais aplicáveis [cf. o artigo 287º, nº 2 in fine do CPP], sob pena de, assim não sendo, para além de nulo, constituir motivo de rejeição, por inadmissibilidade legal, da «acusação»”. (…) A configuração de acusação alternativa, de acusação em sentido material, ou seja que não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objeto do processo, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, é uma constante na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, objeto de afirmação em vários arestos, como, a título exemplificativo, sucede ainda nos acórdãos de 16.06.2008 (proc. nº 2050/06 -3.ª), de 25.10.2006 (proc. nº 3526/06.3.ª)”.
Ora, prevê-se no art. 77º, nº 1 do Código de Processo Penal que quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada.
Destarte julgamos, na esteira do sobredito aresto, que se deve aplicar por analogia o nº 1 do artigo 77º do Código de Processo Penal “porquanto dada a natureza de acusação alternativa que reveste o requerimento em questão procedem as razões justificativas daquela disciplina, assim se garantindo a harmonia do sistema”. Donde, “em função da natureza de verdadeira acusação em sentido material que reveste o requerimento de abertura da instrução apresentado, na sequência do despacho de arquivamento [no caso de crimes públicos e/ou semipúblicos], pelo assistente perfilhamos o entendimento de que a lacuna assinalada há-de ser integrada pela aplicação analógica do nº 1 do artigo 77º do C. Penal, conduzindo à necessidade do pedido ser deduzido no prazo em que aquele deve ser formulado, o que não havendo sucedido conduz à respetiva extemporaneidade” [1] .
Ora, o Pedido de Indemnização Cível não foi apresentado no prazo fixado para a entrega do requerimento de abertura de instrução plasmado no art. 287º, nº 1 do Código de Processo Penal, mas só após a prolação do despacho de pronúncia, donde se conclui pela sua manifesta extemporaneidade.
            Anote nos lugares próprios».


            2. O RECURSO
Inconformada, a assistente/demandante BB recorreu do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

I. «A douta decisão recorrida, referente à não admissão do PIC deduzido pela Assistente, aqui Recorrente, proferida por despacho de 29-11-2023, não pode manter-se, pois é atentatória dos elementares princípios de justiça e legalidade.
II. A decisão processual que o Meritíssimo Juiz proferiu no presente processo consubstancia uma decisão injusta, errada e ILEGAL.
III. Não se compreende a interpretação efectuada pelo Mmo. Juiz de Direito.
IV. A jurisprudência invocada no douto despacho não permite extrair a conclusão aplicada na decisão recorrida.
V. Pois, o Requerimento de Abertura de Instrução (doravante RAI) deve ser considerado uma verdadeira acusação, mas só após ser proferido o competente DESPACHO DE PRONÚNCIA.
VI. Esse entendimento em nada conflitua com o artº 77º, nº 1 do CPP, bem pelo contrário.
VII. O despacho de pronúncia é que limita os factos sobre os quais o Arguido deverá ser julgado.
VIII. O Arguido pode ser pronunciado sobre todos, ou apenas alguns os factos constantes do RAI!
IX. A instrução – que não ocorreu neste processo – pode ser requerida pelo Arguido.
X. No caso a decisão instrutória até alterou a qualificação jurídica!
XI. A instância (processo), aquando da abertura de instrução, ainda não está estabilizada, por forma a poder-se deduzir o competente PIC.
XII. Que se distingue de uma acusação de natureza particular, pois aí cabe à Assistente delimitar os competentes factos.
XIII. Nesse caso, aos factos que poderão seguir para julgamento estão estabilizados!
XIV. Aqui estamos perante um crime de natureza semi-público!
XV. A única reacção ao arquivamento era requerer a abertura de instrução.
XVI. É a decisão instrutória, que delimita a factualidade constante do RAI, podendo restringi-la.
XVII. Tal interpretação – ab-rogante – atribuiria à Assistente um verdadeiro poder acusatório, que a mesma não detém neste tipo de crimes.
XVIII. A Assistente acabaria por apresentar uma peça processual (PIC), que poderia ser inócua, dado inexistir ainda uma verdadeira acusação, sem o proferimento do despacho de pronúncia.
XIX. A interpretação do Mmo. Juiz viola os dispositivos legais aplicáveis, cuja letra da lei é clara e cristalina.
XX. O artº 77º, nº 1 do CPP é claro e cristalino, ao definir que o Assistente deve deduzir o PIC na acusação (leia-se crimes particulares), ou no prazo que esta deva ser formulada.
