Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
140/12.3TAFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ASSISTENTE
REQUERIMENTO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
TIPO SUBJECTIVO
ILÍCITO CRIMINAL
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 287.º, N.ºS 1 E 2, E 283.º, N.º 3, ALÍNEAS B) E C), DO CPP
Sumário: Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução determinados deveres, entre eles, o de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela descrita conduta proibida.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito dos autos de Instrução n.º 140/12.3TAFVN do Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público finda a fase de inquérito, requereu a assistente A..., S.A. a instrução, com vista à pronúncia do arguido B... «senão pela prática consumada de um crime de burla, pelo menos na forma tentada».

2. Requerimento, esse, que, por inadmissibilidade legal, veio a ser rejeitado por despacho judicial de 20.02.2014.

3. Inconformada com a decisão recorreu a assistente A..., S.A., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. É patente que, dos sinais dos autos, resulta a prática de um crime de burla designadamente na forma tentada.
2. O comportamento do arguido demonstra a intenção de querer efectuar um seguro, “para safar um amigo”, ao arrepio das normas internas da ora recorrente, acabando por ter existido um sinistro que deu azo a que, por força de danos corporais causados a terceiros, viesse o Fundo de Garantia Automóvel a pagar a respectiva indemnização.
3. Trata-se de um crime público que o Ministério Público decidiu não fazer prosseguir com o pitoresco argumento de não existir engano sobre a ofendida, ora recorrente.
4. Com nítido prejuízo da verdade material sobre a verdade formal, entende a ora recorrente que o requerimento de abertura de instrução contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido.
5. Da leitura exegética do artigo 283.º, n.º 3, al. b), não resulta uma narração acusatória de cabal exigência, possibilitando-se uma narração sintética, bem como a eventual possibilidade de narração do lugar, do tempo e da motivação da prática dos factos.
6. Concatenado esse preceito com o requerimento de instrução contraditória, não se vislumbra uma nulidade tão gravosa e insanável como a que sustenta o despacho recorrido, tanto mais que, na sua articulação com o disposto no art. 287.º, n.º 2 do C.P.P., tiveram-se por cumpridas todas as suas estatuições, designadamente os meios de prova que não foram considerados no inquérito e os factos que se esperavam provar.
7. Não tendo admitido a abertura da instrução, o douto despacho recorrido violou o disposto nos arts. 287º, nº 2 e 283º, n.º 3, al. b) do C.P.P., devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro que admita a requerida abertura da instrução.

Termos em que deve ser revogado “in totum” o douto despacho que não admitiu a abertura da instrução, dando-se provimento ao presente recurso,
só assim se fazendo manifesta, sã e verdadeira
JUSTIÇA!

4. Por despacho exarado a fls. 298 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

1. As normas constantes do art. 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. b) e c) do C.P.P. impõem que o requerimento de abertura de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
2. O requerimento apresentado nos autos pela Assistente não contém essa narração dos factos, nem sequer de forma sintética.
3. A consequência dessa omissão é a nulidade do requerimento e a consequente inadmissibilidade legal da instrução;
4. Razão pela qual o Tribunal a quo rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente.
5. Tal decisão não violou qualquer norma legal, pelo que não merece qualquer censura, devendo ser mantida nos seus precisos termos.

Assim farão, V. Exas. a esperada e costumada JUSTIÇA!

