Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1146/12.8TBCVL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.186º DO CIRE
Sumário: I – A mera alegação – com carácter vago e conclusivo – de que os administradores da devedora (em cujo objecto se incluía a construção e venda de imóveis) venderam imóveis por valores abaixo de mercado – sem que estejam devidamente identificados esses negócios, bem como o preço acordado e o real valor de mercado dos imóveis transaccionados – não é suficiente para concluir que esses negócios (celebrados num contexto de crise económica instalada no sector) foram ruinosos e que, como tal, poderão integrar o âmbito de previsão do art. 186º, nº 2, alínea b), parte final, do CIRE;

II – A constituição de uma hipoteca para garantia de um débito da devedora (débito cuja existência se demonstrou), para evitar que o credor o exigisse judicialmente, não corresponde a um uso do bem que seja contrário ao interesse da devedora e que, como tal, possa ser integrado no âmbito de previsão do art. 186º, nº 2, alínea f), parte final, do CIRE; a constituição dessa hipoteca poderá corresponder a um tratamento preferencial do respectivo credor relativamente aos demais e, nessa medida, poderá ser resolúvel em benefício da massa, caso se verifiquem os pressupostos legais, mas não configura um uso do bem contrário aos interesses da devedora para efeitos de qualificação da insolvência ao abrigo da norma acima mencionada;

III - A mera circunstância de os gerentes da devedora estarem (ou deverem estar) cientes da situação de insolvência (ou pré-insolvência) em que esta se encontrava e de, ainda assim, terem prosseguido a actividade deficitária não é bastante para que se considere verificada a situação prevista no art. 186º, nº 2, alínea g), do CIRE, sendo ainda necessário que tal exploração deficitária seja prosseguida no interesse pessoal dos administradores da devedora ou no interesse de terceiro;

IV - Ao contrário do que acontece nas situações previstas no nº 2 do citado art. 186º (cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário – que em tais situações a insolvência é sempre culposa), nas situações previstas no nº 3 apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência;

V – Assim, o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência apenas permite presumir – ao abrigo do disposto no art. 186º, nº 3, alínea b), do CIRE – a existência de culpa grave; para que esse incumprimento possa determinar a qualificação da insolvência como culposa é necessário ainda que se demonstre que o incumprimento desse dever criou ou agravou a situação de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência em que é insolvente “A..., Ldª”, a Srª Administradora da Insolvência apresentou o seu parecer no sentido de que a insolvência fosse considerada culposa e que fossem afectados pela qualificação B... e C... .

O Ministério Público manifestou a sua concordância com o parecer da Administradora.

Devidamente citados, B... e C..., deduziram oposição, contestando os fundamentos invocados pela Srª Administradora e concluindo que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.

Foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão que qualificou a insolvência como fortuita.

Discordando dessa decisão, a Massa Insolvente da A..., Ldª, representada pela Administradora de Insolvência, veio interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

A) No dia 4 de Dezembro de 2013 foi proferida douta decisão pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, decidindo-se qualificar a insolvência da sociedade comercial “ A..., Lda.” como fortuita, na medida que a situação de insolvência da requerida não foi criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, dos seus gerentes, importando, por isso qualifica-la nos termos do artigo 186.º do código de Insolvência e de Recuperação de empresas como fortuita – o que se decidirá.”

B) Salvo o devido respeito, que é muito, a Recorrente não se pode conformar com a douta decisão que ora se recorre, pois entende-se que a decisão recorrida viola as normas consagradas n.º 1, nas alíneas b), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º em conjugação com os artigos 18.º e 20.º alínea g) todos do CIRE.

C) O tribunal a quo deu como provados os factos de A) a BBB) que se dão integralmente por reproduzidos para todos os efeitos legais.

D) Atento os factos vertidos em R, S, SS, XX, que aqui se dão integralmente por reproduzidos para todos os efeitos legais, julgados como provados pelo tribunal a quo e pelo depoimento prestado por I... gerente da insolvente e filha de C..., sócio e gerente da devedora, que “Falou com o pai, com os outros sócios e com o irmão e optaram por hipotecar novamente o prédio que já estava hipotecado a favor do L..., tendo-lhe sido feito um plano de pagamento de dívida”, salvo o devido respeito, o tribunal julgou erradamente ao considerar que não resultou demonstrado que os administradores da insolvente tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou do proveito de terceiros pois “a hipoteca para além de não ser contrária aos interesses da devedora insolvente, não beneficiou a M..., já que se serviu para garantir uma dívida real.”

E) A verdade é que o crédito da M... foi privilegiado face aos outros créditos da devedora, bem sabendo os intervenientes na outorga da escritura pública da situação de insolvência da devedora.

F) Ademais, o prédio propriedade da devedora foi onerado com mais uma hipoteca, o que implicaria sempre uma maior desvalorização do prédio.

G) Sendo que, a própria gerente da M... explica que dada a relação de proximidade (pai e filhos, tendo sido o pai sócio da M...) foi possível constituir a hipoteca a favor da M....

H) E por isso foi possível elaborar um plano de pagamento para que a M... pudesse continuar a laborar, dado o financiamento da banca - o proveito da sociedade comercial M....

I) Evidenciando já à data dificuldades da devedora já que o crédito da requerente da insolvência J..., S.A remonta ao dia 28 de Março de 2011.

J) Ora, estatui a alínea f) do artigo 186.º do CIRE que se considera a insolvência sempre culposa quando os administradores de facto ou de direito tenham: feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto.

K) Em relação ao incumprimento de dever de apresentação da devedora à insolvência atente os factos dados como provados em GG, HH, TT que aqui se dão integralmente por reproduzidos para todos os efeitos legais, e todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência e julgamento evidenciados supra em que foram consonantes em afirmar que desde o ano de 2011 a devedora estava em incumprimento com os seus credores.

L) Verificando-se a violação do dever dos sócios gerentes B... e C... apresentarem a devedora à insolvência, tal como reconhece o tribunal a quo.

M) Debatendo-se o nexo de causalidade entre a omissão culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência, que no entendimento da Recorrente resulta demonstrado de toda a factualidade apreciada nos autos e uma vez mais e com o devido respeito foi erradamente julgado pelo tribunal a quo.

N) Atente-se que devedora foi declarada insolvente no dia 17.12.2012, tendo sido requerida pelo J..., S.A. estando a devedora em incumprimento com Banco desde o dia 28 de Março de 2011.

O) Foram reclamados créditos e reconhecidos no montante global de €876.995,31 (oitocentos e setenta e seis mil, novecentos e noventa e cinco euros e trinta e um cêntimo)

P) Ora, a omissão de requerer a declaração de insolvência da devedora traduziu-se na inviabilidade de elaborar um plano de insolvência, na contracção de mais dívidas, acumulação de créditos e no incumprimento às obrigações contributivas da segurança social.

Q) É possível aferir pelos créditos reclamados que remontam a maior parte ao ano de 2011.

