Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150/11.8GAPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: TENTATIVA
FURTO
ACTO PREPARATÓRIO
ACTOS DE EXECUÇÃO
CO-AUTORIA
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 203.º, 204.º, 21.º, 22.º E 26.º, DO CP
Sumário: I - Decorrendo da matéria de facto provada: (i) os dois arguidos, com intuito apropriativo, após acordo prévio estabelecido entre eles, acederam a um terraço, onde se encontravam anexos contendo no seu interior diversos bens móveis; (i) um deles entrou num dos anexos pelo buraco existente em uma janela, a qual se encontrava a 2 metros do solo, enquanto o outro permaneceu no exterior; só não atingiram os seus desígnios por terem sido, entretanto, detectados por terceiros, está evidenciada a prática, por ambos os arguidos, não de meros actos preparatórios, mas de actos de execução do crime de furto.

II - Daí que tenham os arguidos praticado, em co-autoria, um crime de furto (qualificado).

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 150/11.8GAPCV do Tribunal Judicial de Penacova, foram julgados os arguidos:

- A..., filho de (...) e de (...), natural da freguesia de (...), concelho de Carregal do Sal, nascido a 17/01/1988, solteiro, desempregado, residente na (...), Carregal do Sal; e

-B..., filho de (...) e de (...), natural do Congo, nascido a 20/07/1980, solteiro, desempregado, residente na (...), Santa Comba Dão.

que vinham acusados da prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, na sua forma tentada, previsto e punido pelos artºs 22º, 23º, 203º e 204º, nº 1, alínea f) e nº 2, alínea e), todos do Código Penal.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida a sentença (fls. 208 a 222) onde se decidiu:
“- Condenar o arguido A... pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artºs 22º, 23º, 73º, 202º, alínea e), 203º n.º 1 e 204º, nº 2, alínea e) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
- Condenar o arguido B... pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artºs 22º, 23º, 73º, 202º, alínea e), 203º n.º 1 e 204º, nº 2, alínea e) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
- Suspender a execução da pena de prisão aplicada aos arguidos pelo período de um ano;
- Condenar cada um dos arguidos no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.
*
Remeta boletins ao registo criminal.
*
Declaro perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos nos autos a fls. 16 – artº 109º do Cód. Penal.”

Inconformado com o assim decidido, recorreu apenas o arguido B..., finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

CONCLUSÕES

1. O ora recorrente foi condenado, pela prática, em, co-autoria, na forma tentada de um crime de furto qualificado p. e p. pelos art.° 22°, 23°, 73°  202° alínea e), 203° n.° 1 e 204°n.° 2 alínea e) do Código Penal, na pena  9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano.

2. O recorrente considera incorrectamente julgados os pontos de facto supra assinalados sob os números 3), 4) e 5), já que as provas (gravadas no sistema integrado de gravação digital) impõem uma decisão diversa da recorrida; ou seja, a matéria de facto constante daqueles pontos deveria ter sido julgada NÃO PROVADA.

3. Assim, deveria ter sido dado como NÃO PROVADO, que os arguidos soubessem que no interior do estabelecimento do ofendido se encontravam vários motociclos, ciclomotores, acessórios e equipamento bem como máquinas que compõem a oficina que apoia o stand de vendas dos referidos veículos, cujo valor ascendia a várias dezenas de milhares de euros.

4. Deveria ter sido dado como NÃO PROVADO que os arguidos, com o propósito de se apropriarem do que conseguissem retirar do estabelecimento do ofendido, se tivessem munido dos bens que lhes foram apreendidos e que se encontram examinados e avaliados a fls. 17, por forma a melhor executarem a acção a que se propuseram.

5. Deveria ter sido dado como NÃO PROVADO que os arguidos acederam ao terraço onde se encontravam os anexos, através do armazém inacabado e, pelo menos um deles, entrou pelo buraco da janela, que se encontrava a 2 metros do solo, no rés-do-chão.

6. Os meios de prova que impunham uma decisão em sentido diverso são as declarações dos dois arguidos bem como das três testemunhas arroladas pela Acusação, gravadas no sistema integrado de gravação digital, cujas passagens se encontram melhor identificadas supra.

7. Em consequência, o Tribunal “ a quo” deveria ter absolvido, sem qualquer espírito de dúvida razoável, o arguido do crime ou, pelo menos, deveria ter aplicado o princípio fundamental de processo penal “in dubio pro reo”, tendo havido, face à prova produzida, violação do disposto no art° 410 n.° 2 al. c) do Cód. Proc. Penal e art°s. 32°, n.° 2 e n.° 5, e 2.° da CRP.

8. Acresce que, não ficou demonstrado qual dos arguidos praticou actos de execução do crime de furto qualificado.

9. As testemunhas arroladas pela Acusação não lograram identificar qual dos arguidos — se é que algum foi; viu no interior do estabelecimento e qual é que estava no seu exterior, mormente encostado ao veículo automóvel que os transportava.

10. A douta sentença recorrida, deu como não provado:

— Que tenham entrado os dois arguidos pelo buraco da janela, nas instalações do ofendido;

— Que tenha sido o arguido A... a fazer barulho com o ferro.

11. Nos termos do artigo 22° do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer. Em momento prévio poder-se-á verificar a existência de actos preparatórios que, porém, não são puníveis — Cfr. Art.° 21° do CP. Enuncia este artigo o principio de que a preparação de uma infracção penal e os actos em que se traduz não devem ser, como tais, puníveis.

12. Na síntese de Figueiredo Dias haverá acto de execução e portanto tentativa, quando um certo acto preencha um elemento constitutivo de um tipo de ilícito ou — apreciado na base de um critério de idoneidade, normalidade ou experiência comum, ou na base do plano concreto de realização — apareça como parte integrante da execução típica — Sumários de Direito Penal pag. 21.

13. Ora, resultou da prova produzida em audiência de julgamento, que as testemunhas arroladas pela Acusação, viram apenas uma pessoa que deduziram ser um dos arguidos — no interior do estabelecimento do ofendido.