6. Também o arguido respondeu ao recurso, concluindo:

1.Tendo a assistente optado, pelo requerimento de abertura de instrução, como forma de reagir ao despacho de arquivamento do inquérito, não podemos deixar de chamar à colação, o ensinamento ínsito à douta fundamentação do aresto proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, em 27/11/2013, em que foi relator o Venerando Desembargador Abílio Ramalho, recordando que o requerimento de abertura de instrução (rejeitado) estava “onerado à rigorosa observância das formalidades postuladas pelo n.º 2 do 287.º normativo do C.P. Penal, enunciando, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, bem como, sendo caso disso, a indicação dos actos de instrução que pretenda que o Juiz (JIC) leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e os factos concretos que através de uns e de outros se espera provar, necessariamente ilustrativos dos elementos constitutivos, objectivos e subjectivos – com descrição do dolo ou negligência (nos casos em que a pertinente figura-de-delito contempla tal nexo de imputação subectiva, bem entendido!) – de determinada/imputada infracção criminal, que haverá, outrossim, que expressamente identificar, bem como da enunciação da concernente liberdade de determinação do(s) agente(s) e do pessoal conhecimento/consciência da respectiva ilicitude comportamental, ou seja, da culpa – em sentido estrito -, precisando (se tal for revelado no inquérito) as circunstâncias de tempo, lugar e modo da comissão infraccional, a motivação da respectiva realização, o grau comparticipativo do agente (autoria – imediata/material, mediata/moral ou co-autoria – ou cumplicidade), e, ainda, quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção aplicável, …tudo em conformidade com o estatuído no art. 283.º n.º 3, als. b) e c), do mesmo compêndio legal, para que remete o n.º 2 do citado preceito 287.º, [com referência ao art.º 1º, al. a)], sob pena de nulidade do próprio acto, naquele outro dispositivo expressamente cominada.
2. Tal actividade processual do assistente haverá, pois, que materializar uma verdadeira acusação – alternativa ao arquivamento decidido pelo M.ºP.º
3. Regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal enunciação factual tem subjacentes duas ordens-de-razão: uma, inerente ao objectivo imediato da instrução, a comprovação judicial da pretensa indiciação – que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o/arguido/s se possa/m defender, se tem que reportar à imputação de factos concretos; outra, implícita a uma finalidade mediata, mas essencial – no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento -, a delimitação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória, com a correspondente vinculação temática do tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer respectivo/eventual alargamento arbitrário, constituindo uma garantia de defesa do arguido, lhe possibilita a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
4. Se o assistente não realizar devidamente tal ónus processual, qualquer eventual descrição factual que, complementarmente das lacunas observadas, porventura se viesse a fazer numa hipotética pronúncia, redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento, inexoravelmente ferida da nulidade cominada no art.º 309.º do CPP.
5. Por conseguinte, a omissão narrativa dos concretos factos fundamentadores da aplicação ao sujeito-arguido duma pena ou duma medida de segurança, geradora de verdadeira ineptidão … e nulidade do requerimento de instrução, tornaria juridicamente impossível a realização da fase instrutória, por falta de objecto, e inúteis, e como tal proibidos, quaisquer actos instrutórios que ainda assim se viessem a realizar, (cfr. art.º 130.º do actual C.P.Civil, aprovado pela citada Lei n.º 41/2013, de 26/06 – equivalente ao 137.º do CPC de 1961 – aplicável ao processo criminal por força do normativo 4.º do CPP)”.
6. Decorre à saciedade dos autos que a recorrente não cumpriu com a narração dos concretos factos pela qual o arguido devia ser pronunciado nem com a indicação de quaisquer disposições legais aplicáveis, ou subsumíveis a um tipo legal de crime (absolutamente nada é referido); não indicou que provas poderiam fundamentar a pronúncia, apenas requereu atos instrutórios (de duvidosa necessidade, relevo e utilidade), mas não indicou as provas que possam vir a ser utilizadas em sede de julgamento nem que provas impunham decisão diversa do arquivamento.
7. O requerimento de abertura de instrução constante nos autos é ainda, TOTALMENTE omisso à delimitação do próprio elemento subjectivo e normatividade violada pelo arguido e, assim sendo, a finalidade pretendida pela assistente está “esvaziada de sentido prático-jurídico … incontornavelmente votada ao malogro, e, logo, à inexequibilidade, pela impossibilidade de realização do visado/legal desiderato de comprovação judicial da pretensa indiciação da dolosa e voluntária autoria comissiva de concreto/demarcado, típico, ilícito e culposo acto comportamental – criminal de qualquer individualizado cidadão, e à consequente determinação da pessoal sujeição a referente julgamento, nos seus precisos limites …

Termos em que, Venerandos Desembargadores, em conformidade com o exposto e requerido e pelo mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o recurso interposto pela assistente improceder, mantendo-se a decisão proferida pelo tribunal a quo de rejeitar o requerimento de abertura de instrução como se mostra de, justiça!

