Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
471/09.9PBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: DANO
BEM DESTRUÍDO
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 212º Nº 1 CP
Sumário: O que releva para o crime de dano relativamente à destruição parcial de um muro construído pela ofendida e que é pertença desta, é o bem destruído e não o local onde se encontra implantado, pois o bem que foi destruído não foi o terreno mas sim o muro, independentemente de o solo onde o mesmo está implantado, ter ou não natureza controvertida.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

- Assistente A..., melhor id. nos autos.

- Arguidos: B... e C..., ambos melhor ids. nos autos.

                                                           *

            1. Nos presentes autos, a assistente A... apresentou queixa contra C... e B... por factos susceptíveis de integrar um crime de dano.

            2. Findo o inquérito, pelo Ministério Público foi proferido despacho que determinou o arquivamento do inquérito nesta parte.

            3. Não se conformando com o teor deste despacho, requereu a assistente a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia dos arguidos pela prática em co-autoria de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212º, nº1, do código Penal.

            4. Foram realizadas as diligências requeridas e procedeu-se ao debate instrutório findo o qual foi proferida decisão instrutória que pronunciou os arguidos por aquele crime de dano.

            5. Desta vez são os arguidos que, não se conformando com o teor da decisão, dela recorrem, formulando as seguintes conclusões:

            1. A... apresentou queixa contra os ora recorrentes afirmando que estes, em 18 de Setembro de 2009. haviam ordenado a destruição parcial de um muro existente na sua propriedade situada em … , Tornar.
            2. Tais factos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de dano, p.p. pelo Art,° 212°, n.° 1 do Código Penal.
            3. Realizado o Inquérito, entendeu o Ministério Público proferir douto despacho de arquivamento, nesta parte. por entender não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática do aludido crime.
            4. Inconformada com tal decisão, a assistente A... requereu então a abertura de instrução.
            5. Realizada a instrução, pela MM. Juiz a
quo foi proferido douto despacho que pronunciou os ora recorrentes pela prática de um crime de dano. imputando-lhes os factos constantes do douto requerimento de abertura de instrução.
            6. Os ora recorrentes entendem que não deviam ter sido pronunciados j á que não foram, durante as fases de inquérito e instrução, recolhidos indícios suficientes quer da propriedade da assistente sobre o muro em causa quer da ilicitude do acto de destruição parcial desse muro e, muito menos, que a arguida B... ao ordenar essa destruição o tivesse feito com a consciência de estar a destruir coisa alheia e que tal destruição lhe fosse vedada pela ordem jurídica e portanto, ilícita.

            7.
Nos termos do disposto no art.° 308° do mesmo Código se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. o juiz. por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, sendo que. caso tal não se verifique. profere despacho de não pronúncia.
            8. O art.° 283° do CPP dispõe que só poderá ser deduzida acusação se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. entendendo-se por indícios suficientes aqueles que impliquem uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada. em julgamento, uma pena ou medida de segurança.

            9. Na douta fundamentação do despacho recorrido, não se faz qualquer referência aos elementos que inequivocamente, pudessem demonstrar, sem margem para dúvidas, que a assistente é de facto a proprietária do muro e, aliás, tais elementos não existem nos autos.
            10. Só em acção de reivindicação se poderá fazer a prova dos limites dos prédios através e determinar a quem pertence a propriedade do terreno e muro nela implantado.
            11 .Não se encontra, portanto, demonstrado nos autos a quem pertence a propriedade do terreno onde foi construído o muro pelo que é obvio que não foram recolhidos indícios suficientes do carácter alheio do bem destruído.
            12.Os arguidos não reclamam sobre o terreno em causa um mero direito de passagem mas, antes, reclamam o próprio direito de propriedade e a posse sobre esse terreno.
            13.No terreno em causa, foram construídos dois muros, um por volta de 2006, posteriormente deitado a baixo e reconstruído em 2009. desta feita ilicitamente dentro dos limites do terreno pertencente aos arguidos B... e C....
            14.Existem nos autos elementos de prova que indiciam que o muro que a arguida B... mandou destruir parcialmente foi construído em inícios de 2009 e não há cinco anos como consta da decisão instrutória, pelo que não se indicia minimamente que a assistente exerceu a posse sobre o muro e o terreno em questão com duração superior a um ano.
            15.Decorre do Art.° 31°. n.°s 1 e 2 al. b) do Código Penal que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade e que nomeadamente não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
            16. Por seu turno, os Artigos 1277° e 1314° do Código Civil permitem a defesa da propriedade e da posse por meio de acção directa.
            17. Existe uma grande probabilidade de serem os ora recorrentes os titulares da propriedade e os possuidores do terreno.
            18. Nestes termos assistia-lhes o direito de defenderem a posse e a propriedade por meio de acção directa e foi precisamente esse o direito que a arguida B... exerceu ao ordenar a destruição parcial do muro.

