Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
627/19.7T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
FIM DISTINTO DA AGRICULTURA
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1381.º, ALÍNEA A) DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) A demonstração de que no prédio objecto da preferência, com uma área total de 4.975 m2, é legalmente possível a construção de uns arrumos com 80,80 m2, é insuficiente para se concluir que a esse prédio foi ou irá ser dado um fim distinto da agricultura, pois que a construção de uns arrumos com aquela dimensão é compatível com a continuação da utilização do prédio para a cultura.

II) Se o prédio do preferente beneficia de uma informação prévia favorável de construção e de um pedido de licenciamento de uma casa de habitação, anexos e muros, com projecto de arquitectura aprovado, o mesmo destina-se a outro fim que não a cultura, com a consequente exclusão do direito de preferência por si invocado.

Decisão Texto Integral:




                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A. intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

1. B. , e mulher, C.,

2. D. e marido, E., e

3. F. ,

Alegando, em síntese, que os 1ºs. RR. venderam à 3ª R. um prédio rústico confinante com um prédio rústico propriedade da autora, inferior à unidade de cultura, sem que lhe tenha sido dada preferência,

pedindo, em consequência, que seja reconhecido à autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido à Ré F. .

Os 1ºs. Réus/vendedores deduziram contestação, no sentido da improcedência da ação, alegando terem dado conhecimento dos elementos essenciais da transmissão ao (ex)marido da autora, sendo que, o prédio da autora encontra-se afeto à construção urbana e o prédio vendido é também apto para tal fim, agindo a autora em abuso de direito.

A Ré F. deduz também contestação, alegando, em síntese:

aquando da compra do prédio da autora em 2009, deram entrada de um pedido de licenciamento, “obras de edificação”, destinando-se esta a habitação, anexos e muros, sendo que, também a Ré requereu junto da CM de ... um pedido de licenciamento para a edificação de construção no terreno objeto de preferência, não preenchendo a parcela da autora os requisitos legais do art. 1380º, nº1, CC;

por outro lado, o prédio da Ré destina-se a outros fins que não os relacionados com a agricultura, sendo sua intenção afetá-lo à construção urbana, encontrando-se, assim, excluído o direito de preferência por força da al. a) do art. 1381º CC;

a autora teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e renunciou ao direito de preferência.

Conclui pela improcedência da ação.

A Autora apresenta articulado de Resposta às exceções deduzidas em ambas as contestações, alegando, no que assume relevo para o objeto do recurso, que o facto de o Dr. G. , antigo proprietário do imóvel pertencente à autora te pedido no ano de 2009 uma licença de construção para o rústico é irrelevante, não afetando a atual proprietária, para além de que tal licença de construção caducou; quanto ao pedido de licenciamento formulado para o prédio objeto da preferência é para uns arrumos com a área de 80 m2 e não para edificar qualquer imóvel, sendo que, o facto de os imóveis se encontrarem numa zona de construção considerada como tal pelo PDM não significa só por si que os prédios obedeçam a todos os requisitos necessários para se poder construir.


*

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença em que é proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, decido julgar a presente ação procedente e, consequentemente:

1. Reconhecer à autora o direito de preferência na compra e venda formalizada na escritura notarial exarada no dia 02 de Abril de 2009, do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 12131, com inscrição matricial sob o art. 13954 da Freguesia de ..., nela passando a ocupar a posição da 3ª ré compradora, F. .

2. Ordenar o cancelamento da inscrição predial de aquisição a favor da 3ª ré e outras que, entretanto, tenham sido efetuadas com base na escritura de compra de venda referido em 1.).


*

Inconformada com tal decisão, a 3ª Ré F. interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:  
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Se é de afastar o direito de preferência pela verificação do fator de exclusão previsto na al. a) do artigo 1381º CC.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de Facto

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

A) Por escritura pública outorgada no dia 2 de Abril de 2019, a terceira Ré comprou aos primeiros e segundo Réus o seguinte prédio: Prédio rústico composto por terra de semeadura, vinha e casal, situado na ..., na União de Freguesias de ..., concelho de ..., com a área de quatro mil e cem metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número doze mil cento e trinta e um, da freguesa de ...,” (…), “inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 13954, da União de Freguesias de ..., proveniente do artigo rústico 14300 da extinta freguesia de ...”.