R) Assim sendo, é flagrante a contribuição da conduta omissiva dos sócios para a situação ou agravamento da situação de insolvência da devedora.

S) Note-se que no final do ano de 2011 já era insusceptível o cumprimento regular e atempado da generalidade das obrigações.

T) Sendo que estavam em dívida contribuições à segurança social muito além dos três meses, lapso temporal legalmente previsto no artigo 18.º n.º 3 in fine do CIRE., não sendo concebível ou válido alegar factos demonstrativos do desconhecimento, pois trata-se uma presunção inilidível.

U) Ademais, foram ainda vendidas as fracções (imóveis) por preços inferiores ao valor de mercado, sendo que foram ressalvados do acervo patrimonial da devedora alguns vendidos a familiares e amigos.

V) Sendo que uma fracção foi vendida aos próprios sócios gerentes e P....

W) Assim sendo, bem sabiam os gerentes que a mesma já se encontra numa situação de insolvência ou iminência da situação de insolvência e não actuaram.

X) Reforce-se que a devedora se encontra inactiva desde Setembro/Outubro do ano de 2011 (facto dado como provado – GG),

Y) Sendo que a omissão na apresentação da insolvência determinou o agravamento da situação económica da insolvente.

Z) Pelo que, o comportamento omissivo dos administradores da insolvência foi preponderante para a criação e/ou agravamento da situação de insolvência.

AA) Face à prova produzida em sede de audiência e julgamento, entende a Recorrente que a insolvência deverá ser ainda qualificada como culposa por se verificarem factos subsumíveis às alíneas b) e g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE

BB) No que tange ao estatuído na alínea b) n.º 2 do CIRE, a testemunha G..., economista, sobre as vendas do ano de 2010 “constatou que alguns dos compradores eram pessoas relacionadas com a administração da insolvente (o que constatou pelos apelidos)” e que “encontrou várias disparidades, numa das vendas não houve movimento financeiro; noutro caso, houve um lançamento por caixa; faltavam entrar 80.000,00 na empresa e lançaram-nos ao banco por conta de um empréstimo bancário.”,

CC) Mais a testemunha I... funcionária administrativa da devedora, gerente da M... e filha de C..., sócio da devedora “ Confirmou que houve vendas a familiares, mas diz que esses nem foram os casos piores, em que fizeram maiores descontos …” e N..., mediador imobiliário indica que “quanto à venda das fracções confirma que foram feitas vendas que não foram vantajosas…”

DD) Salvo devido respeito, face aos testemunhos ouvidos em sede de audiência e discussão de julgamento, julgou erradamente o tribunal a quo, pois as vendas das fracções foram vantajosas para familiares e para os próprios gerentes que também compraram uma fracção juntamente com um amigo P... (Acções de Impugnação n.º 1446/12.8TBCVL-F e n.º 1446/12.8TBCVL-G)

EE) Já conscientes de que a devedora estava em incumprimento generalizado com os seus credores e por isso se encontrava em situação de insolvência e por isso concretizaram as vendas sem lucro e abaixo do valor de mercado.

FF) O tribunal a quo conclui que “Também a previsão da alínea g) não estará preenchida, já que os administradores prosseguiram com a actividade societária, na convicção de que a mesma recuperaria, sendo aliás da mesma opinião da TOC da sociedade, conforme acima consignado, que referiu alias que bastaria uma renegociação da dívida bancária para recuperar a devedora insolvente”

GG) Saliente-se que a declaração de insolvência da devedora ocorreu em 17 de Dezembro de 2012.

HH) A petição de insolvência da devedora foi apresentada pelo J..., S.A., sendo que o crédito remonta ao dia 28 de Março de 2011.

II) Reforce-se ainda que a devedora se encontra inactiva desde Setembro/Outubro de 2011 (facto dado como provado – GG),

JJ) Pelo que é flagrante que não bastaria a renegociação da dívida bancária e que os gerentes da devedora estavam cientes da situação económicofinanceiro.

KK) Estando convictos de que a devedora estava em estado de insolvência, não deduziriam oposição.

LL) Em suma, tendo em conta os factos dados como provados pelo tribunal a quo e a prova produzida em sede de audiência e julgamento entende-se que a factualidade apreciada se subsume ao disposto nas alíneas b), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, bem como se verifica a violação do dever de apresentação da devedora à insolvência nos termos do artigo 186.º n.º3 aliena a) do CIRE.

MM) Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, Vol. II, 14; Carvalho Fernandes, A Qualificação da Insolvência (…), em Thémis, 2005, Ed. Especial sobre o Novo Direito da Insolvência, 94 defendem que “Da norma do nº 1 resulta claramente que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que interceda em termos de causalidade – criando-a ou agravando-a – a actuação do devedor; actuação que tem de ser dolosa ou com culpa grave. No nº 2 do mesmo artigo, estabelece-se uma presunção iure et de iure (considera-se sempre) da verificação daqueles requisitos; as situações aí previstas determinam, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposo à insolvência”

NN) Defende-se em Acórdão do Tribunal a Relação de Coimbra com data de 18-10-2011 que “A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário, bem como consequências gravosas sobre as pessoas singulares que, com a sua conduta, efectivamente contribuíram, de modo relevante, para a insolvência, sendo assim necessário avaliar a actuação concreta de quem for potencialmente atingível.

OO) Uma vez preenchida alguma das presunções de culpa enunciadas no n.º2, a culpa resulta da aplicação da lei, não sendo necessária a sua prova e, não sendo admitida prova em contrário, uma vez que a lei enuncia as situações como sempre culposas “– Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, Anotado por Maria José Esteves, Sandra Alves Amorim e Paulo Valério, 3.ª Edição, anotação do artigo 186.º do CIRE, pág. 209.

PP) O n.º 2 do artigo não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a actuação dos administradores, que não seja uma pessoa singular e a criação ou o agravamento do estado de insolvência – Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, Anotado por Maria José Esteves, Sandra Alves Amorim e Paulo Valério, 3.ª Edição, anotação do artigo 186.º do CIRE, pág. 209.

QQ) Nos autos verifica-se a omissão do dever de apresentação da devedora à insolvência, julgado pelo tribunal a quo, bem como o nexo de causalidade de culpa grave da devedora ou dos seus administradores na criação ou agravamento da insolvência nos termos supra evidenciados.

RR) Por tudo exposto, a douta decisão recorrida viola as normas consagradas nas alíneas b), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º em conjugação com os artigos 18.º e 20.º alínea g) todos do CIRE.

SS) Sendo que, deverá ser a insolvência qualificada como culposa e ser afecto pela qualificação B... e C..., os sócios gerentes da devedora.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, pugnando-se pela revogação da sentença recorrida, porconseguinte ser a insolvência da devedora qualificada como culposa nos termos do artigo 186.º n.º 2 alineas b), d) e f) e n.º3 alinea a) em conjugação com os artigos 18.º e 20.º aliena g) todos do CIRE, afectando os sócios gerentes B... e C....