            19. Tal destruição foi necessária pois a passagem pelo terreno onde ilicitamente foi construído o muro era essencial para se poder por aí passar com os materiais para uma obra, sendo certo que o recurso aos meios judiciais para defesa da posse e propriedade do terreno, pela sua morosidade, não permitiam exercer, em tempo útil, a possibilidade de transitar pelo terreno durante o decurso das obras.
            20. Acresce que a arguida apenas ordenou que fossem realizadas no muro duas aberturas com cerca de 80 centímetros, de modo a permitir tal trânsito, pelo que não excedeu o estritamente necessário para evitar o prejuízo.
            21 . Não foram recolhidos indícios de que a arguida B... tenha praticado um acto ilícito, já que existe nos autos uma forte possibilidade de, ao ter ordenado a destruição parcial do muro, o tenha feito no exercício de um direito.
            22.Nessa medida, e tendo em conta que os arguidos se afirmam proprietários do terreno em questão, apresentando elementos de prova nesse sentido nunca poderíamos concluir, de forma plausível. que a arguida B..., ao ordenar a destruição parcial do muro, o tenha feito de forma livre, voluntária e consciente com intenção de estar a actuar sobre coisa alheia e com consciência da ilicitude da sua conduta.
            23.Também, não foram recolhidos indícios de que a arguida tivesse agido com a convicção de destruir coisa alheia e. também que tivesse consciência da ilicitude de tal acto, já que é manifesto que a mesma agiu por estar convicta de estar a exercer o direito de acção directa para defesa da posse e da propriedade.
            24.Da prova recolhida não resultam indícios que revelem uma possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de aos arguidos vir a ser aplicada uma pena, porquanto, por apelo a um juízo de prognose, com base em critérios de normalidade e mantendo-se em julgamento os elementos probatórios existentes (e tendo, sobretudo, em conta. os princípios da presunção de inocência e do
in dúbio pro reo), estes conduziriam, inevitavelmente, à sua absolvição.
            25.Assim sendo, ao decidir pronunciar os arguidos pela prática de um crime de dano, a MM. Juiz a
quo violou os Art.°s 3 08°, n.° 1 e 2 e 283º, nºs 1 e 2 do código de Processo Penal bem como o artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
            Pelo que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que despronuncie os ora recorrentes pela prática do crime de dano.

            6.O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, dizendo em síntese:

            1. Indiciação suficiente significa a afirmação a partir dos elementos de prova do processo. da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, uma pena ou medida de segurança.
            2. Após a Instrução, mediante renovação de prova e novos elementos juntos, avançou-se na afirmação de indícios suficientes acerca da titularidade do muro na pessoa da assistente, do estrago do mesmo, localizando-o no espaço e no tempo e do valor desse estrago expresso em moeda.
            3. Este indício permite avançar para julgamento, fase em que toda a prova será apreciada, agora já com a certeza necessária à condenação.
            4. Face aos novos elementos e à convicção da Sr* Juiz de Instrução perfila-se a conclusão de que os arguidos devem ser pronunciados para Julgamento.
           
7. Também a assistente veio responder, concluindo pela improcedência  do recurso.

            8. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso dos arguidos deve ser julgado improcedente.

9. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.


II

O despacho recorrido (decisão instrutória), tem o seguinte teor, na parte que agora releva:

            “A fase de instrução tem por fim a comprovação judicial da acusação ou do despacho de arquivamento do inquérito, sendo certo que na decisão instrutória não se julga do mérito da causa, mas tão-só dos pressupostos da fase de julgamento. Isto é, o juiz verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação
            Esta submissão a julgamento não exige a prova no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios da ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido e lhe ser aplicada uma pena ou medida de segurança face à prova recolhida nessas fases processuais (cfr. artigo 308° do Código de Processo Penal).
Dito isto,
Pratica o crime de dano do artigo 212º, nº1, do código Penal,
“quem destruir no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia”.
            Trata-se de um crime contra o património, dirigido em especial à protecção do bem jurídico propriedade, sendo objecto de tutela “o
domínio exclusivo sobre a coisa, isto é, o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa (e de lidar com ela como) o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecei’ (Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 207, em anotação ao art. 212°. do Código Penal.
            Constituem elementos do tipo objectivo a prática de um dos quatro actos (de destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável) e
o carácter alheio da coisa. Estão ainda implícitos a exigência de a coisa ter algum valor e a conduta revestir relevo social.
            Trata-se de um crime doloso, conforme previsto no art. 13°,. a contrario, do Código Penal.