B) Nesta escritura o preço de venda declarado foi de € 8.000,00.

C) A 3ª ré, à data de aquisição, não era proprietária de qualquer prédio rústico confinante com o prédio agora adquirido.

D) Sob o nº 435/19870508, encontra-se descrito como rústico na Conservatória do Registo Predial de ... o prédio, sito em ..., Freguesia dos ..., com a área de 910m2, composto de terra de semeadura, 3 tanchas, 10 cepas e vinha e casal, a confrontar no norte com Estrada, sul Herdeiros de ..., nascente ... e poente ..., inscrito na respetiva matriz rústica sob o art. 13956.

E) A aquisição da propriedade desse prédio encontra-se inscrita a favor da autora por partilha subsequente a divórcio pela Ap. 2743 de 2012/08/09, tendo por sujeito passivo G. .

F) Sob o nº 12131/20140919, encontra-se descrito como rústico na Conservatória do Registo Predial de ... o prédio, sito em ..., Freguesia dos ..., com a área de 4957 m2, composto de terreno de semeadura, e vinha e casal, a confrontar do norte com ..., sul ..., nascente ..., e Poente Largo do ..., inscrito na matriz rústica sob o art. 13954.

G) A aquisição da propriedade desse prédio encontra-se inscrita a favor da 3ª ré, por compra pela Ap. 549 de 2019/04/03, tendo por sujeito passivo B. e D. .

H) O prédio referido em D) confina do seu lado sul com o prédio objeto da escritura mencionada em A).

I) Os 2ºs réus anunciaram a intenção de venda do prédio referido em A) mandando colocar no mesmo uma placa indicativa dos números de telemóvel com os dizeres seguintes: “vende-se 935 569 699 / 938 612 839”.

J) Em data anterior à venda G. contactou telefonicamente H. , representante dos 2ºs réus, manifestando interesse na compra do imóvel, sendo que, informado do preço de 8.000,00 €, referiu que por esse preço não estava interessado.

K) Em 10/10/2009, foi requerido ao Município de ... por G. , residente na morada da Autora da Petição Inicial, na qualidade de proprietário, licença administrativa para obras de construção de uma habitação, anexos e muros no seu prédio descrito em D).

L) A 3ª ré adquiriu o prédio descrito em A) com intenção de o afetar à construção de uma casa/moradia.

M) A 3º Ré requereu em 2019 junto da Câmara Municipal de ... licenciamento para a edificação de construção de arrumos com área de implantação de 80,80 m2 no terreno objeto de preferência inscrito na matriz predial sob o n.º 13954.

N) De acordo com o PDM do Município de ..., o prédio descrito em D) situa-se em área qualificada de “solo urbano” e o prédio referido em A) em “solo urbano” e em “solo rural” na categoria de “espaço agrícola” abrangida parcialmente pela “reserva ecológica nacional”.

O) Ambos os pedidos referidos em K) e M) foram deferidos com a condição de serem apresentados os projetos de especialidades no prazo de 6 meses.

P) À data da venda, o prédio descrito em A) não era cultivado, tendo o descrito em D) árvores de fruto.

Q) A autora sabe que é viável a construção de uma habitação no prédio referido em D).


*

(…)

*

B. Subsunção dos factos ao direito

2. Se é de afastar o direito de preferência pela verificação do fator de exclusão previsto na al. a) do artigo 1381º CC.

Alegando os réus, para afastar o direito de preferência invocado pela autora, que, nem o prédio da autora, nem o prédio objeto da preferência, se destinam a agricultura, ou seja, invocando a seu favor o fator de exclusão previsto na al. a) do nº1, do artigo 1381º do CC, a sentença decorrida veio a negar a verificação de tal causa de exclusão, com os seguintes fundamentos:

“Entendem os réus que sendo ambos os terrenos aptos para a construção urbana, encontra-se preenchida a previsão constante da 2ª parte da al. a) do art. 1380º do CC e afastado o direito de preferência invocado.