7. Remetidos as autos à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, no qual, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância, se pronunciou no sentido de o recurso não merecer provimento.

8. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nenhum dos sujeitos processuais interessados reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
                   De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412º do CPP, e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR. I – A Série, de 28.12.1995].
                    No caso concreto tem este tribunal de se pronunciar sobre se a decisão recorrida, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, violou os artigos 287º, n.º 2 e 283º, n.º 3, al. b) do CPP.

2. A decisão recorrida
Ficou a constar do despacho recorrido:
«Do Requerimento de Abertura de Instrução:
Inconformada com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público (cfr. fls. 218 a 225) veio a Assistente requerer a abertura de instrução, nos termos constantes de fls. 236 a 243, concluindo pela prática, pelo arguido, de um crime de burla.
Apreciando.
Nos termos do disposto no artigo 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal é aplicável ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente o disposto no artigo 283º nº 3 alínea b) do mesmo diploma, de acordo com o qual, sob pena de nulidade, este requerimento deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Com efeito, “na decorrência da estrutura acusatória do processo penal o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente terá de consubstanciar, materialmente, uma acusação, com a narração precisa dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e com a indicação das disposições legais aplicáveis” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 2010, disponível in www.dgsi.pt).
Trata-se, na verdade, de uma nulidade que não é passível de sanação, designadamente, por meio de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução – vide, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (disponível in www.dgsi.pt), nos termos do qual se fixou jurisprudência no sentido de que “não há lugar a convite dirigido ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
É, portanto, legalmente inadmissível a instrução requerida pelo assistente se este não descrever no requerimento os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido.
Ora, de acordo com o estatuído no n.º 1 do artigo 217º do Código Penal, sob a epígrafe “Burla”, quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Acresce que, nos termos do disposto no artigo 13º do Código Penal, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência; agindo com dolo quem representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar (dolo directo), ou actuar representando a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário) ou ainda quem, representando a realização de facto que preenche um tipo de crime como consequência possível da sua conduta, actuar conformando-se com ela (dolo eventual) – cfr. artigo 14º do Código Penal.
Deste modo, apenas pode ser condenado pela prática de um ilícito o agente que preencha os seus elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, pelo que, apenas se pode imputar ao arguido a prática de um crime de burla se este, de forma livre e com o propósito concretizado, tiver determinado outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, actuando com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, bem sabendo que com a sua actuação causava prejuízo e que o benefício patrimonial obtido não lhe é devido, sendo a sua conduta proibida e punida por lei.
Ora, compulsado o requerimento de instrução, verifica-se que a assistente não indica quaisquer factos que consubstanciem os elementos objectivos e subjectivos do crime que imputa ao arguido, sendo o requerimento de abertura de instrução totalmente omisso no que a factos diz respeito, limitando-se a assistente a esgrimir argumentos que suportam o entendimento pela mesma propugnado de que não deveria ter sido proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento.
Deste modo, não se encontrando contidos no requerimento de abertura de instrução os elementos factuais integradores dos elementos objecto subjectivo do tipo de ilícito, bem como quanto à consciência da ilicitude por parte do arguido, não se mostra cumprido o disposto na lei quanto à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
Verifica-se, pois que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente não contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, nos termos previstos no disposto nos artigos 283º nº 3 alínea b) e 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, estando pois ferido de nulidade insanável que acarreta a rejeição do mesmo.
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.

Custas pela assistente.

Notifique».