            Dito isto, importa analisar os elementos probatórios recolhidos quer na fase de inquérito, quer na instrução, e que se revelam relevantes.
            Foram recolhidos os seguintes meios de prova:
            - As fotografias juntas ao inquérito apenso com o n°645/09.3TATMR, a fls. 4 e 5 e que relevam que o muro com duas aberturas suficientes à passagem de uma pessoa a pé.
            - O auto de notícia lavrado de fls. 44 /45, em que  … e B... foram identificados como infractores pelos Srs. Agentes chamados ao local no dia em que os factos ocorreram.
            - O depoimento de  … (fls. 67/68) bem como prestado em instrução.
            - As declarações do arguido C..., enquanto denunciante a fls. 91 e 92.
            - As certidões do registo predial e matricial do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n°2046. donde resulta averbada a aquisição do prédio por doação por … . com reserva de usufruto a favor dos arguidos.
            - A certidão do registo predial do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial com o  n° 1989, donde resulta averbada a aquisição a favor da assistente.
            - O alvará de construção de um muro de vedação, emitido em nome de A.... por despacho de 29/4/2005 e com prazo de validade entre 29/5/2006 (inicio) e 29/82006 fim) (fls. 153 e 154).
            - O depoimento de A... (ouvida em inquérito ria qualidade de testemunha) a fls. 161.
            - O depoimento de  … a fls. 180.

            - As declarações do arguido C... de fls. 234/235 dos autos.
            - As declarações da arguida B... de Os. 244 245 dos autos.
            - As declarações dos co-arguidos  … e  … (prestadas em instrução).
            - Certidão extraída do proc. n°.1157/09.OTBTMR. em que são Autores os arguidos e Ré … .
            - Os documentos de fls. 449 e 450 (facturas datadas de 20 1/0210 e 1 / 2/2010).
           

            Em face da prova recolhida, são de salientar três aspectos:
            1°.
Quanto à imputação dos factos.
            Da conjugação destes elementos de prova importa desde logo evidenciar que a arguida B... confessa ter dado a ordem aos pedreiros para derrubarem o muro por forma a abrir nele duas passagens, uma em cada estrema, para possibilitar o transporte dos materiais de construção.
            Já quanto à imputação ao arguido C..., para além das declarações dos co-arguidos ouvidos nesta fase de instrução, que inclusive dizem que foi este quem deu a ordem, também a testemunha  … confirma a presença daquele no local. Por outro lado, a testemunha  …  salientou que, quando confrontou o trabalhador com os factos, este lhe disse que apenas tinha recebido ordens do “doutor”.
            O facto de do auto de notícia - que indica como data e hora da ocorrência o dia 18/9/2009, às 17h, quando da conjugação da prova resulta que o facto ilícito foi praticado de manhã -. não resultar a identificação do arguido-marido como infractor em nada retira ou abala o valor indiciário da prova testemunhal recolhida.

            Nesta medida, afigura-se que, encontrando-se ambos os arguidos no local, estando os obreiros a trabalhar por conta destes e sob as suas ordens, independentemente da verbalização da ordem - seja pela arguida, como esta confessa seja pelo arguido como para tanto aponta a prova testemunhal - é possível imputar a ambos, enquanto autores mediatos e em co-autoria, a prática do facto, isto é, a destruição do muro.
            Dito de outra forma, a co-autoria não exige que todos os actos materiais de execução sejam praticados pelos agentes em conjunto: é o acordo - consciência e vontade da colaboração - que delimita a imputação recíproca das diversas contribuições causais.


