Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2665/10.6TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PREVALÊNCIA
MÉRITO
FORMA
Data do Acordão: 05/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA, 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 264º Nº1 E 664º DO CPC
Sumário: I. Determinando a formulação do pedido o desenrolar da instância e circunscrevendo o âmbito da decisão final, mais importante que a qualificação jurídica que lhe seja dada pelo autor, deve atender-se antes ao efeito prático que com a demanda pretende alcançar, que é afinal o que releva para determinar o conteúdo da decisão final e aferir das excepções de litispendência e caso julgado.

II. No que concerne à causa de pedir é incontornável ter o nosso legislador optado pela denominada teoria da substanciação, impondo tal opção ao autor que alegue os factos de onde deriva a sua pretensão.

III. Ocorrendo frequentemente o efeito jurídico corresponder à estatuição de diversas disposições substantivas, e sendo o Tribunal livre na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 664.º do CPC), não se verifica violação do princípio do dispositivo se o juiz, atendo-se aos factos alegados, decide com base na consideração de que as partes celebraram um contrato de empreitada, que se mostra validamente resolvido, ainda que os AA tenham alocado a sua pretensão ao instituto do enriquecimento sem causa.

IV. Não se verifica ainda qualquer violação do princípio do contraditório quando o juiz deu antecipadamente a conhecer a sua posição e o réu se defendeu no pressuposto e pugnando pela existência de um vínculo contratual.

V. A reforma sofrida pela lei processual civil foi claramente marcada pela preocupação de prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma, o que se evidencia pelo reforço do princípio do inquisitório, dos poderes de direcção do processo pelo juiz e consagração lata do princípio da cooperação, neste âmbito se inscrevendo a consagração do despacho de aperfeiçoamento.

VI. Por assim ser, nada na lei obsta a que o Tribunal, dando conta de que num prévio despacho não assinalou todas as deficiências de que padece determinado articulado, profira novo despacho, em reforço do antecedente, determinando que seja prestado um outro qualquer esclarecimento.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
A..., solteira, professora, contribuinte n.º (...), residente na Rua (...), em Coimbra;
B..., solteiro, técnico superior, contribuinte n.º (...), residente na morada da anterior, e
C..., solteiro, jornalista, contribuinte n.º (...), residente na Rua (...), em Lisboa,
vieram instaurar contra
D..., Lda., sociedade comercial por quotas, pessoa colectiva n.º (...), com sede social em Rua (...), acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final a condenação da demandada no pagamento da quantia de 8 715,00 (oito mil, setecentos e quinze euros), acrescida de juros legais contados da citação até efectivo e integral pagamento.
Em fundamento alegaram, em síntese útil, que são os donos da casa de habitação sita na Rua (...), em Coimbra, a que corresponde o n.º (...) de polícia.
Com data de 20 de Fevereiro de 2008, e tendo em vista a realização de alguns trabalhos de remodelação e reabilitação no imóvel identificado, a primeira autora celebrou com a ré contrato de empreitada pelo preço global de 12 900,00 (doze mil e novecentos euros), acrescido de IVA à taxa de 5%, a entregar de forma fraccionada, 50% aquando da adjudicação e 50% com a entrega da obra, tal como consta do acordo então reduzido a escrito e por aquelas assinado. Ao preço acordado acresceria o valor de €.: 1 850,00 (mil oitocentos e cinquenta euros), acrescido de IVA, preço de um móvel de cozinha, composto por pia, lava louça e banca sintética.
Em cumprimento do acordado, aquando da adjudicação/assinatura do contrato, o que ocorreu em finais de Fevereiro de 2008, os autores procederam à entrega à ré do valor de € 8 715,00, correspondente a metade do preço global convencionado, adicionado do valor do móvel da cozinha. Não obstante, com referência a 30 de Junho, a ré não tinha executado nenhum dos trabalhos que se vinculara a realizar, o que motivou o envio, pelos autores da missiva que juntam, concedendo-lhe o prazo final de 30 dias para concluir a obra, sob pena de considerarem o contrato como não cumprido.
Apesar da ré ter enviado dois trabalhadores seus para o imóvel, a verdade é que nada fizeram, deixando mesmo de comparecer no local da obra, onde não voltaram depois de 30/7/2008, com excepção da ocasião em que ali se deslocaram para procederem ao levantamento do material que lá haviam deixado.
Após essa data, e a despeito da ré ter deixado a segunda e terceira fases da empreitada por iniciar, não mais os autores conseguiram contactar aquela, o que os determinou a resolver o contrato, conforme comunicação efectuada à demandada através de carta que lhe enviaram e não mereceu por banda desta qualquer resposta.
Resolvido o contrato, procederam os demandantes à contratação de terceiros para conclusão dos trabalhos, tendo então sido verificado que os executados pela ré tinham defeitos que os inutilizavam, tendo sido integralmente demolidos, despesas de demolição que os demandantes tiveram ainda que suportar.
Concluindo que a ré enriqueceu o seu património em €.: 8 715,00 à custa dos demandantes e sem qualquer causa que o justificasse, pediram a final a restituição do valor em causa, acrescido dos juros de mora contados da citação.
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Regularmente citada, a demandada D (...), Lda. apresentou contestação, peça na qual deduziu defesa por excepção e também por impugnação.
Em sede exceptiva invocou a ineptidão da petição inicial com fundamento em contradição entre a causa de pedir e o pedido porquanto, tendo os autores invocado, como factos constitutivos do direito cujo reconhecimento pretendem ver reconhecido, a celebração entre as partes de um contrato de empreitada -contrato nominado, com regulamentação expressa nos art.ºs 1207.º e seguintes do Código Civil- assentam o pedido que formulam no instituto do enriquecimento sem causa, o qual tem natureza subsidiária. Tal contradição é causa da ineptidão da petição inicial, nos termos do art.º 193.º, n.º 2, al. b), acarretando a nulidade de todo o processo, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa, com a consequente absolvição da contestante da instância, nos termos do art.º 493.º, n.º 2, estes últimos preceitos do Código de Processo Civil.
Mais arguiu a excepção dilatória da ilegitimidade dos autores identificados em 2.º e 3.º lugares, por não terem intervindo na celebração do ajuizado contrato, o qual, tendo sido reduzido a escrito, mostra-se assinado apenas pela primeira autora.
Finalmente, invocou a excepção peremptória da caducidade do direito da autora, por não ter denunciado tempestivamente os alegados defeitos que, conforme resulta do por si alegado, eram visíveis e aparentes. Daí que se mostre precludido o direito a qualquer indemnização com este fundamento.
Por impugnação, deu dos factos uma versão que permite imputar à autora a culpa pelo inconclusão dos trabalhos, uma vez que, competindo-lhe obter a necessária licença para que fosse ocupado espaço da via pública, como obrigava a execução da obra contratada, nunca por tal diligenciou.
Com assento em tais factos, alegando ter efectuado os gastos que discrimina e pretendendo ser indemnizada pelo lucro esperado, formulou contra a primeira autora pedido reconvencional, pedindo a condenação desta na quantia de € 8 340,83 (oito mil trezentos e quarenta euros e oitenta e três cêntimos).
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Os autores responderam, mantendo não se verificar qualquer causa de ineptidão da petição inicial, reiterando que o pedido formulado de restituição da quantia de € 8 715,00 se baseia no facto da ré ter recebido tal montante sem ter executado o acordado numa proposta de contrato[1] subscrita pela ré e assinada pela autora A (...). Mais defendem a sua legitimidade para a causa, uma vez que são (com)proprietários do imóvel e o dinheiro entregue pertencia aos três.
Quanto à excepção da caducidade, reafirmando basear-se a acção instaurada no instituto do enriquecimento sem causa, e isto “porque não houve qualquer contrato de empreitada, mas apenas uma proposta de execução de trabalhos”, o prazo a considerar é o de 3 anos prescrito no art.º 482.º do Código Civil, prazo que ainda não decorreu. De todo o modo, a assim não se entender, dado que os defeitos foram descobertos apenas em 2009, aquando da intervenção da empresa terceira, não tinha ocorrido a caducidade do direito dos respondentes, devendo assim ser desatendidas todas as excepções invocadas.
Impugnando o alegado pela ré em suporte do pedido reconvencional formulado, concluem igualmente pela sua improcedência.
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Finda a fase dos articulados, com data de 19 de Janeiro de 2011 foi proferido despacho de aperfeiçoamento, em cujos termos foram os autores convidados a concretizar temporalmente os factos alegados em 37.º da petição inicial e juntar o A/R relativo à missiva de interpelação que alegadamente endereçaram à ré em 30 de Junho, para o que lhes foi concedido o prazo de 10 dias[2].