B... e C... apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão ou não reunidos os pressupostos para que a insolvência possa ser qualificada como culposa, apurando, designadamente, se, como sustenta a Apelante, está preenchida a previsão do art. 186º, nº 2, alíneas b), f) e g), e nº 3, alínea a) do CIRE.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

A) A Insolvente “ A...., LDª” tinha sede na (...) Covilhã, Distrito de Castelo Branco, NIPC (...), matriculada na C. R. C. Covilhã sob n.º (...), que correspondia à anterior matricula nº (...)/2001-01-09 da Conservatória do Registo Comercial de Covilhã, com o capital social de €52.500,00.

B) O seu objecto era “Indústria de construção civil de conta própria ou alheia e comercialização das respectivas construções, actividades afins e actos de comércio inerentes, designadamente a compra e venda de bens imobiliários rústicos e urbanos, na qual se compreende a revenda dos adquiridos para esse fim”, com o CAE principal 41200- R3.

C) É Administrador da Devedora, de direito e de facto, o sócio gerente B..., com domicílio na (...)Covilhã.

D) A Insolvente iniciou a actividade em 05/1/2001 e foi matriculada pela Ap.20, na Conservatória do Registo Comercial da Covilhã, em 09/1/ 2001, integrando-se no tecido empresarial “PME”.

E) A Insolvente desenvolveu a actividade como construtora civil, desde a data da sua constituição, até Setembro de 2011.

F) O capital social no valor nominal de €52.500,00 foi subscrito por C..., casado no regime de comunhão de adquiridos com Q...; B... casado no regime de comunhão de adquiridos com D... e por E..., casado no regime de comunhão de adquiridos com FE..., via três quotas de igual valor nominal de €17.500,00/cada.

G) A Devedora obrigava-se pela assinatura de dois sócios.

H) Em 14/12/2010, o sócio E... renunciou gerência, e alienou a participação social que detinha na sociedade.

I) O corpo do contrato societário foi alterado, não só quanto à subscrição do capital social, mas também quanto à forma de a obrigar.

J) A partir de 16/12/2010, o capital social permaneceu na titularidade de C... e de B..., via 4 quotas, duas no valor nominal de €8.750,00 e duas no valor nominal de €17.500,00.

K) A estrutura da gerência ficou a cargo dos sócios C... e B....

L) Em 06/12/2011, procedeu-se a nova alteração do contrato societário via alteração dos artigos 2º, 7º e 8º, nos seguintes termos:

• A sede da sociedade foi alterada para a (...)Covilhã, Distrito de Castelo Branco;

• A sociedade passou a obrigar-se pela intervenção de uma única assinatura, ou seja, pela assinatura de B...;

M) A sociedade “COMERCIALIZAÇÃO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO M..., LDA.”, foi matriculada em 21/11/2000, com o NIPC 505.206.072.

N) Esta sociedade tem o capital social de €5.000,00, subscrito por I... e O... e ainda por C..., com duas quotas de €1.500,00 e uma de €2.000,00, respectivamente.

O) A sociedade obrigava-se pela intervenção de duas assinaturas, sendo sempre exigida a do sócio C....

P) O sócio C... foi concomitantemente sócio e gerente de ambas as sociedades até 27/5/2011.

Q) Sendo que, nesta data, subdividiu a participação social na “ M..., Lda” e transmitiu-as aos filhos.

R) Em 23/1/2012 foi outorgada uma escritura no Cartório Notarial da Covilhã onde a Insolvente, se constituiu devedora, pela quantia de €24.152,23, à sociedade “ M..., Lda.”; esta, representada pela ex-funcionária da ora Insolvente e filha do sócio de ambas as sociedades, C....

S) Nesta escritura, foi constituída, a favor da “ M..., Lda.”, uma hipoteca voluntária sobre um lote de terreno para construção urbana, descrito na C. R. Predial da Covilhã, sob nº... Santa Maria.

T) Até à sentença de declaração de insolvência a única funcionária que se manteve ao serviço da Devedora foi I....

U) A referida funcionária apenas recebeu parte da remuneração que lhe era devida.

V) No “Anexo A - QUADRO DE PESSOAL” referem-se como outros contactos da Insolvente o “... Tortosendo.

W) A morada supra corresponde à sede da sociedade “COMERCIALIZAÇÃO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO M..., LDA.”.

X) Os resultados atingidos pela Insolvente, no exercício de 2009 a 2011, foram os seguintes:

Exercício 2009: Res. Oper. €42.218,29; Res. Líqui. - €52.817,54; Res. Finan. €83.468,42

Exercício 2010: Res. Oper. €64.643,96; Res. Líqui. €7.264,27; Res. Finan. €57.263,75

Exercício 2011: Res. Oper. €151.391,35; Res. Líqui. - €202.449,43; Res. Finan. €51.058,08.

Y) Em 2010, o Activo Financeiro era de €135.877,12 e o Passivo Financeiro de €2.431.747,09 dos quais €1.139.180,05 integravam a rubrica Financiamentos obtidos.

Z) Em 2011, o Activo Financeiro era de €173.504,68 e o Passivo Financeiro de €1.184.112,84 dos quais €439.141,72 integravam a rubrica Financiamentos obtidos.

AA) Os ratios da Insolvente no exercício de 2011, no que concerne à liquidez, autonomia financeira e a solvabilidade sofreram um drástico agravamento negativo.

BB) A retracção globalizante na economia, repercutiu-se na Tesouraria da Devedora que, abruptamente, se viu imbuída por um incumprimento generalizado das suas obrigações e, consequentemente, da quebra da confiança que até então gozava.

CC) Não obstante, a Devedora, no exercício de 2010, logrou melhorar os resultados operacionais e de liquidez; não obstante, com a denúncia da sua característica de elevados encargos financeiros.

DD) A Sede da Insolvente corresponde a uma garagem com espaço reduzido, visto que apenas cabe um veículo.

EE) Os gerentes da M... são os filhos do sócio e ex-gerente da Devedora, C....

FF) A sócia e gerente da sociedade “ M..., LDA.” era a funcionária administrativa da aqui Insolvente.

GG) A Insolvente encontrava-se inactiva desde Setembro/Outubro de 2011, apresentando incumprimento para com os seus credores, nomeadamente desde Março de 2009 (credora AMM) e Junho de 2010 (credores S... ).

HH) A Insolvente tinha dívidas, nomeadamente, à Segurança Social desde Junho de 2011.

II) A Insolvente ( A....) sempre teve por objecto, em síntese, “A indústria de construção civil de conta própria ou alheia e comercialização das respectivas construções (…)”, enquanto a “ M..., Lda.” sempre teve por objecto, a “Comercialização de materiais de construção”.

JJ) A sede social da Insolvente, sempre foi desde a sua origem em 09/01/2001, no dito nº 13-A do Largo do Calvário, 6200Tortosendo.

KK) Apenas por alteração ao contrato de sociedade ocorrido e 06/12/2011, foi a sede alterada, do local originário, supra referido, para a Rua ... Tortosendo.