            2°.
Da propriedade do muro
            Resulta da prova recolhida que o muro foi construído pela assistente para delimitar a sua propriedade, há cerca de cinco anos. Independentemente do rigor desta data (tendo em conta que o prazo de validade do alvará é de 29/8/2006), importa fazer notar que é o próprio arguido C...  que, quando ouvido em inquérito, reconhece que o muro foi construído há cerca de um ano e meio.
            Sendo certo que existe um litígio entre os arguidos e a assistente, reclamando aqueles o direito de passagem pelo prédio desta, independentemente de tal litígio e ainda mesmo que estejam também em causa as próprias estremas dos prédios, considerando que o muro foi construído pela assistente e havia-o sido há mais de um ano antes da data da prática das factos, é de concluir que a assistente era a possuidora.
            Ora ao demolir parcialmente o muro, os arguidos destruíram coisa alheia e lesaram o bem jurídico propriedade, entendido como a
“disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica” cfr. José de Faria Costa. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 30, em anotação ao art. 203° do Código Penal que tipifica o crime de furto enquanto tipo matricial dos crimes contra a propriedade).

            3° Da necessidade de passar com os materiais pelo prédio da assistente.
            Tal fundamento não é o bastante para integrar qualquer causa de justificação da conduta ou de exclusão da culpa dos arguidos.
            Assim, da conjugação dos meios de prova
supra enunciados isto é, substancialmente concordantes quanto à ocorrência dos factos e à propriedade do muro - não se pode senão concluir pela formulação do juízo de valor subjacente à pronúncia, concretamente, quanto à existência de indícios suficientes para concluir pela probabilidade razoável de a cada arguido vir a ser aplicada urna pena pela prática dos factos denunciados pela assistente.
            Assim e em suma é de considerar que os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito e instrução são os bastantes para concretizar a noção de “indícios suficientes” exigida pelo artigo 308º, do Código de Processo Penal.
            Em conformidade com o exposto,
            Em
processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, pronuncio
           
C..., melhor id. a fls. 237.
           
B.... melhor ids. a fls. 246.
            pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução lis. 446 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos. susceptíveis de integrar a prática pelos arguidos. em co-autoria. de um crime de dano previsto e
punido pelo artigo 212°, n°1, do Código Penal”.


III

Questões a apreciar:

Os indícios (ausência deles, na perspectiva dos arguidos recorrentes), da propriedade do terreno e do muro nele implantado; que a destruição se trate de acto ilícito; da falta de consciência da arguida B... de estar a destruir coisa alheia.

                                                           IV

Apreciando:

1. As questões são, entre si, conexas, pelo que delas trataremos em simultâneo.

E começamos por aqui reproduzir uma afirmação da recorrida e assistente A... que define e delimita o objecto essencial deste recurso:

“ Os arguidos parecem confundir duas coisas: a propriedade do muro e a propriedade do imóvel onde o muro foi implantado, sendo certo que para os presentes autos apenas importa saber a quem pertence o muro ou quem exercia a posse sobre o muro, porque foi este o bem jurídico lesado”.

É efectivamente nestes termos e sob esta perspectiva que a questão deve ser vista e analisada.

E não na perspectiva de aqui discutir se o terreno onde o muro foi construído ou edificado é pertença da assistente ou dos arguidos, se essa edificação violou o direito de propriedade dos recorrentes arguidos ou que não respeitou as estremas entre os prédios de cada um deles. Questão pertinente mas que deve ser decidida nos meios comuns, numa acção cível própria, caso não haja acordo ou entendimento entre as partes. O mesmo já não se dizendo se porventura estivesse em causa um dano ou outro acto praticado directamente sobre o prédio em causa, que estivesse directamente ligado à propriedade do terreno, como é o caso do corte ou derrube de uma ou mais árvores e se discutisse se as mesmas estavam implantadas num ou noutro, não existindo uma delimitação precisa e concreta das ditas estremas e sobre estas existissem dúvidas sérias e razoáveis.

Mas não é o caso. O que se discute nestes autos é um dano, um derrube parcial, com a abertura de dois buracos, duas entradas, num muro mandado edificar pela assistente, há já alguns anos, cerca de cinco, na estrema entre o seu prédio e o dos arguidos ora recorrentes. No entender da assistente, edificado no seu prédio, no entender, agora, dos arguidos, edificado no prédio destes[1].

