Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3670/18.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE MÉDICA
EXAME MÉDICO
OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
CONSENTIMENTO INFORMADO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 70, 340, 342, 344, 483, 487, 563, 799, 800 CC
Sumário: 1.- A respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados em Clínica pode configurar-se a seguinte tipologia: 1) “contrato total”, que é um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos); 2) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações); 3) “contrato dividido”, que é aquele em que a Clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é directa e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).

2.- No primeiro e segundo casos, haverá responsabilidade contratual da Clínica, por todos os danos ocorridos, enquanto no terceiro caso, a clínica não é responsável pelos actos médicos mas apenas relativo aos actos de internamento, havendo neste caso dois contratos separados, respondendo o médico pelo seu próprio incumprimento.

3.- Numa situação dessas, recairá sobre a Clínica o ónus de prova de que se trata de um contrato dividido e não de um contrato total.

4.- Há índices de que o tribunal se pode socorrer para atestar se é uma figura ou outra, a saber: a) a existência de dois recibos separados, um para os cuidados de internamento e outro para tratamento médico, ou pelo menos, um recibo com os honorários discriminados e diferenciados; b) a relação contratual que une o médico à Clínica: tratando-se de um contrato de trabalho, ou uma prestação de serviços regular, o médico presume-se um auxiliar da Clínica, aplicando-se o regime do contrato total ou total com escolha de médico; já se o médico tem total independência de horários, organização do tempo ao longo do ano, ou se o cliente procura a Clínica a pedido do médico, então estaremos perante um contrato dividido.

5.- Se dos factos provados nem de outros elementos juntos aos autos, não resulta a celebração de nenhum “contrato total” nem qualquer um dos indícios indicados, fica por apurar qual a figura contratual em jogo; como a dita Clínica não foi demandada a mesma, também, não está onerada com qualquer inversão do ónus da prova.

6.- Como só foi demandado o médico e defendendo o mesmo que existiu um contrato com a clínica e não com ele, para arredar a sua responsabilidade contratual, então, como facto impeditivo, tinha o ónus de o provar (art. 342º, nº 2, do CC); este critério corresponde ao critério da normalidade, já que trabalhando o R./médico a dita clínica, conhecendo as circunstâncias em que ela funciona, era ele que, de acordo com a regra da normalidade, estava em posição de facilmente demonstrar que a Clínica foi contratada totalmente pela A., e, por isso, que inexistiu contrato dividido.

7.- Acrescendo, ainda, que tal médico ao longo da sua contestação jamais alegou que foi a Clínica a contratada e não ele, médico, havendo outros elementos nos autos que apontam para a sua exclusiva contratação, tudo a inculcar e fazer concluir que a A. celebrou contrato com o R. para a realização do dito exame e não com a mencionada Clínica, impõe-se concluir que a responsabilidade civil que está em questão é a contratual e não a extracontratual como pugnava tal médico/recorrente.

8.- A circunstância de vir provado que, entre as partes, foi firmado um contrato destinado à realização de um exame médico sem finalidade curativa, uma colonoscopia, e que ela foi realizada e dado a conhecer o respectivo resultado, inutiliza a caracterização da obrigação assumida pelo R. perante a A. como obrigação de meios ou de resultado; em abstracto trata-se de uma obrigação de resultado, pois pretende-se a observação e análise do cólon, e respectivo diagnóstico (obtenção dos dados clínicos do exame).

9.- É condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica.

10.- Estando em causa a realização de um exame de colonoscopia, sem função curativa, do qual nasce uma obrigação de resultado (obtenção dos dados clínicos do exame), ocorrendo uma perfuração do colon do paciente, sem que esteja em discussão o cumprimento do dever primário de prestação do médico mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clinico, ser respeitada a integridade física daquele, duas construções dogmáticas podem ser perfilhadas:

1) a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar a ilicitude, uma vez que uma lesão da integridade física do paciente, não exigida pelo cumprimento do contrato, implica a sua verificação (ilicitude do resultado), caso em que haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado daquele quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia (cfr. art. 340º, nº 1, do CC);

2) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou.

11.- A circunstância de se ter provado que a A., paciente, antes da realização do exame feito pelo R. médico assinou um impresso com o título “Consentimento Informado”, contendo uma declaração em que afirma estar informada e consciente dos riscos e eventuais complicações inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração do intestino, informação prestada antes da realização do exame dos autos, dá satisfação às exigências do consentimento devidamente informado pois, foi feita a prova do esclarecimento quanto ao risco comum de perfuração (inexistindo nos autos matéria provada que apontasse para risco de perfuração superior ao normal).

Decisão Texto Integral:

 I – Relatório

 1. M (…), residente em (...) , intentou contra A (…) residente em (...) , e S (…) S.A., com sede em (...) , acção declarativa, peticionando a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia total de 23.800 €, acrescida de juros desde a citação.

Para tal alegou, em resumo, ter sido submetida a um exame de colonoscopia, efectuado pelo médico 1º réu, aí tendo sofrido perfuração do intestino. Mais disse que quando saiu do consultório gemia e chorava, o que fez na presença do 1º réu, que bem conhecia o estado em que se encontrava, tendo este meios para logo a socorrer, não a mandando para casa, o que não fez, não a tendo o 1º réu auxiliado ou assistido devidamente, deixando-a em grande sofrimento até ao momento em que foi submetida a intervenção cirúrgica, de urgência, no hospital, onde ficou internada durante 8 dias. Sofreu dores, perdeu qualidade de vida, sofreu um grande abalo moral e receia pelo seu futuro.

Os réus contestaram, dizendo que o exame foi efectuado sob sedação anestésica. Findo o mesmo o 1º réu explicou e contextualizou os vários cenários, por precaução e mero dever de informação, a qual também constava já do termo de consentimento por si assinado. A autora não careceu de medicação para a dor após o exame e abandonou a clinica sem ter reportado quaisquer queixas ou alterações do seu estado. Que a eventual perfuração configura um risco inerente à sua realização e que pode ocorrer sem se manifestar no imediato, mas apenas quando surge infecção consequente à saída do conteúdo intestinal para a cavidade abdominal, provocando então dores que agravam com os movimentos, febre, náuseas ou vómitos. Que aquando do exame a autora recebeu os impressos antes de entrar no consultório, que foram posteriormente explicados e esclarecidos pelo 1º réu antes da realização do exame, e que aquando deste não houve qualquer indício de complicações nem qualquer má prática médica do 1º réu, porquanto observou todas as leges artis.

A autora veio então impugnar os docs. juntos pelos réus.

*

A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, decidiu:

a) Condenar solidariamente os réus a entregar à autora a quantia total de 12.000 €, 2.000 dos quais a título de dano biológico e o remanescente a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da presente decisão e até integral pagamento.

b) Absolver os réus do demais peticionado pela autora.

*

2. Os RR recorreram, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

(…)

 II - Factos Provados

1. A autora reside em (...) , concelho do (...) e está inscrita no Centro de Saúde do (...) .

2. Em data anterior a Março de 2017 a autora começou a sentir alguns problemas intestinais.

3. Nessa sequência recorreu ao seu médico de família do centro de saúde do (...) , Dr. (…), que a consultou em 27/02/2017, data em que a autora lhe transmitiu tem andado com dores ânus e com alteração do trânsito intestinal e muito nervosa e preocupada, pensa que tem coisa ruim.

4. Nessa mesma data o seu médico de família aconselhou-a a fazer exames, prescrevendo-lhe análises ao sangue, um eletrocardiograma e uma colonoscopia.

5. Munida das respectivas prescrições médicas a autora deslocou-se à P (…), onde fez as análises ao sangue.

6. A funcionária da secretaria da identificada P (…) telefonou para a P (…)de (...) para agendar o exame de colonoscopia a efectuar à autora, que ficou marcado para o dia 13 de Março de 2017, pelas 11h45m, na P (…) de (...) .

7. Após tal telefonema a identificada funcionária informou a autora que teria que tomar um medicamento que lhe mandaram comprar para lavagem do intestino e 4 litros desse líquido 3 dias antes do exame.