XXI. A dita acusação pelo Assistente, como consta do artº 284º, nº 1 do CPP, é feita no prazo de 10 dias após a notificação da acusação pública.
XXII. No caso dos autos, a acusação encontra-se perfeita com a notificação do despacho de pronúncia.
XXIII. Numa decisão instrutória, o prazo é por força do artº 77º, nº 1 do CPP, de 10 dias, pois os demais números do artigo apenas se aplicam aos Lesados.
XXIV. O próprio artº 307º, n,º 5 do CPP exclui os Assistentes, quanto à aplicabilidade do prazo de 20 dias aplicável aos lesados.
XXV. A Assistente disponha assim de um prazo de 10 dias para apresentar o PIC, após a notificação da decisão Instrutória .
XXVI. A Assistente e o seu mandatário foram notificados da decisão instrutória a 17/10/2023 (decisão proferida em acta de debate institório).
XXVII. A Assistente tinha até ../../2023 ou até ../../2023 – caso pretendesse utilizar a faculdade prevista no artº 139º, nº 5 do CPP ex vi 107º, nº 5 do CPP – para deduzir o pedido de indemnização civil baseado nos factos constantes da decisão instrutória. Tendo-o feito no dia 27/10/2023, fê-lo tempestivamente, ou seja, dentro dos 10 dias subsequentes à notificação da decisão instrutória.
XXVIII. Tendo-o feito no dia 27/10/2023, fê-lo tempestivamente, ou seja, dentro dos 10 dias  subsequentes à notificação da decisão instrutória.
XXIX. Quanto ao Acórdão do Procº 307/21.3GALD.P1, não concordámos com a interpretação do Mmo. Juiz.
XXX. No mesmo pugnou-se pela admissibilidade do PIC, após a pronúncia, quanto tinha já sido deduzida acusação publica – Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Arguido.
XXXI.             Por maioria de razão, se é permitida a dedução do PIC – independentemente do prazo de 10 ou 20 dias - após o despacho de pronúncia, também o será quando INIEXISTE ACUSAÇÃO (pública).
XXXII.             A circunstância do acórdão é igual à do presente processo, ou seja, estamos perante a integração de uma lacuna, porquanto a situação não foi prevista pelo legislador, devendo ser resolvida acordo com os princípios do processo penal e a coerência do sistema, à luz do disposto no artigo 4º do mesmo Código.
XXXIII. Pelo que, sempre deveria a mesma ser preenchida nos termos expostos supra, ou seja, através da concessão do prazo de 10 dias, após a notificação do despacho de pronúncia (que consolida a acusação), ao abrigo do artº 77º, nº 1 do CPP.
XXXIV.             A decisão é manifestamente ilegal por violação dos dispositivos legais acima identificados, mormente do artº 77º, nº 1 do CPP.

         TERMOS EM QUE O PRESENTE RECURSO DEVE MERECER PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE ADMITA O PIC, PORQUANTO O MESMO É TEMPESTIVO».


3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso merece provimento.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido do provimento do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Assim sendo, é esta a única questão a decidir por este Tribunal:
· É ou não tempestiva a dedução pela assistente do pedido cível, entrado em juízo no dia 27/10/2023?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
a) Perante a queixa apresentada por BB contra AA (tendo esta, por requerimento datado de 24/3/2022 – refª nº 5215378 – manifestado a sua intenção de deduzir pedido de indeminização cível, ao abrigo do artigo 75º, nº 2 do CPP), o Ministério Público arquivou o inquérito, à luz do artigo 277º, nº 2 do CPP, por despacho datado de 22/6/2022.
b) A queixosa decidiu então, em 2/9/2022, pedir a sua constituição como assistente, requerendo, ao mesmo tempo, a abertura de INSTRUÇÃO, peticionando a prolação de um DESPACHO DE PRONÚNCIA contra o ora arguido, pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190º, nº 1 do CP e de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, nº 1, alínea f) do CP.
c) O denunciado foi constituído como arguido em 26/10/2022.
d) Por despacho datado de 17/1/2023, a Mª JIC decidiu, em decisão instrutória, não pronunciar o arguido pela prática dos factos mencionados no RAI e pelos crimes aí imputados.
e) Recorreu a assistente desse despacho para esta Relação, tendo sido proferido aresto por esta Instância Superior, datado de 12/7/2023, no qual se concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, «o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie o arguido AA» pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190º, nºs 1 e 3 do CP (só tal crime estava já então em causa, mercê dos termos do recurso intentado).
f) Na 1ª instância foi então proferido tal despacho de pronúncia, datado de 17/10/2023.
g) Em 27/10/2023, a assistente deu entrada em juízo do PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL contra AA.
h) Já no tribunal de julgamento, foi então proferido o despacho recorrido, datado de 29/11/2023, o qual, para além do mais, não admitiu o PIC mencionado em g).