14. Mais, após terem encetado uma perseguição a essa pessoa viram um dos arguidos, em local afastado do estabelecimento, junto ao veículo automóvel. Nada mais.

15. Não resultou provado qual a motivação deste arguido. Não resultou demonstrado se este sabia sequer que o outro arguido (se é que era ele) se encontrava no interior do estabelecimento do ofendido. Não foi provado se havia delineado um plano conjunto para a prática do crime.

16. Atenta a falta de demonstração probatória do acima exposto, no limite, teríamos que este arguido seria autor apenas de actos preparatórios.

17. Assim, um problema de enorme importância se levanta: Qual dos arguidos praticou actos de execução e qual deles nada praticou ou, no máximo, se ficou pelos actos preparatórios? Pergunta que, porém, fica sem resposta dado que as testemunhas arroladas pela Acusação não lograram identificar a participação de cada arguido na factualidade sub judice.

18. A admissibilidade da tentativa do co-autor que não chega a realizar a sua parte da execução, constituiu uma inadmissível antecipação da tutela penal, que suprime a fronteira entre os actos preparatórios e os actos de execução, pondo definitivamente em causa o princípio constitucional da ofensividade.

19. O início da tentativa na co-autoria só se verifica quando cada um dos co-autores pratica o seu primeiro acto de execução (mesmo do acto previsto no artigo 22° n.° 2 al. c), de acordo com a decisão conjunta dos co-autores (teoria individual, partilhada por Conceição Valdágua, 1986: 207 a 219 e Figueiredo Dias, 2007: 822. — Comentário ao Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2 Ed. pag. 135.

20. Desta sorte, atento o exposto, não tendo as testemunhas logrado identificar qual dos arguidos praticou actos de execução, permanecendo a dúvida quanto a essa questão, ainda que com apelo ao princípio in dúbio pro reo, deverá o ora recorrente ter sido absolvido da prática do crime por que vinha acusado.

21. Ao decidir na forma exposta, o tribunal a quo violou o estatuído nos artigos 21°, 22°, 23°, 26° do CPenal.

Nestes termos e, sobretudo naqueles que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto acórdão proferido, nos termos supra expostos, com o que Vossas Excelências farão seguramente

JUSTIÇA.”

                                                    *

O Ministério Público junto da 1ª instância, a fls. 264 e 265, respondeu ao recurso, concluindo que deve ser negado provimento ao mesmo.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 267.

Nesta instância, a fls. 275 a 276vº, o Exmº Procurador-Geral Adjunto sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que deverá improceder o recurso e mantida, na íntegra, a sentença recorrida.

No âmbito do art.º 417º, nº 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (art 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso, as questões a suscitadas são as seguintes:

1. - Saber se ocorreu o vício do artigo 410º nº 2 c) do Código de Processo Penal;
2. - Impugnação da matéria de facto: a alegada falta de prova dos factos dados como provados nºs 3, 4 e 5;

3. - Saber se ocorreu violação do princípio do in dubio pro reo.

4. Saber se, quanto muito, apenas poderão ter ocorrido actos preparatórios.

(Embora tenha pouca relevância para o objecto de recurso, importa aqui chamar a atenção do recorrente que, tal como resulta da parte dispositiva da sentença recorrida, a condenação do mesmo foi na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução (e não na pena de 9 meses de prisão, suspensa na execução, conforme o mesmo refere no seu recurso -  esta pena de 9 meses foi aplicada ao co-arguido A...).
 
É o seguinte o teor da sentença recorrida (desde os factos provados até a determinação das penas, para não tornar o presente acórdão demasiado extenso):

1. Fundamentação de facto

A) Factos provados:

1) Na madrugada do dia 25 de Junho de 2011, cerca das 00.10 horas, os arguidos dirigiram-se ao estabelecimento “ X...”, sito na Rua Y..., em Z..., da freguesia de Figueira de Lorvão, área deste concelho e comarca de Penacova.

2) O arguido A... conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca “FIAT”, com a matrícula (...)EZ, pertença do arguido B..., que o acompanhava.

3) Os arguidos sabiam que no interior do Estabelecimento se encontravam vários motociclos, ciclomotores, acessórios e equipamento bem como máquinas que compõem a oficina que apoia o stand de vendas dos referidos veículos, cujo valor ascendia a várias dezenas de milhares de euros.

4) Assim e com o propósito de se apropriarem do que conseguissem retirar do estabelecimento, os arguidos muniram-se dos bens que lhes foram apreendidos e que se encontram examinados e avaliados a fls. 17, por forma a melhor executarem a acção a que se propuseram.

5) Os arguidos acederam ao terraço onde se encontram os anexos, através do armazém inacabado e, pelo menos um deles, entrou pelo buraco da janela, que se encontra a 2 metros do solo, no rés-do-chão.

6) Porque os proprietários do estabelecimento se encontravam no interior, aperceberam-se do barulho feito com o ferro pelo arguido que entrou pelo buraco da janela, a bater na parede, e dirigiram-se aos arguidos, impossibilitando-os de concretizarem o seu plano, que conseguiriam se aqueles estivessem ausentes.

7) Os ofendidos seguiram o veículo conduzido pelo arguido A..., no veículo da testemunha E....

8) Os arguidos sabiam que os bens supra referidos não lhes pertenciam e que ao integrá-los nos seus patrimónios, usando-os e dispondo deles, agiam contra a vontade dos proprietários.

9) Agiram, assim, em conjugação de esforços, de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem proibidas por lei as suas condutas.

10) O arguido A... está desempregado, não auferindo rendimentos.

11) Vive com a mãe a cargo desta.

12) Tem como habilitações literárias o 8º ano de escolaridade.

13) O arguido B... está desempregado, não auferindo rendimentos.

14) Esteve a fazer tratamento à dependência de produtos estupefacientes desde Janeiro até Outubro de 2012, estando a aguardar colocação no mercado laboral.

15) Vive com a mãe, em casa desta, com a companheira que trabalha num lar e um filho com seis anos de idade.

16) Tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.

17) Do certificado do registo criminal do arguido A... constam as seguintes condenações:

- Processo Comum Singular nº 216/05.3PCMTS, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 31/01/2006, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 2,00 (dois euros);

- Processo Comum Colectivo nº 215/05.5GCSCD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, pela prática dos crimes de roubo, condução sem habilitação legal e furto simples, por acórdão datado de 16/05/2006, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa por 4 (quatro) anos;

- Processo Comum Singular nº 259/06.0PWPRT, do 1º Juízo, 3ª Secção, dos Juízos Criminais do Porto, pela prática do crime de furto qualificado, por sentença datada de 05/11/2009, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 12 (doze) meses;

- Processo Abreviado nº 404/06.5PGMTS, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, pela prática do crime de furto qualificado, por sentença datada de 13/06/2007, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos.

18) Do certificado do registo criminal do arguido B... constam as seguintes condenações:

- Processo Sumário nº 163/11.0GBSCD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 01/07/2011, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

- Processo Sumaríssimo nº 220/11.2GAOHP, do Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 24/11/2011, na pena única de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

                                                                      *

B) Factos não provados

Não se provou qualquer outra matéria com relevo para a decisão da causa, nomeadamente:

- que tenham entrado os dois arguidos pelo buraco da janela, nas instalações do ofendido;

- que tenha sido o arguido A... a fazer barulho com o ferro.”

                                                    *

C) Motivação

A convicção do tribunal relativamente à matéria dada como provada baseou-se na ponderação dos seguintes elementos de prova:

- Nas declarações dos arguidos apenas na parte em que confirmam a sua presença no local, na data da prática dos factos e no que concerne à sua situação sócio-económica.

- Nos depoimentos das testemunhas C..., D...e E..., os quais se encontravam no interior das instalações onde funciona o estabelecimento comercial de que o primeiro é proprietário e de uma forma coerente e credível, explicaram que estavam a jantar no local e ouviram barulho proveniente do anexo onde têm a oficina de reparação e lavagem dos motociclos, acorrendo aquele espaço, ainda vendo um dos arguidos a sair pelo buraco da janela, após o que a testemunha D... foi a correr até ao exterior, acabando por tirar a matrícula do veículo onde os arguidos seguiam e telefonaram à GNR dando conta do sucedido, que acabou por localizar os arguidos nessa mesma noite.

- Nas fotografias juntas a fls. 19 e 20, nos autos de apreensão e exame juntos a fls. 16 e 17 e nos certificados do registo criminal de fls. 196 a 206. Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.

Com efeito, não se valorou a versão apresentada pelos arguidos quando referem que apenas pararam no local porque precisavam de fazer necessidades fisiológicas, porquanto não se afigura credível que os arguido vindo no IP3 de Coimbra em direcção às suas residências, em Carregal do Sal e Santa Comba Dão, respectivamente, fizessem um desvio de cerca de 5 km à procura de um sítio onde fazer necessidades fisiológicas.

Acresce que, a conjugação dos depoimentos prestados pelo arguidos quando confirmam que, de facto, estiveram junto às instalações do estabelecimento do ofendido, chegando o arguido B... a confirmar que se colocou em cima do muro para espreitar lá para dentro, com os depoimentos prestados pelas testemunhas que chegaram a ver um dos arguidos no interior das instalações, ainda que não soubessem identificar qual dos dois, permitem concluir que o intuito dos arguidos era entrar em tal estabelecimento para se apoderarem do que viessem a encontrar, propósito que só não levaram a efeito, porquanto as mencionadas testemunhas os surpreenderam.

É ainda de salientar que os objectos apreendidos aos arguidos que se encontravam no interior do veículo são também reveladores do seu real propósito, surgindo também descabida a justificação apresentada pelos mesmos para a sua permanência naquele local.

O facto de não se ter apurado, em concreto, se os dois arguidos estiveram no interior das instalações do ofendido e qual dos dois foi surpreendido pelas testemunhas, não releva para determinação da participação de cada um deles, porquanto os mesmos agiram em conjugação de esforços e intentos, com o intuito de levarem a cabo uma conduta previamente delineada entre ambos.

                                                      *

2. Fundamentação de direito

2.1. Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido

Vêm os arguidos acusados da prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artºs 22º, 23º, 203º, e 204º, nº 1, alínea f) e nº 2, alínea e) do Cód. Penal.

Dispõe o n.º 1 do art.º 203º do Cód. Penal que, “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

O nº 1, alínea f) do artº 204º, dispõe que “quem furtar coisa móvel alheia, introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com  intenção de furtar é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias” e o n.º 2, alínea e) do art.º 204º do mesmo Código que, “quem furtar coisa móvel alheia penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

Dispõe a alínea e) do artº 202º do Código Penal que por escalamento entende-se “a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem”.

Nos termos do artº 22º do Cód. Penal, “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”, referindo o nº 2 do preceito que são actos de execução, os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os que forem idóneos a produzir o resultado típico ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

Ainda de acordo com o artº 23º do Cód. Penal, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão, salvo disposição em contrário.

O bem jurídico protegido pelo tipo legal do crime de furto é a propriedade entendida como o poder de facto sobre uma coisa, tutelando-se a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa.

Faz-se apelo à noção de valor de uso da coisa, pois é este valor que é representado pela comunidade como elemento merecedor de tutela jurídico-penal.

Conforme ensina o Prof. Faria Costa, “... o agente da infracção, no momento em que desencadeia o elemento intencional apropriação, pouco se importa com a exacta determinação do verdadeiro proprietário coisa, pois o que ele pretende, intencionalmente é fazer sua, sabendo que não é sua, aquela coisa de que se apropriou. O que ele quer, intencionalmente é fazer sua – e que sabe que não é sua – aquela coisa de que se apossou” (Em anotação ao artº 203º, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, pág. 31).

Quanto ao tipo objectivo de ilícito, este é constituído por três elementos: a) a ilegítima intenção de apropriação, b) a subtracção de coisa móvel alheia e c) o valor patrimonial da coisa.

A ilegítima intenção de apropriação é um elemento subjectivo do tipo de ilícito que consiste na vontade de o agente se comportar, relativamente a coisa móvel, que sabe não ser sua, como seu proprietário, querendo, desse modo, integrá-la na sua esfera patrimonial ou na de outrem, manifestando, então, em primeira linha, uma intenção de desapropriar terceiro.

O elemento subtracção de coisa móvel alheia é composto por vários conceitos: coisa, móvel, carácter alheio e subtracção.

O crime de furto exige para a noção de coisa, o sentido de uma autónoma corporeidade. No entanto, há coisas que, não obstante o seu carácter de substâncias delimitáveis e, nesse sentido, autónomas, são insusceptíveis de apropriação individual.

O furto só poderá ter lugar relativamente a coisas móveis, considerando-se móvel toda e qualquer coisa que tenha a susceptibilidade de ser deslocada espacialmente.

Referindo o elemento carácter alheio, considera-se que não podem ser objecto do crime de furto coisas que não sejam de outrem. É, então, alheia toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção.

Para que estejamos perante este tipo legal de crime tem ainda que haver subtracção da coisa móvel alheia, o que implica a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa. A subtracção caracteriza-se, sobretudo, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha. Não obstante, para que se consiga aquele resultado final, são absolutamente irrelevantes as modalidades e os meios de realização da conduta, sendo o comportamento de subtracção de realização livre.

O elemento referente ao valor patrimonial da coisa, traduz-se num elemento implícito do tipo legal de crime de furto. A coisa alheia ilegitimamente apropriada tem que ter não só valor patrimonial como, para além disso, tem que ultrapassar um limiar mínimo de valor para que, desse jeito, a sua protecção tenha dignidade penal.

Coisas com um valor tão irrisório ou insignificante não são merecedoras de tutela penal.

Analisando o tipo subjectivo, caracterizamos o crime de furto como um crime essencialmente doloso, que configura também uma indesmentível dimensão subjectiva na intenção de apropriação. Quer-se com isto dizer que ao primeiro momento lógico em que é necessário que se verifique uma intencionalidade exclusivamente virada para a desapropriação, outra tem que se seguir imediatamente no sentido de apropriação. É, por consequência, esta vertente do elemento “ilegítima intenção de apropriação” que se tem de adicionar ao elemento subjectivo dolo. Em relação ao crime de furto qualificado, previsto no art.º 204º do Código Penal, verificamos que o legislador, após ter definido o crime simples, vem descrever os elementos que determinam a qualificação.

Neste caso, o bem jurídico protegido apresenta-se, não na formulação linear da protecção de uma específica realidade patrimonial, como no furto simples, mas na defesa de um bem jurídico formalmente poliédrico ou multifacetado, isto é, se na raiz temos uma face que é igual para todas as circunstâncias, o ataque a um bem jurídico de raiz patrimonial com o sentido jurídico-penal traduzível no furto simples, não é menos verdade que, depois, o bem jurídico que cada uma das circunstâncias acrescenta transformando, assim, cada uma delas, em realidades normativas que protegem bens jurídicos poliédricos, é absolutamente distinto e diferenciado relativamente a cada uma das alíneas (Cfr. Faria Costa, obra citada na nota anterior, pág. 58).

Quanto ao tipo subjectivo consideramos que para que se verifique um crime de furto qualificado, por força das alíneas contempladas nos nºs 1 e 2 deste artigo 204º, é necessário que o agente tenha ao menos uma representação global dos elementos do tipo, neste caso, uma representação e um querer que abarque os diversos elementos das cricunstâncias-elementos.

Dispõe o artº 26° do Cód. Penal que é punível como autor quem execute o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tome parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros.

São requisitos essenciais da co-autoria a existência de uma decisão conjunta e uma execução igualmente conjunta, ou seja, uma contribuição objectiva conjunta para a realização típica, não obstante poder não ser igual o grau de contribuição de todos os participantes para a produção do resultado final. Essencial é que a actuação de cada um se integre no todo que conduz ao objectivo final, existindo a consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.

A decisão conjunta pressupõe, portanto, um acordo de todos os participantes.

Da análise dos factos supra dados como provados resulta que os arguidos são co-autores dos factos que lhes são imputados.

Com efeito, os mesmos actuando em conjugação de esforços e após plano previamente acordado, introduziram-se, se não os dois, pelo menos um deles, no interior do estabelecimento comercial, denominado “ X...”, sito em Z..., Figueira de Lorvão, e preparavam-se para daí retirar os objectos que viesse a encontrar, para tanto transportando dentro do carro os objectos apreendidos, só não levando a cabo os seus intentos, porque a chegada dos proprietários do estabelecimento os surpreendeu.

No que se refere à circunstância qualificativa, consideramos que apenas estará preenchida a alínea e) do nº 2 do artº 204º do Cód. Penal, uma vez que a introdução no estabelecimento comercial do ofendido foi feita por escalamento.

Pelo exposto, e porque se encontram preenchidos os elementos que integram o tipo legal de crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 22º, 23º, 202º, alínea e), 203º e 204º, nº 2 alínea e) do Código Penal, deverão os arguidos ser condenados pela prática deste tipo legal de crime.”

                                         *
1. Passemos agora a atender à primeira questão suscitada pelo recorrente.
Embora fazendo alusão à violação do princípio in dubio pro reo (cuja apreciação relegamos para mais à frente), constata-se que, ainda que de uma forma muito tímida, o recorrente invoca ter sido violada a norma do artigo 410º nº 2 c) do Código de Processo Penal, respeitante ao “Erro notório na apreciação da prova”.
O erro notório na apreciação da prova, catalogado como um dos possíveis vícios, de conhecimento oficioso, da decisão recorrida, a que alude o artigo 410º nº 2 c), conforme decorre do corpo do nº 2 de tal artigo, tem de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
Erro notório na apreciação da prova é um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Como assim que, ao erro notório, vem sendo, de igual modo, entendimento das Doutrina e Jurisprudência que apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias. Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida, ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respectiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida - entre muitos, os Acórdãos do S.T.J., de 09/07/1997 (proc. 562/97) e de 20/03/1999 (Proc. 1 76/99).
In casu, lendo e relendo a decisão recorrida, não vislumbramos que se tenha dado como provado qualquer facto que notoriamente estivesse errado, pelo que a sentença recorrida não enferma de qualquer erro notório da apreciação da prova.
Assim, improcede esta argumentação do recorrente.
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2. Passaremos a abordar a impugnação da matéria de facto.

Dispõe o artigo 428º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportarão os demais normativos citados sem menção de origem) que as relações conhecem de facto e de direito. E segundo decorre do artigo 431º podem modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pela via da “revista alargada” dos vícios do artigo 410º nº 2 e através da impugnação ampla da matéria de facto regulada pelo artigo 412º.

Na revista alargada está em causa a apreciação dos vícios da decisão, cuja indagação tem de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, como os dados existentes nos autos ou resultantes da audiência de julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 17ª ed. pag. 948; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol III, Editorial Verbo, 3ª Edição 2009, pags. 333 e 334, e Simas Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pag. 77).

Na segunda situação – impugnação ampla – a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º, nos quais é estabelecido:
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
São estes os passos a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto. Na especificação dos factos o recorrente deverá indicar o(s) concreto(s) facto(s) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar o documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contem a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação.
A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, apesar de incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Se estivéssemos perante um novo julgamento as especificações/requisitos seriam, obviamente, destituídos de fundamento. Mas, sendo o recurso um remédio, então o que se pretende é corrigir concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstrem tais erros estejam também elas concretizadas e localizadas, tanto mais que, segundo estabelece ainda o nº 6 de tal artigo 412º, “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Mas de todo o modo, sempre há que ter em atenção que numa concreta reapreciação da prova produzida em audiência de julgamento, como assinala o ac. do STJ de 12/06/2008, no proc. nº 07P4375, Relator Juiz Conselheiro Raul Borges (e acessível pelo site www.dgsi.pt) “sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.” (sublinhado e sombreado nossos)
Acrescenta-se, em consonância com o atrás descrito, que a reapreciação da prova na 2ª instância limita-se a controlar o processo de formação da convicção expressa da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/fundamentação da decisão, sendo que no recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal ad quem não vai à procura de nova convicção – a sua – mas procura inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos (pericial, documental, etc). Neste enquadramento, podendo o controlo da matéria de facto ter por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados ou analisados em audiência de julgamento, importa ter sempre presente que não se pode, a qualquer preço, subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, nunca esquecendo as palavras do Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pags 233 e 234) que só os princípios da imediação e da oralidade “… permitem … avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.

Para fundamentar o erro de julgamento quando aos factos que põe em causa e que considera que não se provaram (os factos 3, 4 e 5), o recorrente faz uma transcrição apenas parcial quer de perguntas quer de respostas e/ou declarações prestadas em sede de audiência: por si próprio, pelo co-arguido A... e pelas testemunhas C..., D... e E....

Ora, tal não é propriamente indicar provas que imponham decisão diversa. Estes depoimentos têm que ser apreciados no seu todo e, em conjugação com todos os elementos trazidos aos autos. Certamente terá sido no conjunto de todos os elementos que o tribunal fundou a sua convicção, como parece depreender-se da leitura da motivação da matéria de facto.

O que o recorrente, à primeira vista, parece fazer na sua peça recursória é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art 127.

De acordo com o disposto no art. 127º a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

O art. 127 do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.

A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).

Tal como diz o Prof Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol II, pag 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.

Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.

Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta « é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. (…) Um tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 203 a 205).

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do Código de Processo Penal. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.

O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, visual, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais " (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 233 a 234).

Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no sumário do acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 (in C.J., ano XXVII, Tomo II, página 44) "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".

E importa também ter presente que relevantes, no domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

O artigo 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).

No plano de análise em que nos movemos, importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquiri um facto desconhecido.

«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)» Cfr., v. g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ n.º 112, pág. 190..

As presunções simples ou naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 333 e ss..

As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.

Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004 in www.dgsi.pt (proc. n.º 03P3213)., «na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

(…)

A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões»
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Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apreensíveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.

Tecidas todas estas considerações que devem ser tidas em conta quando é impugnada a matéria de facto sob a perspectiva da invocação de erro de julgamento, apreciemos agora as questões suscitadas pelo recorrente no que a tal matéria respeita.
Invoca o mesmo que o tribunal incorrectamente deu como provados os factos 3, 4 e 5, quando os deveria ter dado como não provados.

Recordemos os factos 3, 4 e 5  que o tribunal recorrido deu como provados:

3) Os arguidos sabiam que no interior do Estabelecimento se encontravam vários motociclos, ciclomotores, acessórios e equipamento bem como máquinas que compõem a oficina que apoia o stand de vendas dos referidos veículos, cujo valor ascendia a várias dezenas de milhares de euros.

4) Assim e com o propósito de se apropriarem do que conseguissem retirar do estabelecimento, os arguidos muniram-se dos bens que lhes foram apreendidos e que se encontram examinados e avaliados a fls. 17, por forma a melhor executarem a acção a que se propuseram.

5) Os arguidos acederam ao terraço onde se encontram os anexos, através do armazém inacabado e, pelo menos um deles, entrou pelo buraco da janela, que se encontra a 2 metros do solo, no rés-do-chão.

Para fundamentar o erro de julgamento quando aos factos que põe em causa e que considera que não se provaram (os factos 3, 4 e 5), o recorrente faz apenas uma transcrição parcial quer de perguntas quer de respostas e/ou declarações prestadas em sede de audiência: por si próprio, pelo co-arguido A... e pelas testemunhas C..., D... e E....

Depois de auscultarmos as declarações do co-arguido A... confirma-se que os pequenos excertos das suas declarações redigidos na motivação de recurso correspondem ao constante da gravação áudio. 

Todavia, importa referir (e isso não tinha sido redigido pelo recorrente) que apesar do arguido A... ter dito nunca terem entrado dentro de armazém nenhum (…) e apenas pararam para urinar, esclareceu que quando estavam a urinar, encostados ao muro, do lado de fora, vinham pessoas a correr atrás deles e ficaram com medo e seguiram para o carro e arrancaram. No essencial do seu depoimento, e com excepção da confirmação da sua estada no local com o co-arguido B... (mas do lado exterior daquela obra e armazém), este arguido nega os factos que lhe são (e ao co-arguido B...) imputados, pormenorizando a certa altura ao dizer: “Estávamos da parte de fora encostados ao muro … só claro fiquei com medo da reacção das pessoas porque … vieram a correr … saiem de lá do escuro na nossa direcção a dizerem coisas    a única coisa que fiz foi entrar dentro do carro e seguimos mais à frente (cfr. minuto 3.15 a 4.18 das declarações deste arguido A...).

E também auscultando as declarações do arguido/recorrente B... confirma-se que os pequenos excertos das suas declarações, redigidos pelo mesmo na motivação de recurso, correspondem ao constante da gravação áudio. E o essencial do seu depoimento também vai no sentido da negação dos factos que lhe são imputados, com excepção da sua presença (e do co-arguido A...) no local para urinar (também negando terem entrado no armazém ou sequer passado a parede daquela obra contígua ao mesmo).

Todavia importa também referir (e isso também não tinha sido redigido na sua motivação de recurso) que a dado passo, das suas bem audíveis declarações, o mesmo até disse: “Paramos lá … paramos logo em frente de um edifício que estava em construção … e fomos fazer a necessidade e ouvimos uns barulhos do outro lado … foi ali que fui espreitar. Naquele momento quando estava a espreitar havia uma mulher que me viu … ela se calhar pensou que a gente estava a tentar assaltar … saiu aos gritos … Eu e o senhor A... decidimos ir embora para não levar ali uma porrada se for preciso e fomos embora (cfr. minuto 2.22 a 3.35 das suas declarações). E mais à frente, a perguntas se se puseram em cima do muro a ver o que estava lá dentro?, respondeu “sim” (cfr. minuto 14.02 a 14.10 das suas declarações). E na sequência da questão que lhe estava a ser posta: Acabou de dizer  que subiram o muro, o recorrente disse: “foi só para espreitar” (cfr. minuto 15.23 a 25.34).

Auscultando o depoimento da testemunha C... (proprietário do estabelecimento/armazém em causa) a dado passo pelo mesmo foi dito que “estava com a minha mulher e o meu amigo no meu estabelecimento … ouvi um ruído nuns anexos que temos arrumações, fazemos a lavagem das motas, temos algumas coisas … levantei-me, dirigi-me para lá … e vi um vulto, uma pessoa, um indivíduo a trepar a parede para uma construção inacabada que ainda lá existe … e a desaparecer para o outro lado por uma janela ou passagem que entretanto foi tapada (cfr. minuto 1.24 a 2.15 do seu depoimento). E mais à frente disse: “vi um indivíduo a assaltar, digamos no regresso, a sair dos meus anexos, da minha zona anexa … vi dois foi já na estrada quando vim à volta estavam a entrar para um automóvel em cima já (cfr. minuto 12.35 a 13.04).

Auscultado o depoimento da testemunha D... (esposa do ofendido) por esta, a dado passo, foi dito: “… tínhamos estado a jantar eu o meu marido e o E... …  ficamos à conversa sentados à mesa  …  a data altura ouvimos um barulho que o meu marido … que seria o ferro a roçar na parede … levantámo-nos os três e meu marido foi à parte de trás da oficina … fomos os três … ele pegou numa pilha … e apercebeu-se de alguém naquela zona de trás da oficina do lado de dentro … gritou (…).Eu não cheguei a ir lá essa parte. O meu marido começou a gritar para eu ir à volta. (cfr. minuto 1.45 a 3.29 do depoimento desta testemunha D...).

Depois de ter ido lá fora, prossegue a testemunha dizendo: “eu vi dois indivíduos a saírem dessa tal obra, desse edifício inacabado… a sair a correr … estes dois senhores, em direcção a um carro que tinham estacionado na borda da estrada … eu corri atrás deles. Eles entraram os dois dentro do carro (…) puseram o carro a trabalhar, ligaram as luzes eu vi a matrícula do carro e fixei e entretanto eles arrancaram (…) disse a matrícula do carro ao meu marido e ele ligou logo para a GNR a dar a matricula do carro (cfr. minuto 3.40 a 4.35).

Mais disse esta testemunha: “Entretanto pedi a esse tal amigo E... o carro dele para ver se via o carro estacionado nalgum lado … fui em direcção à Espinheira … decidir ir pela estrada velha em direcção a Penacova … fui andando. Quando cheguei mais ou menos em frente a uma firma de transportes …  vi um carro em frente e apercebi-me que era o jipe da GNR … parei no meio da estrada e o jipe parou ao meu lado … o senhor da GNR disse o carro está aí ao lado. O carro destes senhores estava estacionado na borda da estrada em frente a essa firma de transportes virado para o lado de Penacova …. Parei o carro aí, saí do carro….Os senhores da GNR estiveram de volta do carro a ver se viam alguma coisa, se viam alguém. Entretanto aparecem estes dois senhores calmamente em direcção ao carro, em direcção aos indivíduos da GNR … eles abriram o carro estiveram a revistar o carro … Perguntei o que eles tinham estado a fazer, eles disseram que não tinham estado a fazer nada … os da GNR trouxeram os senhores para o posto (cfr. minutos 4.58 a 7.11 do seu depoimento).

Por sua vez, auscultando o depoimento da testemunha E..., a mesma disse, efectivamente, ter dito só ter visto uma pessoa “a trepar pela janela acima”, pessoa essa que já estava de costas. Depois esta testemunha deslocou-se ao exterior e declarou ter visto “vejo os dois a correr para entrar no carro … vejo as pessoas ao longe de costas … vejo a D... a correr atrás deles … (cfr. minuto 2.54 a 3.06). E pouco mais há frente repete “Aquilo que me lembro é precisamente as pessoas a entrar no carro, a D... a correr atrás deles e a ralhar com eles  (cfr. minuto 3.26 a 3.34). Também é verdade que mais tarde disse ter visto uma pessoa encostada ao carro e a outra a correr e a D... atrás, não sabendo precisar qual delas estava encostada ao carro e qual delas ia a correr. Ou seja, nesta parte, o depoimento desta testemunha E... acaba por ser algo contraditório quando no início diz ter vistos os dois a correr e mais tarde ter dito ter visto apenas um deles a correr. Todavia, quanto a nós essa discrepância, não infirma o depoimento pormenorizado, esclarecido e escorreito da testemunha D..., tanto mais que estava vai para o exterior do armazém antes da testemunha E....

Também por esta testemunha E..., depois de ter dito não se recordar se a pessoa que ia a correr levava ou não alguma coisa na mão, entre o minuto 11.46 a 11.52 foi dito: “Deixaram no local um alicate ou uma porcaria qualquer, um corta-arame , uma coisa qualquer …, local por detrás dessa janelita onde essa pessoa passou”..

Ou seja, depois de cotejados todos os depoimentos prestados, e diversamente do que parece dar a entender no seu recurso, a certa altura o próprio recorrente disse até ter estado em cima do muro a espreitar, não tendo ficado junto ao carro como pareceu dar a entender no requerimento recursório. E a testemunha D... foi peremptória em afirmar ter visto os dois a saírem daquela obra e a correr para o carro, tendo a mesma ido atrás deles que se meteram no carro e nele se ausentaram do local.

Ora, segundo as regras da experiência comum não seria normal que se apenas estivessem por ali a “urinar” os arguidos tivessem necessidade de fugir – fugir de quê se, na perspectiva deles, não estavam a fazer nada de mal nem a invadir a propriedade de ninguém?! O normal seria questionarem a testemunha D... a saber o que se estava a passar (até para ajudar se fosse preciso alguma coisa!), em vez de se terem posto a correr na direcção do carro e arrancado em tal veículo. Para quê correr? A fugir de uma mulher? E logo arrancado de carro? E a peça de ferramenta encontrada no local pela testemunha E... de certa forma joga, ou melhor, não surge desenquadrada das ferramentas que foram encontradas no veículo em que os arguidos se faziam transportar. É bom de ver que do apurado facto 4 decorre que os arguidos se muniram dos objectos examinados e avaliados a fls. 17, com o propósito de se apropriarem do que estivesse no estabelecimento. Só que isso não quer dizer (e também o tribunal a quo não o disse) que tenham levado àqueles anexos do estabelecimento tais objectos. Esses objectos podem ter ficado no veículo e poderiam estar aptos, caso fosse necessário utilizá-los, a servir para uma melhor concretização da pretendida apropriação. Por outro lado, importa não esquecer (e não obstante os arguidos negarem conhecer o local ou o que pudesse estar dentro daquele estabelecimento) que da foto de fls. 65 (destinada a, como da legenda da mesma consta, “retratar a frente das instalações do armazém do ofendido”) resulta que por cima da porta de entrada daquelas instalações, em letras bem grandes, está aposta a expressão “ECMOTO”, expressão por demais sugestiva para que no seu interior estivessem, por exemplo, motos ou aparelhos motorizados.

Queremos com isto dizer que, a convicção explanada pelo tribunal a quo para demonstrar a factualidade que considerou provada (designadamente os factos postos em causa pelo recorrente) é conforme às regras da experiência comum. Com efeito, tendo em conta a oralidade e imediação da prova que teve perante si, conjugada com os documentos constantes dos autos e a prova indirecta decorrente das presunções naturais, a fixação da matéria de facto feita pelo tribunal a quo não vai contra as regras da experiência comum. O alegada saída do IP3 até aquele local para urinar não convenceu o tribunal a quo nem é susceptível de convencer quem quer que seja! E o esclarecido depoimento da testemunha D... referente ao por si constatado comportamento dos arguidos é por demais evidenciador do delineado plano conjunto para a prática do crime, em que as tarefas de execução do mesmo estavam delineadas (não sendo necessário que os dois arguidos se tivessem introduzido naqueles anexos do estabelecimento). Na gíria popular, “tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica ao portão a vigiar”.

E os argumentos invocados no recurso não permitem impor uma decisão diversa daquela a que o tribunal recorrido chegou.

Daí que, face à prova produzida e do modo como foi produzida consideramos correcta a fixação da matéria de facto tal como foi feita pelo tribunal a quo que na fundamentação da matéria de facto analisou de forma cuidada e criteriosa os elementos de prova que teve pela frente. E, quanto a nós, bem andou o tribunal ao dar como provados os factos postos em causa pelo arguido/recorrente da forma como o fez, não nos merecendo qualquer censura ao fixar os factos postos em causa pelo recorrente.

Com efeito, da análise da prova produzida, através dos documentos juntos aos autos e da audição dos depoimentos gravados, tudo confrontado com a motivação de facto bem andou o tribunal a quo.

Ou seja, analisando os termos em que foi formulada a impugnação da matéria de facto, o recorrente não consegue sustentar a correcção da matéria provada com base na falta de elementos de prova ou numa valoração absolutamente ilógica da prova produzida, mas sim com base na valoração que ele próprio faz da prova produzida, questionando a livre convicção do tribunal recorrido. No fundo, o que o recorrente pretendia era ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. Limita-se a fazer a sua interpretação e valoração pessoal de parte das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova, sendo que por vezes, parte das transcrições efectuadas pelo recorrente apenas são partes de frases de quem as prestou e nessa medida desprovidas do completo sentido da frase apenas parcialmente transcrita.

Não se evidencia da sentença recorrida qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Acresce que, como atrás referimos, vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui só por si fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais (cfr.  veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.), razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Com efeito, ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (cfr. Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).

Daí que, por todo o comportamento dos arguidos e a todo o contexto envolvente e tendo em conta que o tribunal recorrido expressou de modo circunstanciado, pormenorizado e exaustivo como formulou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados a partir dos meios de prova a que teve acesso, conferindo maior credibilidade a uns depoimentos do que a outros, e não descortinando nós que se tenha servido de meio proibidos de prova nem que o raciocínio da sua convicção fosse contra as regras da experiência, nada da matéria de facto há a alterar pelo que se mantêm os factos provados factos 3 a 5 que haviam sido postos em causa pelo recorrente.

3. Invoca o recorrente, ainda que timidamente, que ocorreu violação do princípio do in dubio pro reo.

Como corolário do princípio da presunção de inocência que decorre do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, apresenta-se o princípio do in dubio pro reo que obriga a que, instalando-se e permanecendo a dúvida acerca de factos referentes ao objecto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática), essa dúvida deve ser sempre desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à absolvição (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, pags 50 e 51).

Como salienta Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) “Um non liquet na questão da prova – não permitindo ao juiz – que omita decisão … - tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo que “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pró reo”.
Tal princípio incute uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o recorrente deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

No caso vertente, o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova (maxime, segundo o disposto no artigo 127º) e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à ocorrência e prática, pelos arguidos, dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida em que os arguidos (mormente o recorrente) praticaram os factos que lhes eram imputados.

Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto provada, e atrás transcrita, denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos imputados também ao recorrente, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal a quo, não tendo a mínima duvida em afirmar que o recorrente e o co-arguido A... praticaram os factos da forma dada como provada.

Perante esta decisão, tomada com toda a segurança pelo tribunal a quo (tal como o demonstra a exposição feita pelo tribunal a quo para motivar a sua convicção quanto à apurada matéria de facto), não tem sentido invocar a violação do princípio in dubio pro reo, que só opera quando, produzida toda a prova, o tribunal mantiver dúvidas sobre a prática, pelo arguido, de factos que lhe sejam desfavoráveis. Esta dúvida é que imporia ao juiz que decidisse de modo a favorecer o arguido.

Não tendo o tribunal a quo evidenciado quaisquer dúvidas sobre a prática dos factos desfavoráveis ao arguido recorrente (nem ao co-arguido, não recorrente), não há lugar à aplicação de um tal princípio.

Por isso, também aqui naufraga a pretensão do recorrente.

                                                    *

4. Inalterada que foi a matéria de facto que havia sido fixada pelo tribunal recorrido, os factos apurados integram a prática pelos arguidos, em co-autoria, de actos de execução do crime de furto qualificado, ou melhor de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 22º, 23º, 73º, 202º e) e 204º nº 2 e), todos do Código Penal, tal como, e bem, entendeu o tribunal ao analisar o enquadramento jurídico dos factos (enquadramento que supra transcrevemos, com o qual concordamos e que aqui damos por integralmente reproduzido para não tornar o acórdão tão extenso), ficando por isso liminarmente prejudicada a questão de saber se os factos que o recorrente pretendia que apenas ficassem provados apenas se poderiam traduzir em actos preparatórios.

Para além disso, face aos factos apurados, em complemento da fundamentação de direito mencionada na sentença, poder-se-á ainda trazer à colação aquilo que o Exmo Procurador-Geral Adjunto referiu a dado passo do seu parecer que, com a devida vénia, e por facilidade de exposição, passaremos a transcrever:

“Em situação semelhante à dos presentes autos pronunciou-se este Tribunal da Relação de Coimbra pela verificação de actos de execução na tentativa da prática do crime de furto, quando arguidos são surpreendidos dentro de instalações de um estaleiro e nesse momento sem que tivessem pegado em algum dos bens aí existentes, são obrigados a fugir por terem sido surpreendidos em flagrante. Trata-se do Acórdão de 1-2-2012, no proc. n.° 30/11.7GECTB.C1, sendo relator o Exm.° Desembargador, Dr.° Luís Teixeira, no qual se refere o seguinte:

“É para nós notório que os actos praticados pelos arguidos do corte da vedação e a sua introdução no interior das instalações da empresa onde se encontravam os bens susceptíveis de apropriação, são preliminares mas também necessários e praticamente “obrigatórios” para que, naquelas circunstâncias, os arguidos se apropriem dos bens em causa. O que não fizeram apenas pela chegada imprevista dos agentes da GNR.

Mais se pode afirmar que estes actos de execução cabem perfeitamente na noção que os recorrentes referem nas suas alegações, citando a propósito um acórdão desta Relação de Coimbra, de 9.2.2009, dizendo o seguinte:

“Os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem”.

Os factos provados integram-se nesta definição em perfeita harmonia e de tal forma que pode afirmar-se que faltava apenas o acto seguinte, de pegar nos bens e trazê-los, para se passar da mera tentativa para a consumação do crime. Como o portão não estava aberto e o lugar em si mesmo não está aberto e acessível ao público, para os arguidos se aproximarem dos bens em causa, tiveram que cortar a vedação — para facilitar ou permitir a entrada -, o que só por si é já um acto ilícito; e entraram no interior das instalações — o que constitui outro acto ilícito.”

Concordamos inteiramente com a afirmação do Exmo Procurador-Geral Adjunto no sentido que “Não restam dúvidas, a nosso ver, que com a matéria de facto provada nos autos também os arguidos praticaram actos de execução e não meros actos preparatórios, quando com intuito apropriativo de bens, acederam ao terraço onde se encontram os anexos através do armazém inacabado e pelo menos um dos arguidos entrara pelo buraco da janela, que se encontra a 2 metros do solo, usando um ferro que provocou barulho, quando os proprietários, que ali se encontravam -- apesar de serem 00.10 horas da noite - surpreenderam os arguidos que fugiram de carro...

De referir ainda que na execução do crime, em co-autoria, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos de execução, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado. Nos termos do art. 26.º do Código Penal, "é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo, ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros" (sublinhado nosso). Daqui resulta que basta que o comparticipante contribua com a sua acção, conjugada com a dos outros, para a realização típica do evento qualificado como crime, ainda que não tenha participação em todos os actos que fazem parte daquele processo de realização.

Por todos estes argumentos, demonstrada que está a prática de actos de execução de um crime de furto qualificado decidido cometer (e não de meros actos preparatórios desse crime), também nesta parte naufraga a pretensão do recorrente.

                                          *

Assim, e em síntese conclusiva, naufragando todas as pretensões do recorrente - e não se mostrando violados quaisquer preceitos legais, designadamente os invocados pelo recorrente nas suas conclusões de recurso - terá o recurso que improceder.

                                         *

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s.

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(Luís Coimbra - Relator)
 (Cacilda Sena)