Está provado que de acordo com o PDM do Município de ..., o prédio da autora situa-se em área qualificada de “solo urbano” e o prédio vendido à 3ª ré em “solo urbano” e em “solo rural” na categoria de “espaço agrícola” abrangida parcialmente pela “reserva ecológica nacional” (cfr. facto provado N)). Está também demonstrado que no prédio da autora é viável a construção habitacional e o dos réus permite a construção de arrumos (cfr. facto provado K). Contudo, tal quadro factual não integra por si só a previsão legal impeditiva do exercício do direito de preferência, uma vez que essa capacidade edificativa não exclui a possibilidade de desenvolver actividade agrícola – cfr. art. 53º do Regulamento do PDM do Município de ... publicado no DR, 2ª séria, nº 236 de 11.12.2017 que estatui “O solo urbano identificado na Planta de Ordenamento, é constituído por áreas em que a maioria das parcelas e dos lotes se encontra edificada, e por áreas que visam a colmatação ou a expansão das áreas urbanas, e destinam -se predominantemente a fins habitacionais, devendo também integrar outras funções compatíveis com o meio urbano como equipamentos de uso coletivo, atividades terciárias, comércio e indústria, agricultura e turismo”.

Por outro lado, importa referir que o fim que releva para efeitos da aplicação da aludida excepção não é aquele a que o terreno esteja afecto à data da sua alienação, mas sim o que o adquirente pretende dar-lhe.

Assim, o facto de estar demonstrado que à data da venda o prédio dos réus não era cultivado, tendo o da autora árvores de fruto (cfr. facto provado P)), não é suficiente para afastar o direito de preferência.

A Jurisprudência tem entendido que, para que o facto impeditivo do direito de preferência previsto na última parte da al. a) do art. 1381º do CC opere é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido destinação diversa da cultura, mas também que a projectada mudança de destino é permitida por lei – cfr. Ac. STJ de 04.10.2007, proc. 07B2739, Ac RC de 23.05.2017, proc. 408/15.7T8LMG.C1, Ac. STJ de 17.10.2019, proc. 295/16.8T8VRS.E1.S2, Ac. RG de 26.01.2017, proc. 73/14.9TBCHV.G1, Ac. STJ de 20.11.2019, proc. 8496/17.5T8STB.E1.S2.

Não foi alegado e, consequentemente provado, factualidade que permita concluir que a autora planeie dar ao prédio destino diverso da cultura.

A circunstância assente de que cerca de 10 anos antes da venda, quando o prédio ainda estava na titularidade do casal que compunha com G. , este ter apresentado um pedido de licenciamento para construção de uma habitação naquele terreno, é irrelevante para esse efeito, porquanto sendo posterior ao divórcio e dado o tempo decorrido não é legítimo concluir que a autora queira prosseguir com o plano de edificação na qualidade de exclusiva proprietária.

Decorre dos factos provados a intenção da 3ª ré adquirente de afectar o prédio à construção de uma casa/moradia (facto provado L)).

Todavia, referindo o requerido licenciamento a edificação de construção de arrumos e não de qualquer habitação (cfr. facto provado M)), não se pode ter por demonstrada a possibilidade física e legal da afetação correspondente à intenção da compradora, desconhecendo-se, de resto, se a área inserida em solo urbano seria sequer suficiente para a construção de uma moradia.

Pelo exposto, não estando demonstrada a viabilidade jurídica da afectação correspondente à intenção da ré compradora, improcede a excepção peremptória decorrente da 2ª parte da al. a) do art. 1381º do CC alegada pelos réus.”

Insurge-se a Ré/Apelante contra o decidido, com a seguinte argumentação:

1. Foi provado que a recorrente pretendia construir no imóvel;

2. Foi provado que a recorrente requereu o licenciamento dessa construção à CM ...;

3. Foi provado que os projetos de arquitetura foram aprovados e que a licença seria emitida com a entrega dos projetos de especialidades;

4. Foi provado que o imóvel adquirido pela recorrente estava legalmente apto, nos termos do PDM do Município de ..., para construção;

5. Foi provado que a recorrente não desenvolvia no imóvel adquirido qualquer atividade agrícola;

6. Foi provado que a autora também em tempos idos teve a intenção de construção e que também não desenvolve no imóvel qualquer atividade agrícola, o que indicia à luz da experiência comum que o intuito da mesma, com o terreno aqui em causa, não é (tal como não é o da Ré), a agricultura/uso rural, mas na realidade a edificação futura (em similitude à Ré).