            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Nos presentes autos veio a assistente recorrer do despacho judicial que lhe considerou extemporâneo o pedido de Indemnização civil (doravante PIC).
            A tese do tribunal recorrido é a seguinte:
· Dispõe a lei que, quando apresentado pelo assistente (e aqui temos um assistente e não um mero lesado), o PIC é deduzido na acusação ou em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada;
· O requerimento de abertura de instrução, doravante RAI, apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP é uma «verdadeira acusação alternativa»;
· Deve ser aplicado, por analogia, a letra do nº 1 do artigo 77º do CPP à situação dos autos, conduzindo à necessidade de PIC ser deduzido no prazo da dita «acusação/RAI», o que não foi feito in casu.
A tese da assistente é outra:
 O PIC deve ser considerado tempestivo por ter sido apresentado no prazo legal após notificação do despacho de pronúncia (só nessa altura está estabilizada a instância quanto aos factos que poderão seguir para julgamento), devendo a lacuna legal ser preenchida considerando que a assistente aqui, para apresentar o seu PIC, tem o prazo de 10 dias após a notificação do despacho de pronúncia (que consolida a acusação).

3.2. O artigo 77º do CPP consagra três momentos para a formulação do pedido civil enxertado na acção penal.
1º- Se o pedido for deduzido pelo Ministério Público ou pelo assistente, deve ser formulado na acusação ou no prazo em que esta deva ser apresentada (nº 1);
2º- Se o lesado tiver manifestado no processo o propósito de deduzir pedido cível (artigo 75º nº 2, do CPP), o pedido deve ser formulado no prazo de 20 dias seguintes à notificação do despacho de acusação ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar (nº 2);
3º- Se o lesado não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido cível ou não tiver sido notificado nos termos do nº 2 do artigo 77º, do CPP, o pedido deve ser formulado dentro dos 20 dias seguintes à notificação do arguido do despacho de acusação ou, se o não houver, do despacho de pronúncia (nº 3).
Um assistente deve, pois, deduzir o pedido na própria acusação ou no prazo em que esta deve ser deduzida/formulada (relembre-se que o assistente pode deduzir acusação nos momentos constantes dos artigos 284° e 285° do CPP) - tratando-se de crime público ou semi-público (e no caso dos autos estava-se perante crimes não particulares), a acusação do assistente deve ser deduzida até 10 dias após a notificação da acusação pelo Ministério Público, conforme decorre do artigo 284°, nº 1.
Tem-se entendido (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 9/10/2002 no Pº 0240907) que, da conjugação do disposto nos artigos 77º, nº 1 e 284º, nº 1 do CPP, resulta que o assistente, como tal constituído à data da acusação do Ministério Público, deve deduzir o pedido cível, por crimes públicos ou semi-públicos, no prazo de 10 dias após a notificação de tal acusação (e isto independentemente de requerer ou não a abertura da instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido a dita acusação)[2].
Já a situação dos lesados não assistentes está configurada nos nºs 2 e 3 do artigo 77º do CPP.
Tem-se também entendido que «o legislador ao estabelecer-se no nº 1 do artigo 77º do CPP que o assistente deve deduzir o pedido de indemnização civil na acusação ou no prazo em que esta deva ser apresentada, está a reportar-se às situações em que a causa de pedir do pedido de indemnização civil coincide com os factos da acusação particular deduzida pelo assistente, pois, salvo melhor opinião, entendemos que só assim faz sentido tal norma» (cfr. Acórdão da Relação de 10/5/2016 – Pº 83/13.3GACUB.E1).
Pergunta-se então: é tempestivo ou não o PIC apresentado pela assistente/demandante em 27/10/2023?