LL) Ou seja, a Insolvente viveu os seus melhores anos de actividade lucrativa e apogeu dos seus negócios, sediada na ... , “numa garagem de espaço reduzido, visto que apenas cabe um veículo”, adaptado a escritório, onde organizava e processava o essencial da parte formal e documental da sua actividade.

MM) Efectivamente, foi pela sede da Insolvente, como de todas as sociedades, que passaram documentos, se organizaram contratos, se emitiram facturas, se fizeram pagamentos e recebimentos etc…. o normal neste tipo de actividade.

NN) Sendo que, é daqui que depois segue toda a documentação para o Gabinete de Contabilidade contratado pela Insolvente, responsável pelo bom cumprimento de todas as obrigações fiscais e outras a que a Insolvente estava obrigada, quer por razões legais, quer contratuais.

OO) As duas empresas matricularam-se com uma diferença de cerca de 50 dias e formalmente, fixaram a sua sede no mesmo local, exactamente por uma questão formal, porque era necessário indicar uma sede.

PP) E porque, efectivamente, tal sede está implantada num imóvel que é propriedade de C... que era, ao tempo o único sócio comum às duas sociedades.

QQ) Sendo certo que a M..., Lda., sempre teve a sua sede, de facto, no local do seu estaleiro, em ... Tortosendo, onde tem toda a sua organização administrativa, celebra negócios e contratos, expõe, compra e vende materiais de construção.

RR) O tipo de utilização que a M..., Lda., faz da sua sede, enquanto comerciante de materiais de construção, é completamente diferente, muito mais presente e intensiva, do que a da Insolvente, cujo objecto era a construção civil e compra e venda de imóveis, quer os construídos, quer outros.

SS) À data da celebração da escritura referida em R) (23/01/2012), o C... já só era sócio da Insolvente, pois, em 27/05/2011, tinha cedido a sua quota na M..., Lda., aos outros dois sócios O... e I..., seus filhos.

TT) Acresce que a M..., Lda., no exercício da sua actividade de comércio de materiais de construção, vendeu à Insolvente diversos materiais ao longo dos anos, sendo que na data da escritura, a Insolvente era devedora da quantia, confessada na escritura de €24.152,23.

UU) A M..., Lda., é uma pequena empresa, a quem dívidas daquele valor (€24.152,23), criam enormes dificuldades financeiras e de liquidez para cumprir com os seus compromissos.

VV) Assim, a M..., Lda., por razões de liquidez, para ganhar credibilidade perante a banca, onde necessita de se financiar (os devedores são vários), em lugar de accionar e executar a, agora, Insolvente, exigiu a esta a constituição de uma garantia de bom cumprimento do seu crédito,

WW) Factor essencial para se financiar na Banca.

XX) A referida hipoteca é já uma segunda hipoteca sobre o identificado imóvel, sendo que a primeira hipoteca voluntária, constituída a favor da Banca, é de valor muito elevado, seguramente acima do actual valor de mercado do bem.

YY) Desta forma, a Insolvente que ainda acreditava poderia cumprir, com amortizações suaves com os seus demais credores, evitava desta forma que a M..., Lda. avançasse para as vias judiciais.

ZZ) A Insolvente celebrou negócios de milhares de euros com a R..., tendo sempre cumprido com as suas obrigações, dentro das condições e prazos convencionados, sendo de realçar as boas relações pessoais que ainda existem entre os sócios de ambas as empresas.

AAA) O crédito da S... estava em contencioso, à data em que a Insolvência foi decretada.

BBB) Na verdade a S... veio pedir o reconhecimento judicial do dito crédito através do Requerimento de Injunção nº 1476/12.9YIPRT a que a Insolvente se opôs.


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IV.

Questão prévia

Ao longo das suas alegações – designadamente nas respectivas conclusões – a Apelante alude aos depoimentos de várias testemunhas para concluir que, em face desses depoimentos, o Tribunal julgou erradamente e, portanto, coloca-se a questão de saber se o presente recurso tem ou não como objecto a impugnação da decisão da matéria de facto.

Dispõe o art. 640º, nº 1, do actual CPC (à semelhança do que dispunha o art. 685º-B do anterior CPC) que:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

E, acrescenta o nº 2 da norma citada “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Refira-se, em primeiro lugar, que a Apelante não afirma, em momento algum e de modo claro e expresso, pretender impugnar a decisão da matéria de facto e também não afirma pretender que certos e determinados factos sejam levados à matéria de facto provada. Nalguns casos, a Apelante alude aos depoimentos prestados apenas para reafirmar factos que já se encontram provados e para refutar as conclusões jurídicas que o Tribunal retirou desses factos e não para fundamentar uma qualquer pretensão no sentido de que determinados factos sejam considerados provados e, noutros casos, alude a tais depoimentos para referir factos que nem sequer havia invocado no seu parecer e que, como tal, não haviam sido levados à base instrutória, como é o caso das vendas a familiares e amigos por preços inferiores ao valor de mercado – a que alude nas conclusões U), CC), DD) e EE) das suas alegações – sem que aponte expressamente os factos concretos que, com base naqueles depoimentos, entende deverem ser considerados provados e limitando-se, de qualquer forma, a invocar factos vagos e genéricos que, como tal, não assumem qualquer relevância e não poderiam ser incluídos na matéria de facto. Além do mais, a Apelante não indica sequer, com exactidão, as passagens da gravação em que se funda, como lhe é exigido pela norma acima citada, e apenas se refere ao teor dos depoimentos através de frases curtas que não correspondem sequer, com exactidão, a qualquer excerto do depoimento, mas sim a afirmações feitas na fundamentação da decisão da matéria de facto.

Constatamos, além do mais, que os depoimentos de algumas testemunhas, designadamente o depoimento de N... e a parte final do depoimento de I..., não estão devidamente registados e são imperceptíveis, facto que impede a sua reapreciação com vista à alteração da matéria de facto, importando notar que a Apelante não invocou tal irregularidade/nulidade, sendo que, de acordo com o disposto no art. 155º, nº 4, do actual CPC (já em vigor à data em que foi proferida a sentença), tal irregularidade deve ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

Consideramos, portanto, em face do exposto e sem prejuízo das considerações que, mais adiante, faremos a propósito dos depoimentos citados pela Apelante, que a decisão proferida sobre a matéria de facto não foi devidamente impugnada, pelo que os factos a considerar serão aqueles que foram enunciados na decisão recorrida (importando notar que tais factos correspondem, quase integralmente, aos factos que haviam sido invocados pela Srª Administradora no parecer que juntou aos autos).

Direito

Sendo esses os factos a considerar, importa agora determinar, interpretar e aplicar as normas legais.

Dispõe o art. 186º, nº 1, do CIRE[2] que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, pois, de acordo com a norma citada: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Contudo, o nº 2 da norma citada enuncia um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Situação diversa ocorre nas situações previstas no nº 3 da norma citada, onde apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento do devedor – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência[3]. Por outro lado, e ao contrário do que acontece nas situações a que alude o nº 2, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 pode ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir).