- perante os pontos de facto provados sob as als. L) a P), não poderia a decisão recorrida ter concluído de nenhuma outra forma que não admitir a verificação da exceção impeditiva constante da al. a) do artº 1381º do CC;

- a intenção do legislador, e da doutrina e da jurisprudência citadas, quanto a esta exceção é que a afetação do imóvel seja feita a fim diverso da cultura, e que essa afetação seja legalmente possível – seja para construir propriedades horizontais, casas, arrumos, garagens, ou outra edificação qualquer; a recorrente não só demonstrou que pretendia afetar o imóvel adquirido a fim diverso da cultura, como requereu o licenciamento de construções à Câmara Municipal de ... e obteve provimento desses projetos, com indicação clara de provimento total da licença final.

Relativamente a tais fundamentos, alega a Autora/Apelada:

foi dado como provado que o prédio rústico em causa era para a construção de uma moradia que alterava a sua natureza para urbano, todavia o pedido de licenciamento feito pela recorrente foi para a construção de arrumos não podendo daqui inferir-se que era para um fim diverso da cultura;

 não é pelo facto de haver construções num prédio rústico que ipso facto se altera a sua finalidade, é necessário que elas tenham aludida autonomia económica, nos termos do art. 202º CC. Ora no caso presente, o pedido de licenciamento foi para arrumos, o que desde logo não lhe confere essa autonomia;

por outro lado, os requisitos de edificação de uma moradia não são os mesmos que os de uns arrumos, o que não permite saber se a mudança de destino era legalmente possível.

Cumpre decidir.

Sendo indiscutido encontrarem-se preenchidos os pressupostos de que depende a atribuição do direito de preferência ao proprietário confinante de prédio rustico de área inferior à unidade de cultura, previstos no artigo 1380º do Código Civil (CC), nomeadamente, a existência de dois prédios rústicos confinantes, de área inferior à unidade de cultura,

discute-se aqui, tão só, a verificação da causa de exclusão (ou exceção perentória impeditiva) a que se reporta a al. a), do nº1, do artigo 1381º do CC:

Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a agricultura”.

Face à defesa apresentada pelos réus na oposição que deduzem à presente ação, a decisão a proferir quanto à verificação de tal causa impeditiva do direito de preferência, passa pela resposta a dar, em relação a cada um dos prédios em causa – ao prédio da autora e ao prédio objeto da preferência –, às seguintes questões:

i) qual o destino dado ou a dar ao prédio pelo respetivo proprietário;

ii) se tal destino é possível por lei.

Como vem sendo salientado pela doutrina e jurisprudência, na concessão do direito de preferência em discussão, mais do que a satisfação do mero interesse privado do proprietário confinante em aumentar o seu domínio fundiário, estão em causa sobretudo relevantes interesses de ordem pública, de natureza económica e social.

O que implica que é à luz dos interesses prosseguidos pelo regime jurídico do emparcelamento e da proibição de fracionamento de prédios rústicos, subjacente ao instituto da preferência invocado, que o conteúdo e os limites deste terão de ser encontrados, ainda que em articulação com o regime de direito privado, referente aos direitos reais sobre imóveis.

O direito de preferência em causa encontra-se em conexão com as regras de relativas ao fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos, regras estas que dizem respeito a terrenos aptos para cultura, isto é, próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários[1].

Por fim, há que ter-se em conta que “a atribuição do mencionado direito de preferência constitui, tal como nos demais casos de preferência legalmente previstos, uma limitação ao caracter tendencialmente pleno do direito de propriedade, no qual se inclui a livre disposição dos bens sobre o direito que incide (art. 1305º)”, bem como uma exceção ao princípio da liberdade negocial, decorrente da autonomia privada, consagrada no artigo 405º. Assim, dada essa sua natureza excecional ou restritiva, tal direito só pode ser reconhecido quando se concluir, seguramente, que o seu exercício satisfaz o escopo que lhe é assinalado pelo regime do emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas, ou seja dentro dos limites em que se encontra legalmente previsto.[2]

1. Comecemos por analisar a verificação de tal impedimento por referência ao prédio objeto da preferência:

Provado que a 3ª Ré F. adquiriu tal prédio com intenção de o afetar à construção de uma casa moradia (facto provado sob a al. K), relativamente ao mesmo apenas se discute se tal construção é legalmente possível.

Relativamente a tal matéria, temos como provado, unicamente, que:

- de acordo com o PDM do Município de ..., tal prédio se situa em área qualificada de “solo urbano” e em “solo rural”, na categoria de “espaço agrícola” abrangida parcialmente pela “reserva ecológica nacional”;

- no terreno objeto da preferência, a 3º Ré requereu em 2019 junto da C.M. de ... licenciamento para a edificação de construção de arrumos com área de implantação de 80,80 m2, licenciamento que foi deferido com a condição de ser apresentado projeto de especialidades no prazo de seis meses.

A decisão recorrida assume a posição de que, referindo o requerido licenciamento, a edificação de construção para arrumos e não de qualquer habitação, “não se pode ter por demonstrada a possibilidade física e legal da afetação correspondente à intenção da compradora, desconhecendo-se, de resto, se a área inserida em solo urbano seria sequer suficiente para a construção de uma moradia”.

Insurge-se a Apelante contra o decidido, argumentando que:

- da norma em questão não se pode retirar a exigência de determinado tipo ou tipologia de construção e respetiva viabilidade legal, para se aferir da operacionalidade da exceção impeditiva, exigindo a norma, tão só, que a afetação seja a fim diverso de cultura e a jurisprudência que essa afetação seja legalmente admissível;

- a recorrente demonstrou, não só, que pretendia afetar o imóvel a fim diverso da cultura, como requereu o licenciamento de construções à CM e obteve provimento desses projetos, com indicação clara de provimento da licença final.

Não podemos acompanhar a Apelante na censura que deduz à decisão recorrida.

Não se questiona que a norma não exige qualquer tipo ou tipologia de construção, bastando-se com a prova de que “se destine a outro fim que não seja a cultura” – o que abrange não só a construção urbana, como um fim acessório de qualquer industria, a instalação de um parque de jogos, de um depósito de materiais, de um posto de venda, etc.[3].

Contudo, no caso em apreço, não só, não se se encontra demonstrado que o fim a que a adquirente o pretendia destinar, aquando da aquisição – construção de uma casa de habitação – seja legalmente admissível, como, a construção que sabemos nela lá ser possível não nos surge como bastante para integrar um destino distinto da agricultura.

Se não, vejamos:

A informação de que o prédio objeto da preferência se situa, de acordo com o Plano Diretor Municipal de ..., em “solo urbano” e em “solo rural” na categoria de espaço agrícola abrangida parcialmente pela “reserva ecológica nacional” – e ainda que a planta de Localização, junta como doc. 1 com a contestação da Ré F. , resulte que a grande parte do mesmo se situa em “solo urbano” –, é insuficiente para se determinar se é nele legalmente possível a construção de uma moradia. Com efeito, este tipo de construção não depende unicamente da área total do solo qualificado como urbano, mas, ainda, do preenchimento de inúmeros outros requisitos a apreciar pelas entidades administrativas, tais como, a área de confrontação com a via pública, distância relativamente à mesma, etc. A confirmação de tal potencialidade construtiva encontrar-se-ia, assim, dependente, pelo menos, de um pedido informação prévia com parecer favorável a que se reporta o artigo 13º-B do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

Como sustenta Henrique Mesquita, “a possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente deve depender, não do critério egoísta dos proprietários vizinhos, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território[4]”.

Ou, nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida[5], o terreno urbano ou terreno para construção é uma coisa que se define, não só, pela sua identidade física, mas, principalmente, pela sua aptidão juridicamente reconhecida, i.e., objeto de um direito de construir, nunca originário, mas sempre adquirido, por força da iniciativa da Administração Pública ou por licença desta perante a pretensão formulada pelo respetivo proprietário, nos limites topográficos e normativos dum plano de urbanização ou dum loteamento - requisitos que quedam indemonstrados relativamente ao terreno alienado.

Por outro lado, a demonstração de que no prédio é possível a construção de uns arrumos com 80,80 m2, será, também ela, insuficiente para se concluir que ao prédio foi ou, irá ser, dado um fim distinto da agricultura: tendo o prédio uma área total de 4.957 m2 (cfr. levantamento tipográfico junto pela Ré a fls. 108 a 110), a construção nele de uns arrumos com aquela dimensão é compatível com a continuação da utilização do prédio para a cultura.

A existência de construções é compatível com a classificação de um prédio como rústico, bastando que as mesmas não tenham autonomia económica[6], considerado o prédio no seu conjunto, tal como resulta da própria noção de prédio rústico que nos é dada pelo artigo 204º, nº2. 1ª parte do CC).