 Quanto aos indícios da construção do muro pela assistente, não suscita a mesma dúvidas, sendo apontados na decisão instrutória os elementos de onde resultam tais indícios. A argumentação dos recorrentes quanto à construção do muro em duas fases e datas diferentes, para além de não ter apoio em elementos probatórios consistentes a não ser na versão/declarações do recorrente C..., também se torna irrelevante para a concreta questão em apreciação, pois é indiferente se o muro foi construído há cinco anos ou apenas construído/acabado há cerca de ano e meio, pela assistente – deixando-se consignado que os elementos apontam para a sua construção há cerca de cinco anos. Relevante é que não haja dúvidas sobre a sua edificação por esta e que a mesma já tinha a dita posse sobre tal muro há algum tempo, seguramente há muito mais de um ano, como se refere na decisão recorrida.

2. Afigura-se oportuno, aqui citar um recente acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 9.12.2010, proferido no processo nº 347/08.8GCVIS.C1, consultável in www.dgsi.pt,  onde também se decidiu[2] sobre esta matéria, o seguinte:

“…na perspectiva global da “coisa” enquanto realidade que pode ser objecto de relação jurídica, tal como vem definida no art. 202.º do Código Civil (Em sentido jurídico, coisas são “os bens (ou os entes) de carácter estático desprovidos de personalidade e não integradores do conteúdo necessário desta, susceptíveis de constituírem objecto de relações jurídicas.” - Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Ed., pág. 340, Carlos Alberto da Mota Pinto), um muro é ele próprio uma coisa autónoma ou autonomizável, que pode, ou não, ser a parte integrante de uma coisa imóvel.      E, sendo-o, pode, ou não, ganhar com ele um conteúdo funcional, assim como umas sebes ou uns esteios que também sirvam de delimitação a um terreno.
            Quando um muro tem uma ligação material com um terreno com carácter de permanência pode considerar-se dele parte integrante - art. 204.º, al. e) do Código Civil - mas, não obstante, não deixa de ser susceptível de existir enquanto coisa autónoma ou autonomizável, sendo aquela ligação ao terreno apenas funcional. No fundo, não perde a sua identidade jurídica de coisa, na noção apontada, como “bem” de carácter estático.
            Ora, enquanto realidade autónoma da própria coisa à qual possa estar funcionalmente ligado, um muro constitui-se de um “bem” protegido como coisa, penalmente, por si só, independentemente do local onde possa estar implantado, já que, na verdade, tem existência própria (de “bem”) enquanto tal.
            Daí que, por mais que uma vez, que a jurisprudência tenha vindo a considerar, em idênticas situações, que o facto de um muro estar implantado em terreno cuja propriedade se desconhece (por maioria de razão, de saber se pertence a A ou a B) não lhe retira a qualidade de alheio, para efeitos de integração do crime de dano ( Vide, Ac. TRP, de 19-02-2003, processo n.º 0242739, em
www.dgsi.pt.). O que equivale a dizer que o muro deve ser considerado como coisa única, bem assim como as outras coisas móveis que a ele, muro, estejam ligados com carácter de permanência ( Vide, Ac. TRC de 18-10-2010, processo n.º 2137/00, www.dgsi.pt), como o estão uma rede, uns esteios ou piquetes.
            O carácter alheio da coisa advirá, então, em concreto, da forma como foi construída e, para o agente do crime, importa somente é que este lhe não pertença como obra sua. Quer isto dizer que o muro (enquanto “coisa” originariamente criada pela obra humana) terá o carácter alheio quando não tenha sido construído (por si, ou a seu mando e expensas) pelo próprio agente do crime”

3. Sobre esta matéria importa ainda aqui referir o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 27-03-2006, proferido no processo 237/06-1,onde se decidiu o seguinte:

I – Provando-se que um muro (vá lá, os blocos, a areia, o cimento, a água, o trabalho e o resultado final, ou seja, a forma e função de muro) é indiscutivelmente do ofendido e que foi isso que o arguido destruiu, sem que lhe aproveite qualquer figura susceptível de preencher causas de exclusão, verifica-se o elemento objectivo da natureza alheia da coisa destruída e assim, com os demais elementos, o crime de dano.
            II – Assim, de nada lhe vale ao arguido vir tentar convencer que o terreno onde o muro está construído é seu ou, sequer, que é objecto de discórdia, pois o que importa é que ele sabia que o muro era coisa alheia e que agiu com intenção dolosa de o destruir.
            III – Em tais situações, existem meios próprios ao alcance das pessoas para discutir a propriedade dos terrenos, mas nada autoriza que se destrua coisa alheia, e nem os Tribunais têm que considerar qualquer questão prejudicial sobre a propriedade dos terrenos, pois, pertença o terreno a quem pertencer, se a coisa destruída era coisa alheia, a tanto se resume o enquadramento jurídico do crime em apreço.