Decorrido tal prazo sem que os notificados tivessem dado cumprimento ao determinado, foi ordenada nova notificação nos termos da antecedente, convite a que os autores finalmente corresponderam, apresentando articulado[3] que o Tribunal admitiu[4], não sem que a ré tivesse manifestado a sua aberta oposição.
Não obstante, mediante despacho proferido a 25 de Maio de 2011, veio o Tribunal a determinar nova notificação dos demandantes para esclarecerem as discrepâncias resultantes da circunstância de, por um lado, resultar claramente dos factos alegados em sede de petição inicial terem celebrado com a ré um contrato de empreitada, que esta não cumpriu, incumprimento que fundamenta o pedido formulado, sendo que, por outro, persistem em acolher a sua pretensão ao instituto do enriquecimento sem causa, mais tendo sido convidados a concretizar temporalmente o momento em que tiveram conhecimento dos alegados defeitos na parte da obra executada[5].
Aceite tal convite, desta feita sem delongas[6], prosseguiram os autos com prolação do despacho saneador, despacho no qual foram julgadas improcedentes as invocadas excepções dilatórias da ineptidão da petição inicial e ilegitimidade dos 2.º e 3.º autores, tendo sido relegado para a sentença final o conhecimento da excepção peremptória da caducidade.
Seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, tais peças fixaram-se sem reclamação das partes.
Do decidido em sede de saneador interpôs a ré recurso, o qual não foi admitido, por prematuro.
Teve lugar audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo que da respectiva acta consta, após o que foi proferida decisão sobre a matéria de facto, respostas não reclamadas.
Na devida oportunidade foi proferida sentença que, considerando assente a celebração entre as partes de um contrato de empreitada, julgou verificada justa causa de resolução do mesmo por banda dos demandantes donos da obra termos em que, na parcial procedência da acção, condenou a Ré a pagar aos AA o montante de € 8 015,00 (oito mil e quinze euros), no mais a absolvendo, merecendo juízo de total improcedência o pedido reconvencional formulado.
Irresignada com o decidido, interpôs a Ré tempestivo recurso de apelação e, tendo apresentado as suas alegações delas extraiu as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“1.ª- Os Autores, ora Apelados, intentaram a presente acção, com o fundamento e seu objecto no enriquecimento sem causa, em que não se mostram preenchidos os pressupostos substanciais cumulativos, designadamente a natureza subsidiária desse instituto.
2.ª- Aos sucessivos convites pela Meritíssima Juiz “a quo” para o aperfeiçoamento do articulado dos Autores e para o esclarecimento das discrepâncias existentes naquele articulado, ao abrigo do disposto no artigo 508.º, nºs 1, alínea b), e 2 e 3 do Código de Processo Civil, os Autores nada disseram, quer no prazo de dez dias inicialmente conferido, quer no prazo de quinze dias posteriormente concedido, por esta via, violando o princípio do dispositivo consagrado no artigo 264.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
3.ª- Os Autores, ao não darem o devido e merecido acolhimento aos convites de aperfeiçoamento, conformaram-se com a causa de pedir na acção, circunscrita a enriquecimento sem causa, falha dos seus pressupostos cumulativos substanciais: locupletamento do património da Ré, ora Apelante; correspondente empobrecimento patrimonial dos Autores, ora Apelados; enriquecimento sem qualquer causa justificativa; e a não existência de outro recurso ou meio para o ressarcimento.
4.ª- Verificada que se mostrava a revelia dos Autores, ora Apelados, reconhecidas nos autos, a Meritíssima Juiz deveria ter conhecido do mérito da causa, no despacho saneador, a total improcedência do pedido, pelo facto de os autos já então conterem os elementos necessários para uma correcta decisão, assim, se mostrando violado o disposto no artigo 512.º, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil”.
Com tais fundamento, pretendem seja a decisão proferida julgada inexistente, devendo ser substituída por uma outra que julgue totalmente improcedente o pedido formulado pelos AA.