3. Apreciando
Defende o recorrente que o despacho recorrido, ao ter rejeitado o requerimento de abertura da instrução, violou o disposto nos artigos 287º, nº 2 e 283º, n.º 3, al. b) do C.P.P.
Vejamos, pois.
Que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a uma forma especial resulta claro da primeira parte do n.º 2 do artigo 287º do CPP.
Não obstante, deve obedecer a vários requisitos de conteúdo que vem enunciados na dita norma, a saber:
- a enunciação “em súmula” das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação;
- a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende ver levados a cabo, bem como dos meios de prova que não hajam sido considerados no inquérito e ainda dos factos que, através de uns e de outros, o requerente espera provar.
Sendo o requerimento apresentado pelo assistente tem o mesmo, igualmente, de observar o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do CPP.
Donde, com propriedade, se pode afirmar que o requerimento do assistente deve conformar materialmente uma acusação [artigo 287º, n.º 2, parte final], impondo-se-lhe, sob pena de nulidade, que contemple os elementos enunciados nas referidas alíneas do n.º 3 do citado artigo 283º, isto é “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e, bem assim, “A indicação das disposições legais aplicáveis”.
O requerimento de abertura de instrução vale, neste caso, como uma verdadeira acusação, sendo através dele que se define o thema probandum em termos de não poder o tribunal, sob pena de nulidade, vir a pronunciar o arguido por factos diferentes daqueles que constam do mesmo, uma vez que tal se traduziria numa alteração substancial, aspecto que encontra justificação, desde logo, no direito de defesa, o qual para ser exercido de forma eficaz, implica o conhecimento concreto e preciso daquilo que se lhe imputa e a que título, isto quer ao nível dos factos quer em sede do respectivo enquadramento jurídico.
Na verdade, a estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa leva a que o tribunal esteja vinculado pelo “alegado” por quem requer a instrução, sem embargo dos poderes de investigação do juiz, que podendo praticar outras diligências probatórias, tendo em conta a indicação constante do respectivo requerimento [princípio da investigação oficiosa], está, nessa actividade, sujeito aos limites do objecto da instrução fixados no requerimento de abertura de tal fase processual no caso de arquivamento do inquérito [artigo 303º do CPP].

Na situação em apreço, dúvidas não subsistem que a assistente/recorrrente não concedeu autonomia à vertente da “acusação”, limitando-se a salientar as suas divergências relativamente à apreciação levada a efeito no despacho de arquivamento, fornecendo a sua «interpretação» dos factos, indicando as diligências de prova que no seu entender deveriam ter sido realizadas e, bem assim, os actos de instrução que pretendia ver produzidos.
De facto, a metodologia seguida leva a que não se assista a uma verdadeira imputação de factos, mas antes a uma rebelião contra o que a assistente considera ter sido uma errada opção por parte do titular do inquérito, à qual contrapõe, invocando os elementos probatórios constantes dos autos e a prova que deveria ter sido produzida, a sua, evidenciando, assim, a dita divergência.
Sem dúvida que se trata de uma vertente importante e obrigatória que deve integrar o requerimento de abertura de instrução, mas não substitui a “acusação” exigível ao assistente sempre que, na sequência do arquivamento do inquérito, pretende a pronúncia do arguido.
Tão pouco reside o problema numa deficiente arrumação, pois que é essencial que o arguido tenha um correcto conhecimento do que realmente lhe vem imputado, o que passa pela concretização precisa e concisa quer dos factos - objectivos e subjectivos conformadores do ilícito típico em causa - quer do direito, o que o requerimento, manifestamente, não satisfaz, sendo omisso, designadamente no que concerne à imputação dos elementos intelectual e volitivo do dolo, traduzidos, respectivamente na representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes, bem como na consciência de que esse facto é censurável e na vontade de realização do mesmo.
É que não existem presunções de dolo e, assim sendo, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir de circunstâncias externas da acção concreta. Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico – penal lesado pela conduta proibida.
Como ensina Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142].
Em idêntico sentido refere o acórdão do TRC de 30.09.2009 [cf. proc. n.º 910/08.7TAVIS.C1] “São elementos subjectivos do crime, com referência ao elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo do ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.
Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)”.
Ainda a propósito do que se vem de dizer, por elucidativo, transcreve-se a seguinte passagem do acórdão do TRG de 22.11.2010 [proc. n.º 114709.GFRPT.G1]: “No que respeita à liberdade de decisão/acção aditada na decisão recorrida cumpre entender tratar-se de um facto novo não constante da acusação.
(…)
Em termos dogmático – penais, a liberdade de decisão/acção constitui elemento integrante do tipo de culpa ou da culpa tout court, sendo que a sua falta obsta à existência do crime.
Dito de outro modo, sendo uma tal liberdade pressuposto da punibilidade juspenal, sem aquela inexiste crime na medida em que considera-se “crime” o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais” – cf. alínea a) do artigo 1º do Código de Processo Penal.
(…)
Vistos assim os autos, o apontado aditamento relativo à liberdade da arguida/recorrente configura-se como uma alteração substancial dos factos, atento o disposto na alínea f) do artigo 1º do Código de Processo Penal: o que está em causa é afirmar um crime onde ele não existia. Ao aditar que a arguida agiu de forma “livre”, a decisão recorrida acaba por concluir o cometimento pela arguida de um crime, o qual inexistia face ao que constava da acusação”.