3.3. O tribunal, no despacho recorrido, escuda-se no teor do acórdão desta Relação, datado de 26/4/2017 (Pº 44/10.4TASBG-A.C2), em cujo sumário se pode ler:
«Em função da natureza de verdadeira acusação em sentido material que reveste o requerimento de abertura da instrução apresentado, na sequência do despacho de arquivamento [no caso de crimes públicos e/ou semipúblicos], pelo assistente, a lacuna verificada quanto ao momento da dedução do pedido de indemnização civil no referido condicionalismo processual há-de ser integrada pela aplicação analógica do nº 1 do artigo 77º do CPP, conduzindo à conclusão de aquele pedido dever ser apresentado no prazo legalmente fixado para a entrega do RAI».
Acontece é que a situação processual vertida nesses autos difere da nossa.
Aí:
1. Mediante o respectivo requerimento, veio o lesado e assistente A deduzir pedido de indemnização civil contra os arguidos B e C, contra os quais não havia deduzido anteriormente tal pedido, na medida em que tais arguidos não foram originariamente acusados pelo MP, tendo sido apenas posteriormente pronunciados por despacho de pronúncia proferido nos autos (após determinação superior);
2. Considerou-se nesse aresto a seguinte percurso processual:
o «Encerrada a fase de inquérito, em 07.06.2013, o Ministério Público, por entender não se mostrarem suficientemente indiciados os elementos típicos do crime de burla no que concerne aos arguidos B... e C... , determinou, quanto a estes, o arquivamento dos autos, acusando os demais arguidos [ T... , SA; D... ; D... ; F... e G... ] a quem imputou a prática de um crime de burla;
o (ii) Em 02.07.2013 o assistente deduziu acusação [artigo 284º do CPP] contra os cinco arguidos acima identificados [acusados pelo Ministério Público], formulando, no mesmo articulado, contra os mesmos, pedido de indemnização civil;
o (iii) E requereu, em 12.07.2013, a abertura da instrução pugnando pela pronúncia dos arguidos B... e C... por um crime de burla;
o (iv) Finda a instrução em 13.07.2015, no que ora releva, foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos B... e C... , decisão esta impugnada [pelo assistente] por via de recurso, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 27.04.2016 revogado a decisão, determinando que fosse a mesma substituída por outra que pronunciasse os ditos arguidos;
o (v) O que veio a suceder por decisão de 12.07.2016, ocasião em que foram todos os arguidos presencialmente notificados do despacho de pronúncia.
o (vi) O demandante manifestou logo ab initio nos autos o propósito de oportunamente deduzir pedido de indemnização civil;
o (vii) O demandante não foi pessoalmente notificado do despacho de pronúncia proferido em 12.07.2016, no qual os arguidos B... e C... foram [pela primeira vez] pronunciados».
Portanto, nesses autos havia uma prévia acusação pública do MP contra 5 arguidos, só não o havendo contra dois arguidos, mais tarde, pronunciados por determinação superior.
Então, o assistente deduziu acusação após o MP, nos termos do artigo 284º do CPP (estávamos perante crimes semi-públicos e públicos e não crimes particulares, situação em que se aplicaria o artigo 285º do CPP), aproveitando para aí deduzir o PIC contra aqueles 5 arguidos/demandados.
Após instrução por si deduzida, houve mais 2 arguidos pronunciados por um crime de burla.
Nesse aresto, escreveu-se ainda, aproveitando-nos desta explanação teórica:
«Sobre os prazos para a formulação do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal rege o artigo 77º do CPP, havendo unanimidade nos autores quando, a propósito, os distinguem consoante a veste do ofendido.
Assim - deixando de lado por não assumir relevância na situação que nos ocupa, o caso do pedido formulado pelo Ministério Público -, de jure constituto, podemos assentar em que se deduzido pelo assistente [por quem já revista essa qualidade à data da respetiva formulação] tem aplicação a disciplina do nº 1 do artigo 77º, enquanto se o for por quem possua, tão só, a qualidade de lesado as normas a convocar serão, antes, as contidas nos nºs 2 e 3 do dito preceito.
Sinteticamente:
- Se o pedido for apresentado pelo assistente [já constituído à data] terá de ser formulado na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deva ser deduzida;
- Se apresentado pelo lesado não assistente dentro dos vinte dias seguintes à notificação da acusação ou, não o havendo, do despacho de pronúncia se a ele houver lugar [caso o lesado tenha manifestado no processo o propósito de deduzir pedido de indemnização civil]; dentro dos vinte dias seguintes à notificação ao arguido do despacho de acusação ou, se não o houver, do despacho de pronúncia [caso o lesado não tenha manifestado a intenção de deduzir o pedido ou não haja sido notificado nos termos do nº 2 do artigo 77º]».
