Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
754/23.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZOS DE FAMÍLIA E MENORES
AÇÃO POR REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS EM PROCESSO DE INVENTÁRIO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1093.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 117.º, ALÍNEA A), 122.º, N.º 2, E 130.º, N.º 1, DA LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO
Sumário: Os juízos de família e menores não são competentes para tramitar acções comuns instauradas na sequência da remessa, operada em processo de inventario, prevista no art. 1093.º, n.º 1, do C.P.C..
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra 
 
             I – RELATÓRIO

 AA instaurou no Juízo Central Cível de Leiria acção comum contra BB, pedindo, com base nos fundamentos melhor discriminados no articulado inicial, que:

  a) O réu seja condenado a reconhecer que a unidade predial composta pelo prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...96 e pelo prédio rústico descrito na mesma conservatória sob o nº...95 faz parte integrante do património comum do ex-casal formado por autora e réu;       

b) Subsidiariamente, que o réu seja condenado a reconhecer que tais prédios constituem uma unidade predial com um valor de mercado não inferior a 250.000,00 €, pelo que por via aquisitiva de acessão, o referido ex-casal adquiriu o direito de propriedade dos mencionados imóveis.             


  ****

 O réu contestou, impugnando parte da factualidade alegada pela autora e peticionando, a título reconvencional, que a mesma seja condenada a

1 - Reconhecer o ora réu é legítimo possuidor e proprietário dos prédios identificado nos artigos 7º e 8º da contestação e 10º da p.i.;

2 - Reconhecer que o ora réu adquiriu os prédios supra referidos por usucapião, se outro título não tivesse.

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A autora apresentou réplica, contestando o pedido reconvencional e concluindo no sentido da procedência da acção. 


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      Em 3/7/2023, foi proferido despacho que declarou o Juízo Central Cível de Leiria materialmente incompetente para julgar a causa, por ter sido entendido que as questões que se discutem nos autos devem ser apreciadas pelo Juízo de Família e Menores ..., foro onde corre termos um processo de inventário com vista à partilha dos bens que integram o património do dissolvido casal constituído por autora e réu.

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Não se conformando com a decisão proferida, a autora interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

1ª) Com a presente ação a A e o R pretendem tutela jurídica através do tribunal com vista a dirimir o conflito sobre o direito de propriedade dos imóveis relativo ao prédio urbano e, ao prédio rústico melhor identificados na petição inicial e, na reconvenção.

2ª) As partes estão de acordo que, em face da decisão do despacho proferida pelo Juízo de Família e Menores ..., no âmbito de incidente da reclamação contra a relação de bens ao serem remetidos para os meios comuns - atento o pedido e, a causa de pedir e, o valor dos interesses em causa - seja a instância central cível da comarca de Leiria a competente para a causa.

Ademais! 

 3ª) Além de, tal ordem jurisdicional, é este o Tribunal e instância vocacionados e incumbidos para preparar, apreciar e julgar a demanda.                                                                            

4ª) A mens legis na LOSJ assim atribuiu ao foro comum a competência jurisdicional.

Para tal, 

5ª) Por erro de interpretação e, aplicação a decisão proferida não é a mais assertiva, nem consentânea, com os princípios constitucionais; gerais do direito civil, processual civil e, do regulamento das custas processuais, antes, mostram-se violados os comandos aplicáveis, mormente, o disposto nos artºs. 62º; 202º, nº. 2 da CRP; artºs. 1251º a 1575º do CC; artºs. 64º; 91º, nº. 1; 527º e 1093º do CPC e, artºs. 117º e 122º, nº. 2 do LOSJ e artº. 7º, nº. 4 do RCP, devendo ser revogada. Assim e,

  6ª) Com o douto suprimento que se invoca, deve o recurso merecer provimento, revogar-se a decisão posta em crise e, substituída por outra que, considere o Juízo Central Civil ... o competente, em razão da matéria, para preparar, apreciar e, julgar a presente causa.”.


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Não foram apresentadas contra-alegações.               

                                                                                                                                                                                 ***

 Questão objecto do recurso: foro competente para apreciar a acção comum instaurada no Juízo Central Cível de Leiria.

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II–FUNDAMENTOS.                                    

2.1. Factos provados.

Com interesse para a decisão do presente recurso, importa considerar a seguinte factualidade:

   - Correm termos no Juízo de Família e Menores ..., sob o nº997/20...., uns autos de inventário para partilha de bens em consequência do divórcio de autora e réu, no âmbito do qual foi proferido despacho, em 8/7/2022, com o seguinte teor “(…) b) Determina-se a remessa para os meios processuais comuns relativamente à resolução da questão da titularidade /natureza jurídica das verbas 34 e 35 da relação de bens, do passivo à Banco 1... e do passivo reclamado pelo interessado BB no montante de €29.330,00, referente a pagamentos que o requerido alega ter feito à Banco 1..., a titulo de prestações mensais e sucessivas, entre 1/1/2015 e 11/6/2021.”.             

- Instaurada acção comum, no Juízo Central Cível de Leiria, com vista a dirimir a questão referente às aludidas verbas 34 e 35, o Tribunal a quo, por despacho exarado a 3/7/2023, declarou-se incompetente, em razão da matéria, para julgar a causa.


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2.2. Enquadramento jurídico.

A questão colocada a esta instância, como é sabido, não é pacífica, havendo que defenda que é competente para apreciar este tipo de acções o juízo que exerce jurisdição na área de família e menores [1], e, por outro lado, quem sustente que o foro apropriado para o conhecimento da matéria em apreço é o juízo que exerce jurisdição na área cível, podendo ser central ou local, consoante o valor que estiver em causa [2].

 É incontestável, desde logo, que estamos perante um processo que segue a forma comum, contrariamente ao processo de inventário, situação que, à partida, parece excluir a competência dos juízos de família e menores para apreciar a causa, uma vez que o art. 122º, nº2, da LOSJ [3] apenas prevê a intervenção destes últimos nos seguintes casos: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”.

 O argumento é reforçado pela redacção do art. 117º, alínea a), da LOSJ, uma vez que aí prescreve-se que “Compete aos juízos centrais cíveis: a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000;”.

Terá sido intenção do legislador, em casos como o presente, alargar a competência dos juízos de família e menores de forma a incluir acções que seguem a forma comum que têm uma conexão com um processo de inventário ?

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não nos parece.

Com efeito, em primeiro lugar, não resulta expressamente da lei que os juízos de família e menores sejam competentes para apreciar as acções em apreço, sendo que a referência aos processos de inventário esgota-se em si mesma, ou seja, tais juízos são competentes para tramitar processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

 Em segundo lugar, como já se afirmou, a competência para a tramitação de acções comuns encontra-se definida no art. 117º, alínea a), da LOSJ, salvo nos casos em que a mesma seja atribuída aos juízos locais cíveis, por força do art. 130º, nº1, igualmente da LOSJ [4].

 Em terceiro lugar, não resulta do processo legislativo [5] que levou à introdução do nº2 do art. 122º da LOSJ [6] que tenha existido o propósito de incluir na competência dos juízos de família e menores acções comuns instauradas por força do regime previsto no art. 1093º, nº1,do C.P.C. [7].

  Pelos motivos expostos, procede o recurso interposto pela autora/apelante, devendo decidir-se em conformidade.


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III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que declare o Juízo Central Cível de Leiria materialmente competente para julgar a causa.

Sem custas. 

Coimbra, ……………………….. de 2023


(assinado digitalmente)

 Luís Manuel de Carvalho Ricardo 

 (relator)

 António Fernando Marques da Silva

  (1ª adjunto)

Luiz Falcão de Magalhães

(2º adjunto)


                                                SUMÁRIO.                                                                                                                          (…).


[1] Cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 16/5/2023 (relator Fonte Ramos), disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/1575ecec44fb9b2d802589c700542315?OpenDocument.
[2] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 26/10/2020 (relator Mendes Coelho), disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e4f071b523759d3b8025863e00422ce1?OpenDocument.
[3]  Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
[4] Art. 130º, nº1, da LOSJ: “Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”.
[5] Cf. Proposta de Lei n.º 30/XIII, disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=40628, onde também podem ser consultados os pareceres que foram elaborados sobre a matéria em causa, incluindo o relevante parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
[6] O nº2 do art. 122º foi introduzido pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro.
[7] Art. 1093º, nº1, do C.P.C: “Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”.