8. Em momentos anteriores à realização do exame de colonoscopia a autora ingeriu 4 litros do tal líquido, 3 dias antes; esteve sem comer até à realização do exame e tomou um medicamento para lavagem do intestino.

9. Com vista a realizar o exame de colonoscopia a autora deslocou-se à dita P (…) no dia 13 de Março de 2017.

10. Antes de entrar para o consultório a autora recebeu os impressos para o consentimento informado e, já no consultório e antes do inicio do exame, a informação constante do termo de consentimento informado foi-lhe transmitida e esclarecida verbalmente pelo 1º réu, que a informou, em diálogo e linguagem adequada às suas capacidades, sobre os riscos de perfuração, hemorragia, infecção entre outros, bem como sobre o modo de reconhecer essas eventuais complicações.

11. Nessa sequência a autora assinou o termo de consentimento constante de fls. 60/61 e cujo teor se considera reproduzido para todos os efeitos legais.

12. A eventual perfuração do colon consubstancia um risco inerente à realização do exame de colonoscopia, tratando-se de complicação cuja probabilidade de ocorrência é de 1/1000, e pode ocorrer sem se manifestar de imediato, manifestando-se mais tarde, quando surge a infecção consequente à saída do conteúdo intestinal para a cavidade abdominal, dando então dores que agravam com os movimentos, febre, náuseas ou vómitos.

13. No mencionado dia, após a fase de posicionamento seguiu-se a sedação anestésica, após o que o 1º réu deu inicio ao exame de colonoscopia na pessoa da autora, mediante o uso de colonoscópio, o qual foi efectuado sob sedação anestésica, a qual revelou “Discretas hemorroidas. Alguns resíduos. Órgão enrolado e fixo a cerca de 40 cm da margem anal, que não foi possível vencer pelo risco de complicações. Neste trajecto não detectámos lesões nem seus indícios. Se a clínica o justificar será de tentar estudo por método alternativo”, exame que decorreu sem dor e sem diálogo com a doente.

14. No referido acto médico estiveram presentes dois médicos, o 1º réu – médico gastrenterologista e um médico anestesiologista, e dois enfermeiros, um de cada uma das apontadas especialidades.

15. A realização do exame decorreu sem quaisquer interfercorrências e sem ocorrer o mínimo indicio de complicações (dado que sem hemorragia, sem ruptura visível da parede intestinal, sem timpanismo, sem dor durante o exame e sem dor relevante no pós-exame imediato).

16. Findo tal exame à autora não foi reconhecida necessidade de terapêutica da dor pós-colonoscopia, a qual recuperou e se posicionou em cadeira após recobro da sedação anestésica.

17. Findo tal exame e ainda enquanto se encontrava na clinica a autora não conseguia caminhar nem pôr-se de pé sozinha, com o esclarecimento que aquela respondia às perguntas então efectuadas pelos clínicos “tenho muitas dores mas estou bem”.

18. Depois de terminar o exame e após o recobro da autora o 1º réu dirigiu-se ao marido da autora, que estava na clinica na função de apoio e acompanhamento, informando-o que caso surgisse algumas das seguintes queixas: dor abdominal intensa, mal estar geral com sensação de desmaio, vómitos, febre, ou perda de sangue abundante pelo ânus, deveria de imediato contactá-lo ou dirigir-se com a sua esposa à urgência mais próxima.

19. O 1º réu disse ainda ao marido da autora para a transportar para a casa muito devagar, o que aquele fez.

20. Durante a viagem a autora teve vontade de vomitar, razão pela qual o seu marido parou duas vezes.

21. Chegados a casa a autora deitou-se no sofá, sentindo-se incapaz de reagir a qualquer estímulo, dadas as dores físicas que possuía.

22. Com os olhos fechados proferia alguns gemidos de dores.

23. Na tarde do referido dia 13 de Março de 2017, a hora não concretamente apurada, a autora quis ir à casa de banho e, porque não o conseguia fazer sozinha, pediu ao seu marido e a um filho que a levantassem.

24. Quando o marido e o filho a tentaram colocar de pé a autora desmaiou, perdendo os sentidos.

25. O filho tentou reanimá-la e tentaram sentá-la no sofá, enquanto esperaram pela ambulância que haviam chamado.

26. A autora, após ter reanimado, voltou a desmaiar novamente volvidos cerca de 10 minutos.

27. De seguida os bombeiros compareceram transportando a autora da sua residência para as urgências do Centro Hospital (...) - (...) , onde deu entrada no mesmo dia 13 de Março de 2017, pelas 17h11m.

28. Nessa unidade hospitalar foi diagnosticado que a autora havia sofrido uma perfuração/laceração acidental do colon durante o exame de colonoscopia referido supra, com o esclarecimento que tal perfuração foi causada durante o mencionado exame de colonoscopia.

29. Em virtude de tal perfuração a autora foi submetida a uma cirurgia de urgência para ressecção “Hartmann” do recto, tendo sido sujeita a anestesia, com o esclarecimento que a 26/07/2017 foi submetida a cirurgia de restabelecimento do trânsito intestinal, que decorreu sem incidentes, tendo usado no período compreendido entre ambas as cirurgias saco para os detritos intestinais.

30. E ficou internada no indicado hospital desde o citado dia 13 de Março até 20 de Março.

31. Na sequência de tal perfuração e subsequente cirurgia a autora sofreu dores físicas.

32. Que foram acompanhadas de emagrecimento e cansaço.

33. A autora teve também muito receio de não mais conseguir levar uma vida normal.

34. Chorava derivado ao seu estado de saúde, tendo a partir dessa data sentido que a sua qualidade de vida se deteriorou com as quotidianas dores abdominais que passou a passar.

35. E passou, a partir dessa data, a consultar sucessiva e reiteradamente o seu médico de família, devido às dores provocadas pela referenciada cirurgia abdominal.

36. A autora apesar de ter 69 anos de idade, sempre foi uma pessoa muito ativa.

37. Até à data em que foi submetida ao exame de colonoscopia referido a autora sempre fez a sua lide doméstica, e sempre tratou da vinha, de um porco que matava todos os anos e por vezes fazia trabalhos agrícolas para fora, situação que se alterou desde e por causa de tal exame e pelo menos até 26/07/2017.

38. Nos períodos imediatamente posteriores às ditas perfuração e cirurgia a autora deixou de ter as forças e a energia com que sempre se pautou, perdendo a confiança que tinha em si.

39. E sentiu-se triste por não conseguir responder às solicitações que dava em prol da ajuda do marido e dos filhos, deixando de juntar todos os filhos ao domingo para almoçarem porque não sentia com força para fazer o comer para todos.

41. O 1º réu tinha meios suficientes para socorrer a autora, nomeadamente meio de transporte ao seu dispor, e não chamou uma ambulância dado que não havia, até à saída da autora da clinica onde foi realizado o exame, nenhum sinal ou alerta que justificasse a sua orientação para hospital.

42. O 1º réu teve consciência que a autora, findo o exame, não conseguia caminhar nem colocar-se de pé sozinha.

43. O 1º réu, na sua qualidade de médico, transferiu para a 2ª ré a responsabilidade civil, através de um seguro de responsabilidade civil profissional, através da apólice n.º (...) .

44. O 1º réu, médico, realiza regular e ininterruptamente endoscopia gastrenterológica em instalações adequadas e sitas na Rua (…) (...) .

 

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Responsabilidade civil dos RR.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Enquadrando juridicamente a pretensão indemnizatória da autora salienta-se que a presente ação foi configurada com base na alegação de responsabilidade médica do réu Dr. (…) que, no decurso de uma colonoscopia que executava, lhe perfurou o colon do intestino.

Ora, como refere Miguel Teixeira de Sousa, in O Ónus da Prova nas Ações de Responsabilidade Civil Médica, Comunicação no II Curso de Direito da Saúde e Bioética, in Direito da Saúde e Biomédica, edição da Associação académica da FDL, pág. 127, “(…) o ponto de partida para qualquer ação de responsabilidade médica é assim o da desconformidade da concreta atuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que o médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes (…).” Refere ainda o citado autor que “(…) age com culpa (…) o médico que viole os deveres objetivos de cuidado, agindo de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada (…) culpa a ser apreciada (…) pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso”, em face dos critérios consagrados nos arts. 487º n.º 2 e 799º n.º 2 do Código Civil, no âmbito, respetivamente, da responsabilidade extracontratual e da responsabilidade contratual.