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Pese embora a atribulada, e mesmo não muito ortodoxa, tramitação dos presentes autos, de que dá conta o extenso relatório que antecede, é sabido que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso, podendo mesmo ocorrer que, por esta via, resulte tacitamente restringido o seu objecto inicial (cf. art.ºs 684.º n.º 3 e 685.º-A do CPC), o que se verifica, designadamente, quando o recorrente, discorrendo embora no corpo das alegações sobre determinadas questões cuja resolução pelo Tribunal “a quo” mereceu a sua discordância, omite nas conclusões referência às mesmas.
Aquando da interposição do recurso, e à guisa de intróito, logo a apelante esclareceu que pretendia “dar a conhecer as discrepâncias, para a sua posterior apreciação e decisão, existentes na fase instrutória e interlocutória, que antecederam a prolação da, aliás, douta sentença recorrida. As aludidas discrepâncias vieram a ter reflexos na aplicação do direito que ao caso, no modesto entendimento da Apelante, caberia em desfavor dos Apelados”.
No entanto, apesar dos considerandos expendidos nas doutas alegações quanto à ilegalidade dos despachos proferidos na fase prévia ao saneamento do processo, pelos motivos ali explanados, a verdade é que, a final, a apelante questiona apenas que os autos tenham prosseguido após os AA, em seu entender, não terem correspondido aos sucessivos convites ao aperfeiçoamento que lhe foram dirigidos, defendendo que a acção deveria ter sido de imediato julgada improcedente, dadas as deficiências e insuficiências, não supridas, de que padecia a petição inicial. Daí apontar como dispositivo legal violado o art.º 510.º, n.º 1, al. b) do CPC[7]. Com efeito, se bem apreendemos o raciocínio desenvolvido pela apelante -e apenas neste contexto se entende a referência, contida na parte final da conclusão 2.ª, à violação do princípio do dispositivo, infracção imputada ao Tribunal “a quo”- não tendo os demandantes esclarecido os aspectos assinalados nos despachos em causa tendo em vista colmatar as deficiências da petição inicial, insistindo e persistindo em alocar a sua pretensão ao instituto do enriquecimento sem causa, sendo certo que não se encontravam alegados os factos bastantes para que o pedido fosse viável à luz de tal enquadramento, deveria a acção ter sido de imediato julgada improcedente.
Assim circunscrito o objecto do recurso, constituem questões a decidir:
i. indagar da causa de pedir invocada pelos demandantes/apelados;
ii. determinar se a petição inicial padecia de deficiências que, não rectificadas, impunham a formulação de um juízo de improcedência em sede de prolação de despacho saneador.
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II. Fundamentação
Importando à decisão a proferir quanto se deixou relatado em I., breves considerandos a propósito dos conceitos de causa de pedir e pedido acolhidos na nossa lei processual civil.
Dispondo para os requisitos da petição inicial, o art.º 467.º do CPC (diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem) impõe ao autor que “exponha os factos e a razões de direito que servem de fundamento à acção” e “formule o pedido” (vide als. d) e e) do n.º 1.
Na definição legal “pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a acção” (vide n.º 3 do art.º 498.º).
O pedido surge assim como pretensão material, “enquanto afirmação de um direito subjectivo ou de um interesse juridicamente relevante” e como pretensão processual “traduz-se na identificação do meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor”[8].
Na lição do prof. Anselmo de Castro, “Por pedido, porém, tanto se pode entender as providências concedidas pelo juiz, através das quais é actuada determinada forma de tutela jurídica (...), ou seja, a providência que se pretende obter com a acção [objecto imediato]; como os meios através dos quais se obtém a satisfação do interesse à tutela, ou seja, a consequência jurídica material que se pede ao Tribunal para ser reconhecida [objecto mediato]”[9].
Ponderando este autor que “o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendam alcançar”, conclui que “o objecto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão”[10].
Determinando a formulação do pedido o desenrolar da instância e circunscrevendo o âmbito da decisão final[11] -em linha com a exigência, decorrente do princípio do dispositivo, de fazer recair sobre os interessados que recorrem a juízo o ónus de delimitação do objecto da lide- mais importante que a qualificação jurídica que à pretensão seja dada pelo autor, deve atender-se antes ao efeito prático que com a demanda pretende alcançar, que é afinal o que releva para determinar o conteúdo da decisão final e aferir das excepções de litispendência e caso julgado.
Numa outra formulação “o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção, com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no art. 664.º, 1.ª parte, do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório”.[12]
Mas o autor que se dirija ao Tribunal para obter determinada providência há-de ainda expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida” (vide n.º 4 do art.º 498.º).
É incontornável ter o nosso legislador optado pela denominada teoria da substanciação[13], segundo a qual “a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros factos alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objecto do processo”[14]. Tal opção impõe ao autor que alegue os factos de onde deriva a sua pretensão.
A causa de pedir é assim “integrada pelo facto ou factos produtores do efeito jurídico pretendido, e não deve confundir-se com a valoração jurídica atribuída pelo autor a qual, de todo o modo, não é vinculativa para o tribunal, devido ao princípio, consignado no art.º 664.º, segundo o qual o tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável”[15].
A definição constante do n.º 4 do art.º 498.º parece todavia apontar para as normas de direito material que estatuem o efeito pretendido, havendo assim que alegar os factos contidos na respectiva previsão. No entanto, como facilmente se apreende, ocorre frequentemente o efeito jurídico corresponder à estatuição de diversas disposições substantivas, aspecto a atender quando se faça coincidir a identificação da causa de pedir com o facto constitutivo da situação jurídica que o autor pretende fazer valer em juízo. Não obstante, a qualificação jurídica desse facto é sempre externa ao conceito de causa de pedir[16].
Feito este excurso pela doutrina encontramo-nos em condições de retornar ao caso que nos ocupa.
Na petição inicial os autores[17] alegaram, para lá da titularidade do direito de propriedade sobre a casa sita na Rua (...), em Coimbra, e o exercício, por banda da ré, da actividade de construção civil, ainda que:
“3.º- No âmbito da sua suposta actividade, a R. apresentou à primeira A., a 20 de Fevereiro de 2008, uma proposta de execução de trabalhos de reabilitação e remodelação do interior do edifício identificado no artigo 1.º.
4.º- Tal proposta, aceite pelos AA. e assinada pela primeira, visava, em três fases, remodelar a instalação sanitária do segundo andar, a cozinha do rés-do-chão e o tratamento das madeiras do tecto da cave (cfr. documento n.º 1).
5.º- Tendo sido estabelecido que os trabalhos se iniciariam na segunda quinzena de Março de 2008, com o prazo de execução de 35 (trinta e cinco) dias úteis, sendo 15 (quinze) para a remodelação das instalações sanitárias, e 20 (vinte) para a remodelação da cozinha e o tratamento do tecto da cave (cfr. doc. n.º 1).
6.º- Tendo sido estipulado o preço de €.: 12900,00 (doze mil e novecentos euros), acrescido de I.V.A. à taxa de 5% (cfr. doc. n.º 1).
(…) 9.º- Conforme referido supra, no artigo 4.º desta petição, os AA. aceitaram a proposta formulada pela R., considerando-se celebrado o contrato, de acordo com os pontos nela constantes.”.
Conforme resulta claro da alegação, alegaram os AA como causa de pedir, ou seja, como factos constitutivos do seu direito à restituição da quantia peticionada, a celebração com a ré de um contrato, correctamente qualificado como de empreitada na decisão recorrida, na esteira, aliás, do propugnado pela agora apelante na sua contestação. Por assim ser, radica num claro erro de qualificação jurídica a invocação, pelos AA, do instituto do enriquecimento sem causa para fundamentar o seu direito à restituição da quantia entregue -efeito jurídico pretendido- que a previsão do incumprimento contratual e consequente resolução claramente estatui. Acresce que os factos atinentes ao incumprimento contratual por banda da demandada, incluindo o envio das duas missivas, a primeira contendo a interpelação admonitória, a derradeira declarando resolvido o contrato, foram factos claramente invocados pelos demandantes, tendo tido a ré a oportunidade de os contraditar, como fez de modo esclarecido e eficaz, sem embargo de não ter logrado fazer prova dos fundamentos da defesa. Finalmente, não deixou a Mm.ª juíza de dar a conhecer o seu entendimento jurídico sobre a questão, assim dando integral cumprimento ao disposto no n.º 3 do art.º 3.º do CPC.
