Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4664/11.1TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
FACTURA
Data do Acordão: 06/14/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: LEIRIA 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.46 Nº1 C) CPC
Sumário: A assinatura aposta pelo comprador na factura traduz-se numa declaração de conformidade, através da qual o comprador reconhece a obrigação emergente da compra, equivalendo à “conferência”, expressamente exigida como condição de exequibilidade na versão da alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CPC anterior à reforma introduzida pelo DL 329-A/95, à qual a lei hoje não faz referência, por manifesta desnecessidade e redundância.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
F (…), SA, instaurou L (…), Lda, J (…) e A (…), a execução comum que corre termos com n.º 4664/11.1TBLRA, no 5.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria.
Na referida execução, apresentou a exequente os triplicados de duas facturas (n.ºs 3368L e 3775L) respeitantes ao fornecimento de materiais à executada L (…) Lda, assinadas pelos executados J (…) e A (…).
Opondo-se à execução, veio o executado A (…) alegar em síntese que os bens constantes das facturas dadas à execução foram efectivamente entregues pela exequente, e que a exequente solicitou “aos sócios gerentes da L (…), que assinassem o triplicado da(s) referida(s) factura(s)” [artigos 8.º e 26.º do requerimento de oposição], e que “informou que pretendia apenas a confirmação de que a mercadoria tinha sido entregue” [artigos 10.º e 28.º do requerimento de oposição], o que estes fizeram, mas na data em que apuseram as suas assinaturas nos triplicados das facturas dadas à execução, estes eram iguais aos originais juntos a fls. 16 e 18, tendo sido posteriormente aposto o carimbo onde consta a menção à fiança alegadamente prestada pelo oponente, sem o conhecimento e contra a vontade do oponente.
Contestando, a exequente impugnou a factualidade alegada pelo executado, sustentando a validade dos títulos dados à execução.
 Foi proferida sentença, na qual, sem prévia especificação da factualidade provada, se conclui:

«[…] os documentos juntos aos autos não preenchem a noção de acima transcrita - os documentos não se encontram sequer assinados pela sociedade executada, a favor de quem estão emitidas as facturas; não obstante estarem assinados supostamente pelos executados J (…) e A (…), não constitui uma obrigação pecuniária nem o seu reconhecimento.

É, pois, manifesta, a falta de título executivo, o que determina a procedência da presente oposição à execução, por inexistência ou inexequibilidade do título e, em consequência, declaro extinta a instância executiva.»
Não se conformando com a decisão, veio a exequente F (…)  SA,, interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões:

(…)
O oponente apresentou resposta às alegações, nas quais preconiza a improcedência do recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do CPC), sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se as facturas dadas à execução constituem títulos executivos formalmente válidos.

2. Fundamentos de facto
A factualidade relevante sintetiza-se nestes termos:
2.1. F (…), SA, instaurou contra L (…)  Lda, J (…) e A (…) a execução comum que corre termos com n.º 4664/11.1TBLRA, no 5.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria.
2.2. Na referida execução, apresentou a exequente os triplicados de duas facturas (n.ºs 3368L e 3775L) respeitantes ao fornecimento de materiais à executada L (…) Lda, assinadas pelos executados J (…) e A (…).
2.3. Os bens constantes das facturas dadas à execução (n.ºs 3368L e 3775L) foram entregues pela exequente à executada L (…).
2.4. Nas datas das entregas, eram sócios gerentes da executada L (…) , J (…) e A (…).
2.5. J (…) e A (…) assinaram os triplicados das facturas n.ºs 3368L e 3775L.
2.6. Sobre a assinatura aposta nos triplicados das facturas por J (…) e A (…) consta a seguinte menção “Declaro-me fiador do comprador a que respeita a presente factura. Assinando solidariamente com esta a obrigação de pagamento do montante da mesma e demais acréscimos devidos legalmente”.

3. Fundamentos de direito
3.1. A validade dos títulos relativamente à sociedade executada
Sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”, prescreve o artigo 46.º do Código de Processo Civil:

1 - À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2. Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.
A matriz da alínea c) do n.º 1 do normativo transcrito foi formulada na revisão operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que a anunciava no seu preâmbulo, nestes termos: “cumpre referir que se optou pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis[1] ou de prestação de facto determinado.”
Como refere Lebre de Freitas[2], constitui requisito de fundo que do título conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, constituindo o documento particular título executivo, tal como acontece com os documentos autênticos ou autenticados, “tanto quando formaliza a constituição duma obrigação como quando o devedor nele reconhece uma dívida preexistente”.
A averiguação sobre a idoneidade formal do documento particular como título executivo reconduz-se à verificação dos requisitos imperativamente enunciados na alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, onde se exige um documento particular, assinado pelo devedor, em que este reconheça uma obrigação pecuniária, com um montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.
Como refere o autor citado[3], a evolução do nosso direito foi, desde o Código de Processo Civil de 1876, no sentido de generalizar a exequibilidade dos documentos particulares[4]. Com o DL 242/85, de 9 de Julho, o legislador dispensou o reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques, de qualquer montante (era, antes dele, o regime exclusivo das letras, livranças e cheques de montante superior ao valor da alçada da Relação - desde o DL 533/77, de 30 de Dezembro, pois até aí os títulos de crédito não tinham regime especial, estando sujeitos, como os restantes documentos, a reconhecimento simples ou presencial consoante o valor da dívida -, bem como do extracto de factura, emitido, por exigência do DL 19 490, de 21-3-31, em caso de contrato de compra e venda mercantil a prazo entre comerciantes).
A revisão de 1995-1996 dispensou o reconhecimento notarial da assinatura do devedor em todos os casos (salvo o do documento assinado a rogo) e conferiu exequibilidade aos documentos particulares, que antes a não tinham, desde que dos mesmos conste obrigação pecuniária a liquidar por simples cálculo aritmético, obrigação de entrega de coisa móvel infungível ou obrigação de prestação de facto. Com a reforma da acção executiva, também a entrega de coisa imóvel ficou abrangida - no pressuposto, evidentemente, de que a obrigação de entrega pode validamente constar de documento particular, como normalmente acontece com a que respeita a direito pessoal de gozo, mas já não com a que respeita a direito real de gozo.
Vejamos agora, concretamente no que respeita às facturas.
Na versão do CPC anterior à reforma introduzida pelo Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12-12, a alínea c) do art. 46.º do CPC enumerava entre os títulos executivos nestes termos: «as letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis».
Com a reforma caiu o adjectivo “conferidas”, “referência expressa que o DL 329-A/95 suprimiu, porque desnecessária”, como escrevem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto[5].
Tal desnecessidade e redundância resultam de forma transparente da actual formulação da previsão legal da actual alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do Código de Processo Civil: “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias”.
Decorre da exigência legal enunciada, que a factura para constituir título executivo terá que ser assinada pelo devedor (comprador), que desta forma reconhece a obrigação emergente da compra, formalizada neste título através da “conferência”.
E em quer consiste a “conferência”?
Eurico Lopes-Cardoso[6] define a conferência da factura como a menção “de modo claro pelas palavras «Conferi» ou «Conferida», ou outras de igual significado”, nada impedindo que tal declaração seja emitida em documento separado, carta, por exemplo.
Manuel Domingos de Andrade[7], definia “factura conferida”, como “notas de venda de mercadorias com a indicação dos respectivos preços e contendo uma declaração de conformidade pelo comprador”[8].
A questão que de seguida se coloca, é a de saber se se deverá entender que a declaração de conformidade se basta com a assinatura do comprador.
Vejamos.
Nos trabalhos preparatórios do actual Código Civil, da autoria do Professor Adriano Vaz Serra define-se a assinatura como “o acto pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o acto, portanto, com que lhe confere a sua autoria e que justifica a força probatória do mesmo documento”[9]. Escreve o mesmo autor, que a “assinatura deve ser aposta abaixo do texto ou a seguir a ele. É o que corresponde à prática: quem quer fazer seu certo texto costuma assinar abaixo ou depois deles, significando, assim, que o aprova. Portanto, o que ficar abaixo ou depois da assinatura não é coberto por esta”[10]..
A assinatura traduz-se assim numa “declaração de conformidade” com o teor do documento onde é aposta e, em consequência, no caso específico da factura assinada pelo comprador, pressupõe, logicamente [de acordo com as mais elementares regras da experiência comum], a prévia conferência do documento.
Em harmonia com este entendimento, se decidiu neste Tribunal, em acórdão de 2.06.2009[11]: «A assinatura de uma factura pelo seu destinatário não é outra coisa senão o expresso reconhecimento da conferência de uma factura e uma forma de declaração da aceitação da obrigação do seu pagamento, pelo que deve entender-se tratar-se de um título executivo, nos termos do art.º 46º, al. c), do CPC.»[12].
Considerando que o oponente era à data sócio gerente da sociedade executada (compradora dos produtos especificados nas facturas dadas à execução), teremos então que concluir que, apondo a sua assinatura nas facturas, as “conferiu” nessa qualidade (como representante da sociedade compradora)
Em suma, temos duas facturas com “declaração de conformidade – conferência”, por parte do sócio gerente da executada/compradora (sociedade L (…), Lda).
Não se verifica assim, qualquer obstáculo à validade formal das facturas como títulos executivos, já que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, se trata de “documentos particulares, assinados pelo devedor [in casu pelo seu representante – sócio gerente], que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes”.
No entanto, tal validade formal reporta-se à executada sociedade (compradora dos produtos especificados nas facturas e, nessa qualidade, obrigada ao respectivo pagamento).
No que concerne à sociedade, não restam dúvidas sobre a validade dos títulos dados à execução.
Há agora que averiguar se as facturas constituem títulos executivos válidos relativamente ao sócio gerente ora oponente.