Afigura-se, pois, que a primeira questão a decidir numa ação de responsabilidade médica reconduz-se, desde logo, à sua subsunção ao regime da responsabilidade contratual ou ao regime da responsabilidade extracontratual.

Percorrendo a doutrina e as decisões jurisprudenciais proferidas neste domínio, verifica-se que é claramente predominante a orientação de que a regra é a da responsabilidade contratual do médico, correspondendo a responsabilidade extracontratual do médico a uma excepção que, em geral, ocorre em situações em que o médico tem de atuar com urgência, em que não foi colhido o acordo ou o consentimento do doente quanto à sua atuação ou à sua intervenção – vide entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/02/2015, proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1, disponível in www.dgsi.pt.

A este propósito, refere o Conselheiro Henriques Gaspar, in A Responsabilidade Civil do Médico, CJ ano III, 1978, pág. 341, que “A relação médico/doente há-se enquadrar-se na figura conceitual do contrato (…) o médico só é responsabilizado extracontratualmente se atuou à margem de um acordo existente entre o médico e o doente, o que acontece em situações de urgência em que não foi possível obter o acordo”.

De todo o modo, em qualquer uma das suas formas, a responsabilidade civil assenta sempre na verificação de determinados pressupostos, que são o facto; a ilicitude; a imputação subjetiva do facto ao lesante (culpa); o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Só a reunião destes elementos poderá, pois, constituir o lesante na obrigação de indemnizar o lesado, quer a mesma provenha de um facto ilícito ou de um contrato.

A distinção entre ambas as responsabilidades no domínio médico não assume natureza meramente académica, porquanto as regras estabelecidas ao nível do ónus da prova (cfr. arts. 799º n.º 1/487º n.º 1 do Código Civil), dos prazos de prescrição (309º/498º) ou da atenuação da indemnização em caso de mera culpa (494ºCC), consagradas para cada um dos tipos de responsabilidade, poderão determinar diversas soluções práticas.

Certo é que, no domínio da medicina privada, em regra existe responsabilidade contratual, dado que a prestação de cuidados de saúde por entidades privadas assenta em contrato de prestação de serviços celebrado entre a entidade que os oferece (proponente) e o doente – neste sentido vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/5/2016, proc. n.º 1069/13.3TBGRD.C1 e da Relação do Porto de 07/05/2019, proc. n.º 1178/14.1TBFLG.P1, relatado por José Igreja Matos, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

De todo o modo sempre se dirá que a responsabilidade civil médica pode, em simultâneo, assumir uma natureza extracontratual e contratual, já que o mesmo facto, podendo corresponder a uma violação do contrato pode também reconduzir-se a um facto ilícito lesivo de direitos absolutos. E o certo é que, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/03/2017, proc. n.º 6699/11.3TBVNG.S1, disponível in www.dgsi.pt, “Em regra a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da responsabilidade extracontratual”, solução que se mostra mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio da autonomia privada.

A este propósito, veja-se Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, in A responsabilidade médica em Portugal”, BMJ nº 332, 1984, pág. 440, na parte em que defendem: “(…) se as partes concluíram um contrato, isso significa que querem que para as relações entre elas valham apenas as regras que disciplinam esse contrato; a disciplina particular do contrato absorveria o regime mais geral da lei. Mas, em sentido contrário, pode-se argumentar que o facto de terem concluído um contrato não tem de forma alguma de significar que se presuma terem querido renunciar à proteção que em geral lhes é garantida pela lei; a minore ad maius, dir-se-á até que a proibição geral de lesar os direitos de outrem é individualizada e pelo dever contratual visando o mesmo objetivo (…) na inexistência de uma norma que especificamente venha dizer o contrário, se deve aceitar, como a “solução natural” a da concorrência (rectius, cúmulo) de responsabilidades

Assim, a jurisprudência tem vindo a seguir a tese do concurso de responsabilidades, quer admitindo a opção entre ambas, quer o próprio concurso de pretensões por cumulação de responsabilidades – cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4/3/2008, CJ I, 2008, pág. 134 e ss, e da Relação de Coimbra de 4/4/2005, CJ II, 1995, pág. 31 e ss.

E tal posição corresponde a uma superação da doutrina tradicional, à qual repugnava admitir a natureza contratual da responsabilidade médica, designadamente no que se reporta à culpa presumida do médico sempre que os resultados visados não fossem alcançados.

Revertamos agora estes considerandos ao caso concreto.

Dos factos provados deve extrair-se que o exame em questão, tendo sido requisitado por um médico do Serviço Nacional de Saúde, foi realizado pelo réu Dr. (…) nas instalações da P (…) de (...) – nºs 2. a 4., 6., 9 e ss.

Assim, tratou-se de exame agendado na clínica privada onde o réu Dr. (…), que aceitando realizar exames da sua especialidade, actuou na veste de “proponente contratual”. Por seu turno, a autora que aí se dirigiu para realizar a colonoscopia que lhe fora prescrita pelo seu médico de família aceitou tal proposta contratual. Consequentemente, entre ambos, autora e réu Dr. (…), celebrou-se um contrato de natureza consensual, sinalagmático e oneroso, pelo qual o referido réu se vinculou a executar o exame em questão, ou seja, a prestar tal serviço – vide João Álvaro Dias, in Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Coimbra 1996, pág. 221. Trata-se, pois, de situação que se reconduz a contrato de prestação de serviços médicos – cfr. art. 1154º do Código Civil.

No entanto, visto que a autora, ao instaurar a ação, qualificou a responsabilidade na qual radica o pedido indemnizatório formulado como extracontratual, realidade essa transposta para a enunciação do objeto do litígio em sede de despacho saneador, cabe indagar se é legítimo o enquadramento de tal pretensão à luz do regime da responsabilidade contratual, o qual aliás foi também desde logo considerado pelos réus na respectiva contestação.

Julgamos que a resposta a tal questão não pode deixar de ser afirmativa. Efetivamente, embora às partes caiba alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que baseiam as exceções invocadas, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil. Acresce que em qualquer ação de responsabilidade civil, seja contratual ou extracontratual, são similares os pressupostos do direito indemnizatório, que apenas se pode concretizar se ficar provada a verificação de um facto ilícito e culposo, ligado por um nexo de causalidade aos danos invocados. Consequentemente, sendo similar o regime da responsabilidade, não podem com êxito os réus invocar violação dos princípios do contraditório, da iniciativa da prova ou da preparação da sua defesa, por a ação ter sido instaurada com base na responsabilidade extracontratual e vir a ser enquadrada na responsabilidade contratual, tanto mais que, repete-se, ambos os réus apresentaram defesa na modalidade da responsabilidade contratual.

A este propósito, não deixará ainda de se salientar que embora a autora configure o regime da responsabilidade nos termos expostos, também alega ter “contratado” a execução do exame com o 1º réu (cfr. artigo 6º da petição inicial), pelo que, ainda que de forma incipiente, situou a causa também no domínio contratual.

No caso presente, em face da factualidade apurada, como supra referido, julgamos inexistirem dúvidas quanto à natureza do tipo contratual acordado – prestação de serviços –, razão pela qual a pretensão formulada será equacionada no domínio da responsabilidade contratual.

Assim, à autora competirá a prova da existência do vínculo contratual, e ainda do nexo causal entre o acto médico e os danos sofridos.

Relativamente a tal vínculo, a autora logrou provar os factos que evidenciam a sua celebração, como resulta dos factos apurados (6., 7., 9., 10.), os quais demonstram a celebração de contrato de prestação de serviços médicos.

Analisando o requisito da ilicitude haverá que ter presente que na sua atuação deve o médico “observar o grau de cuidado e de competência que é razoável esperar de um profissional do mesmo ofício (…) Espera-se dos médicos, enquanto profissionais, que dêem provas de um razoável e meridiano grau de perícia e competência (…)” – vide João Álvaro Dias, in Culpa Médica-Algumas Ideias Força”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano IV, nº 5, pág. 21 e ss.