Naquele aresto de 2017, o tribunal superior reconheceu estar perante uma situação não directamente contemplada no artigo 77º do CPP, a resolver assim:
«É pacífica, na doutrina e jurisprudência, a posição que encara o requerimento da abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência do despacho de arquivamento do Ministério Público [estamos, naturalmente, a equacionar os casos dos crimes públicos ou semipúblicos] como uma verdadeira acusação alternativa.
(…)
A configuração de acusação alternativa, de acusação em sentido material, ou seja que não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objeto do processo, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, é uma constante na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
(…)
Significa, pois, que estando perante um caso omisso, nos termos do disposto no artigo 4º do CPP, é de aplicar por analogia o nº 1 do artigo 77º do CPP, porquanto dada a natureza de acusação alternativa que reveste o requerimento em questão procedem as razões justificativas daquela disciplina, assim se garantindo a harmonia do sistema».
É verdade que o lesado, aí, não poderia nunca ter intentado o PIC contra os dois novos arguidos, entretanto pronunciados, mas o Tribunal da Relação aduziu que:
«(…) A circunstância do pedido em função do sentido de uma futura decisão, designadamente de não pronúncia ou de pronúncia, mas sem o alcance requerido, poder resultar, pelo menos em parte, comprometido, é realidade que não difere daquela outra suscetível de ocorrer quando o pedido deduzido pelo demandante, simultaneamente assistente, por ocasião da acusação ou no prazo em que a mesma deva ser deduzida – por força do princípio da adesão com fundamento nos factos constitutivos do ilícito típico – resulta abalado por via da decisão instrutória, proferida na sequência da instrução requerida pelo arguido, de não pronúncia ou de pronúncia apenas por parte dos crimes imputados na acusação, cujos factos também surgiram a suportar/fundamentar o pedido de indemnização civil contra ele, na qualidade de demandado, formulado.
Ademais, a lei processual civil não deixa de contemplar mecanismos de ajustamento do pedido inicialmente deduzido - [cf. artigos 264º/265º do CPC]».
A nossa situação é muito diversa.
No nosso caso, até à pronúncia efectivada por despacho datado de 17 de Outubro de 2023 não havia ninguém acusado nos autos pois havia um prévio arquivamento do inquérito pelo MP e uma não pronúncia pelo JIC, entretanto revertida para pronúncia na sequência de decisão superior.
Ou seja, a instância só se estabilizou aí, em 17/10/2023, não fazendo qualquer sentido penalizar um assistente por não ter deduzido PIC contra um demandado, não havendo sequer quaisquer outros arguidos por força de uma anterior acusação do MP, e sendo impossível lançar mão dos mecanismos de ajustamento – cfr. artigos 264º e 265º do CPC[3] - de qualquer pedido nunca anteriormente feito (no aresto de 2017, que influenciou a decisão recorrida, havia um PIC anterior formulado contra 5 arguidos).
Aqui, não havia qualquer outro PIC deduzido nos autos pois não havia forma de aplicar directamente a letra do artigo 77º, nº 1 do CPP – estando nós perante crimes não particulares, não havia acusação pela assistente nos termos do artigo 284º do CPP (situação em que deveria então sido feito o PIC no prazo dessa acusação).
Como tal, há lacuna legal na nossa situação.
Como a resolver?
Aqui chegados, há que referir outro aresto profusamente referenciado na motivação de recurso e até pelo MP respondente de 1ª instância (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 21/6/2023, e proferido no Pº 307/21.3GALD.P1, curiosamente afastado pelo despacho recorrido por não estarmos perante uma situação de um mero lesado mas já de assistente constituído), acórdão esse que também não incide, note-se, em situação completamente paralela à nossa (aí havia prévia acusação do MP por incriminação diversa da aduzida na pronúncia entretanto redigida):
Aí se deixa escrito:
«A questão que importa decidir diz respeito à interpretação do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 77º do Código de Processo Penal, disposições relativas ao prazo de dedução do pedido de indemnização civil, no caso em que (como sucedeu nos presentes autos) o assistente e demandante requereu, ao abrigo do disposto no artigo 287º. nº 1, b), do mesmo Código, a abertura de instrução relativamente a factos que poderiam constitui uma alteração substancial em relação aos que constam da acusação pública (no caso em apreço, por factos que consubstanciariam um crime de violência doméstica quando foi deduzida acusação pública pela prática de crime de ofensa à integridade física simples).