4. Também no caso dos autos, é manifesto que o muro, construído que foi por ordem e a expensas da assistente, nunca pertenceu nem pertencia aos arguidos. Pelo que para estes o muro tinha e tem natureza de coisa alheia, independentemente de o solo onde o mesmo está implantado, tenha ou não natureza controvertida.

5. A propósito da natureza controvertida do terreno onde está edificado o muro, mais concretamente sobre a não definição da dita estrema, pretendem  os recorrentes afastar a ilicitude da sua conduta invocando para o efeito o exercício do direito de acção directa previsto no artigo 336º, do Código Civil, ao abrigo do disposto ainda nos artigos 1314º e 1277º, ambos daquele diploma.

Sem qualquer razão ou fundamento.

Desde logo porque também sob esta perspectiva confundem uma vez mais a propriedade ou titularidade do terreno com o muro que, como se viu, são duas realidades diferentes, são duas coisas distintas e autónomas.

Por outro, não se verificam  quaisquer pressupostos para usar da acção directa mesmo para a defesa da dita propriedade onde se encontra construído o muro.

Nos termos do artigo 336º, do Código Civil, só é lícito o recurso à acção directa para assegurar um direito, pela indispensabilidade desta, desde logo pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais para evitar a inutilização prática de um direito.

O que significa que, quando muito, poder-se-ia discutir a legalidade ou uso oportuno da acção directa, no momento em que o muro foi edificado. E sublinhamos a expressão, quando muito, porque existe um meio célere e expedito, que é a providência cautelar, – seguida da respectiva acção -, meio à disposição das partes para acautelar estes mesmos direitos.

Acontece que os arguidos não usaram da acção directa no momento da construção do muro; não intentaram nenhuma providência cautelar para o mesmo efeito, quando o podiam fazer em tempo útil e oportuno; e também até ao momento não propuseram qualquer acção ou de reivindicação ou para definição de estremas e consequente derrube do muro, contra a assistente.

Com certeza que não é agora, ao fim de cinco anos depois de o muro estar construído, que podem invocar a acção directa para defesa de um direito controvertido (o da propriedade do terreno) e para derrube de um muro sobre o qual se indicia claramente que é pertença da assistente.

Finalmente, não deixa de ser estranho que, na defesa do seu direito de propriedade, os arguidos procedessem ao derrube do muro em apenas dois locais deste, fazendo duas aberturas. Estas aberturas tiveram tão só a justificação de passar com os materiais para as obras, não se indiciando qualquer vontade de derrubar o muro na totalidade, como seria de esperar se a defesa efectiva fosse a da propriedade do terreno.

Mas, como se disse, não se verificam, de todo, os pressupostos da acção directa que justifique a conduta dos arguidos, afastando a sua ilicitude.

            6. Uma palavra mais para afirmar que se indicia claramente a responsabilidade de ambos os arguidos, como co-autores, pelos fundamentos adiantados na decisão recorrida, quer no que respeita à ordem dada para o derrube (admitido expressamente pela arguida), quer quanto ao conceito de co-autoria, a qual não exige que todos os actos materiais de execução sejam praticados pelos agentes em conjunto, sendo o acordo - consciência e vontade da colaboração - que delimita a imputação recíproca das diversas contribuições causais.

            7.  O artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, diz que “ se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia “:

Tais indícios são claros e manifestos quanto ao crime de dano do artigo 212º, nº 1, do Código Penal.

            Pelo que andou bem o Tribunal a quo ao pronunciar os arguidos nos termos em que o fez. Nenhum reparo merece a decisão recorrida.


V


Decisão

Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso dos recorrentes arguidos, mantendo o teor da decisão recorrida.

Custas a cargo de ambos os recorrentes, com a taxa de justiça individual que se fixa em 5 ( cinco ) UCs.

          Luís Teixeira   (Relator)

         Calvário Antunes

[1] Pelo que não releva aqui apreciar a questão suscitada pelos recorrentes na sua motivação quando dizem a fls. 558:

“ …apenas com estes documentos não é possível estabelecer nos autos, sem margem para dúvidas, se o terreno onde foi construído o muro se situa num ou noutro dos prédios. Tal só será possível em acção de reivindicação”.

[2] Concretamente, se corroborou, se deu corpo e anuência expressa à fundamentação da aí sentença recorrida, pois o que se segue corresponde a um trecho dessa mesma decisão.