Concluindo, a única construção que podemos ter como legalmente admissível (por falta de prova da possibilidade legal de outro tipo de construção) não integra “um fim diferente da cultura” para efeitos da al. a) do nº1 do art. 1381º: a construção de uns arrumos de 80,80 m2 num prédio desta dimensão não é suficiente para, por si só, integrar uma alteração ao destino do prédio.

2. Passemos a analisar tais pressupostos – se se tem por demonstrado que o proprietário pretende destinar o prédio a outro fim que não a cultura e se tal finalidade é possível por lei –, agora reportados ao prédio rústico da autora.

Sendo a intenção de lhe dar um destino que não seja a agricultura, antes de mais, uma questão de facto[7], os factos que aqui se apresentam com relevo para a apreciação de tal questão, são os seguintes:

em 10/10/2009, foi requerido ao Município de ... por G. , residente na morada da Autora da Petição Inicial, na qualidade de proprietário, licença administrativa para obras de construção de uma habitação, anexos e muros no seu prédio descrito em D) (al. K);

tal pedido foi deferido com a condição de serem apresentados os projetos de especialidades no prazo de seis meses (al. O);

de acordo com o PDM do Município de ..., o prédio descrito em D) situa-se em área qualificada de “solo urbano” (al. N);

à data da venda, o prédio descrito em A) não era cultivado (al. p).

o projeto de licenciamento da construção de uma habitação, anexos e muros de vedação, a que se refere a al. K), foi precedido de um pedido de informação prévia, tendo obtido parecer favorável (facto este que se encontra provado documentalmente, face à informação prestada pelo Município de ... (doc. 7 junto com a contestação da 3ª Ré).

Não se questionando, relativamente a tal prédio, a viabilidade legal de nele ser construída uma casa de habitação – a tal respeito foi proferida informação prévia favorável, nos termos dos arts. 14º a 17º do RJEU[8] –, há, tão só, que determinar, se o prédio da autora “se destina a outro fim que não a cultura”.

E, aqui, dando razão à recorrente, teremos de nos afastar da apreciação que de tal questão é feita na decisão recorrida, desde logo, quando aí se afirma não ter sido alegada factualidade que permita concluir que a autora planeie dar ao prédio destino diverso da cultura: na sua contestação, a Ré alega expressamente que “o prédio da autora se destina à construção urbana” (artigo 26º da contestação) e que “desde 2009 que tal prédio não se destina a cultura” (art. 56º), conclusão que retira do facto de, em tal data, ter dado entrada na CM de ... de um pedido de licenciamento (obras de edificação, proc. 11/2009, destinando-se esta a habitação, anexos e muros (art. 24º).

Situando-se o respetivo terreno em área qualificada pelo PDM como “solo urbano”, e após emissão de informação prévia favorável à construção, em 2009 foi requerida licença administrativa para obras de construção de “habitação, anexos e muros”, pedido relativamente ao qual, a 27.11.2009, obteve a aprovação do projeto de arquitetura, fixando-se, então, o prazo de seis meses para apresentação dos projetos de especialidade.

E, segundo a informação atualizada, prestada pelo Município de ... a 19 de dezembro de 2019, o processo respeitante a tal pedido de licenciamento (proc. nº 2693/2009, de 11 de novembro), em nome de G. , “encontra-se dentro do Plano diretor municipal e tem projetos de arquitetura aprovados”. (doc. junto a 23.11.2019).

Ou seja, para além de, relativamente a tal prédio, ter sido formulado um pedido de informação prévia que obteve parecer favorável (arts. 14 a 17º do RJUE), sobre o mesmo incide um projeto de arquitetura aprovado –, faltando os projetos de especialidades –, para a construção de uma casa de habitação, arrumos e muro –, e não se encontra cultivado, o que nos levará a considerar que se destina a fim que não a cultura.

Embora nada se alegue a tal respeito nas contra-alegações de recurso, a Apelada, na sua resposta à contestação dos réus, alegou que o facto de o anterior proprietário do imóvel, o Dr. G. , ter pedido em 2009 uma construção para o rustico seria agora irrelevante, não podendo tal pedido de licenciamento afetar a posição da atual proprietária, para além de que tal licença de construção há muito caducou.