Em causa nos autos está a realização de uma colonoscopia, exame próprio da especialidade do réu Dr. (…), no decurso do qual houve perfuração do colon e, consequentemente, lesão da integridade física da autora (28. e ss.).

É certo que o exame de colonoscopia a que a autora foi submetida, pela sua natureza e características, constituiu uma intromissão na integridade física da autora, intromissão a que a própria consentiu, assumindo os riscos decorrentes. Esse consentimento, todavia e naturalmente, não abrange as lesões demonstradas neste processo e que advém de uma situação por esta nunca consentida – a perfuração do colon.

Ora, tem vindo a entender-se que estando em causa a prática de acto por médico especialista, sobre o qual recai específico dever de emprego da técnica adequada, incorrerá em responsabilidade civil perante a mera constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada por se tratar de obrigação de resultado – vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2010, proc. nº 1364/05.5TBBCL.G1, disponível in www.dgsi.pt

Tal conclusão não se mostra obstaculizada pelo apuramento de que ao exame em causa está associado um risco de perfuração do cólon, o qual é inerente à realização do exame, pois sempre que tal risco se verifica forçosa é a conclusão de que o médico agiu ilicitamente, produzindo resultado anómalo relativamente ao pretendido, em violação da prestação acordada. E visto que ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato, haverá que concluir pela verificação da ilicitude – neste sentido vide, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2015, proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P.S1, disponível in www.dgsi.pt.

No domínio contratual, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua – cfr. art. 799º n.º 1 do Código Civil.

A grande questão destes autos consiste em saber se, e por um lado, sendo o risco de perfuração inerente à realização do exame de colonoscopia, com uma probabilidade de 1/1000 e, por outro, mesmo tendo o exame de colonoscopia decorrido sem quaisquer intercorrências e sem o mínimo indicio de complicações (dado que sem hemorragia, sem ruptura visível da parede intestinal, sem timpanismo, sem dor durante o exame e sem dor relevante no pós-exame imediato), sem que, findo o mesmo, tivesse sido reconhecida à autora necessidade de terapêutica da dor pós-colonoscopia, dado que recuperou e se posicionou em cadeira após recobro da sedação anestésica, aliado ainda ao facto da mesma, após o exame e não obstante não conseguir caminhar nem se pôr de pé sozinha, responder às perguntas então efectuadas “tenho muitas dores mas estou bem” – n.ºs 15 a 17 dos factos provados – se ainda se pode qualificar de ilícita a conduta do médico, sendo a resposta positiva com fundamento na presunção de culpa prevista no art. 799º do Código Civil, conquanto tal presunção não seja ilidida, como sucede no caso concreto, não se mostrando suficiente para ilidir tal a circunstância do exame ter decorrido sem intercorrências.

No caso presente provou-se que ocorreu uma perfuração no colon da autora durante o exame de colonoscopia a que foi submetida, perfuração essa que corresponde a uma complicação do exame e com uma probabilidade de ocorrência de 1/1000. Conforme emerge da leitura dos factos provados é também possível afirmar-se que não houve qualquer imperícia médica do 1º réu, sabendo-se ainda que a perfuração do intestino pode ocorrer mesmo que sejam adoptados os procedimentos devidos na realização de uma colonoscopia. É por isso que, como se ensina no já citado e muito recente aresto do Tribunal da Relação do Porto de 07/05/2019 que “(…) perante a dúvida e desconhecendo-se as causas pelas quais a colonoscopia resultou na dita perfuração, deverá aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual (nº 2 do artigo 799º do Código Civil), presumindo-se a culpa do réu. (…)”, cabendo-lhe (ao 1º réu) ilidir essa presunção (art. 334º n.º 1 do Código Civil), a qual, como também se sustenta no mesmo aresto, não poderá considerar-se ilidida apenas pelo facto de o exame de colonoscopia ter decorrido sem registo de incidentes; tal silêncio da prova apenas afasta a demonstração da culpa do médico que procedeu a tal acto. (…)”.

Para fundamentar esta posição veja-se o mencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/05/2019, mormente quando aí se escreve que “(…). Sabe-se que a realização da colonoscopia implica a utilização de métodos dos quais pode resultar, sem que se prove qualquer incidente culposo, a perfuração do intestino, ainda que em casos raros; o que significa que o profissional que a executa há-de adoptar os procedimentos próprios do exame com a específica preocupação de tentar evitar que haja perfuração. Pode assim entender-se que está em causa um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte” (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado, acarreta a responsabilidade do médico, nos termos próprios responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil). Citando “data venia” o Acórdão do STJ de 1 de Outubro de 2015, relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, cuja fundamentação seguimos de perto, “está em causa no caso presente a “violação” de “deveres de protecção, de conduta ou laterais (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas) caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, pág.337 e segs.)”. Em abstracto, a perfuração do intestino pode ocorrer ainda que sejam adoptados os procedimentos devidos na realização de uma colonoscopia; isto nada tem a ver com imperícia médica que, aliás, no caso não se demonstrou. Perante a dúvida e desconhecendo-se as causas pelas quais a colonoscopia resultou na dita perfuração, deverá aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual (nº 2 do artigo 799º do Código Civil), presumindo-se a culpa do réu. Caberia aos diversos réus, em particular à ré médica, ilidir essa presunção (nº 1 do artigo 344º do Código Civil), demonstrando os actos que concretamente praticou para evitar a perfuração ocorrida durante a colonoscopia. Nada se sabe sobre essa matéria até porque a Dra. C… não logrou detectar o momento em que a perfuração ocorreu durante o acto médico e, por isso, nada nos pôde informar sobre os procedimentos adoptados para a debelar. Presumida a culpa e não estando em causa o preenchimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil, claramente verificados, o pedido de indemnização deve proceder (artigo 563º do Código Civil). (…)”

Assim, ainda que a autora não tenha logrado provar a culpa do réu Dr. (…) e porque a relação entre ambos estabelecida o foi no domínio contratual a verdade é que o 1º réu também não logrou afastar a presunção de culpa com que se mostra onerado – cfr. 799º n.º 1 do Código Civil.

Assim, estando em causa a realização de uma colonoscopia, por um médico da especialidade respetiva, não era de esperar que ocorresse a perfuração intestinal em causa – pois que apesar de se tratar de um risco inerente à sua realização é também de ocorrência anormal, dado que a probabilidade da mesma se situa em 1/1000 – que constitui anomalia de acordo com as regras de experiência comum.

E não tendo o 1º réu demonstrado a verificação de qualquer causa externa à sua atuação que tenha determinado o dano provocado, não afastou a presunção de culpa que o onera.

Estando demonstrado, como está, que o 1º réu praticou um facto, ilícito (violador da integridade física da autora) e culposo (por operar a presunção de culpa mencionada), interessa apreciar se a autora sofreu danos suscetíveis de indemnização.

Efetivamente pressuposto da responsabilidade civil é ainda a verificação de um dano ou prejuízo, que consiste numa ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica. A obrigação de indemnizar pressupõe assim que tenham sido causados danos devendo, nos termos do art. 562º do Código Civil, o lesante reconstituir a situação que existiria sem a ocorrência do evento danoso. O dano é outro pressuposto da responsabilidade civil, que consiste “em todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não “.

Outro dos pressupostos de que depende o dever de reparação, quer na responsabilidade contratual, quer na extracontratual, consiste na existência de um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e os danos sofridos.

De acordo com a teoria da causalidade adequada consagrada no art. 563º do Código Civil, o facto é causa adequada do dano sempre que apareça como uma consequência típica ou normal daquele.

Ora, apurou-se que o réu Dr. (…) executou a colonoscopia da qual resultou para a autora uma perfuração intestinal. Tal ocorrência determinou que a autora fosse submetida a cirurgia urgente que consistiu na ressecção “Hartmann” do recto.

Em face de tal factualidade, é de afirmar a existência do nexo de causalidade entre o exame e a lesão sofrida pela autora, …..”.

Os recorrentes divergem, defendendo essencialmente que a obrigação do médico/R. se trata de uma obrigação de meios, que inexiste ilicitude, pois houve consentimento da A., e que a eventual responsabilidade do médico/R. é extracontratual, e não contratual, como foi decidido na sentença apelada - pois quem foi contratada foi a P(…)de (...) e não o R./médico.