Deste modo, circunscrevendo-se os convites ao aperfeiçoamento à causa de pedir invocada, e que não brigava com o pedido formulado, sendo o Tribunal livre na qualificação jurídica dos factos -e só os alegados pelos AA foram considerados, com total observância do disposto nos art.ºs 264.º, n.º 1 e 664.º, e também do contraditório- as decisões recorridas não merecem a censura que lhes foi dirigida. Ademais, há que ter presente que a revisão da nossa lei processual civil foi claramente enformada pela preocupação de fazer prevalecer a providência de mérito em preterição de uma decisão proferida em aplicação de normas adjectivas. Tal princípio surge claramente evidenciado no reforço do princípio do inquisitório, dos poderes de direcção do processo pelo juiz e consagração lata do princípio da cooperação, com atenuação clara do princípio da preclusão, neste âmbito se inscrevendo claramente a prolação do despacho de aperfeiçoamento. E quanto a este, a verdade é que nada na lei obsta a que o Tribunal, dando conta de que num prévio despacho não assinalou todas as deficiências de que padece determinado articulado, profira novo despacho, em reforço do antecedente, determinando que seja prestado um outro qualquer esclarecimento, tal como ocorreu no caso vertente, não sendo rigorosa a afirmação de que a parte não correspondeu aos convites formulados no que respeita à exposição e especificação dos factos, sendo certo que apenas estes interessam para este efeito.
Em suma, mantendo-se os despachos em crise e não se verificando que a petição inicial apresentasse deficiência, na sua vertente de contradição entre a causa de pedir e o pedido -fundamento de ineptidão ao fim e ao cabo invocado pela recorrente- que impusesse a formulação de um juízo de improcedência, subsiste, em consequência, a sentença a final proferida.
                                                  *
III. Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível deste tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela ré D (...)., mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
                                                    *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


    [1] Em negrito no texto do articulado.
[2] É o seguinte o teor integral do despacho em causa:
“Há que determinar agora, antes de proferir despacho saneador, o aperfeiçoamento dos articulados.
Assim, os AA., no seu art.º. 37, da petição inicial, mencionam ter tentado contactar a R. para que retomasse os trabalhos, não tendo esta dado qualquer sinal de vida.
Todavia, os AA. não concretizaram temporalmente esses factos, assim como não especificaram por que meio foram tentados os contactos com a Ré e por que motivos esta não retomou os trabalhos.
Por outro lado, os AA. mencionam, no seu art.º. 27, da p.i., terem enviado uma missiva registada, com aviso de recepção, à R., mas apenas juntam cópia da carta, esquecendo-se de anexar cópia do aviso de recepção.
Pelo exposto, notifique os AA. para, nos termos do art.º. 508, nº. 1, al. b), e nºs. 2 e 3, do Código de Processo Civil, em 10 dias, concretizar melhor a matéria de facto alegada e supra indicada, indicando especificamente a materialidade supra descrita e juntar a cópia do aviso de recepção concernente à carta mencionada no art.º. 27, da p.i.”
[3] Com o seguinte exacto conteúdo:
“1.º As sucessivas e constantes tentativas de contacto dos AA., nomeadamente A (...) e B (...), foram efectuadas por via telefónica, a partir do momento em que a R. abandonou os trabalhos – 25/7/2008 - tendo se prolongado por todo o mês de Agosto e início de Setembro desse ano.
2.º Desconhecem os AA. qual o motivo por que a R. não retomou os trabalhos, pois o representante legal desta não atendia as chamadas telefónicas efectuadas por aqueles.
3.º No que concerne ao documento mencionado no artigo 27.º da P.I., vem ora juntar-se o documento comprovativo do registo e aviso de recepção da missiva remetida (doc. 1), o qual andava perdido e só agora foi descoberto pelos AA., razão pela qual este requerimento apenas é apresentado a juízo na presente data.”
[4] Justificando a admissão com a seguinte argumentação: “(…) Ora, tendo em conta que o despacho de aperfeiçoamento proferido nos autos tem por base um “poder-dever” ou um poder funcional do juiz, de modo alcançar-se o bom julgamento da causa (v. art.º. 508, nº. 3, do CPC), entendemos, salvo melhor opinião, que o prazo concedido à parte para aperfeiçoar o seu articulado é, "in casu", meramente ordenador e não peremptório/processual.
Assim sendo, o atraso dos AA. no aperfeiçoamento que vieram anexar aos autos fora do prazo de 10 dias não preclude o direito, que aos mesmos é conferido, para aperfeiçoarem os seus articulados.