Ora, a apreciação que a autora/Apelada faz relativamente a tal questão assenta em pressupostos errados.

Desde logo, não se pode afirmar que a licença de construção tenha sido requerida pelo “anterior” proprietário do prédio, G. .

Tal licença foi requerida por G. , mas este não era “o proprietário” do prédio no sentido que lhe é dado pela autora: à data de tal pedido, o prédio fazia parte do património comum do casal, formado pela aqui autora e pelo referido G. – o que se deduz do facto de a autora o ter vindo a adquirir por “partilha subsequente ao divórcio”, sendo que, só os bens comuns são objeto de tal tipo de partilha.

E, fazendo parte do património comum do casal (a autora era proprietária do mesmo, nos exatos termos em que o era o seu marido – com o significado de que se trata de um património encabeçado por dois titulares[9]), o pedido de licenciamento poderia ter sido feito por qualquer um deles, sendo que o referido G. só o poderia ter formulado nessa mesma qualidade, enquanto bem que fazia parte do património comum do casal.

Tendo tal prédio vindo a ser adjudicado à autora, na partilha por dissolução do património comum, significa, tão só, que, o prédio que, até então, lhe pertencia enquanto bem comum, passou a pertencer-lhe enquanto bem próprio.

E, embora o casal se tenha divorciado, nada nos diz nos autos que, tendo em 2009 destinado o prédio à construção de uma casa de habitação, lhe queira a autora, agora, dar um destino diferente, sendo que, de qualquer modo, como analisaremos mais adiante, o destino relevante para efeitos da al. a), do nº1, do art. 1380º CC, não pode repousar num mero processo de intenções, mas em elementos objetivos.

Ao contrário do alegado pela Autora/Apelada, não se pode ter por demonstrado que tal projeto haja caducado, como resulta da informação prestada pelo Município de ....

Embora nos ns. 4, 5 e 6 do artigo 20º do Regime Jurídico da urbanização e Edificação, se disponha que os projetos de especialidade devem ser apresentados no prazo de seis meses, prorrogável por mais três meses, com a posterior suspensão do processo de licenciamento por mais seis meses, “findo o qual é declarada a caducidade do projeto, ouvido o interessado”, o certo é a informação prestada pelo Município é no sentido de que o mesmo “tem projeto de arquitetura aprovado”, dele se podendo inferir que tal procedimento se encontra ainda ativo.

Assim sendo, mesmo que a autora tivesse desistido, por ora, de construir a casa, e tal não se acha demonstrado – o procedimento de licenciamento terá tido alguma paragem, mas ainda se encontrará em vigor –, sempre poderiam vir a nele construir mais tarde ou vendê-lo para esse fim.

Por outro lado, e aqui chegamos ao foco crucial da questão, se a aprovação de um projeto de arquitetura, ou até mesmo o licenciamento para a construção, não altera a sua natureza rústica para urbana – a transformação só com a construção do edifício no solo se opera: para o direito civil, o solo que não tenha qualquer construção não pode deixar de ser prédio rústico, independentemente da finalidade a que esteja reservado[10] –, atentar-se-á que, em termos fiscais, a mera aprovação de construção, ou, mesmo, a simples informação favorável de viabilidade construtiva ou de loteamento  é suficiente para provocar a alteração do mesmo para urbano.

Ainda que nada nele tenha sido erigido, para o direito fiscal “o terreno para construção” merecerá já indiscutivelmente a classificação de urbano[11].

Dividindo os prédios urbanos em: a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros, o artigo 6º do CIMI consideraterrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção[12], e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo.”[13] (cfr. nºs 2 e 3 da citada norma).

E, se o proprietário requereu e conseguiu a aprovação de construção ou de loteamento ou informação de viabilidade construtiva ou de loteamento, ou declarou no título aquisitivo que o terreno se destina a construção, terá de apresentar a declaração modelo 1 de IMI, no prazo de 60 dias, contados a partir da data da notificação da autorização ou da data da escritura (artigo 13º do CIMI).

Ou seja, o pedido de informação prévia de viabilidade de loteamento ou de construção com parecer favorável, obriga o proprietário a, no prazo de 60 dias a contar da data da notificação da autorização, a apresentar a declaração modelo 1 do IMI, para alteração matricial da natureza do prédio (art. 13º, nº1, al. b), CIMI)[14].