Estatui o referido nº 2 do artigo 77º do Código de Processo Penal: «O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do nº 2 do artigo 75º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ela houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias». E estatui o nº 3 do mesmo artigo: «Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se não o houver, o despacho de pronúncia».
Considera o despacho recorrido que, à luz destes preceitos, a demandante, assistente e ora recorrente deveria ter deduzido o seu pedido de indemnização civil no prazo de 20 dias contados desde a data em que foi notificada da acusação pública, e não desde a data em que foi notificada da pronúncia (o que só se verificaria se não tivesse havido acusação).
Considera, porém, a recorrente que esta interpretação levaria a que, numa situação como a dos presentes autos, em que ela, como assistente, requereu a abertura de instrução relativamente a factos que constituem uma alteração substancial em relação aos que constam da acusação pública (neste caso, factos que consubstanciariam um crime de violência doméstica quando foi deduzida acusação pública pela prática de crime de ofensa à integridade física simples), esta devesse necessariamente formular o seu pedido de indemnização civil apenas com base nos factos constantes da acusação pública (retirando, assim, em grande medida, o efeito útil desse requerimento de abertura de instrução, como se mais não lhe restasse do que aderir a tal acusação).
Afigura-se que, neste aspeto, assiste razão à recorrente.
É certo que se o requerimento de abertura de instrução se destinasse apenas a uma alteração de qualificação jurídica (o que alguma doutrina e jurisprudência vêm admitindo), a questão não se colocava nesses termos, pois os factos que serviriam de base ao pedido de indemnização civil seriam os mesmos, independentemente da sua qualificação jurídico-criminal, e em nada ficaria prejudicado o demandante se tivesse que formular o pedido de indemnização civil apenas com base nos factos que constam da acusação. Mas o referido artigo 287º, nº 1, b), do Código de Processo Penal confere ao assistente a faculdade de requerer a abertura de instrução por factos que não constam da acusação pública e que em relação aos factos que desta constam possam constituir uma alteração substancial. Exigir do demandante que formule o seu pedido de indemnização civil apenas com base nos factos que constam da acusação pública retirará, em grande medida, efeito útil a esta faculdade que a lei lhe confere de requerer a abertura de instrução.
Impõe-se outra interpretação dos referidos preceitos do artigo 77º do Código de Processo Penal, que pode decorrer de uma interpretação extensiva, ou da integração de uma lacuna nos termos do artigo 4º do mesmo Código (pois se trata de uma situação não prevista pelo legislador).
Assim, se, depois de requerida a abertura de instrução com base no referido artigo 287º, nº 1, b), o arguido vier a ser pronunciado por factos e por um crime que constituem uma alteração substancial em relação aos que constam da acusação, poderá dizer-se, por interpretação extensiva, que esta situação se equipara àquela em que não foi deduzida acusação (situação literalmente prevista na parte final do citado nº 3 do artigo 77. º do Código de Processo Penal).
Na verdade, pode dizer-se que não chegou a ser deduzida acusação quanto aos factos e qualificação jurídica constantes da pronúncia, embora tenha sido deduzida acusação por outros factos e qualificação jurídica.
Quanto a esses factos e qualificação jurídica constantes da pronúncia, pode dizer-se que não foi deduzida acusação e justifica-se plenamente que o prazo de dedução do pedido de indemnização civil relativo a tais factos se conte a partir da notificação da pronúncia, e não a partir da notificação da acusação.
No caso vertente, porém, apesar de ter sido requerida a abertura de instrução com base no referido artigo 287º, nº 1, b), do Código de Processo Penal, a pronúncia não contém factos que não constassem já da acusação (embora eles sejam aí qualificados como ofensa à integridade física qualificada, quando na acusação eram qualificados como ofensa à integridade física simples).
Mas também neste caso se justifica que o prazo de dedução do pedido de indemnização civil relativo a tais factos se conte a partir da notificação da pronúncia, e não a partir da notificação da acusação.
Não se justifica que esta situação (que é a dos presentes autos) tenha um tratamento diferente.