Donde, mostra-se ainda tempestiva essa apresentação, que será tida em conta, a que acresce a circunstância de os mesmos terem explicado que naquele momento conseguiram descobrir o documento que faltava juntar e que tinham feito alusão na sua petição inicial.
Por outro lado, a admissão do aperfeiçoamento efectuado pelos AA segue um dos princípios orientadores actuais do processo civil
consubstanciado na primazia da verdade material sobre a verdade formal.
Assim sendo, aceita-se o requerimento de aperfeiçoamento da p.i.”.
[5] Sendo o seguinte o exacto conteúdo do despacho em causa:
Sendo o seguinte o exacto conteúdo do despacho em causa:
“No seu articulado de resposta à matéria de carácter exceptivo, os AA. insistem em considerar que a presente demanda se alicerça no instituto de enriquecimento sem causa, quando, na sua petição inicial, consignou que os demandantes (AA.) aceitaram a proposta formulada pela Ré (referente a um contrato de empreitada), considerando-se celebrado o contrato, de acordo com os pontos nela constantes.
Nesse seguimento, os AA. efectuaram um pagamento à R. e esta iniciou a primeira fase das obras a 12 de Maio de 2008. Do exposto, resulta para nós, salvo o devido respeito por opinião oposta, que a acção se funda em responsabilidade contratual, imputando-se o comportamento culposo de não "terminus" das obras à e, por via disso, se formula um pedido de indemnização pela falha no contrato
Assim, deverão os AA. melhor esclarecer as discrepâncias antes apresentadas e situar temporalmente os defeitos descobertos na obra em 2009, por referência ao mês
Prazo: 15 dias”.
[6] Ao qual os AA corresponderam com o requerimento do seguinte teor: “ A (...), e restantes AA. nos presentes autos, tendo sido notificados para o efeito, vêm informar V. Exa. de que os defeitos descobertos na obra, pelo novo empreiteiro, foram os referidos no artigos 42 e 43 da P.I., ou seja, o assentamento de azulejos de um modo
assimétrico na casa de banho e a edificação da respectiva parede com pedaços partidos da placa que anteriormente a revestia. Constatou-se também a canalização não se encontrava bem instalada.
A data em que foram detectados tais defeitos ronda os meses de Setembro/Outubro de 2009, altura em que o empreiteiro posteriormente contratado iniciou os seus trabalhos.”
[7] Sendo certo que não é admissível recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão de matéria que lhe cumpra conhecer, como expresso no n.º 4 do mesmo art.º 510.º.
[8] Abrantes Geraldes, in “Temas da reforma do processo civil”, I vol, 2.ª ed. revista e ampliada, pág. 119 e, em sentido idêntico, aludindo a uma determinação material e uma determinação processual da pretensão, Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil - conceito e princípios gerais”, 2.ª ed. pág. 56. 
[9] Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, págs. 201 e seguintes.
[10] Ob. cit., pág. 203.
[11] Na formulação do Prof. Anselmo de Castro, in ob. e loc. citados, o pedido aparece “como o círculo dentro do qual o Tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir”.
[12] Do aresto da Rel. de Lisboa de 6/1/2010, proferido no âmbito do processo n.º 405/07.6 TVLSB.L1-7, sendo Relator o Ex.mº Sr. Desembargador Tomes Gomes, disponível em www.dgsi.pt
[13] Por oposição à teoria da individuação, segundo a qual bastaria ao autor indicar o pedido, cabendo ao juiz esgotar na sentença todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor
[14] Prof. Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 57.
[15] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 194.
[16] Assim conclui Lebre de Freitas, na obra que vimos citando, a págs. 61.
[17] Não se ocupa este Tribunal da questão da legitimidade activa do 2.º e 3.º demandantes, por subtraída ao objecto do recurso. Todavia, sempre se dirá que, atenta a causa de pedir acolhida na sentença recorrida- celebração do contrato de empreitada, formalizado pelo escrito junto com a petição inicial- considerando a que pelo mesmo apenas a autora mulher se vinculou, daqui resultaria, tal qual a ré excepcionou, a ilegitimidade activa dos restantes autores, não assegurada pelo facto, para este efeito absolutamente irrelevante, de serem (também) comproprietários do imóvel, e ainda aquele outro, tardiamente alegado, de lhes pertencer a quantia entregue à demandada.