Começando pelo fim, por este último ponto, diremos não subscrever a posição dos recorrentes.    
Para isso, importa ter em conta a tipologia que a doutrina mais recente propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados (ver André Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, págs. 684/692) tipologia que assim vem indicada: 1) “contrato total”, que é um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos); 2) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações); 3) “contrato dividido”, que é aquele em que a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é directa e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).
No primeiro e segundo casos, haverá responsabilidade contratual da clínica, por todos os danos ocorridos, pois de acordo com o art. 800º do CC, a clínica responde pelos actos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente. No terceiro caso, a clínica não é responsável pelos actos médicos mas apenas relativo aos actos de internamento, Neste caso há dois contratos separados, respondendo o médico pelo seu próprio incumprimento.
Numa situação dessas, recairá sobre a clínica o ónus de prova de que se trata de um contrato dividido e não de um contrato total, nesse sentido se tendo pronunciado também a Entidade Reguladora da Saúde (Recomendação nº 1/09, de 19.2).
Há índices de que o tribunal se pode socorrer para atestar se é uma figura ou outra, a saber: a) a existência de dois recibos separados, um para os cuidados de internamento e outro para tratamento médico, ou pelo menos, um recibo com os honorários discriminados e diferenciados; b) a relação contratual que une o médico à clínica: tratando-se de um contrato de trabalho, ou uma prestação de serviços regular, o médico presume-se um auxiliar da clínica, aplicando-se o regime do contrato total ou total com escolha de médico; já se o médico tem total independência de horários, organização do tempo ao longo do ano, ou se o cliente procura o clínico a pedido do médico, então estaremos perante um contrato dividido.   
Dos factos provados, designadamente os 6. e 7., não resulta a celebração de nenhum “contrato total” entre a A. e a Clínica de (...) . Nem resulta da totalidade dos restantes factos apurados, ou de outros elementos juntos aos autos, qualquer um dos indícios indicados, pelo que fica por apurar qual a figura contratual em jogo. Como a dita Clínica não foi demandada a mesma, também, não está onerada com qualquer inversão do ónus da prova.    
Temos de ir por outro caminho.
Por um lado, defendendo o recorrente/médico que existiu um contrato com a clínica e não com ele, para arredar a sua responsabilidade contratual, então, como facto impeditivo, tinha o ónus de o provar (art. 342º, nº 2, do CC). Na realidade, tal critério corresponde ao critério da normalidade, pois aquele que invoca determinada situação jurídica tem de provar os factos que normalmente o integram, enquanto a parte contrária terá de provar os factos não normais que excluem ou impedem a eficácia dos factos constitutivos (ver A. Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., pág. 304, nota 3. ao mencionado artigo 342º).
Trabalhando o R./médico na dita clínica, conhecendo as circunstâncias em que ela funciona, era ele que, de acordo com a regra da normalidade, estava em posição de facilmente demonstrar que a Clínica foi contratada totalmente pela A., como defende no recurso e, por isso, que inexistiu contrato dividido. Prova que contudo não logrou, pelo que a conclusão a tirar é que o recorrente/médico foi contratado pela A. para o acto médico que praticou, a colonocospia.
Acresce, ainda, que os RR ao longo da sua contestação jamais alegaram que foi a Clínica a contratada e não o R./médico, o que reforça a conclusão a que chegámos. Mais, nos arts. 62. a 75. da dita contestação o R./apelante diz que que realiza regularmente exames de gastroenterologia em instalações adequadas sitas na (…), (...) , onde desenvolve a sua actividade com autonomia, independência e hierarquia técnico-científica e com responsabilidade perante o utente, tendo-se apresentado no consultório a A., pois tinha agendada uma colonoscopia, tendo-lhe no consultório apresentado a requisição do exame feita pelo médico de família, após o que assinou a declaração de consentimento, com prévia informação e esclarecimento por parte do R. Portanto, decorre da própria alegação do R./médico que as circunstâncias de acordo contratual para a realização do dito exame ocorreram entre ele e a A. Aliás na folha de consentimento informado (a fls. 60) está referido apenas o nome do R./médico e os seus contactos – a gastromedica – e, nenhum outro, e o relatório respectivo (a fls. 64) está impresso em papel com o logotipo e menção da G (…), Lda, e por baixo o nome do R., sendo referido, ainda nessa folha, que o consultório é na Rua indicada por tal réu na sua contestação, como acima apontámos. Tudo, por isso, a inculcar e fazer concluir que a A. celebrou contrato com o R. para a realização do dito exame e não com a mencionada Clínica.
Havendo que extrair do exposto, por consequência, que a responsabilidade civil que está em questão é a contratual e não a extracontratual como pugnavam os apelantes.
Prosseguindo, na análise dos dois outros argumentos aduzidos pelos recorrentes e validade da fundamentação jurídica apresentada na decisão apelada, diremos que temos um discurso jurídico diverso.        
Vamos nesse caminho seguir de perto dois arestos do STJ, de 1.10.2015, Proc.2104/05.4TBPVZ e de 22.3.2018, Proc.7053/12.7TBVNG, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, que incidiram sobre casos semelhantes, ambos tirados em casos de colonoscopia, com perfuração do intestino. Todavia, com pelo menos a seguinte importante diferença, que desde já se regista: enquanto que no 1º acórdão de 1.10.2015 não se provou ter existido esclarecimento da paciente quanto aos riscos de perfuração nem declaração de consentimento informado da mesma, no 2º isso aconteceu, tal como no nosso caso, pois foram provados factos (os 10. e 11.) relativos à prestação de esclarecimentos à A. lesada e à declaração de consentimento por esta assinada.

No 1º acórdão fundamentou-se a decisão como segue:

“8. Trata-se de um contrato destinado à realização de um exame médico sem função curativa; e não se questiona a correcção do resultado do exame. Não tem pois utilidade procurar determinar, no caso concreto, se a obrigação que o médico assumiu perante a autora deve ser havida como uma obrigação de meios ou de resultado, para o efeito de definir o conteúdo da obrigação contraída e, assim, apurar o seu cumprimento ou incumprimento.”.

No nosso caso o mesmo se passa, o exame não era curativo, e está assente que o R. assumiu e executou a obrigação de realizar a colonoscopia e deu a conhecer à A. o correspondente resultado. Pouco importando, pois se era uma obrigação de meios ou de resultado, como os recorrentes questionaram no recurso, como seu 1º argumento, como acima referido.

Todavia, sempre se adiantará que, do contrato de prestação de serviços médicos dos autos, nasceu uma obrigação de resultado, qual seja a de obtenção dos dados clínicos do exame de colonoscopia. Que tal resultado tenha sido alcançado não é posto em causa pela A., não sendo de considerar a hipótese de a colonoscopia ter tido uma função curativa, uma vez que tal não foi alegado pelas partes. Assim, o que está em discussão não é o cumprimento do dever primário de prestação do médico, mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clínico, respeitar a integridade física da A.

Prosseguindo diz tal aresto “Na execução da obrigação contratualmente assumida, BB perfurou o intestino da autora.

Ora, poder-se-á questionar se essa perfuração deve ser considerada como que desligada do contrato em execução …, e tratá-la como uma agressão à integridade física da autora e, por esse facto, como geradora de responsabilidade civil extra-contratual. …

Mas a Relação deslocou a questão para o cumprimento imperfeito do contrato de serviços médicos e veio a concluir que, no caso, não estava preenchido o pressuposto da ilicitude (“não se apurou que no decurso do exame tivesse havido por parte do réu qualquer afastamento das boas práticas da medicina”), não cabendo curar dos demais. Referiu, no entanto, que, a ter-se provado a ilicitude, a autora beneficiaria de uma presunção de culpa do réu.

No entanto, a justificação da Relação, no que toca à não verificação da ilicitude, não se afigura adequada à obrigação concretamente assumida no caso dos autos, que se não pode analisar como se de uma obrigação de meios se tratasse; numa situação dessas – como ocorrerá, por exemplo, com a realização de uma intervenção cirúrgica ou com a definição de um tratamento, em ambos os casos com função curativa (não vem agora ao caso analisar a especificidade das intervenções ou tratamentos com finalidade estética) – é que se poderia ponderar se o médico estaria apenas vinculado a actuar segundo as regras da arte, utilizando o seu melhor saber, e não a obter a cura, ou a melhoria pretendida.