Questionando-se sobre se, relativamente a estas situações em que um prédio seja simultaneamente urbano (fiscalmente) e rústico (civilmente), terá de dar preferência ao proprietário do terreno ou lote vizinho, nos termos do artigo 1380º CC, Armando Triunfante afirma que “encontrando-se o lote destinado à construção escapará à obrigação de preferência, ainda que seja considerado prédio rústico[15]”.

Face a tais considerações, e voltando ao caso em apreço, da existência, relativamente ao prédio da autora, de um pedido de informação prévia que obteve parecer favorável e, ainda, de um projeto de arquitetura aprovado, relativamente à construção de uma casa de habitação, teremos de retirar a conclusão que o mesmo, objetivamente, se “destina a outro fim que não a cultura”.     

E como tal, teremos por excluído o direito de preferência invocado pela autora na presente ação, por força da al. a) do nº1 do artigo 1381º, CC.

A apelação é de proceder, com a revogação da decisão recorrida.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a Apelação, revogando a decisão recorrida, pelo que, julgando a ação improcedente, se absolvem os réus do pedido.

Custas da ação e da Apelação a suportar pela Autora/Apelada

                                                                               Coimbra, 25 de janeiro de 2022       

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Melo

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves                                      
(…)


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 259.
[2] Acórdão do TRC de 27-05-2015, relatado por Alexandre Reis, in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pp.263 e 276.
[4] Henrique Mesquita, “Direito de Preferência” – Parecer publicado in Col. Jur., ano XI, t. 5, 52.
[5] Direito Económico, 1979, pág. 431.
[6] Para Armando Triunfante, será parte componente do prédio, que, assim sendo será qualificado como rustico, o armazenamento para guardar maquinaria ou instrumentos agrícolas, um cercado ou mesmo um estábulo para os animais, o dormitório para trabalhadores agrícolas, adegas, celeiros, etc. – “Prédio Rustico e Prédio Urbano: conceito e transformação”, in CDP /5, Julho-Setembro 2021, p.6.
[7] Cfr. Acórdão do TRC de 15.12.2021, relatado por Emídio Santos, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Consistente na informação pedida, a título prévio, à câmara municipal, sobre “a viabilidade de realizar determinada operação urbanística ou conjunto de operações urbanísticas diretamente relacionadas, bem como sobre os respetivos condicionamentos legais ou regulamentares, nomeadamente relativos a infraestruturas, servidões administrativas e restrições de utilidade pública, índices urbanísticos, cérceas, afastamentos e demais condicionantes aplicáveis à pretensão” (art. 14º, nº1, RJEU), sendo que “a informação prévia favorável vincula as entidades competentes na decisão sobre um eventual pedido de licenciamento e no controlo sucessivo de operações urbanísticas sujeitas a comunicação prévia” (art. 17º, nº1).
[9] Trata-se de uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede um certo grau de autonomia e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que são os dois titulares de um único direito sobre ela – Cfr., entre outros, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira – “Curso de Direito de Família”, Vol. I, Introdução, Direito Matrimonial, 5ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 596.
[10] Armando Triunfante, artigo o local citados, pp. 5-6 e 11.
[11]Armando Triunfante, artigo e local citados, p.9.
[12] O requisito da informação prévia de viabilidade de loteamento ou construção foi introduzido pela Lei do Orçamento do Estado para 2009, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2009.
[13] Ainda que a um terreno, designadamente rústico, seja atribuída capacidade construtiva (potencial) em qualquer plano diretor municipal ou qualquer plano de ordenamento do território, para que o mesmo seja considerado apto para a construção para efeitos do nº3 do artigo 6º do CIMI, o seu proprietário terá de desenvolver uma ação concreta, que pode consistir em: a) ter requerido uma licença de construção ou um alvará de loteamento; ter pedido uma informação prévia de viabilidade de construção ou de loteamento; c) ter feito no título aquisitivo (escritura pública ou outro), a declaração de que aquele terreno se destina a nele construir.
[14] Neste sentido, Abílio Marques, “Terrenos para construção: conceito e enquadramento fiscais”, https://www.occ.pt/downloads/files/1269613249_43_44Fisca.pdf.
[15] Armando Triunfante, artigo e local citados, p.10, nota 39.