No momento em que a assistente foi notificada da acusação, ela não poderia, obviamente, prever se a instrução que pretendia requerer levaria, ou não, à pronúncia pelos novos factos que vinha invocar e que naturalmente pretendia que servissem de base ao pedido de indemnização civil por si formulado.
De modo algum se justificaria exigir dela que nessa fase antecipadamente renunciasse a tal pedido com base nesses factos novos, ou se visse na alternativa de, não renunciando antecipadamente ao pedido com base nesses factos novos, corresse o risco de deixar passar o prazo de dedução de qualquer pedido de indemnização civil se a instrução não viesse a conduzir à pronúncia com base nesses factos novos (e foi isso que se verificou neste caso).
Nesta situação, a possibilidade de dedução do pedido de indenização civil no prazo de 20 dias a partir da notificação do despacho de pronúncia decorrerá já não da interpretação extensiva da última parte do citado nº 3 do artigo 77º do Código de Processo Penal (será difícil dizer que neste caso não houve acusação quanto aos factos que constam da pronúncia), mas da integração de uma lacuna (pois, claramente, a situação não foi prevista pelo legislador), de acordo com os princípios do processo penal e a coerência do sistema, à luz do disposto no artigo 4º do mesmo Código.
Deve, assim, considerar-se que o pedido de indemnização civil formulado pela recorrente deverá ser admitido, por ser tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo de 20 dias contados desde a data em que ela foi notificada do despacho de pronúncia».
No nosso caso, não existe prévia acusação do MP, que a assistente poderia e deveria aproveitar para os termos do artigo 284º do CPP, deduzindo ela própria uma acusação, nessa peça redigindo também o competente PIC.
Não, o que temos aqui é um vazio absoluto quanto a incriminações – diríamos que, na nossa situação, o que delimita o processo em fase de julgamento, em termos absolutos e definitivos (inexistindo qualquer outra peça anterior que o faça), é a Decisão Instrutória que pronuncia o arguido (o único que, nos autos, fixa o objecto do processo), a tal que foi proferida em 17 de Outubro de 2023, presencialmente notificada à assistente.
O nosso caso até é bem mais linear do que o exposto no aresto de 2023 da Relação do Porto.
No nosso caso, inexiste qualquer acusação anterior de que poderíamos lançar mão para fixar aí o início do prazo para a dedução de um PIC por um assistente, à luz do nº 1 do artigo 77º do CPP[4].
Como bem afere a resposta do MP de 1ª instância:
«Não obstante ser pacífico que o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente ter de corresponder a uma verdadeira acusação, mormente, no que se refere à imputação dos factos entendemos que, salvo o devido respeito, tal não tem a virtualidade de, no seguimento do disposto no art. 77º n.º 1 do Código de Processo Penal, fazer com que o assistente apresente o pedido de indemnização civil, nesse momento, quando se desconhece o concreto teor da decisão instrutória que irá ser proferida, mormente, no que se refere aos factos suficientemente indiciados e respectiva qualificação jurídica».
Ou seja: um RAI deve apenas ser considerado uma acusação alternativa mas só após ser proferido o competente despacho de pronúncia que o conhece.
Assim e aqui chegados, só há que dar razão ao recurso intentado.
Havendo lacuna legal, haverá que a preencher, à luz do artigo 4º do CPP, lançando mão do lugar paralelo do nº 2 do artigo 77º do CPP (no nosso caso, a lesada manifestou o propósito de deduzir o PIC – cfr. requerimento com a refª nº 5215378, de 24/3/2022, no início do inquérito), contando-se o prazo de 10 dias (e já não de 20 dias[5], pois não faz sentido aproveitar o assistente de um prazo só concedido a um lesado não assistente, devendo antes aplicar-se o prazo paralelo do artigo 284º do CPP) para a dedução de PIC por parte de um assistente, num caso em que há um prévio arquivamento de inquérito por parte do MP, a partir da notificação do despacho de pronúncia entretanto proferido.
E se assim é, o PIC é tempestivo pois deu entrada no dia 27/10/2023, o último dia do prazo em causa, notificado que foi presencialmente a assistente de tal despacho no dia da sua prolação, ou seja, em 17/10/2023.

3.4. Se assim é, e pelos fundamentos acima descritos, só pode proceder este recurso intentado, revogando-se a decisão recorrida, considerando, assim, tempestivo o PIC deduzido pela assistente/demandante.


3.5. Em sumário da nossa decisão:
1. Um assistente deve deduzir o pedido de indemnização civil na própria acusação ou no prazo em que esta deve ser deduzida/formulada (podendo deduzir acusação nos momentos constantes dos artigos 284° e 285° do CPP).
2. Da conjugação do disposto nos artigos 77º, nº 1 e 284º, nº 1 do CPP, resulta que o assistente, como tal constituído à data da acusação do Ministério Público, deve deduzir o pedido cível, por crimes públicos ou semi-públicos, no prazo de 10 dias após a notificação de tal acusação (e isto independentemente de requerer ou não a abertura da instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido a dita acusação).
3. Num caso em que não existe prévia acusação do MP, o que delimita o processo em fase de julgamento, em termos absolutos e definitivos (inexistindo qualquer outra peça anterior que o faça), é a Decisão Instrutória que pronuncia o arguido (a única peça que, nos autos, fixa o objecto do processo).
4. Não obstante ser pacífico que o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente ter de corresponder a uma verdadeira acusação, mormente, no que se refere à imputação dos factos, entende-se que tal não tem a virtualidade de, no seguimento do disposto no artigo 77º, nº 1, do CPP, fazer com que o assistente apresente o pedido de indemnização civil, nesse momento, quando se desconhece o concreto teor da decisão instrutória que irá ser proferida, mormente, no que se refere aos factos suficientemente indiciados e à respectiva qualificação jurídica.
5. Havendo lacuna legal, haverá que a preencher, à luz do artigo 4º do CPP, lançando aqui mão do lugar paralelo do nº 2 do artigo 77º do CPP, contando-se o prazo de 10 dias (e já não de 20 dias pois não faz sentido aproveitar o assistente de um prazo só concedido a um lesado não assistente, devendo antes aplicar-se o prazo paralelo do artigo 284º do CPP) para a dedução de PIC, por parte de um assistente, num caso em que há um prévio arquivamento de inquérito por parte do MP, a partir da notificação do despacho de pronúncia entretanto proferido.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e, em consequência, DETERMINA-SE que seja admitido, POR TEMPESTIVO, o pedido de indemnização civil formulado pela assistente BB.

            Sem custas.
            Comunique de imediato ao tribunal de 1ª instância o teor desta decisão, com nota de não trânsito em julgado (assente o facto de já estar designado dia para o início da audiência de julgamento).


Coimbra, 20 de Março de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

 
 Relator: Paulo Guerra
Adjunta: Isabel Valongo
Adjunto: João Bernardo Peral Novais



[1] É assim de arredar o entendimento de que deverá mobilizar-se por analogia o art. 77º, nº 2 e nº 3 do Código de Processo Penal até porque não estamos ante uma mera lesada, mas sim perante uma assistente com um papel processual distinto, não sendo ademais a presente situação similar aqueloutra analisada no aresto do Tribunal da Relação do Porto de 21-06-2023 (Relator Pedro Vaz Patto, Processo nº 307/21.3GALD.P1, disponível em www.dgsi.pt) onde o Pedido de Indemnização Cível já se mostrava formulado quanto a certos factos.
[2] Cfr. ainda Acórdão do STJ de 5/6/2003 (Pº 2019/2003):
“Se deduzir acusação, o assistente deve utilizar a peça acusatória para nela incluir o pedido de indemnização civil.
Se não deduzir acusação (…), pretendendo obter indemnização, terá de deduzir o pedido civil em requerimento autónomo mas sempre dentro do prazo em que a acusação poderia ter sido deduzida”.

[3] Note-se, contudo, que em nenhuma circunstância o alargamento do pedido ou da causa de pedir pode ser feito com prejuízo das regras dos artigos 358º e 359º do CPP, normas que prevalecem sobre estas do CPC.
[4] Cfr. Acórdão da Relação do Porto, datado de 28/10/2009 – Pº 672/06.2PEGDN.P1:
I- É peremptório e conta-se a partir da notificação do despacho de acusação, o prazo de 20 dias para dedução do pedido cível em processo penal.
II- O mesmo pedido só pode ser formulado depois do despacho de pronúncia, e sempre no prazo de 20 dias, no caso de não ter sido formulada acusação.
[5] Aqui se discordando do aresto da Relação do Porto, datado de 21/6/2023.