Mas a inadequação da conclusão de que não se demonstrou a prática de um acto ilícito não significa que se deva desconsiderar o enquadramento contratual da actuação do réu e dos danos dela resultantes.

Na verdade, a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico; independentemente de encontrar a construção juridicamente mais correcta, a verdade é que objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada.

Com esta afirmação quer-se dizer que, em si mesmo, o exame foi uma intromissão na integridade física, natural e necessariamente consentida e pretendida pela autora; assim sucederá, em regra, com os exames médicos. Mas esse consentimento ou pretensão da autora não abrange a lesão em discussão neste processo.

Poder-se-á sustentar que se não se tratará (ou não se tratará apenas) de um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, mas da lesão do direito à integridade física da autora, ocorrido no âmbito e por causa da execução do contrato; no entanto, esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual. Aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos.

9. Sabe-se que a realização da colonoscopia implica a utilização de métodos dos quais pode resultar a perfuração do intestino, ainda que raramente (cfr. ponto 127 da matéria de facto); o que significa que o profissional que a executa há-de adoptar os procedimentos próprios do exame com a específica preocupação de tentar evitar que haja perfuração.

Pode assim entender-se que está em causa um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado”, acarreta a responsabilidade do médico, nos termos próprios da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil). A frase que se transcreveu consta do acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 623/09.2YFLSB, que não versou sobre um caso de responsabilidade médica, como agora sucede, mas no qual também se tratava da lesão de um direito absoluto (então o direito de propriedade) ocorrida na execução de um contrato, no caso, de empreitada.

O apelo a este acórdão destina-se a mostrar o ponto comum às duas situações em apreciação. Também está em causa no caso presente a “violação” de “deveres de protecção, de conduta ou laterais (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas) caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, pág.337 e segs.)”.

Como ali se dá nota e todos sabemos, há divergências quanto ao enquadramento da violação de tais deveres no âmbito da responsabilidade contratual ou extra-contratual. E “sabe-se igualmente que, embora unificados pela função desempenhada, têm conteúdos muito diversos, englobando deveres tão distintos como “deveres de informação e conselho, de cooperação, de segredo e não concorrência, de custódia e de vigilância, de lealdade, etc” (a exemplificação é de Manuel Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, pág. 40), que Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, I, Coimbra, 1984, pág. 604) agrupa em “deveres de protecção, de esclarecimento e de lealdade”.

Aqui como ali, no entanto, entende-se que não vem ao caso “optar, em tese geral, pela aplicação do regime da responsabilidade contratual (por exemplo, Mota Pinto, op. cit, pág. 342) ou extra-contratual (por exemplo, Pedro Romano Martínez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, pág. 253) a todas as situações (realmente diversificadas) que podem reconduzir-se à sua violação”; mas que, também aqui, a apontada ligação entre a realização da prestação principal e o risco de perfuração do intestino torna especialmente desadequado analisar o dever do médico «à luz do “dever geral de cuidado da área delitual” (expressão de Manuel Carneiro da Frada, op.cit., pág. 275)».
10. Como resulta da prova (o mesmo ponto 127), em abstracto, a perfuração do intestino pode ocorrer ainda que sejam adoptados os procedimentos devidos na realização de uma colonoscopia.
Não vem provado, nem que esses procedimentos tenham sido (ou não) seguidos, nem que tenha ocorrido qualquer facto que, apesar de o réu ter actuado em conformidade com as boas práticas e com toda a diligência e cuidado a o exame exigiam, possa justificar a perfuração – força maior, facto do lesado, qualquer outro facto explicativo.
Na dúvida, e porque aquela ligação intrínseca atrás referida o justifica, deve aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual (nº 2 do artigo 799º do Código Civil), presumindo-se a culpa do réu. Caberia ao réu ilidir essa presunção (nº 1 do artigo 344º do Código Civil), demonstrando que procedimentos adoptou, a adequação desses procedimentos e os actos que concretamente praticou para evitar a perfuração.
Na dúvida, presume-se a culpa; e, estando provados os demais pressupostos da responsabilidade civil, como estão, o pedido de indemnização tem de proceder. Recordem-se os danos que constam da lista de factos provados e a prova do nexo naturalístico de causalidade entre a colonoscopia e a perfuração, e entre esta e aqueles danos, o que preenche o pressuposto da causalidade adequada, tal como definida no artigo 563º.“ (o negrito é nosso).
Por conseguinte neste acórdão fez-se funcionar de pleno a responsabilidade contratual e a inerente presunção de culpa. Sendo que nosso caso também sabemos, do facto provado 12., que em abstracto, a perfuração do intestino pode ocorrer ainda que sejam adoptados os procedimentos devidos na realização de uma colonoscopia. E que em abstracto seria possível fazer funcionar a aludida presunção de culpa.

Temos, pois, de ver até que ponto esta orientação é susceptível de ser aplicada ao nosso caso em apreço.

E neste ponto da exposição saltamos para as considerações constantes do 2º acórdão referido, muito aparentado à situação dos nossos autos. Aí refere-se:

Ora, na construção dogmática acolhida pelo citado acórdão do STJ de 01/10/2015, tendo ocorrido “uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada”.

Aceitando-se esta via qualificativa, e procurando-se aplicá-la ao caso dos autos, a perfuração do colon no decurso do exame de colonoscopia configurará, sem mais, ilicitude do resultado. Por via do regime do art. 799º, nº 1, do CC, tal facto será presuntivamente culposo.

(…)

No caso dos autos, tendo sido provado que os riscos de perfuração, embora raros, são inerentes a um exame de colonoscopia, mesmo que correctamente executado (facto provado 53) e ainda que, devido aos antecedentes clínicos da A., tais riscos eram acrescidos (factos provados 40 e 54), afigura-se que ambas as concepções (ilicitude do resultado ou ilicitude da conduta) conduzirão, afinal, a soluções convergentes.

Vejamos.

Admitindo-se a primeira concepção (a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar ilicitude), haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado da A. quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia, tendo presente que, segundo a regra geral do art. 340º, nº 1, do Código Civil, “O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”.

Seguindo-se a segunda concepção (necessidade de que o paciente faça prova do incumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado na execução do exame médico, imposto pelas leges artis), tem de se reconhecer que tal prova não foi feita. Ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar a A. dos riscos inerentes à intervenção médica e se aquela os aceitou.

Deste modo, a existência ou não de consentimento devidamente informado constitui factor essencial para a decisão do pleito.

8.2. Tanto o direito nacional (cfr., além do citado art. 340º do Código Civil, os arts. 70º e 81º do mesmo Código, assim como o art. 157º do Código Penal e o nº 11, do artigo 135º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 282/77, de 5 de Julho, republicado em anexo à Lei nº 117/2015, de 31 de Agosto (“O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido”), como instrumentos internacionais (cfr. o art. 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina -Convenção de Oviedo), impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência; e que o consentimento dos pacientes seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando estes cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica.

Antes de se apreciar se, no caso dos autos, tais exigências foram respeitadas, considerem-se as consequências que, a existir, terá o consentimento informado prestado pela paciente.

Afigura-se que, seguindo-se o entendimento de que a perfuração do colon no decurso do exame de colonoscopia configura, sem mais, ilicitude do resultado, a prova do consentimento devidamente informado por parte da A. constituirá causa de exclusão da ilicitude.

Seguindo-se a segunda concepção (ilicitude da conduta) e nas palavras de André Dias Pereira (Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra Editora, 2015, pág. 459), “se o paciente consentiu (tendo sido previamente devidamente informado) só há lugar a indemnização em caso de má prática médica, por violação negligente das regras da arte. O consentimento válido transfere para a esfera jurídica do paciente os riscos da intervenção, desde que esta seja realizada diligentemente.”

Afigura-se, assim, ser este o problema nuclear a resolver: pode ou não considerar-se que a A. assumiu na sua esfera jurídica os riscos do exame de colonoscopia efectuado de acordo com as leges artis?