Ao contrário do que se considerou na decisão recorrida (que qualificou a insolvência como fortuita), considera a Apelante que a insolvência deve ser qualificada como culposa ao abrigo do disposto nas alíneas b), f) e g)[4] do nº 2 do art. 186º e ao abrigo da alínea a) do nº 3, em conjugação com o disposto no art. 18º e no art. 20º, alínea g).

Dispõe o citado nº 2, nas alíneas b), f) e g), que se considera sempre culposa a insolvência quando os administradores do devedor tenham:

(…)

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

(…)

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

(…)”.

Para justificar a verificação da situação prevista na alínea b), alude a Apelante a vendas de fracções que teriam sido efectuadas sem lucro e abaixo do preço de mercado aos sócios e a familiares destes.

Como é bom de ver, a matéria de facto provada não contém um único facto que possa ser incluído no âmbito de previsão da citada alínea e tão pouco alude a qualquer venda de fracções.

Diz, porém, a Apelante que aquele facto resultou da prova produzida, alegando o que passamos a transcrever:

Ouvido H..., economista, sobre as vendas do ano de 2010 “constatou que alguns dos compradores eram pessoas relacionadas com a administração da insolvente (o que constatou pelos apelidos)”

Explica que encontrou várias disparidades, numa das vendas não houve movimento financeiro; noutro caso, houve um lançamento por caixa; faltavam entrar 80.000,00 na empresa e lançaram-nos ao banco por conta de um empréstimo bancário.”

I... funcionária administrativa da devedora, gerente da M... e filha de C..., sócio da devedora “ Confirmou que houve vendas a familiares, mas diz que esses nem foram os casos piores, em que fizeram maiores descontos …”

N..., mediador imobiliário indica que “quanto à venda das fracções confirma que foram feitas vendas que não foram vantajosas…

Salvo devido respeito, face aos testemunhos ouvidos em sede de audiência e discussão de julgamento, julgou erradamente o tribunal a quo, pois as vendas das fracções foram vantajosas para familiares e para os próprios gerentes que também alegadamente compraram uma fracção juntamente com um amigo P... (Acção de Impugnação n.º 1446/12.8TBCVL-F e n.º 1446/12.8TBCVL-G)”.

Já referimos supra que a Apelante não cumpriu devidamente os ónus legais referentes à impugnação da matéria de facto; mas, ainda que se entendesse que havia impugnado tal decisão, ter-se-ia que considerar que os factos que pretendia ver inseridos na matéria de facto apenas poderiam ser aqueles que constam das afirmações que constam entre aspas no excerto atrás assinalado ou que foram efectuadas vendas de fracções, sem lucro e abaixo do preço de mercado, aos sócios e a familiares destes, já que não alude a quaisquer outros.

No entanto, tais afirmações correspondem a meras generalidades e conclusões e não a factos concretos que pudessem ser inseridos na matéria de facto.

Para que se pudesse afirmar que foram efectuadas vendas de imóveis a familiares dos sócios e aos próprios sócios por valores abaixo do mercado era necessário que estivessem demonstradas as concretas vendas efectuadas, a identidade dos compradores, o preço dessas vendas e o real valor de mercado dos imóveis e, se tais vendas existiram, deveriam as mesmas ter sido invocadas e concretizadas pela Administradora da Insolvência – no parecer que apresentou – já que era ela a pessoa melhor colocada para identificar esses actos e para os trazer ao conhecimento e à apreciação do Tribunal.

Constata-se, porém, que o parecer que apresentou é totalmente omisso a esse respeito.

É certo que, por força do princípio do inquisitório consagrado no art. 11º do CIRE, a decisão do juiz pode fundar-se em factos que não foram alegados.

Mas a verdade é que dos depoimentos citados pela Apelante nada resultou que permitisse considerar provado um qualquer facto concreto referente a eventuais vendas ou negócios ruinosos com relevância para a alínea b) do nº 2 do art. 186º. 

De facto, a testemunha, H..., declara ter efectuado uma análise à contabilidade da devedora e aludiu, de facto, à venda de várias fracções, afirmando que, em algumas delas, os compradores eram pessoas relacionadas com os gerentes (afirmação que faz por causa dos nomes), sendo certo, porém, que apenas identificou uma dessas pessoas (G...). Por outro lado, embora aluda a várias disparidades ou irregularidades na contabilidade (para afirmar que a mesma não tem credibilidade), nada resultou do seu depoimento que permita afirmar que aquelas vendas tenham sido efectuadas abaixo do preço de mercado, sendo certo que não se pronunciou sequer sobre o real valor dos imóveis. É certo, pois, que a testemunha em causa nada relatou de concreto que tivesse relevância para a citada alínea b).

O mesmo acontece com a testemunha, I..., sendo que, na parte do seu depoimento que conseguimos ouvir (já que, como referimos supra, a parte final não é perceptível), confirma, em termos genéricos e não concretizados, a existência de vendas abaixo do custo, referindo, no entanto, que tal foi o resultado da crise que se havia instalado e da necessidade de vender a preços inferiores (porque de outro modo não conseguiam vender) com o objectivo de se libertarem de alguma das responsabilidades que haviam assumido por força do financiamento bancário que lhes havia sido concedido.

Mais uma vez, não retiramos deste depoimento quaisquer circunstâncias concretas que nos permitam concluir pela verificação da situação prevista na citada alínea b), porquanto, ainda que as vendas tivessem sido efectuadas por preço inferior ao valor de mercado, nada resultou desse depoimento que nos permitisse classificar esses negócios como ruinosos e efectuados em proveito dos administradores ou de pessoas com eles relacionadas; estariam apenas em causa negócios que, apesar de terem sido realizados sem lucro ou com lucro reduzido, ainda assim teriam sido realizados no interesse e em proveito da devedora, já que, no contexto de crise que estava instalado no sector, não seria fácil vender os imóveis por preço superior e, nessa perspectiva, sempre seria preferível vender a um preço inferior que permitisse solver alguma das suas responsabilidades perante o Banco, já que a alternativa passava por não vender.

Tal como referimos, não conseguimos ouvir o depoimento de N..., dadas as deficiências de que padece. De qualquer forma, ainda que se admita que ele disse o que afirma a Apelante, ou seja, que confirma a existência de vendas não vantajosas, sempre estaria em causa uma mera conclusão da testemunha sem qualquer relevo prático. Além do mais, vendas não vantajosas não correspondem a negócios ruinosos.

Ao contrário do que parece pretender a Apelante, a verificação da situação prevista na citada alínea b) não se basta com a circunstância de terem sido vendidos imóveis por valores abaixo do mercado; a previsão da citada alínea – na parte que ora nos interessa – exige a celebração de negócios que tenham sido ruinosos para a devedora e que tenham sido celebrados em proveito dos administradores ou de pessoas com eles relacionada.