3.2. A validade dos títulos relativamente ao sócio gerente (ora oponente)
As facturas em apreço só construirão título executivo relativamente ao sócio gerente (ora oponente), se e na medida em que este tenha aposto a sua assinatura sob a menção “Declaro-me fiador do comprador a que respeita a presente factura. Assinando solidariamente com esta a obrigação de pagamento do montante da mesma e demais acréscimos devidos legalmente”.
O n.º 1 do artigo 628.º do Código Civil exige para a fiança a forma legalmente prevista para a obrigação principal: «A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal».
Em comentário a esta exigência legal, refere Mário Júlio de Almeida Costa[13]: “Impõe-se, assim, uma declaração expressa do fiador (art. 217.º, n.º 1). Ela terá de revestir a forma que a lei estabeleça para a dívida afiançada (mera declaração oral, documento escrito, simples ou autenticado, ou escritura pública).”
O oponente alega no requerimento inicial, que na data em que apôs a sua assinatura nos triplicados das facturas, estes tinham a apresentação que consta do original e do duplicado, de acordo com as cópias juntas aos autos, ou seja, que a declaração de fiança foi aposta em momento posterior, sem autorização e contra a sua vontade.
Diferente é a versão da exequente[14], que impugna a versão do oponente.  
Subsiste assim a necessidade de apuramento da autenticidade material do documento, posta em crise pelo oponente, matéria a apurar, se for caso disso, de acordo com as pertinentes regras probatórias e com as provas oferecidas pelas partes, sem prejuízo das diligências instrutórias que o tribunal entenda levar a cabo ex vi artigo 265º, nº 3, do Código de Processo Civil.
De todo o exposto se conclui, diversamente do que se decidiu em primeira instância, que os documentos exequendos não enfermam de inexequibilidade formal, devendo, em consequência, ser revogada a decisão sob censura e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos com conhecimento das restantes questões suscitadas pelas partes, averiguando-se, nomeadamente, se o executado/oponente apôs a sua assinatura sob a declaração de fiança, ou se esta declaração foi inserida nos documentos depois dessa assinatura e contra a vontade do oponente.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, decide-se julgar procedente o recurso de apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que se substitui por outra que determina o prosseguimento dos autos com conhecimento das restantes questões suscitadas pelas partes, nos termos e com o âmbito definidos no ponto anterior.
Custas do recurso a cargo do apelado.
                                                         *

Carlos Querido ( Relator )


[1] Com a reforma da acção executiva, também a entrega de coisa imóvel ficou abrangida.
[2] A Acção Executiva depois da reforma da reforma, 5.ª edição, Coimbra Editora, pág. 58.
[3] A Acção Executiva depois da reforma da reforma, 5.ª edição, Coimbra Editora, pág. 57.
[4] Há legislações que não reconhecem a exequibilidade dos documentos particulares, como é o caso da lei alemã, e outras que a restringem aos títulos de crédito (caso da lei italiana) ou aos cheques (caso da lei francesa).
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, página 93
[6] Manual da Acção Executiva, 3.ª edição, 2.ª Reimpressão, Almedina, 1996, pág. 45
[7] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 65
[8] Idêntica definição é avançada pelo Professor Antunes Varela no Manual de Processo Civil (2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 88.
[9] Boletim do Ministério da Justiça nº 111, páginas 160 e 161.
[10] Boletim do Ministério da Justiça nº 111, página 164..
[11] Proferido no Processo n.º 3996/08.0TBVIS.C1, acessível em http://www.dgsi.pt
[12] O mesmo entendimento é aceite no acórdão da Relação do Porto, de 24.10.2011, proferido no Processo n.º 975/09.4TBMAI-A.P1, acessível em http://www.dgsi.pt
[13] Direito das Obrigações, 12.ª edição revista, Almedina, pág. 891
[14] Que na contestação impugna a factualidade invocada pelo oponente, centrando-se depois na discussão genérica sobre a validade dos escritos particulares como títulos executivos, sem afirmar expressamente que a declaração de fiança já constava no momento da assinatura.