Enquanto facto impeditivo do direito da A. (art. 342º, nº 2, do CC), não se discute que compete ao R. médico fazer a prova do consentimento informado (neste sentido, cfr. os acórdãos do STJ de 02/06/2015, proc. nº 1206.3TVPRT.P1.S1 e de 16/06/2015, proc. nº 308/09.0TBCBR.C1.S1. consultáveis em www.dgsi.pt).

Vejamos se tal prova foi feita.

Foi dado como provado que “A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos”.

Do documento de fls. 125 consta a declaração da A. a autorizar a realização do exame de colonoscopia, “estando perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”. O consentimento, prestado desta forma genérica, não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado. Porém, há que atentar também na prova de que “A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames”.

Qual a relevância desta prova?

Considera-se relevante o facto de a A. ter sido informada do risco concreto de perfuração do intestino e ainda que tal informação tenha sido prestada em 15/03/2011, em momento anterior ao exame dos autos (embora se pudesse discutir se com a antecedência suficiente). Com efeito, não podem considerar-se como relevantes – para efeitos da validade do consentimento – os esclarecimentos prestados por ocasião de anteriores colonoscopias. Em relação a cada um dos exames tais esclarecimentos têm de ser actualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo. Se assim é para qualquer paciente, por maioria de razão para alguém como a A. que, em 15/03/2011, tinha já 83 anos de idade.

Porém, não basta a prova do esclarecimento quanto aos riscos comuns de perfuração. No caso dos autos em que os riscos de perfuração eram superiores ao normal (factos 40 e 54) era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos. Ora, não se provou que “À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco”.

Assim sendo, conclui-se não ter sido feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento devidamente informado.

8.3. A avaliação das consequências da falta de prova da existência de consentimento devidamente informado da A. implica a ponderação de quais sejam os bens jurídicos protegidos pela exigência desse consentimento e, em correspondência, de quais sejam os danos ressarcíveis.

Retomemos as duas vias de aferição da ilicitude enunciadas supra, no ponto 8.2.

Considerando-se que a ocorrência da perfuração no colon configura sem mais, ilicitude do resultado, a ausência de consentimento devidamente informado do lesado conduz à não exclusão da ilicitude. Assim sendo, estando em causa a tutela do bem “integridade física”, serão ressarcíveis, nos termos gerais, tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais resultantes do facto ilícito culposo.

Considerando-se que é de exigir a prova da ilicitude da conduta do médico, a ausência de consentimento devidamente informado configura, por si só, um acto ilícito autónomo (e, por aplicação do regime do art. 799º, nº 1, do CC, presuntivamente culposo). De acordo com André Dias Pereira, se se “concluir que a informação (maxime sobre os riscos) não foi suficiente para o paciente se poder autodeterminar com toda a informação de que necessitava, o consentimento é inválido e a intervenção médica ferida de ilicitude, visto que a causa de justificação – consentimento – não é eficaz, como resulta dos arts. 81º e 340º do CC e do art. 157º do CP. Por isso mesmo, a violação do dever de esclarecimento do paciente é fundamento de responsabilidade médica independentemente de negligência no que respeita à intervenção médica em termos técnicos e independentemente do seu resultado positivo ou negativo (“O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica”, in Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra Editora, 2005, pág. 459).

Subsistindo a questão de apurar quais os bens jurídicos tutelados e os danos ressarcíveis.

Seguindo a orientação do autor que vimos citando:

- “Se a intervenção médica for arbitrária, porque não se obteve consentimento ou se obteve um consentimento viciado (por falta de informação adequada), devemos distinguir duas situações: na primeira, verifica-se uma intervenção médica sem consentimento (ou com consentimento viciado), mas sem quaisquer danos (corporais), ou seja, sem qualquer agravamento do estado de saúde do paciente; na segunda, a intervenção é arbitrária e não obteve êxito, ou verificaram-se riscos próprios da operação, ou provocou consequências laterais desvantajosas” (Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., pág. 459);

- Na primeira situação, o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão, havendo lugar a indemnização por danos não patrimoniais (cit., págs. 459 e segs.);

- Na segunda situação, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, pelo que “serão, assim ressarcíveis não só os danos não patrimoniais causados pela violação do seu direito à autodeterminação e à liberdade, mas também por violação da sua integridade física (e, eventualmente, da vida) (arts. 70º e 483º CC), bem como os danos patrimoniais derivados do agravamento do estado de saúde” (cit., pág. 465);

- “Assim sendo, o montante das indemnizações resultantes de um processo de responsabilidade por violação do consentimento informado pode ser tão elevado como os casos de negligência médica” (pág. 465).

No caso dos autos, estamos perante um caso subsumível na segunda situação: a intervenção não foi devidamente consentida e teve consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon. Haverá pois lugar a reparação tanto dos danos não patrimoniais como dos danos patrimoniais dados como provados.

Neste sentido decidiu o já indicado acórdão deste Supremo Tribunal de 02/06/2015 (proc. nº 1206.3TVPRT.P1.S1) num caso de inexistência de consentimento:
“Não tendo a autora prestado qualquer consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática do ato cirúrgico a que foi sujeita, estão assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual: ilicitude (incumprimento do contrato de prestação de serviços e de regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, como a obrigação de obter um consentimento informado); culpa, a qual se presume nos termos do art. 799.º, n.º 1 do CC; nexo de causalidade entre o facto – intervenção médica não consentida – e o dano, no sentido em que aquela é a causa adequada do dano; danos patrimoniais e não patrimoniais amplamente documentados nos autos e refletidos na matéria de facto.”
Especialmente relevante se afigura o teor do acórdão do STJ de 02/11/2017 (proc. nº 23592/11.4T2SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt) relativo a um caso de falta de consentimento informado quanto aos riscos inerentes à extracção de um dente do siso incluso:
“É exacto que não se pode afirmar que, naturalisticamente, foi a falta de informação – que, no caso, está provada (pontos ccc), iii), bbbb)) e tem como objecto a comunicação do risco que a extracção do siso incluso implica para o paciente –, que provocou “a lesão do nervo lingual direito” (bbb)) e demais danos que vêm provados; desde logo, nem sequer vem demonstrado que, se conhecesse o risco que a intervenção implicava, a autora não teria consentido na sua realização; se essa prova tivesse sido feita, poder-se-ia estabelecer uma cadeia naturalística de causas, assim contrariando a alegação dos recorrentes, como é manifesto.
Não estando provado que a autora só aceitou submeter-se à intervenção porque não foi devidamente informada quanto aos respectivos riscos, porque, se tivesse sido, não a teria aceitado, a perspectiva jurídica que se nos afigura correcta é antes a de determinar se deve ser ressarcido o concreto dano consistente na perda da oportunidade de decidir correr o risco da lesão do nervo e das suas consequências; perda de oportunidade que, em si mesma, é um dano causado pela falta de informação devida, em abstracto susceptível de ser indemnizado, e cuja protecção tem como sustentação material o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da Constituição e artigo 70º, nº 1 do Código Civil). No seu conteúdo inclui-se, nomeadamente, o poder do titular de decidir em que agressões à sua integridade física consente, assim afastando a ilicitude das intervenções consentidas (cfr. nº 2 do artigo 70º e artigo 81º do Código Civil).
Nesta perspectiva, está ostensivamente demonstrado o concreto nexo de causalidade naturalístico, questionado pelos recorrentes; e preenchido o requisito da causalidade adequada (art. 563º do Código Civil), consagrado na lei portuguesa no âmbito da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual): para além de fáctica ou naturalisticamente se ter de apurar se uma determinada actuação (acção ou omissão) provocou o dano (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. 1399/06.OTVPRT.P1.S1), cumpre ainda averiguar, tendo em conta as regras da experiência, se era ou não provável que da acção ou omissão resultasse o prejuízo sofrido, ou seja, se aquela não realização é causa adequada do prejuízo verificado. É necessário que, em concreto, a acção (ou omissão) tenha sido condição do dano; e que, em abstracto, dele seja causa adequada (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ªed., Coimbra, 2000, pág. 900).
No fundo, pode entender-se que ocorre ainda a hipótese descrita por André Gonçalo Dias Pereira, O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica, in “Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra, 2005, pág. 435 e segs., pág. 496: “a falta de informação impossibilitou o paciente de tomar uma decisão informada em termos de ponderação adequada de riscos e benefícios”, apta a gerar responsabilidade civil do médico, através da sua inserção no círculo de protecção das normas que exigem o consentimento informado; embora se entenda, com Rui Cardona Ferreira A perda de chance na responsabilidade civil por acto médico, sep. da Revista de Direito Civil, II (2017), 1, pág. 131-155, que o dano da perda de oportunidade tem autonomia, para efeitos indemnizatórios. Assim se decidiu, aliás, no acórdão de 14 de Março de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 78/09.1TVLSB.L1.S1.”
No caso dos autos, o exame médico realizado destinava-se à obtenção de dados quanto ao estado de saúde da A., sem que tivesse sido provado ou sequer alegado que o mesmo exame possuísse qualquer função curativa. Também aqui não se sabe se a A., se tivesse sido devidamente informada dos riscos acrescidos de perfuração do intestino em razão dos seus antecedentes clínicos, teria ou não aceitado submeter-se à colonoscopia. De qualquer forma, quer o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo do médico (a intervenção não devidamente autorizada) e os danos seja aferido pela causalidade adequada, quer pelo âmbito de protecção das normas que impõem o consentimento informado, sempre deverá ser ressarcida a perda da oportunidade de a A. decidir não correr os riscos da lesão.
Conclui-se assim que, quer se siga a concepção da ilicitude do resultado quer a concepção da ilicitude da conduta, o R. médico e a respectiva seguradora se encontram solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. com fundamento em falta de consentimento devidamente informado da A. para a realização da colonoscopia.”.
Perante estes ensinamentos, podemos agora transpô-los para o nosso caso concreto, tendo em conta o que consta dos factos provados 10. a 12. Deles resulta que a A. foi devidamente informada, tendo ficado consciente que na realização da colonoscopia podia ocorrer uma perfuração do cólon, embora a sua probabilidade de ocorrência seja de 1/1000, mínima portanto, tendo dado o seu consentimento (não se descortinam outros factos que exigissem que à A., em face da sua situação concreta, fosse prestada informação adicional, como se verifica no citado e transcrito 2º acórdão).
Face a tal consentimento informado, se virmos a actuação do R./médico, ao perfurar o cólon da A., como ilicitude do resultado, então está excluída a ilicitude do seu acto (art. 340º, nº 1, do CC).

Se víssemos a conduta do R./médico como ilicitude da conduta (necessidade de que o paciente faça prova do incumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado na execução do exame médico, imposto pelas leges artis), certo é que nenhum facto se provou em tal âmbito. Ainda assim, se A./paciente consentiu, tendo sido prévia e devidamente informada, só haveria lugar a indemnização em caso de má prática médica, por violação negligente das regras da arte, o que, como salientámos, não resultou apurado.

Mesmo assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar a A. dos riscos inerentes à intervenção médica e se aquela os aceitou.

Ora, neste aspecto, é inquestionável o facto de a A. ter sido informada do risco concreto de perfuração do intestino, informação prestada antes da realização do exame dos autos. Foi, pois, feita a prova do esclarecimento quanto ao risco comum de perfuração (como mais atrás dissemos, no caso dos autos não se vislumbra, da matéria provada, riscos de perfuração superiores ao normal).   
Tendo em consideração o explanado, impõe-se, por conseguinte, absolver os recorrentes e revogar a decisão recorrida.       
3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):
i) A respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados em Clínica pode configurar-se a seguinte tipologia: 1) “contrato total”, que é um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos); 2) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações); 3) “contrato dividido”, que é aquele em que a Clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é directa e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos);
ii) No primeiro e segundo casos, haverá responsabilidade contratual da Clínica, por todos os danos ocorridos, enquanto no terceiro caso, a clínica não é responsável pelos actos médicos mas apenas relativo aos actos de internamento, havendo neste caso dois contratos separados, respondendo o médico pelo seu próprio incumprimento;
iii) Numa situação dessas, recairá sobre a Clínica o ónus de prova de que se trata de um contrato dividido e não de um contrato total;
iv) Há índices de que o tribunal se pode socorrer para atestar se é uma figura ou outra, a saber: a) a existência de dois recibos separados, um para os cuidados de internamento e outro para tratamento médico, ou pelo menos, um recibo com os honorários discriminados e diferenciados; b) a relação contratual que une o médico à Clínica: tratando-se de um contrato de trabalho, ou uma prestação de serviços regular, o médico presume-se um auxiliar da Clínica, aplicando-se o regime do contrato total ou total com escolha de médico; já se o médico tem total independência de horários, organização do tempo ao longo do ano, ou se o cliente procura a Clínica a pedido do médico, então estaremos perante um contrato dividido.  
v) Se dos factos provados nem de outros elementos juntos aos autos, não resulta a celebração de nenhum “contrato total” nem qualquer um dos indícios indicados, fica por apurar qual a figura contratual em jogo; como a dita Clínica não foi demandada a mesma, também, não está onerada com qualquer inversão do ónus da prova;   
vi) Como só foi demandado o médico e defendendo o mesmo que existiu um contrato com a clínica e não com ele, para arredar a sua responsabilidade contratual, então, como facto impeditivo, tinha o ónus de o provar (art. 342º, nº 2, do CC); este critério corresponde ao critério da normalidade, já que trabalhando o R./médico a dita clínica, conhecendo as circunstâncias em que ela funciona, era ele que, de acordo com a regra da normalidade, estava em posição de facilmente demonstrar que a Clínica foi contratada totalmente pela A., e, por isso, que inexistiu contrato dividido;  
vii) Acrescendo, ainda, que tal médico ao longo da sua contestação jamais alegou que foi a Clínica a contratada e não ele, médico, havendo outros elementos nos autos que apontam para a sua exclusiva contratação, tudo a inculcar e fazer concluir que a A. celebrou contrato com o R. para a realização do dito exame e não com a mencionada Clínica, impõe-se concluir que a responsabilidade civil que está em questão é a contratual e não a extracontratual como pugnava tal médico/recorrente;

viii) A circunstância de vir provado que, entre as partes, foi firmado um contrato destinado à realização de um exame médico sem finalidade curativa, uma colonoscopia, e que ela foi realizada e dado a conhecer o respectivo resultado, inutiliza a caracterização da obrigação assumida pelo R. perante a A. como obrigação de meios ou de resultado; em abstracto trata-se de uma obrigação de resultado, pois pretende-se a observação e análise do cólon, e respectivo diagnóstico (obtenção dos dados clínicos do exame);  
ix) É condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica;
x) Estando em causa a realização de um exame de colonoscopia, sem função curativa, do qual nasce uma obrigação de resultado (obtenção dos dados clínicos do exame), ocorrendo uma perfuração do colon do paciente, sem que esteja em discussão o cumprimento do dever primário de prestação do médico mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clinico, ser respeitada a integridade física daquele, duas construções dogmáticas podem ser perfilhadas:
1) a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar a ilicitude, uma vez que uma lesão da integridade física do paciente, não exigida pelo cumprimento do contrato, implica a sua verificação (ilicitude do resultado), caso em que haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado daquele quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia (cfr. art. 340º, nº 1, do CC);
2) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou.
xi) A circunstância de se ter provado que a A., paciente, antes da realização do exame feito pelo R. médico assinou um impresso com o título “Consentimento Informado”, contendo uma declaração em que afirma estar informada e consciente dos riscos e eventuais complicações inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração do intestino, informação prestada antes da realização do exame dos autos, dá satisfação às exigências do consentimento devidamente informado pois, foi feita a prova do esclarecimento quanto ao risco comum de perfuração (inexistindo nos autos matéria provada que apontasse para risco de perfuração superior ao normal).

IV – Decisão

 Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, consequentemente, vão os RR absolvidos.   

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Custas pela A. 

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      Coimbra, 11.2.2020

   Moreira do Carmo ( Relator )

   Fonte Ramos

 Alberto Ruço