Ora, tal como se referiu, a mera circunstância de os bens serem vendidos por valores abaixo do valor de mercado não equivale a dizer que esses negócios foram ruinosos para a devedora; tais negócios poderão, ainda assim, ter sido celebrados no interesse da devedora, porquanto, num contexto de crise em que caíram substancialmente as vendas de imóveis, parece-nos seguro afirmar que as vendas efectuadas por preços um pouco inferiores (por não ser possível obter preço superior) ainda servirão os interesses da devedora, sendo que a alternativa passava por não vender os imóveis e, consequentemente, agravar a difícil situação económica em que se encontrava.

Não dispomos, pois, de quaisquer elementos concretos que nos permitam concluir pela celebração de negócios que tenham sido ruinosos para a devedora e que tenham sido celebrados em proveito dos seus sócios/gerentes ou de pessoas com eles especialmente relacionadas. Para que fosse possível formular tal conclusão seria necessários saber quais os concretos negócios que foram efectuados, quais as pessoas que tiveram intervenção nesses negócios, quais os preços contratados em cada um desses negócios e quais os reais e exactos valores de mercado de cada um dos imóveis em causa. Só com esses factos concretos seria possível formular um juízo acerca do carácter ruinoso desses negócios para a devedora e acerca do proveito obtido pelos seus administradores ou por pessoas com eles especialmente relacionadas. A verdade é que esses factos não foram alegados e também não resultaram da prova produzida, sendo que, como se referiu, os depoimentos das testemunhas limitam-se a afirmações vagas, genéricas e conclusivas que, como tal, não assumem qualquer relevância.

Para justificar a verificação da situação prevista na alínea f), alude a Apelante aos factos enunciados na matéria de facto provada sob as alíneas R), S), SS) e XX), dizendo que o crédito da M... foi privilegiado face aos outros créditos da devedora, sendo certo que os intervenientes nessa escritura pública sabiam da situação de insolvência da devedora e que o prédio propriedade da devedora foi onerado com mais uma hipoteca, o que implicaria sempre uma maior desvalorização do prédio, mais sustentando a Apelante que, por força dessa hipoteca, foi possível elaborar um plano de pagamento para que a M... pudesse continuar a laborar, dado o financiamento à banca, sendo, por isso, flagrante o proveito da sociedade comercial M... com a constituição da hipoteca sobre o prédio da devedora.

Está provado, efectivamente, nos pontos a que alude a Apelante que: em 23/1/2012 foi outorgada uma escritura no Cartório Notarial da Covilhã onde a Insolvente, se constituiu devedora, pela quantia de €24.152,23, à sociedade “ M..., Lda.”; esta, representada pela ex-funcionária da ora Insolvente e filha do sócio de ambas as sociedades, C...; nessa escritura, foi constituída, a favor da “ M..., Lda.”, uma hipoteca voluntária sobre um lote de terreno para construção urbana, descrito na C. R. Predial da Covilhã, sob nº... Santa Maria; à data da celebração dessa escritura o C... já só era sócio da Insolvente, pois, em 27/05/2011, tinha cedido a sua quota na M..., Lda., aos outros dois sócios O... e I..., seus filhos; a referida hipoteca é já uma segunda hipoteca sobre o identificado imóvel, sendo que a primeira hipoteca voluntária, constituída a favor da Banca, é de valor muito elevado, seguramente acima do actual valor de mercado do bem.

Não nos parece, no entanto, que esses factos permitam concluir pela verificação da situação prevista na citada alínea f).

Importa notar que, como decorre da matéria de facto (e esse ponto de facto não objecto de qualquer impugnação), o débito da devedora relativamente à M..., para garantia do qual foi constituída a hipoteca, existia efectivamente, já que esta havia vendido à Insolvente diversos materiais ao longo dos anos, sendo esta devedora da quantia de €24.152,23.

Não nos parece, portanto, que a constituição dessa hipoteca corresponda a um uso do bem contrário ao interesse da devedora, ora Insolvente; tal hipoteca foi constituída para garantia de um débito da Insolvente e, portanto, foi constituída em seu benefício, no seu interesse e para evitar – como também resulta da matéria de facto provada – que a M... recorresse às vias judiciais para obter o pagamento desse crédito num momento em que a Insolvente ainda acreditava poder cumprir as suas obrigações.

E, se é certo, na nossa perspectiva, não poder afirmar-se que a constituição dessa hipoteca corresponda a um uso do bem contrário ao interesse da devedora, também será, no mínimo, discutível a afirmação de que esse facto redundou em flagrante proveito da M..., já que, sendo ela credora da Insolvente pelo valor que a hipoteca garantia, não parece que tenha retirado dessa hipoteca qualquer proveito que não pudesse ter obtido com o efectivo pagamento da quantia que lhe era devida, até porque, como também resulta da matéria de facto provada, tal hipoteca nem sequer lhe dava qualquer garantia efectiva, uma vez que o imóvel já estava onerado com outra hipoteca, constituída a favor da Banca, que garantia um crédito de valor muito elevado, seguramente acima do actual valor de mercado do bem.

Poderemos até admitir que a constituição da hipoteca – eventualmente facilitada pelas relações familiares existentes entre os sócios/gerentes de ambas as sociedades – tenha beneficiado a M..., na medida em que lhe terá permitido obter, junto da Banca, o financiamento que, de outro modo, talvez não conseguisse, na medida em que a Insolvente poderia não ter meios para lhe pagar o seu débito. Mas esse benefício era justificado, porquanto a M... era, efectivamente, credora da Insolvente, não obstante se possa argumentar que esse benefício – concedido a essa credora dadas as relações familiares existentes – não foi concedido a outros credores cujos créditos também estavam vencidos.

De qualquer forma, este benefício ou favorecimento da M... relativamente a outros credores da Insolvente não é bastante para configurar a situação prevista na citada alínea f), já que, para este efeito, era necessário que a constituição da hipoteca correspondesse a um uso do bem contrário ao interesse da devedora/insolvente e, tal como referimos, isso não acontece, na medida em que tal hipoteca foi constituída para garantia de um débito da Insolvente e para evitar que esse débito fosse exigido judicialmente (com a penhora e venda dos seus bens).

Veja-se a este propósito o art. 6º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais, onde se determina que “considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedades em relação de domínio ou de grupo”.

Daí se extrai a conclusão de aquilo que a lei considera contrário ao fim da sociedade – e, portanto, contrário ao seu interesse – é a prestação de garantias, reais ou pessoais, a dívidas de outras entidades se a sociedade não tiver qualquer interesse próprio na prestação dessa garantia. Tal já não acontece quando a garantia prestada se reporta a uma dívida da própria sociedade, sendo que, neste caso, está em causa um acto do interesse da própria devedora, já que, sendo ela a responsável pelo débito, tem evidente interesse na prestação da garantia que é exigida pelo credor.

A constituição da hipoteca a favor da M... poderá configurar uma quebra do princípio da igualdade entre os credores, já que cria um benefício a favor de um credor com o inerente prejuízo para os demais, e, nessa medida, esse acto poderá ser resolúvel em benefício da massa insolvente se tiver sido praticado nos seis meses anteriores ao início do processo de insolvência (art. 121º, nº 1, alínea c) do CIRE) ou se, tendo sido praticado nos quatro anos anteriores ao início do processo, ocorrerem os demais requisitos que são exigidos no art. 120º.

