Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1029/20.8T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RP202010261029/20.8T8PRD.P1
Data do Acordão: 10/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A remessa dos interessados para os meios comuns, determinada pela autoridade competente para inventário em curso, integra uma remissão para a acção ou procedimento adequados e perante o tribunal materialmente competente, já que sendo fundamento daquela remessa a existência de questão ou questões que, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito, há que tratar e decidir fora do processo de inventário, a competência material do respectivo tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida;
II – Não cabe nos elencos de matérias da competência do Juízo de Família e Menores, a acção, proposta na sequência daquela remessa para os meios comuns, de reconhecimento da contitularidade da Autora no direito de propriedade sobre certos bens móveis e ainda do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis e condenação do Réu à sua restituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº1029/20.8T8PRD.P1
(Comarca do Porto Este – Juízo de Família e Menores de Paredes – Juiz 1)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

B… propôs acção de processo comum contra C… no Juízo de Família e Menores de Paredes (Comarca do Porto Este), pedindo o seguinte:
sob as alíneas a) e b) do petitório:
- que se declare que são bens comuns da Autora e do Réu: o saldo bancário de € 8.288,35, da conta n.º …………. aberta na D…; o valor de € 4.250,00 do veículo automóvel de matrícula ..-..-DZ; e os bens móveis por si indicados no artigo 27º da petição inicial, no valor de € 21.176,50;
- que se condene o Réu a tal reconhecer;
sob as alíneas c), d) e e) do petitório:
- que se declare que os bens descritos no artigo 43º da petição inicial são bens próprios da Autora e se condene o Réu a restituir à Autora a posse dos mesmos;
- e que se condene ainda o Réu no pagamento da quantia diária de € 50,00, a título de sanção pecuniária compulsória plasmada no art.º 829-A do Cód. Civil, por cada dia de atraso no cumprimento desta obrigação a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória que vier a ser proferida.
Alegou para tal o seguinte: que celebrou casamento com o Réu sob o regime da comunhão de adquiridos em 21/8/2004, o qual veio entretanto a ser dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 15 de Dezembro de 2011, transitada em julgado em 2/2/2012; que viveu maritalmente com o Réu entre a data do casamento e Fevereiro de 2011, data em ocorreu uma separação de facto entre ambos; que ela e o Réu depositavam na conta bancária acima identificada as suas poupanças e rendimento proveniente do seu trabalho, sendo que até ao dia 7/2/2011tal conta apresentava um saldo de 8.280,92 euros e a este acresceram juros ali creditados em 19/2/2011no montante de 7,43 euros; que o Réu, através de sucessivos levantamentos, se apropriou de tal dinheiro, até que liquidou tal conta em 26/7/2011; que em 2 de Julho de 2010 foi adquirido pelo casal e registado em nome do Réu o veículo automóvel acima identificado, o qual tinha o valor de 4.250 euros e que após a separação do casal ficou na posse do Réu até que este, sem o seu conhecimento e sem a sua autorização, o vendeu (em 17 de Novembro de 2014) e se apropriou do produto da venda; que, até Fevereiro de 2011, o recheio da casa de morada de família era composto pelos bens identificados no artigo 27º da p.i, todos adquiridos na pendência do matrimónio por si e pelo Réu, os quais se encontram em bom estado de conservação e ficaram na posse deste último, que ficou a ocupar aquela casa; e que enquanto perdurou a comunhão de vida e até à separação do casal, ela o Réu usaram e fruíram dos bens móveis descritos no artigo 27º bem como do veículo automóvel, à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção do exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade, tudo por período de anos que, caso não dispusessem de outro título, sempre levaria à aquisição da propriedade dos mesmos por usucapião.
Explicou ainda a Autora que a propositura da presente acção se deveu ao seguinte: que foi por si instaurado processo de inventário para partilha subsequente ao divórcio, o qual corre termos pelo Cartório Notarial da E…, sito em Felgueiras, autuado sob o n.º 1673/16; que no referido processo de inventário não foi possível fixar definitivamente os bens comuns do casal dissolvido a partilhar uma vez que o Réu, ali nomeado cabeça-de-casal, se recusa a relacionar variados bens que pertencem ao casal dissolvido; e que, face a este impasse, foi naquele processo proferido despacho em 17.01.2020 pela Sra. Notária, já transitado em julgado, a remeter as partes para os meios comuns, com vista à determinação dos bens que existem e que serão objecto de partilha, considerando que tal questão exige prova complexa.
A Autora juntou documento onde se mostra vertido o despacho acabado de referir, onde consta invocado no mesmo que a remessa para os meios comuns foi feita “nos termos do disposto no artigo 16º nº1 do RJPI”.
Recebida a petição em juízo, pelo Sr. Juiz foi proferido despacho liminar no qual considerou ocorrer incompetência absoluta do tribunal onde a acção foi proposta, por via de infracção das regras de competência em razão da matéria, e, nessa conformidade, absolveu o Réu da instância.
De tal decisão veio a Autora interpor recurso – pugnando pela sua revogação e pela prolação de decisão que considere competente aquele tribunal –, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:

A - Muito embora não corporize um processo de inventário, a presente acção destina-se a compor e a determinar os bens comuns do casal dissolvido a partilhar no processo de inventário n.º 1673/16 que corre termos no Cartório Notarial de Felgueiras da E….

B – Se, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 122º da Lei 62/2013 de 26/08, o Tribunal a quo, enquanto Juízo de Família e Menores, tem competência para tramitar e julgar o processo de inventário para a partilha dos bens comuns do casal na sua totalidade, por maioria de razão tem competência para decidir uma questão pontual, incidental ou parcial de certos bem que compõem o património conjugal, ou, dito de outra forma, para decidir se certos bens são ou não comuns e se devem ou não serem partilhados.

C – A acção proposta tem precisamente este fim, sendo essa a causa de pedir e os pedidos deduzidos a final.

D - A sentença proferida em primeira instância viola o disposto no n.º 2 do art.º 122º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto.
Foram dispensados os vistos nos termos previstos no art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (art. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a apurar: saber se o Juízo de Família e Menores é competente em razão da matéria para conhecer da acção proposta pela Recorrente.
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II – Fundamentação

Vamos então ao tratamento da questão enunciada.
Os dados a ter em conta são os acima alinhados no relatório e, como deles se vê, a Autora propôs a presente acção de processo comum por causa do seguinte: no âmbito de processo de inventário para partilha subsequente ao divórcio entre si e o Réu que corre termos em Cartório Notarial, foi proferido despacho pela Sra. Notária em 17.01.2020, transitado em julgado, que remeteu as partes para os meios comuns, com vista à determinação dos bens que existem e que serão objecto de partilha, o que se fez invocando-se o disposto no artigo 16º nº1 do Regime Jurídico do Processo de Inventário.
Nessa sequência, como se referiu no relatório, veio interpor a acção no Juízo de Família e Menores de Paredes (Comarca do Porto Este).
Neste Juízo, em despacho liminar, o respectivo Sr. Juiz considerou ocorrer incompetência absoluta do respectivo tribunal, por via de infracção das regras de competência em razão da matéria, e, nessa conformidade, absolveu o Réu da instância.
Conforme se vê do seu recurso [alínea B) das conclusões], a Recorrente defende que aquele Juízo de Família e Menores é o competente em razão da matéria para a acção face ao que se dispõe no nº2 do art. 122º da Lei 62/2013 de 26/8 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), pois, como argumenta, “Se, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 122º da Lei 62/2013 de 26/08, o Tribunal a quo, enquanto Juízo de Família e Menores, tem competência para tramitar e julgar o processo de inventário para a partilha dos bens comuns do casal na sua totalidade, por maioria de razão tem competência para decidir uma questão pontual, incidental ou parcial de certos bem que compõem o património conjugal, ou, dito de outra forma, para decidir se certos bens são ou não comuns e se devem ou não serem partilhados.”.
Analisemos.
A competência material dos Juízos de Família e Menores, que integram tribunais de competência especializada, está prevista nos arts. 122º (competência relativa ao estado civil das pessoas e família), 123º (competência relativa a menores e filhos maiores) e 124º (competência em matéria tutelar educativa e de protecção) da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei nº62/2013, de 26/8.
No presente caso – em que está em causa uma acção proposta pela Recorrente/Autora em que esta (conforme decorre dos pedidos formulados sob as alíneas a) e b)) visa o reconhecimento da sua contitularidade no direito de propriedade sobre certos bens móveis (dinheiro, valor de veículo automóvel e móveis/recheio de casa que identifica) e ainda (conforme decorre dos pedidos formulados sob as alíneas c) e d)) o reconhecimento do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis que também identifica (artigo 43º da p.i.) e condenação do Réu à sua restituição –, são manifestamente de excluir os elencos de competência previstos naqueles arts. 123º e 124º e é também manifestamente de excluir o elenco de competências previsto no nº1 daquele art. 122º [pois são absolutamente incongruentes com aquelas pretensões qualquer das competências referidas neste sob a alínea a) (não está em causa um