Dito isto, é evidente que a sanação dos identificados vícios nunca poderia vir a ocorrer por acção subsequente do juiz, desde logo porque a introdução ex novo dos diferentes elementos do dolo traduzem uma verdadeira alteração substancial, na medida em que se converteria o que não era crime em crime.
Como impressivamente vem referido no acórdão do STJ de 18.06.2009 [proc. n.º 159708.9PQLSB.S1], numa situação em que na acusação não vinham descritos factos suficientes tendentes à condenação como reincidente, “Em caso de insuficiência factual da acusação, se o tribunal a quo alargar a investigação para além dos limites dos factos traçados por aquela estará a violar, além da garantia constitucional consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da CRP, o art.º 339.º, n.º 4, do CPP e a tornar nula a decisão de procedência que vier a firmar, nos termos dos arts. 359.º e 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código. Assim, nestes casos, é pois, na acusação que radica de forma processualmente relevante a insuficiência factual, quer para o completo e inequívoco preenchimento dos pressupostos formais da reincidência, quer para a integração do respectivo pressuposto material. E a consequência dessa insuficiência é a de ter de ser julgada manifestamente infundada (…)”.

É claro que, como já acima antecipamos, tudo o que se afirmou passa por uma correcta interpretação da real dimensão dos princípios da acusação, da vinculação temática e, não menos importante, do direito de defesa.
A acusação “é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado … É um pressuposto indispensável da fase do julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento” – [cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, pág. 118].
Já sobre o princípio da acusação discorre o Ilustre Professor “limita (…) o objecto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada como garantia da imparcialidade do tribunal e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objecto da acusação, não tendo qualquer “responsabilidade” pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que a partir da acusação sabe de que é que se tem de defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspectivas dos mesmos factos para os quais não estruturou a defesa” – [cf. ob. cit., I, pág. 68].

Impõe-se, assim, concluir que, perante as deficiências apresentadas pelo requerimento de abertura de instrução – insusceptíveis, como vimos, de, sem ofensa dos supra enunciados princípios, serem sanadas, não sendo caso de «convite ao aperfeiçoamento» [cf. acórdão do TC n.º 389/2005, in DR, II Série, de 19.10.2005; acórdão do STJ n.º 7/2005, DR, I Série, de 04.11.2005] -, não merece censura o tribunal a quo ao ter decidido no sentido da sua rejeição por inadmissibilidade legal, considerando enfermar o requerimento apresentado da nulidade prevista no artigo 283º, nº 3, al. b) do CPP [cf. artigo 287º, nº 2], ao abrigo do disposto no artigo 287º, n.º 3 do mesmo diploma legal.
É que, convém não olvidar, a “inadmissibilidade legal”, causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução, para além dos fundamentos mais óbvios – vg. ilegitimidade do requerente; decorrente da forma do processo não admitir tal fase processual – abrange os casos em que a instrução é inexequível por falta de objecto, o que ocorre quando, perante o respectivo requerimento, seja de concluir não conter, o mesmo, factualidade suficiente [realidade que não se compadece com uma visão simplista do que isso seja, tendo, antes, de ser visto à luz dos princípios que conformam a matéria] que permita a condenação do arguido em julgamento.

Nenhuma ofensa, pois, aos artigos 287º, n.º 2 e 283º, nº 3, al. b) do CPP encerra o despacho recorrido.

III. Decisão
Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.
Condena-se a recorrente em 3 [três] Ucs de taxa de justiça.

(Maria José Nogueira - relatora)
(Isabel Valongo - adjunta)