No entanto, ainda que seja um acto prejudicial à massa – na medida em que afecta a satisfação dos credores não beneficiados com a garantia – e, como tal, resolúvel em benefício da massa, nos termos acima assinalados, tal acto não configura um uso do bem contrário ao interesse da devedora, para efeitos de qualificar a insolvência como culposa, ao abrigo do disposto no art. 186º, nº 2, f).

No sentido de justificar a verificação da situação prevista na alínea g) do nº 2 do citado art. 186º, diz a Apelante que: a declaração de insolvência da devedora ocorreu em 17 de Dezembro de 2012, sendo que a insolvência foi requerida pelo J..., S.A.; a última prestação paga ao credor – requerente data de 28 de Março de 2011; a devedora encontra-se inactiva desde Setembro/Outubro de 2011; é flagrante que, ao contrário do que se refere na decisão recorrida, não bastaria a renegociação da dívida bancária e que os gerentes da devedora estavam cientes da situação económico-financeiro, adoptando condutas que contribuíram para a situação de insolvência da devedora.

Mas, mais uma vez, não dispomos de quaisquer factos concretos que nos permitam concluir pela verificação da situação prevista na citada alínea.

Nos termos da norma citada, considera-se culposa a insolvência quando os administradores do devedor que não seja pessoa singular tenham “prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”.

Importa notar que o que está aqui em causa não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza. A situação ali prevista pressupõe a prossecução de uma determinada actividade cuja exploração se revele deficitária e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiro. Está em causa, portanto, uma determina actividade deficitária, que é exercida em nome do devedor, fazendo reflectir no seu património os prejuízos inerentes, mas sem que para ele exista qualquer benefício, porquanto tal actividade não é exercida no seu interesse, mas sim no interesse pessoal dos respectivos administradores ou de terceira pessoa.

Com efeito, o que se dispõe (claramente) na citada alínea g) é que a insolvência se considera culposa quando os administradores do devedor (pessoa colectiva) prossigam uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou de terceiro, e, portanto, não estão abrangidas na previsão legal as situações em que os administradores prosseguem essa exploração deficitária no interesse do próprio devedor.

Assim sendo, a mera circunstância de os gerentes da devedora estarem (ou deverem estar) cientes da situação de insolvência (ou pré-insolvência) em que esta se encontrava e de, ainda assim, terem prosseguido a actividade deficitária não é bastante para que se considere verificada a situação prevista na citada alínea; para tal, seria necessário, como vimos, que a exploração deficitária fosse prosseguida no interesse pessoal dos administradores da devedora ou no interesse de terceiro e nada resultou da prova produzida que aponte nesse sentido.

Sabemos apenas – porque resulta da matéria de facto provada – que a Insolvente se encontrava inactiva desde Setembro/Outubro de 2011, apresentando incumprimento para com os seus credores, nomeadamente desde Março de 2009 (credora AMM) e Junho de 2010 (credores S... ), sendo que a Insolvente tinha dívidas, nomeadamente, à Segurança Social desde Junho de 2011.

A verdade é que desses factos nada poderemos extrair com relevância para a citada alínea; tais factos apenas nos permitiriam concluir, quando muito, que a devedora estava em situação económica difícil desde 2009/2010 (data em que já estava em incumprimento para com os seus credores, ainda que, em 2010, a Insolvente tenha melhorado os resultados operacionais e de liquidez, tendo apresentado ainda um resultado líquido positivo) e que, pelo menos em 2011, ficou em situação de insolvência já que ficou inactiva. No entanto, ainda que, a partir de 2009/2010 e até finais de 2011, os administradores da devedora tenham prosseguido a sua actividade (que já seria deficitária), nada indicia que o tenham feito no seu próprio interesse ou no interesse de terceiro e, portanto, parece que a única coisa que lhes poderá ser imputada – em face da matéria de facto provada – é a violação do dever de apresentação à insolvência, mas essa circunstância apenas relevará para efeitos da alínea a) do nº 3 e não para efeitos de verificação da alínea g) do nº 2.

Não ocorre, portanto, nenhuma das situações a que aludem as alíneas do nº 2 do art. 186º que são invocadas pela Apelante.

Resta saber se está ou não verificada a situação prevista na alínea a) do nº 3, que é igualmente invocada pela Apelante, onde se determina que se presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

Importa reafirmar que, ao contrário do que acontece nas situações previstas no nº 2 do citado art. 186º (cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário – que em tais situações a insolvência é sempre culposa), nas situações previstas no nº 3 apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência[5] e admitindo-se, por outro lado, a possibilidade de tal presunção de culpa ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir).

Vejamos, portanto, se, com fundamento na citada alínea – necessariamente conjugada com o disposto no nº 1 da norma citada, no que toca aos demais pressupostos exigidos – é possível qualificar a insolvência como culposa.

Tal como resulta do disposto no art. 18º, nº 1, do CIRE, o devedor (que seja titular de uma empresa) tem o dever de requerer a declaração da sua insolvência dentro de determinado prazo a contar da data em que teve conhecimento da situação da insolvência ou da data em que devesse ter tomado esse conhecimento. Esse prazo, que se encontrava fixado em 60 dias, é actualmente de 30 dias, por força das alterações introduzidas à norma citada pela Lei nº 16/2012, de 20/04.

Dispõe, por outro lado, o nº 3 da citada disposição legal, que “quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º”.

A matéria de facto provada não nos fornece muitos elementos que permitam determinar a data em que ocorreu a situação de insolvência e a data em que os administradores da devedora deveriam ter tomado conhecimento da situação e, apesar de estar provado que a Insolvente tinha dívidas à Segurança Social desde 2011, é discutível que este facto tenha relevância para os efeitos previstos no nº 3 do citado art. 18º, na medida em que a sua aplicação pressupõe um incumprimento generalizado desse tipo de dívidas e a matéria de facto não é clara a esse propósito. Mas, ainda que se considere que tal incumprimento era generalizado, ele apenas ocorreu a partir de Junho de 2011 e, portanto, face ao disposto no art. 18º, nº 3, presumir-se-ia, de forma inilidível, o conhecimento da situação da insolvência decorridos três meses, ou seja, em Setembro de 2011.

Seja como for, parece-nos certo que, em Setembro/Outubro de 2011, a situação de insolvência era conhecida pelos administradores da devedora, já que, a partir dessa data, a Insolvente ficou inactiva e, portanto, ficou sem possibilidade real de satisfazer as suas obrigações já vencidas, sendo certo que já estava em incumprimento para com os seus credores (incumprimento que vá perdurava desde 2009/2010) e já tinha dívidas à Segurança Social.

Assim, deveriam os administradores da devedora ter requerido a insolvência até Novembro/Dezembro de 2011, já que, à data, o prazo estabelecido para esse efeito estava fixado em 60 dias.

Impõe-se, por isso, concluir que os administradores da devedora incumpriram efectivamente o dever de requerer a declaração da insolvência, razão pela qual se presume a existência de culpa grave para efeitos de qualificação da insolvência, conforme preceitua o nº 3, alínea a), do art. 186º.

Mas, tal como referimos supra, isso não basta para que a insolvência seja considerada culposa; para tanto, seria ainda necessário – como impõe o nº 1 do art. 186º – que o incumprimento desse dever tivesse criado ou agravado a situação da insolvência.

A verdade é que a matéria de facto de que dispomos é insuficiente para estabelecer esse nexo de causalidade.

Com efeito, não existem quaisquer elementos que nos permitam afirmar – de forma segura – que a insolvência tivesse ocorrido antes de Setembro/Outubro de 2011 e, portanto, não poderemos reportar a momento anterior o incumprimento do dever de requerer a insolvência. Ora, admitindo que, só a partir desse momento, os administradores da devedora tinham o dever de requerer a insolvência, será imperioso concluir que o incumprimento desse dever (reportado, como se disse, a Novembro/Dezembro de 2011) não determinou a criação ou agravamento da situação de insolvência. Não determinou a criação dessa situação porque ela já existia (sendo certo, aliás, que o incumprimento desse dever pressupõe a prévia existência da situação de insolvência) e também não terá determinado o seu agravamento, porquanto a sociedade deixou, a partir dessa data, de exercer qualquer actividade e, portanto, não terá gerado e contraído novos débitos, nem terá diminuído o seu património (pelo menos, não há qualquer notícia disso).

É certo que o atraso na apresentação à insolvência implicará sempre um aumento do passivo por força do vencimento de juros sobre os débitos da devedora, mas, salvo o devido respeito, isso não basta para concluir que o atraso na apresentação à insolvência determinou um agravamento da situação de insolvência, para efeitos de considerar a insolvência como culposa. Com efeito, se assim fosse e estando em causa um aumento do passivo que decorre automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, o legislador, caso tivesse considerado que isso era bastante para qualificar a insolvência como culposa, teria considerado que o incumprimento do dever de requerer a insolvência determinaria sempre a qualificação como culposa (tal como fez nas situações previstas no nº 2); não o tendo feito e limitando-se a estabelecer uma presunção de culpa grave e a exigir um nexo de causalidade entre esse incumprimento e a criação ou agravamento da situação de insolvência, será legítimo concluir que este agravamento da situação de insolvência há-de ser coisa diversa do mero agravamento do passivo que, decorrendo apenas do vencimento de juros de mora, ocorre sempre como consequência necessária e directa do atraso na apresentação à insolvência.

Ora, além do vencimento de juros, nada resulta da matéria de facto que permita concluir por um qualquer agravamento da situação de insolvência como consequência do incumprimento do dever de requerer a insolvência; não está provado que, desde o momento em que a insolvência deveria ser requerida (momento que não poderemos situar em data anterior a Setembro/Outubro de 2011 e que se prolongaria até Novembro/Dezembro do mesmo ano) a devedora tenha contraído novos débitos e aumentado o seu passivo e não está provado que tenha ocorrido qualquer diminuição do seu activo, sendo certo que, a partir dessa data, a devedora ficou inactiva.

Tal como decorre da matéria de facto, a situação de insolvência terá sido determinada pela retracção globalizante na economia, situação que se repercutiu na Tesouraria da Devedora que, abruptamente, se viu imbuída por um incumprimento generalizado das suas obrigações e, consequentemente, da quebra da confiança que até então gozava, daí resultando que os ratios da Insolvente no exercício de 2011, no que concerne à liquidez, autonomia financeira e a solvabilidade sofreram um drástico agravamento negativo.

E, como procurámos demonstrar, não encontramos na matéria de facto qualquer indício de que a situação de insolvência – que já existia como decorrência da retracção da economia – tivesse sido agravada pela circunstância de os administradores da Insolvente não terem requerido a insolvência no prazo estabelecido na lei.

Nessa medida, a insolvência também não poderá ser qualificada como culposa por força do disposto na alínea a) do nº 3 da citada disposição legal.

Assim, improcedem os argumentos da Apelante e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A mera alegação – com carácter vago e conclusivo – de que os administradores da devedora (em cujo objecto se incluía a construção e venda de imóveis) venderam imóveis por valores abaixo de mercado – sem que estejam devidamente identificados esses negócios, bem como o preço acordado e o real valor de mercado dos imóveis transaccionados – não é suficiente para concluir que esses negócios (celebrados num contexto de crise económica instalada no sector) foram ruinosos e que, como tal, poderão integrar o âmbito de previsão do art. 186º, nº 2, alínea b), parte final, do CIRE;

II – A constituição de uma hipoteca para garantia de um débito da devedora (débito cuja existência se demonstrou), para evitar que o credor o exigisse judicialmente, não corresponde a um uso do bem que seja contrário ao interesse da devedora e que, como tal, possa ser integrado no âmbito de previsão do art. 186º, nº 2, alínea f), parte final, do CIRE; a constituição dessa hipoteca poderá corresponder a um tratamento preferencial do respectivo credor relativamente aos demais e, nessa medida, poderá ser resolúvel em benefício da massa, caso se verifiquem os pressupostos legais, mas não configura um uso do bem contrário aos interesses da devedora para efeitos de qualificação da insolvência ao abrigo da norma acima mencionada;

III - A mera circunstância de os gerentes da devedora estarem (ou deverem estar) cientes da situação de insolvência (ou pré-insolvência) em que esta se encontrava e de, ainda assim, terem prosseguido a actividade deficitária não é bastante para que se considere verificada a situação prevista no art. 186º, nº 2, alínea g), do CIRE, sendo ainda necessário que tal exploração deficitária seja prosseguida no interesse pessoal dos administradores da devedora ou no interesse de terceiro;

IV - Ao contrário do que acontece nas situações previstas no nº 2 do citado art. 186º (cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário – que em tais situações a insolvência é sempre culposa), nas situações previstas no nº 3 apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência;

V – Assim, o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência apenas permite presumir – ao abrigo do disposto no art. 186º, nº 3, alínea b), do CIRE – a existência de culpa grave; para que esse incumprimento possa determinar a qualificação da insolvência como culposa é necessário ainda que se demonstre que o incumprimento desse dever criou ou agravou a situação de insolvência.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Massa Insolvente.
Notifique.

Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Reg. nº 176.
[2] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[3] Cfr. Ac. do STJ de 06/10/2011, proc. nº 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Refira-se que, apesar de fazer referência à alínea d) da norma citada, em determinados pontos das suas alegações, tal referência parece corresponder a um lapso, já que a Apelante não faz quaisquer considerações a propósito dessa alínea, mas sim a propósito da alínea g) e, portanto, será a esta alínea e não àquela que a Apelante pretende reportar-se.
[5] Cfr. Ac. do STJ de 06/10/2011, proc. nº 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.