qualquer processo de jurisdição voluntária relativo a cônjuges), sob a alínea b) (não está em causa um qualquer processo de jurisdição voluntária relativo a situação de união de facto ou de economia comum), sob a alínea c) (não está em causa qualquer acção de separação de pessoas e bens), sob a alínea d) (não está em causa qualquer acção de declaração de inexistência ou de anulação de casamento civil), sob a alínea e) (não está em causa qualquer acção intentada com base no art. 1647º e no nº2 do art. 1648º do C.Civil), sob a alínea f) (não está em causa qualquer acção ou execução por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges) ou sob a alínea g) (não está em causa uma qualquer acção relativa ao estado civil das pessoas e família)].
A Recorrente, como vimos acima, defende a competência do Juízo de Família e Menores com base em argumento de maioria de razão que entende ser de tirar do nº2 daquele art. 122º, onde se prevê que “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.
Mas, com todo o respeito o dizemos, não lhe pode ser reconhecida razão.
A remessa dos interessados – ao abrigo do disposto no art. 16º nº1 do RJPI (aprovado pela Lei 23/2013, de 5/3) – para os meios comuns, determinada pela autoridade competente para o inventário em curso, integra, como daquela própria previsão legal decorre (que ali se refere a “meios judiciais comuns”), uma remissão para a acção ou procedimento adequados e perante o tribunal materialmente competente.
Sendo fundamento daquela remessa a existência de questão ou questões que, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito, há que tratar e decidir fora do processo de inventário (como se prevê naquele art. 16º nº1 supra referido), a competência material do respectivo tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida e não pela ligação da questão ou questões em causa ao processo de inventário.
Como tal, ao contrário do entendimento da Recorrente, não obstante naquele nº 2 do art. 122º se prever a competência material dos juízos de família e menores para os processos de inventário nele referidos, não se pode com base na sua previsão – pois dela de todo em todo tal não resulta (note-se que às normas sobre competência deve presidir uma interpretação o mais declarativa possível) – buscar fundamento para extrapolar a competência daqueles mesmos juízos para tais questões.
Uma coisa é o tribunal ser competente para tratar determinadas questões ligadas ao inventário porque o inventário já corre termos nesse tribunal, o qual, por isso, “como decorrência do princípio segundo o qual o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem (art. 91º nº1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária” (“O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil”, de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, Almedina, 2020, pág. 49).
Outra coisa é a competência para questões que, por decisão da autoridade competente e com base na lei (na própria regulamentação legal do processo de inventário), devem ser analisadas e decididas fora do inventário, nos meios judiciais comuns.
E isso pressupõe, como já se disse acima, a utilização da acção ou procedimento adequado junto do tribunal materialmente competente.
Ora, na busca desta competência material, é efectivamente de reconhecer que não cabe nos elencos de matérias da competência do Juízo de Família e Menores que supra se referiram a acção proposta pela Autora, que é, como acima já se explicitou, de reconhecimento da contitularidade do seu direito de propriedade sobre certos bens móveis e ainda do seu direito de propriedade exclusiva sobre outros bens móveis que também identifica e condenação do Réu à sua restituição (note-se até que nesta parte, relativa ao reconhecimento do direito de propriedade exclusiva sobre determinados bens e condenação do Réu a restituí-los, a acção extravasa da remessa para os meios comuns efectuada no inventário, pois esta, como é bem de ver, apenas foi norteada pelo objectivo de se apurar quais os bens comuns, pois só estes interessam para a partilha).
Assim, tal acção deverá ser instaurada num tribunal de competência cível da jurisdição comum.
Deste modo, em conformidade com tudo o que se vem de expor, há que concluir – como se faz na decisão recorrida – pela incompetência em razão da matéria do Juízo de Família e Menores para conhecer da acção ora proposta pela Autora/Recorrente.
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Sumariando o decidido (art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim