Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1207/21.2T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DE ARTICULADO
PROMESSA DE CUMPRIMENTO E RECONHECIMENTO DE DÍVIDA
ALEGAÇÃO DA RELAÇÃO FUNDAMENTAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 458.º E 342.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL, 581º, N.º 4, E 590.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Se, da posição assumida pelos autores nos seus articulados, ressalta que a relação fundamental que subjaz à declaração de reconhecimento de dívida não coincide com a relação que constituiu a causa de pedir que suporta o pedido formulado na ação, não se impõe ao juiz qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação respeitante à factualidade que subjaz ao reconhecimento de dívida.
II – A promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida a que se reporta o artigo 458º CC só dispensa o credor de provar a relação fundamental, mas não da respetiva alegação: a ilação que permite dar como provado o facto constitutivo da obrigação não é extraída diretamente da declaração do devedor, mas sim do conjunto formado por esta declaração e pela alegação do credor.

III – Para que a inversão do ónus da prova se produza, a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida tem de respeitar a forma legalmente exigida para a relação fundamental (nº2 do artigo 458º CC).

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral: Processo nº 1207/21.2T8CTB.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Arlindo Oliveira

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA e BB, intentam a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

1. CC e esposa, DD, e

2. C..., Lda.

Pedindo:

a condenação dos réus “a pagar o capital mutuado, em dívida, no montante de € 100.000,00, bem como a pagar os juros convencionados e vencidos, à taxa de 6% ao ano, no montante de € 30.000,00, bem como os juros vincendos até integral pagamento da dívida.

Alegando, para tanto e em síntese:

os 1º e 2º RR., enquanto comerciantes, reconheceram, no dia .../.../1993, que haviam recebido até aí do falecido EE, empréstimo, em dinheiro, no valor de 5.000.000$00, equivalente a € 24.938,65, à taxa de juro anual de 15% (…); juro que os Réus pagaram durante algum tempo;

daí que, nos anos seguintes àquele primeiro mútuo, em data incerta, EE tenha continuado a entregar verbas aos réus, a título de empréstimo;

 ascendendo a dívida destes, no dia 1 de outubro de 2011, ao montante de € 101.700,00, pagamento que garantiram através de dois cheques;

verbalmente interpelados pelo credor, os Réus declararam necessitar de mais tempo para pagar a dívida em causa, tendo, no dia 4 de setembro de 2013, confessado que eram devedores da quantia de € 100.000,00, “cujo juro seria pago à taxa de 6% anualmente”;

tendo em conta que “o montante mutuado, e confessado, foi entregue aos Réus em pequenas quantias, nunca de valor igual ou superior a 25.000,00 euros”, não se verifica qualquer nulidade por falta de forma, razão pela qual é devido o pagamento, pelos Réus, do capital em dívida e dos juros convencionados.

Os Réus apresentam Contestação/Reconvenção, na qual apresentam a sua defesa nos seguintes termos:

invocam a nulidade do contrato de mútuo outorgado no dia 1 de outubro de 1993, nos termos do qual lhes foi emprestada a quantia de 5.000.000$00, em virtude de não ter sido observada a forma legalmente exigida;

os réus procederam ao pagamento ao aludido EE quantia superior à mutuada, através de cheques do Banco 1...: datado de 01.10.2009, na quantia de 5.000,00 €; datado de 01.10.2009, a quantia de 15.000,00€; e de 01.10.2010, a quantia de 12.350,00 €, num total de 37.350,00 €;

uma vez que, para além de terem procedido à restituição da quantia mutuada, os Réus pagaram ainda ao mutuante a quantia de € 12.410,11 a título de juros, é-lhes devida a restituição desta quantia, já que a nulidade do contrato de mútuo celebrado importa a restituição de tudo o que tiver sido prestado em cumprimento do mesmo;

mais impugnam o conteúdo, letra e assinatura do documento datado de 4 de setembro de 2013 e os cheques juntos com a petição inicial, que alegam ter assinado em branco e entregado ao mutuante EE devido às ameaças por este efetuadas.

Concluem pela improcedência da ação, pedindo, em reconvenção que, se declare nulo por falta de forma o contrato de mútuo a que se reporta o documento datado de .../.../1993, ordenando-se a restituição do que a tal respeito foi pago a título de juros, no montante de 12.410,11 €, acrescido de juros de mora.

Mais solicitam a condenação dos autores, como litigantes de má fé, no pagamento de indemnização de valor não inferior a € 10.000,0.

Os Autores apresentam réplica, alegando em síntese:

os autores nunca ocultaram que os R.R. fizeram entregas para pagar juros durante alguns anos, fazendo pagamentos por conta da conta-corrente, que haviam estabelecido com o autor da sucessão EE”, visando a dedução do pedido reconvencional “confundir a realidade dos factos”;

encontra-se prejudicada a exceção de nulidade referente ao mútuo a que se reporta o documento datado de 1 de outubro de 1993, já que “o que verdadeiramente suporta os presentes autos não é o empréstimo inicial, nem os demais cheques, que os A.A. referiram e trouxeram aos autos para contextualizar a relação havida, entre mutuante e mutuários durante duas décadas, e justificar também a demanda da sociedade 3ª R.;

o pedido dos autores tem por fundamento a confissão de dívida, de 100.000,00 € entregue pelos R.R. fizeram ao credor/mutuante EE e que agora negam ter escrito e assinado de livre vontade;

 Concluem, solicitando a condenação dos réus, a título de litigância de má fé, no pagamento de uma indemnização, no valor de € 5.000,00, a favor dos Autores

 A audiência prévia foi dispensada, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida a seguinte Sentença:

VI. Decisão

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação improcedente e, em consequência, absolver os Réus CC, DD e C..., Lda. dos pedidos contra si formulados pelos Autores.

Mais decido julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, declarar a nulidade do contrato de mútuo referente ao montante de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos) a que se reporta a declaração subscrita pelos Réus no dia 1 de outubro de 1993, absolvendo os Autores AA e BB do pedido de pagamento da quantia peticionada pelos Réus.

Por último, decido ainda condenar os Réus CC e DD, como litigantes de má fé, no pagamento de multa, que fixo em montante equivalente a 10 UC’s (dez unidades de conta), assim como no pagamento, aos Autores, de todas as despesas pelos mesmos suportadas em consequência da litigância de má fé dos Réus, incluindo os honorários devidos ao seu Ilustre Mandatário, cujo montante será fixado, até ao valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), após o trânsito em julgado desta sentença.

Pelo contrário, absolvo os Autores do pedido de condenação a título de litigância de má fé formulado pelos Réus.

As custas da ação ficam a cargo dos Autores, ficando as custas da reconvenção a cargo dos Réus (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).

As custas do incidente de litigância de má fé ficam a cargo dos Réus, fixando-se a taxa de justiça devida em uma unidade de conta (cfr. artigo 7º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela II anexa ao mesmo diploma).

Registe (como “decisão de mérito – com julgamento”) e notifique. “ 


*

Não se conformando com tal sentença, os Autores dela interpõem recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

 1. Recorrentes não se conformam com a sentença aqui posta em crise, por ser nula, bem como porque o juiz decisor fez uma incorreta apreciação da matéria de facto, cometendo erros na apreciação da prova;

2. Os Recorrentes não estão a impugnar o dispositivo na parcela que condena os Recorridos a título de litigância de má-fé;

3. O despacho saneador, neste processo, indica que as posições das partes e a matéria de facto foram expostas, em sede de articulados, de forma clara e percetível, tendo dispensado audiência prévia;

4. O mesmo despacho saneador determina que não se mostra pertinente a adoção de qualquer medida de gestão processual e adequação formal, nos termos previstos nos artigos 6.º, n.º 1, e 547.º do CPC, bem como

5. Ainda no mesmo despacho, o tribunal estabeleceu que não existiam quaisquer outras questões prévias que cumprisse conhecer e que obstassem à apreciação do mérito da causa, tendo fixado o objeto do litígio e os temas da prova;

6. Nunca foi referido que houvesse défices de alegação ou o não cumprimento do ónus de alegação (artigo 5.º do CPC), antes pelo contrário;

7. Os Recorrentes foram confrontados com uma decisão surpresa contrária às suas pretensões e, em parte, escorada no não cumprimento do ónus de alegação, relativamente aos factos essenciais que constituiriam o fundamento da relação contratual subjacente ao reconhecimento da dívida no valor de € 100.000,00 efetuada pelos Réus;

8. Este fundamento plasmado em sentença foi essencial para o tribunal afastar a inversão do ónus da prova dos factos constitutivos da relação causal subjacente ao reconhecimento de dívida, que, por força da declaração, seria dos Recorridos, sendo matéria de indelével relevância para a decisão final;

9. Nestes termos, vir afirmar, com repercussões inultrapassáveis para a decisão de mérito, que o ónus de alegação não foi cumprido, evidencia-se profundamente contraditório e até injusto;

10. O tribunal violou o dever de cooperação para com os Recorrentes e não exerceu o seu dever de os convidar a aperfeiçoarem a Petição Inicial e, possivelmente, a Réplica;

11. O comando do artigo 590.º n.º4 do CPC é um dever funcional, estando fora de qualquer discricionariedade do tribunal;

12. O tribunal não pode evadir-se ao convite ao aperfeiçoamento do articulado e, na sentença final, considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta de factos que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a esse aperfeiçoamento (vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 11-01-2021, referente ao processo n.º 3163/19.8T8OAZ.P1);

13. A ausência do convite neste processo configura, também, uma violação do princípio da igualdade de armas (imanente ao princípio da igualdade das partes – artigo 4.º do CPC), porque os Recorridos foram convidados a aperfeiçoar a sua Contestação, acompanhada de Reconvenção;

14. Ora, o convite ao aperfeiçoamento de articulados é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual (artigo 195.º do CPC e Acórdão da Relação de Évora, de 24-10-2019, referente ao processo n.º 153/18.1T8LGS.E1);

15. Se o teor dispositivo da sentença vier a ser determinantemente influenciado por algo que poderia ser corrigido através do convite ao aperfeiçoamento, mesmo que a nulidade inicial esteja sanada, a sentença passa a ser nula por excesso de pronúncia, com consequências para todo o processado (vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 11-01-2021, referente ao processo n.º 3163/19.8T8OAZ.P1);

16. Esta sentença é nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC), visto que dá relevância à deficiência do articulado e conhece de matéria que, perante a omissão do dever de cooperação, não poderia conhecer;

17. O que obriga a que o processo seja devolvido à 1.ª Instância para que seja conferido aos Recorrentes a possibilidade de apresentarem articulados aperfeiçoados e, dessa forma, se vier a haver recurso de novo, para que o tribunal superior esteja em condições de apreciar o mérito da causa (artigo 665.º, n.º, do CPC);

18. De acordo com o princípio do dispositivo (artigo 3.º, n.º 1, do CPC), recai sobre os juízes o mandamento de não dar mais do que foi pedido;

19. (…);

20. O pedido dos Recorrentes solicita que os Recorridos sejam condenados a pagar o capital mutuado em dívida, acrescido dos juros convencionados, não sendo discriminado, em específico, de que mútuos se trata;

21. Mesmo que o tribunal tenha incertezas quanto à origem das dívidas e à ligação destas com a aludida declaração de reconhecimento de dívida, atendendo a que os Recorrentes estavam a pedir aquilo que está reconhecido nessa declaração, está dentro dos poderes do tribunal decidir em conformidade com o que é pedido, que é aquilo que está expresso no reconhecimento de dívida;

22. O tribunal deu por provado que os Recorridos assumiram uma dívida através de uma declaração que o tribunal deu por provado que foi assinada por estes últimos;

23. Se o tribunal deu por provado o Facto Provado n.º 7, não se pode eximir às consequências dessa decisão, para além das questões referentes ao ónus da prova;

24. Nos termos do 458.º do Código Civil, o documento particular faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento, e também os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, referente ao processo n.º 411/21.8T8OVR.P1, datado de 24-11-2022);

25. A declaração não concretiza a relação que está na origem da dívida, mas constitui uma confissão de uma dívida e das declarações que nela estão incluídas, isto é, que os Recorridos abonaram a existência de uma dívida e que, a partir dali, reiniciaram as relações credor-devedor, obrigando-se a pagar €100.000,00 (cem mil euros) com juros remuneratórios a uma taxa convencionada de 6%;

26. A prova do facto provado n.º 7, por efeito causal, obriga a um novo facto provado, Facto Provado n.º 15, que se traduz em: “Os Recorridos, com o assentimento dos Recorrentes, decidiram recomeçar as suas obrigações, enquanto devedores, para com os Recorrentes, anulando tudo o que estivesse para trás, estabelecendo que lhes deviam €100.000,00 (cem mil euros) acrescidos de juros anuais calculados à taxa convencionada de 6%”;

27. Deve ser alterada a matéria de facto provada, acrescentando-se o Facto Provado n.º 15;

28. A própria declaração faz prova dos factos, sem prejuízo das questões de ónus da prova;

29. Conjugando o Facto Provado n.º 15 com os Factos Provados 11 a 14, compreende-se que os pagamentos que ocorreram foram anteriores à data de 2013;

30. Logo, não poderiam estes servir de factos modificativos da relação obrigacional materializada com a declaração de dívida;

31. O novo Facto Provado n.º 15 prova que as partes quiseram operar uma espécie de consolidação de créditos-débitos, com novas condições remuneratórias;

32. Os argumentos levantados pela sentença para manifestar dúvidas sobre a conexão da declaração com os mútuos referidos pelos Recorrentes não fazem sentido, porque a declaração determina que os Recorridos anulavam tudo o que estivesse para trás;

33. Os Recorrentes, até pelo facto de utilizarem a declaração em juízo, concordaram com a estipulação, o que implicou perdões de capital e juros em dívida, bem como a alteração da taxa de juro, pelo que não poderia, a partir de 2013, haver essa correspondência;

34. A declaração não pode ter outras conexões, porque nem uma parte, nem a outra alegaram tal possibilidade e confirmaram, ainda que com divergências, a existência desses mútuos;

35. Entendem os Recorrentes que concretizaram a existência de diversos mútuos, que se iniciaram com o mútuo de 1993; concretizaram que as dívidas ascendiam a mais de €101.700,00 (cento e um mil e setecentos euros); concretizaram que, no âmbito dessas relações, os Recorridos confessaram-se devedores da dívida de €100.000,00 (cem mil euros) e estabeleceram um novo juro de 6%; concretizaram que, no recinto dessa declaração e do que esta implicava (a aludida consolidação), estavam a cobrar a dívida em causa, pelo que estão alegados os factos essenciais;

36. Nada obsta a que se aplique a inversão do ónus da prova por aplicação da presunção do artigo 458.º, n.º 1, do CC;

37. Os Recorrentes discordam da interpretação do artigo 458.º, n.º 2, do CC feita pelo tribunal, porque a norma exige outras formalidades para a prova da relação fundamental, e não para aferir da validade ou falta desta da relação fundamental invocada;

38. A prova da existência de uma relação mutuária não implica especiais exigências, mesmo que se venha a demonstrar que o contrato era inválido por vício de forma;

39. Acresce que, se uma parte alega que existe uma dívida e a outra parte alega que a pagou, cabe a esta parte provar que a pagou (artigo 342.º, n.º 2, do CC);

40. Os Recorridos admitiram, em parte, que celebraram, pelo menos, o mútuo de 1993 e alegaram que o pagaram, não tendo logrado em provar os factos por si aduzidos;

41. A declaração é válida para efeitos de prova da existência de uma dívida e dos factos que lhe estão associados, que conduzem ao Facto Provado n.º 15, tratando-se de matéria probatória e não de matéria de validade contratual;

42. É sabido que a declaração de nulidade de mútuo, por falta de forma, tem como consequência a restituição, pelo mutuário, de tudo o que tiver sido prestado (artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil);

43. Os Recorrentes aceitam, no entanto, pela questão da validade de forma, que não podem exigir os juros remuneratórios calculados a 6%, mas apenas juros moratórios à taxa legal para os juros civis;

44. Por força do reconhecimento de dívida e da vontade das partes em consolidar as dívidas numa quantia base de €100.000,00, os Recorridos devem restitui-los, acrescidos de juros moratórios vencidos e vincendos, calculados desde a data da citação até integral pagamento.

Destarte, nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o preclaro suprimento de Vossas Venerandas Excelências, requer-se que julguem o presente recurso procedente e prolatem desembargo que:

1. Reconheça a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, devolvendo o processo à Primeira Instância e ordenando que os Recorrentes sejam convidados a apresentar articulado ou articulados aperfeiçoados que satisfaçam as exigências do ónus de alegação que o tribunal a quo considera não terem sido cumpridas, com todas as consequências processuais-legais que isso possa acarretar para a tramitação processual;

2. Caso assim não se entenda, que revogue a sentença, substituindo-a por acórdão que determine a obrigação dos Recorridos restituírem aos Recorrentes, nos termos do artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, €100.000,00 (cem mil euros), acrescidos de juros moratórios vencidos e vincendos, calculados desde a data da citação até integral pagamento.


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Não foram apresentam contra-alegações.

No despacho em que admite o recurso, o juiz a quo, ao abrigo do disposto no artigo 617º, nº 1 do CPC, pronunciou-se no sentido da não verificação da invocada nulidade da sentença, uma vez que tal convite ao aperfeiçoamento não se justificaria.

Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da decisão por excesso de pronúncia – se o tribunal a quo entendia que os autores haviam incumprido o ónus de alegação dos factos necessários para concretizar a relação contratual e o reconhecimento da dívida constante dos autos, competia ao juiz exercer o seu poder/dever de convidar os Apelantes a apresentar um articulado aperfeiçoado, nos termos do artigo 590º, nº4 do CPC;
2. Aditamento de um facto provado sob o nº15 – “Os recorridos, com o assentimento dos recorrentes, decidiram recomeçar as suas obrigações, enquanto devedores, para com os recorrentes, anulando tudo o que estivesse para trás, estabelecendo que lhes deviam 100.000 € acrescidos de juros anuais calculados à taxa convencionada de 6%”.
3. Se a confissão de dívida junta aos autos envolve a inversão do ónus da prova, sendo suficiente para o juiz condenar os réus no pagamento da quantia peticionada.

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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da decisão por excesso de pronúncia – omissão do convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial do artigo 615º, nº1, al. d) do CPC.

Invocam os Apelantes a nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), do CPC, com a seguinte alegação:

a sentença recorrida afastou a inversão do ónus da prova dos factos constitutivos da relação causal subjacente ao reconhecimento de dívida no montante de 100.000,00€, com a consequente improcedência da ação, com fundamento em que os autores não cumpriram o ónus de alegação dos factos essenciais relativamente a tal relação;

porém, se o tribunal a quo entendia que os autores haviam incumprido o ónus de alegação dos factos necessários para concretizar a relação contratual e o reconhecimento da dívida constante dos autos, competia ao juiz exercer o seu poder/dever de convidar os Apelantes a apresentar um articulado aperfeiçoado, nos termos do artigo 590º, nº4 do CPC;

não o tendo feito, violou o dever de cooperação para com as partes em litígio, bem como o princípio da igualdade das partes (artigo 4º, CPC);

dando relevância à deficiência do articulado e conhecendo de matéria que, perante a omissão do dever de cooperação, não poderia conhecer, a sentença é nula por excesso de pronúncia.

Concluem, pedindo que o processo seja devolvido à 1ª instância para que seja conferida aos Apelantes a possibilidade de apresentarem articulados aperfeiçoados, e se vier a haver recurso novo, o tribunal se encontrar em condições de apreciar o mérito da causa.

O Juiz a quo, pronunciando-se ao abrigo do disposto no artigo 617º, nº1, do CPC, nega a verificação da invocada nulidade, sustentando não haver lugar a despacho de aperfeiçoamento, com os seguintes fundamentos:

a improcedência da pretensão formulada pelos Autores resultou da falta de prova dos factos pelos mesmos alegados – entrega, a título de empréstimo, de quantias em dinheiro que, desde o ano de 1993 até ao dia 4 de setembro de 2013, perfariam o montante de 100.000 €, assim como na estipulação de juros à taxa de 6% –, e não de qualquer deficiência que tivesse sido detetada ao nível da exposição ou da concretização dos mesmos;

o que os Autores não cumpriram foi o ónus de alegação dos factos essenciais que constituiriam o fundamento da relação contratual subjacente ao reconhecimento da dívida efetuado pelos réus, no valor de € 100.000,00, porquanto, os factos alegados pelos Autores no seu articulado de petição inicial não têm correspondência em tal reconhecimento de dívida, não permitindo identificar a relação contratual que a fundamenta; a existência de uma obrigação de pagamento da quantia de € 100.000,00, a que acrescem juros calculados à taxa anual de 6%, não podendo resultar de uma decisão unilateral dos devedores, pressuporá uma outra relação contratual subjacente que não foi alegada pelos Autores, ainda que possa estar relacionada com os mútuos pelos mesmos mencionados;

aliás, nas suas alegações de recurso, os próprios Autores admitem que “por força do reconhecimento de dívida e da vontade das partes em consolidar as dívidas numa quantia base de €100.000,00 (cem mil euros), algo que implicou um perdão de um valor global superior a essa centena de milhares de euros, corresponde-lhes um dever de restituir esses mesmos €100.000,00 (cem mil euros) aos Recorrentes, acrescidos de juros moratórios vencidos e vincendos, até integral pagamento”, o que confirma a existência de uma outra relação contratual diferente daquela que foi invocada em sede de petição inicial;

não se verifica a existência de qualquer insuficiência ou imprecisão “na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” que pudesse fundamentar a prolação de despacho pré-saneador, já que, no seu articulado inicial, os Autores lograram identificar a relação contratual de mútuo que, de acordo com o por si alegado, fundamentaria a declaração de reconhecimento de dívida subscrita pelos Réus.

na verdade, o que se constatou foi que a relação contratual subjacente (celebração de contratos de mútuo) invocada pelos Autores não fundamenta, de facto, o referido reconhecimento de dívida;

nestas circunstâncias, não poderia o Tribunal convidar os Autores a aperfeiçoar os seus articulados, não só, porque o Tribunal não poderia ter conhecimento de qual seria, verdadeiramente, a relação contratual subjacente ao reconhecimento de dívida a que se tem vindo a aludir, mas também porque a alegação dos factos relativos a uma outra relação contratual diferente da descrita na petição inicial consubstanciaria uma alteração da causa de pedir em moldes que não seriam permitidos (cfr. artigo 265º do CPC);

o aperfeiçoamento em causa traduzir-se-ia na substituição da alegação relativa à celebração dos contratos de mútuo indicados pelos Autores e ao incumprimento dos mesmos pelos Réus, pela alegação de outros factos que fundamentassem a existência de uma dívida que, a 4 de setembro de 2013, ascenderia ao montante de € 100.000,00 e sobre a qual seriam contabilizados juros de mora à taxa anual de 6%;

Sintetizando as razões justificativas apresentadas pelo juiz a quo, a situação em apreço não seria de molde a dar lugar ao convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, porquanto, as alegadas insuficiências de alegação, apontadas na decisão recorrida, não respeitam à relação contratual de mútuo por si invocada na petição, mas sim, à relação fundamental que se encontrará subjacente à declaração da confissão de dívida junta aos autos: o que resulta dos autos é que a relação contratual que verdadeiramente subjaz à confissão de dívida é outra, que não a alegada pelos autores na petição inicial. Como tal, o convite à alegação desta relação envolveria a substituição da relação contratual inicialmente alegada na petição inicial, por uma outra.

E, assim sendo, tal confissão de dívida não poderia ter a força de inverter o ónus da prova da relação causal, presumindo a existência da dívida, ficando afastada a aplicação do disposto no artigo 458º do Código Civil.

Passando à análise da sentença recorrida, constamos que afirmação aí expressa de que “os autores não cumpriram o ónus de alegação que sobre si impendia”, de alegação da relação fundamental que subjaz ao documento de “reconhecimento de dívida no montante de 100.000,00 €, junto aos autos, apoia-se no seguinte raciocínio:

- os autores fundamentam o seu pedido – de condenação dos réus “no pagamento do capital mutuado, no montante de € 100.000,00 e dos juros convencionados e vencidos, calculados à taxa de 6% ao ano, no montante de 30.000,00€, bem como dos vincendos até integral pagamento – “na entrega, a título de empréstimo, de quantias em dinheiro que, desde o ano de 1993 até ao dia 4 de setembro de 2013, perfariam o montante total de € 100.000,00, assim como no pagamento de juros calculados à taxa anual de 6%”;

“Afigura-se, porém, que, no caso em apreço, os Autores não cumpriram o ónus de alegação dos factos essenciais que constituiriam o fundamento da relação contratual subjacente ao reconhecimento da dívida no valor de € 100.000,00 efetuado pelos Réus.

 É certo que, como decorre do que foi já mencionado, os Autores alegaram que, depois de um primeiro mútuo reportado ao ano de 1993, EE continuou a entregar quantias em dinheiro aos Réus, a título de empréstimo, as quais perfaziam, no dia 1 de outubro de 2011, o montante total de € 101.700,00, cujo pagamento não foi efetuado pelos Réus.

Ainda assim, os Autores, “por si e seu antecessor”, mantiveram a relação e, no dia 4 de setembro de 2013, os Réus confessaram ser “devedores da quantia de € 100.000,00, cujo juro seria pago à taxa de 6% anualmente”.

Ora, não há dúvida de que a única relação contratual invocada pelos Autores na sua petição inicial consiste na relação estabelecida em consequência da celebração de contratos de mútuo de determinadas quantias em dinheiro, a qual se teria prolongado desde o ano de 1993 até ao ano de 2013.

Porém, reservando, naturalmente, o respeito devido por entendimento diverso, afigura-se que os próprios Autores não estabelecem a correspondência necessária entre essa relação contratual e o reconhecimento de dívida constante do documento subscrito pelos Réus no dia 4 de setembro de 2013.

Em primeiro lugar, a quantia de € 100.000,00 indicada nessa declaração não coincide com a quantia mutuada e que, segundo os Autores, ascenderia a € 101.700,00 cerca de dois anos antes da data em que tal dívida foi reconhecida pelos Réus.

Para além disso, não alegaram os Autores que o mutuante e os mutuários tivessem acordado o pagamento de juros calculados à taxa anual de 6%.

Pelo contrário, a confissão efetuada pelos Réus a 1 de outubro de 1993 indiciaria que a taxa de juro contratada por mutuante e mutuários seria de 15%.

Por último, não deixará de se acrescentar ainda que a expressão constante da parte final do reconhecimento de dívida efetuado pelos Réus a 4 de setembro de 2013 (“anulando tudo o anterior”) parece remeter, afinal, para uma relação contratual diferente da inicialmente estabelecida pelas partes através da celebração de contratos de mútuo.

Aliás, os próprios Autores alegam, no seu articulado de réplica, que “o que verdadeiramente suporta os presentes autos não é o empréstimo inicial” (cfr. artigo 10º) e que “o pedido dos A.A. tem por fundamento a confissão de dívida, de € 100.000,00 (…), entregue pelos R.R. ao credor «EE»” (cfr. artigo 14º).

Tal alegação não poderá deixar de indiciar que, de facto, não existe integral coincidência entre o reconhecimento de dívida efetuado pelos Réus no dia 4 de setembro de 2013 e a relação contratual estabelecida através da celebração dos contratos de mútuo a que os Autores aludem na sua petição inicial.

Com efeito, os factos alegados na petição inicial não revelam que a quantia de € 100.000,00 corresponda ao capital mutuado por EE aos Réus até à data mencionada, nem que as partes tenham acordado o pagamento de juros contratuais calculados à taxa anual de 6%.

Ou seja, os factos alegados pelos Autores no seu articulado de petição inicial não têm correspondência no reconhecimento de dívida efetuado pelos Réus, o que significa que não permitem identificar a relação contratual que o fundamenta.

Efetivamente, o fundamento da existência de uma obrigação de pagamento da quantia de € 100.000,00, a que acrescem juros calculados à taxa anual de 6%, não podendo resultar de uma decisão unilateral dos devedores, pressuporá uma outra relação contratual subjacente que não foi alegada pelos Autores, ainda que possa estar relacionada com os mútuos pelos mesmos mencionados.

Ainda assim, como decorre do que foi já referido, tais mútuos, de acordo com os factos alegados na petição inicial, não corresponderiam ao valor da dívida reconhecida pelos Réus, nem à taxa de juro pelos mesmos indicada.”

Relativamente aos factos alegados pelos autores nos seus articulados, a sentença recorrida faz uma distinção entre:

a) a alegação dos factos que constituem a causa de pedir da presente ação;

b) a alegação dos factos que constituiriam a relação fundamental que subjaz à confissão de dívida de que se fazem acompanhar.

Se bem se entende o raciocínio exposto na decisão recorrida, “o não cumprimento do ónus de alegação” é aí reportado, não à causa de pedir da presente ação, ou seja, aos factos que suportariam o pedido formulado na petição inicial (consistente na celebração de vários empréstimos, entre 1993 e 2013, e que, no total, teria, ascendido a 100.000,00 €), mas à relação fundamental que subjaz ao reconhecimento da dívida expresso na declaração emitida pelos réus a 04 de setembro de 2013; segundo o tribunal a quo, os factos alegados pelos autores (respeitantes aos diversos contratos de mútuo) não fundamentam, não constituem a relação causal que subjaz à declaração de “reconhecimento de dívida” junta aos autos, pelo que, tal declaração não poderia ser invocada nos presentes autos para efeito de, nos termos do artigo 485º, do Código Civil, dispensar o autor da prova dos factos por si alegados e que constituem a causa de pedir na presente ação.

No entendimento da decisão recorrida, a relação contratual fundamental alegada – consistente em diversos empréstimos que o falecido efetuou ao requerido entre 1993 e 2011, e que sustenta o pedido de condenação dos réus no pagamento do capital mutuado de 100.000 € –, não coincidirá com a relação fundamental que suporta a declaração de confissão de dívida.

Daí, negar a possibilidade de haver lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento, uma vez que o convite ao aperfeiçoamento envolveria a substituição de uma causa de pedir por outra.

E, quanto a esta questão, teremos de concordar com a sentença recorrida.

Nesta e em qualquer outra ação, ao autor não basta formular um pedido, incumbindo-lhe ainda a indicação da causa de pedir, que, na definição legal é o “facto jurídico constitutivo do efeito pretendido pelo autor” (artigo 581º, nº4), por contraposto com os factos impeditivos, modificativos e extintivos desse mesmo efeito, cujo ónus de alegação recairá sobre o réu.

Ao autor cumpre a alegação dos factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar (ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência confirma)[1].

Na petição inicial deve o autor “expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação” (artigos 5º, nº1 e 552º al. d)), – ou seja, de todos os factos de cuja verificação dependa a procedência da pretensão deduzida, em conformidade com a previsão normativa aplicável.

É para os casos em que a narração fáctica contida na petição inicial, embora permita individualizar a causa de pedir, se mostre insuficiente para a procedência da ação, que se imporá, na altura própria, a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento fático do articulado previsto no artigo 590º, nº2, al. b) e nº4.

Contudo, na decisão recorrida não se afirma que os factos alegados pelos autores sejam insuficientes para a procedência da ação, mas, tão-só, que, para que ação viesse a ser procedente, os autores teriam de os provar, isto porque, apesar de se fazerem acompanhar de um documento que constituiu um reconhecimento de dívida sem indicação de causa, não se podem socorrer dele para o efeito de inversão do ónus de prova previsto no artigo 458º do Código Civil, porquanto, os factos que suportam a relação fundamental que lhe subjaz não coincidem com o alegado, não se mostrando suficientemente alegada.

Assim sendo, não faria qualquer sentido um convite ao aperfeiçoamento, quer porque, no entendimento do tribunal recorrido, as deficiências de alegação não respeitavam à causa de pedir efetivamente alegada na petição inicial, quer porque, como salienta o juiz a quo, os elementos constantes dos autos indiciam que a relação fundamental que subjaz à confissão de dívida, embora possa ter alguma conexão com a existência de empréstimos anteriores, é outra que não a alegada.

Enquanto na petição inicial, o pedido de condenação dos réus “na quantia mutuada de 100.000,00 €”, assenta na alegação da existência de sucessivos mútuos, que somados, ascenderiam a 100.000 €, (reconhecendo os autores que os réus foram fazendo pagamentos por conta de tais empréstimos, mas só de juros) constituindo esta a causa de pedir, na declaração de confissão de dívida que acompanha a petição inicial, os réus declaram que “No dia 4 de setembro de 2013 fico a dever ao Sr. EE 100.000 € cujo juro é a 6% ao ano, anulando tudo o anterior”.

No entendimento da decisão recorrida, esta expressão é de interpretar como tendo por detrás um novo acordo.

E o certo é que, no seu articulado de resposta à contestação/reconvenção, os autores afirmando que nunca negaram terem recebido pagamentos, alegam que o que “verdadeiramente suporta os presentes autos não é o empréstimo inicial, mas a confissão de dívida que os réus fizeram ao credor/mutuante”, que o “fundamento do seu pedido é a confissão de dívida”, dando precisamente a entender que o valor aí aposto e que coincide com o valor do pedido aqui formulado é o resultado de algo mais (ou de algo diferente) do que a simples soma do capital mutuado.

Também nesse sentido aponta a posição que assumem em sede de alegações de recurso, quando alegam que “havia uma relação mutuária anterior, que houve pagamentos, mas que as partes, em 2013, optaram por esquecer o que até ali se passara e consumaram uma núpera relação obrigacional com novos pressupostos” e que, “com tal confissão de divida as partes quiseram operar uma espécie de consolidação de créditos-débitos, com novas condições remuneratórias.”

Tal alegação vem reforçar o entendimento assumido na sentença recorrida, de que aquele reconhecimento de dívida tinha na sua origem uma outra factualidade mais complexa que não a mera soma de vários empréstimos, sendo que é esta que suporta o pedido de condenação dos réus no pagamento do capital mutuado 100.000,00, bem como os juros convencionados à taxa de 6% ano.

E, assim sendo, não teria de haveria lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento dos articulados, com a finalidade de os autores concretizarem qual a relação contratual subjacente à confissão de dívida:

- as deficiências de alegação apontadas respeitam, não aos factos que constituem a causa de pedir que suporta o pedido de pagamento dos réus no pagamento do capital mutuado no montante de 100.000,00€, mas à factualidade respeitante à relação fundamental que suporta a confissão de dívida;

- a relação fundamental que suporta a confissão de dívida é distinta da causa de pedir em que se fundamenta o pedido formulado nos presentes autos;

- o convite à concretização da alegação correspondente à relação fundamental que suporta a confissão de dívida equivaleria a dar-lhe a oportunidade de substituir a causa de pedir inicialmente alegada por uma outra, o que a lei processual não admite (cfr. arts. 590º, nº6 e 265çº, do CPC).

- a imputada insuficiência de tal alegação não importaria necessariamente a improcedência da ação, mas, tão somente, que os autores não possam socorrer-se de tal confissão de dívida para o efeito previsto no artigo 458º, nº1 do CPC, o de ficarem dispensados de provar a relação fundamental.

É certo que a decisão recorrida acaba por também apontar deficiências e contradições na própria alegação dos factos que constituem a causa de pedir da presente ação, sobretudo, quando confrontados com os termos da confissão de dívida (“a quantia de € 100.000,00 indicada nessa declaração não coincide com a quantia mutuada e que, segundo os Autores, ascenderia a € 101.700,00 cerca de dois anos antes da data em que tal dívida foi reconhecida pelos Réus. Para além disso, não alegaram os Autores que o mutuante e os mutuários tivessem acordado o pagamento de juros calculados à taxa anual de 6%. Pelo contrário, a confissão efetuada pelos Réus a 1 de outubro de 1993 indiciaria que a taxa de juro contratada por mutuante e mutuários seria de 15%.).

Contudo, como se afirma no Acórdão do TRL de 09-04-2019[2], o convite ao aperfeiçoamento só tem justificação quando as deficiências não respeitem ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida, pois o mecanismo daquele não pode transmutar-se num modo de a parte obter novo prazo para, reformulando substancialmente a sua própria pretensão obter novo e adicional prazo processual para substancialmente cumprir o ónus que sobre ela recaía.

Concluindo, não se reconhece que a sentença se encontre ferida da invocada nulidade por omissão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados dos autores.


*

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, que não foram objeto de impugnação e que aqui se reproduzem parcialmente, na parte em que assumem relevo para o conhecimento do objeto do recurso.

Factos provados

Tendo-se procedido à realização da audiência final, e após apreciação de toda a prova produzida nos autos, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 17 de outubro de 2018 a Autora AA declarou, perante Notário, o seguinte:

(…) Que não existem outras pessoas que, segundo a lei, possam concorrer com os indicados herdeiros à sucessão do falecido.”.

2. A Ré DD e o Réu CC apuseram a sua assinatura completa no escrito do qual consta o seguinte:

No dia 1 de outubro de 1993 eu CC e DD, recebemos das mãos do Sr. EE a quantia de 5.000.000$00 cinco milhões de escudos o qual lhe pagamos o juro anual de 15% ao ano sendo assim de acordo com o que foi dito passamos a assinar”.

3. Os Réus CC e DD são os únicos sócios e gerentes da Ré C..., L.da.

4. A Ré DD, na qualidade de representante legal da Ré C..., L.da, assinou e preencheu o cheque número ...83, sacado sobre a conta número ...49, titulada pela sociedade Ré no Banco 1..., no valor de € 90.000,00, à ordem de EE, datado de 1 de outubro de 2011.

5. A Ré DD, na qualidade de representante legal da Ré C..., L.da, assinou e preencheu o cheque número ...80, sacado sobre a conta número ...49, titulada pela sociedade Ré no Banco 1..., no valor de € 11.700,00, à ordem de EE, datado de 1 de outubro de 2011.

6. No dia 11 de outubro de 2011 o cheque a que se alude em 5. foi devolvido na compensação do Banco de Portugal, com a menção “cheque apresentado fora de prazo”.

7. A Ré DD e o Réu CC apuseram a sua assinatura abreviada no escrito do qual consta o seguinte:

No dia 4 de setembro de 2013 fico a dever ao Sr. EE 100.000,00 € cujo juro é a 6% ao ano anulando tudo o anterior”.

8. Mediante carta datada de 1 de novembro de 2018, os Autores, por intermédio do seu Ilustre Mandatário, comunicaram aos Réus CC e DD o seguinte:

“Assunto: Dívida – confissão.

Exmos. Senhores,

Incumbiu-me a minha Cliente, D.ª AA, Cabeça-de-casal da herança de EE, de lhe solicitar o pagamento da quantia seguinte: € 130.000,00 (cento e trinta mil euros); sendo,

 € 100.000,00 (cem mil euros) respeitantes à dívida existente, a título pessoal, que confessaram ter ao falecido marido dela, no dia .../.../2013, e,

 € 30.000,00 (trinta mil euros) respeitantes aos juros vencidos, desde aquela data, visto que o mútuo vence juros à taxa de 6% ao ano e, decorridos que já são cinco anos, nunca fizeram pagamento algum por conta dos mesmos.

Assim, deverão pagar, sem falta, até ao fim do corrente ano a referida soma de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros) ou, em alternativa, prestarem garantia bancária ou garantia hipotecária suficiente, sem o que, a mando da minha Constituinte, terei de dar início ao procedimento judicial para fazer a cobrança coerciva.”.

9. A quantia indicada em 2. foi entregue aos Réus CC e DD de uma só vez, no dia 1 de outubro de 1993.

10. Contra a entrega do montante em causa os Réus CC e DD assinaram o documento a que se alude em 2..

11. Através do cheque número ...58, sacado sobre a conta número ...80,  titulada pelos Réus CC e DD no Banco 1..., emitido à ordem de EE e datado de 1 de outubro de 2009, foi paga a quantia de € 5.000,00.

12. Através do cheque número ...53, sacado sobre a conta número ...49, titulada pela Ré C..., L.da no Banco 1..., emitido à ordem de EE e datado de 1 de outubro de 2009, foi paga a quantia de € 15.600,00.

13. Através do cheque número ...93, sacado sobre a conta número ...49, titulada pela Ré C..., L.da no Banco 1..., emitido à ordem de EE e datado de 1 de outubro de 2010, foi paga a quantia de € 12.350,00.

14. Através do cheque número ...77, sacado sobre a conta número ...80, titulada pelos Réus CC e DD no Banco 1..., emitido à ordem de EE e datado de 1 de outubro de 2010, foi paga a quantia de € 5.000,00.


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Factos não provados

Após a realização da audiência final, não ficaram demonstrados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo provado, designadamente:

(…)

3. A quantia de 5.000.000$00 a que se alude em 2. dos factos considerados provados foi entregue aos Réus, em parcelas, até à data aí indicada.

4. Os Réus pagaram, durante algum tempo, o juro a que se alude em 2. dos factos  considerados provados, o que fez crer ao credor que cumpririam sempre.

5. Nos anos seguintes ao do primeiro mútuo, em data incerta, EE continuou a entregar verbas aos Réus a título de empréstimo.

6. A 1 de outubro de 2011 a dívida dos Réus ascendia ao montante de € 101.700,00.

7. Os Réus garantiram o pagamento dessa quantia através da emissão dos cheques mencionados em 4. e 5. dos factos considerados provados.

8. Os Réus CC e DD afirmaram sempre que os empréstimos se destinavam a satisfazer necessidades de caixa da sociedade Ré e que os garantiam pessoalmente.

9. A verdadeira razão da devolução do cheque a que se alude em 5. dos factos considerados provados foi a falta de provisão.

10. Os Réus foram logo interpelados verbalmente pelo credor e disseram que não tinham saldo suficiente para cobrir o valor dos cheques e que necessitavam de mais tempo para pagar a dívida.

11. Os Réus CC e DD assinaram o documento a que se alude em 7. dos factos considerados provados em representação da sociedade Ré.

12. Os Autores interpelaram os Réus pessoalmente por diversas vezes.

13. O montante mencionado em 7. dos factos considerados provados foi entregue aos Réus em pequenas quantias, nunca de valor igual ou superior a € 25.000,00.

14. Com os pagamentos a que se alude em 11. a 14. dos factos considerados provados os Réus CC e DD entregaram a EE a quantia mencionada em 2. dos factos considerados provados, acrescida dos juros aí indicados.

15. Os cheques a que se alude em 4. e 5. dos factos considerados provados foram entregues pelos Réus CC e DD a EE em branco, contendo apenas a assinatura que deles consta.

16. Os Réus CC e DD foram coagidos por EE a entregar-lhe tais cheques, sob ameaça, alegando o mesmo que se destinavam a garantir o pagamento dos juros.

17. Os Réus CC e DD entregaram esses cheques por recearem que EE concretizasse as ameaças que lhes fez.

18. Os Réus não sabem quem procedeu ao preenchimento de tais cheques nem a data em

ue tal sucedeu.

(…)


*

2. Aditamento de um facto à matéria de facto provada

Segundo os Apelantes, o facto dado como provado sob o nº7 – A Ré DD e o réu CC apuseram a sua assinatura abreviada no escrito do qual consta o seguinte: “No dia 4 de setembro de 2013 fico a dever ao sr. EE 100.000,00 € cujo juro é a 6% ao ano, anulando tudo o anterior” –, por efeito causal e decorrência lógica, obriga a um novo facto provado, com o seguinte teor:

(Facto Provado nº15)

Os recorridos, com o assentimento dos recorrentes, decidiram recomeçar as suas obrigações, enquanto devedores, para com os recorrentes, anulando tudo o que estivesse para trás, estabelecendo que lhes deviam 100.000 € acrescidos de juros anuais calculados à taxa convencionada de 6%.

Segundo os Apelantes, da conjugação dos factos provados sob os ns. 11 a 14, “resulta que havia uma relação mutuária anterior, que houve pagamentos, mas que as partes, em 2013, optaram por esquecer o que até ali se passara e consumaram uma núpera relação obrigacional com novos pressupostos”, sendo que o que o facto 15. prova “é que as partes quiseram operar uma espécie de consolidação de créditos-débitos (dependendo do referencial) com novas condições remuneratórias”.

Não podemos dar razão ao Apelante quanto ao pretendido aditamento.

Da circunstância de se encontrar provado que foram pelos réus feitos os vários pagamentos a que se reportam os factos 1 a 14, e do facto de os réus terem assinado a confissão de dívida, não pode resultar provado, por mera inferência lógica, (os apelantes não invocam qualquer meio de prova que o sustente), como pretende o Apelante, de que na origem do mesmo tenha estado uma “espécie de consolidação de créditos-débitos, com novas condições remuneratórias”, sendo que se trata de facto nunca antes alegado.

Com efeito, a resposta que os Apelantes vieram dar na réplica de que o que importa é a “confissão de dívida”, aparece como um modo de fugir à questão de concretizar como é que as partes terão chegado a esse valor de 100.000,00 €.

Improcede a pretensão do aditamento de tal facto aos factos provados.


*

3. Se os autores se podem socorrer da presunção inerente ao artigo 458º, nº1, do CC, com a consequente procedência da ação

Sintetizando as razões que estiveram na base da decisão de improcedência da ação, na sentença recorrida considerou-se que, apesar de o documento no qual os réus reconheceram “serem devedores ao falecido da quantia de 100.000,00 €, cujo juro será pago à taxa de 6%, anualmente”, integrar a figura da “promessa de cumprimento e reconhecimento” a que se reporta o artigo 458º do Código Civil, os credores não podem invocar tal norma para efeitos de inversão do ónus da prova dos factos que constituem a causa de pedir na presente ação, porquanto:

1. o artigo 485º CC dispensa o credor da prova da relação contratual que fundamenta a obrigação de pagamento da obrigação confessada, mas não o dispensa do ónus de alegação dos factos que a fundamentam;

dos autos resulta que os factos alegados pelos autores na petição inicial não sustentam a dívida de 100.000,00 €, mais a promessa de pagamento de juros a 6% a que se reporta a “confissão de dívida” junta aos autos, pelo que a verdadeira causa se encontraria por alegar.

2. ainda que se considerasse que os autores tinham observado o ónus de alegação e que a relação fundamental em causa consistia na celebração de contratos de mútuo, ascendendo o capital mutuado ao montante global de 100.000,00 €, não respeitando tal confissão de dívida a forma legal prevista para o contrato de mutuo, não se encontraria preenchido o requisito previsto no nº2 do artigo 458º CC.

Insurgem-se os Apelantes contra tal entendimento, sustentando nada obstar a que se aplique a inversão do ónus da prova por aplicação da presunção do artigo 458º, nº1 do CPC, com a seguinte argumentação:

- o novo Facto Provado n.º 15 prova que as partes quiseram operar uma espécie de consolidação de créditos-débitos, com novas condições remuneratórias;

os argumentos levantados pela sentença para manifestar dúvidas sobre a conexão da declaração com os mútuos referidos pelos Recorrentes não fazem sentido, porque a declaração de confissão de dívida determina que os Recorridos anulavam tudo o que estivesse para trás;

os Recorrentes, até pelo facto de utilizarem a declaração em juízo, concordaram com a estipulação, o que implicou perdões de capital e juros em dívida, bem como a alteração da taxa de juro, pelo que não poderia, a partir de 2013, haver essa correspondência;

a declaração não pode ter outras conexões, porque nem uma parte, nem a outra alegaram tal possibilidade e confirmaram, ainda que com divergências, a existência desses mútuos;

os Recorrentes concretizaram a existência de diversos mútuos, que se iniciaram com o mútuo de 1993; concretizaram que as dívidas ascendiam a mais de €101.700,00 (cento e um mil e setecentos euros); concretizaram que, no âmbito dessas relações, os Recorridos se confessaram devedores da dívida de €100.000,00 (cem mil euros) e estabeleceram um novo juro de 6%; concretizaram que, no recinto dessa declaração e do que esta implicava (a aludida consolidação), estavam a cobrar a dívida em causa, pelo que estão alegados os factos essenciais.

Mais uma vez, não podemos dar razão aos apelantes.

Antes de mais, fazem apelo a novo facto (facto nº15) cujo aditamento aqui peticionaram, pretensão que foi indeferida.

Por outro lado, defendem a procedência da ação, numa argumentação que se baseia essencialmente na invocação de um alegado “novo acordo”, anulando tudo o que estivesse para trás, apresentando-o agora como fundamento, como causa de pedir, que sustenta o seu pedido, para efeitos de se poderem aproveitar do documento de reconhecimento de dívida junto aos autos.

Dispõe o artigo 458º do Código Civil (CC)

1. Se alguém por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.

É incontestado nos autos que o documento apresentado pelos autores se insere na figura do “reconhecimento de dívida sem indicação de causa”, a que se reporta o artigo 485º, do Código Civil, pelo que, se nele se encontrasse reconhecida a dívida a que se reporta a relação contratual alegada pelos autores para suportar o pedido por si formulado na presente ação, os autores encontrar-se-iam dispensados de a provar, invertendo-se o ónus da prova estabelecimento no artigo 342º, nº1 do CC.

Ponto é que a declaração de reconhecimento de dívida tivesse correspondência com a relação contratual alegada pelos autores nos seus articulados como fundamentadora do seu pedido de condenação do réu na restituição do capital mutuado, e não tem.

Como é afirmado na decisão recorrida – e como resulta da análise dos autos, nomeadamente das versões que os autores vão dando ao longo do processo, primeiro nos articulados e agora, em sede de alegações – “tal reconhecimento de dívida não tem por fundamento a relação contratual de mútuo invocada pelos autores na sua petição inicial, mas antes uma outra relação subjacente que, ainda que possa estar relacionada com os contratos de mutuo celebrados não foi alegada pelos autores” (…) De facto, «“Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus de alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma ação, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, n.º 2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo o devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor

A relação contratual que é apresentada como causa de pedir na presente ação, ao contrário do que os autores querem dar a entender no seu articulado de resposta à contestação/reconvenção, consiste na celebração de diversos empréstimos que tiveram lugar entre 1993 e 2013, cujo montante ascendia a 100.000 €, de tal modo que a pretensão que exercitam na presente ação é a condenação dos réus “a pagar o capital mutuado, em dívida, no montante de 100.000,00 €”.

Contudo, os “esclarecimentos” que os autores foram adiantando ao longo do processo, na sua resposta à contestação/reconvenção e em sede de alegações de recurso, apontam no sentido de que o reconhecimento de dívida expresso no documento junto aos autos não se reporta à soma do valor do capital mutuado até então, mas a um “acordo novo”, “uma espécie de consolidação de créditos-débitos, com novas condições remuneratórias”.

Não podemos dar razão aos apelantes quando alegam que “Mesmo que o tribunal tenha incertezas quanto à origem das dívidas e à ligação destas com a aludida declaração de reconhecimento de dívida, atendendo a que os Recorrentes estavam a pedir aquilo que está reconhecido nessa declaração, está dentro dos poderes do tribunal decidir em conformidade com o que é pedido, que é aquilo que está expresso no reconhecimento de dívida”.

Assim como, não é suficiente que o valor que aqui peticionam coincida com o valor do reconhecimento de divida, para efeito de se socorrerem do regime constante do artigo 458º.

Tal asserção pressuporia a irrelevância ou a dispensa da alegação da relação fundamental que subjaz ao reconhecimento da dívida ou promessa de pagamento.

Ao contrário do que sustentam os Apelantes, não é indiferente para o desfecho da ação se a relação fundamental que subjaz ao reconhecimento da dívida no montante de 100.000, €, consiste na simples soma dos montantes que, ao logo do tempo, foram sendo emprestados aos réus, ou se, resultante de uma conta corrente existente entre o falecido e os réus, que incluía juros vencidos e pagamentos parcelares efetuados (as suas declarações de parte, deixam-nos a convicção de que, nesse deve/haver, podiam estar ainda ser contabilizados outros negócios entre ambos, como a venda de mobílias que o réu fez ao falecido), que, a dada altura tenha sido objeto acordo de “restruturação de dívida” com novas condições, nomeadamente quanto à taxa de juros.

Não é indiferente, desde logo, relativamente à defesa a assumir pelo devedor, sob pena de a inversão do ónus da prova contida no artigo 458º o obrigar a apresentar uma defesa contra toda e qualquer causa possível. A relação fundamental tem de estar devidamente identificada para que o devedor, em função dos prazos de prescrição aplicáveis, forma exigida por lei para o negócio invocado pelo credor, regime dos juros que é diferente do capital, se possa defender.

Passamos a explicar com mais detalhe o regime consagrado no artigo 485º do CC, acompanhando de perto o acórdão do TRP, de 14 de maio de 2013[3], relatado pela aqui também relatora.
O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento a que se refere o artigo 485º do CC, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respetiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída, caso em que fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Tal norma deu origem a duas correntes interpretativas: “para uns, a dispensa consagrada não se limita à prova, abrangendo também a alegação; para outros o preceito tem de ser literalmente interpretado, visto que o ónus da prova e da alegação podem não coincidir e, exigindo a lei processual a alegação da causa de pedir (art. 552º - 1-d CPC), a dispensa de alegar a causa da divida reconhecida só seria defensável se se entendesse que o ato de reconhecimento constituiu a própria causa da obrigação, isto é, se, como a subscrição da letra ou da livrança, fosse entendido como negócio abstrato, o que na lei portuguesa não é[4]”.
“Significa este preceito que o credor que disponha de um documento escrito do devedor em que este unilateralmente declara prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, não precisa de provar a causa da obrigação, cuja validade e existência se presume. Não se está, portanto, em face de um negócio abstracto, mas sim de um acto causal, embora com presunção de causa, presunção que, sendo ilidível, determina a inversão do ónus da prova: não será o credor quem terá de demonstrar a existência e a licitude da causa, mas será sim ao devedor que caberá provar que a prestação que prometeu ou reconheceu não tem causa ou esta é ilícita[5]”.
Como salienta Pedro Pais Vasconcelos, as promessas unilaterais de uma prestação ou do cumprimento e os respetivos reconhecimentos unilaterais de dívida, feitos sem indicação da respetiva causa não são originariamente constituintes das obrigações a que se referem, tendo subjacentes uma relação fundamental ou relação subjacente que lhe constituiu a respetiva causa civilis obligandi: “A um nível mais profundo, pode concluir-se do art. 485º que não são a promessa de cumprimento ou o reconhecimento da dívida, unilaterais e nus, que constituem a fonte ou o fundamento jurídico, isto é, a causa das obrigações a que se referem. As obrigações cujo cumprimento é unilateralmente prometido e as dívidas que são unilateralmente reconhecidas ad nutum foram geradas ou constituídas por uma outra causa, que constituiu o seu fundamento jurídico originário[6]”.
Antunes Varela adverte ainda que o art. 458º não foge à regra de que o negócio unilateral não é fonte de obrigações: nenhum dos atos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida), constituiu, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra-negocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou os seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negócio que a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida pressupõem não chegou a constituir-se, porque é nulo ou foi anulado, porque caducou ou os seus efeitos se extinguiram entretanto, etc.), a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida[7].
Concluindo, tratando-se de declarações negociais causais, a sua causa não reside na promessa de cumprimento ou no reconhecimento da dívida – a fonte da obrigação continua a ser a relação fundamental que subjaz à promessa de cumprimento ou de reconhecimento da dívida.
Uma vez que “a inversão do ónus da prova não dispensa o ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (art. 467º-1-c), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma ação, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado, além do mais, pela exigência da forma do art. 458º-2 do C.C., que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458º-1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual, é um acto integrador da factispécie da norma probatória do art. 458º do C.C., isto é, com mera relevância substantiva. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor, e configurando-se assim uma prova por presunção[8]”.
Como se afirma no Acórdão do TRL de 17.12.2009, “o credor, por força do art. 458º do CCivil, apenas está dispensado de provar a relação subjacente, que se presume, mas não de a alegar[9]exigência.
Não constituindo o ato de reconhecimento de uma dívida um negócio constitutivo da obrigação, tendo como único efeito que o credor é dispensado de provar o facto constitutivo do seu direito. “Este facto, que o credor não é dispensado de alegar, fica, quando é alegado, provado pela apresentação do documento, por ilação tirada da declaração de reconhecimento conjugada com a alegação do credor, salvo prova contrária que destrua esta presunção[10]”.
Ainda que se encontre na posse de uma confissão de dívida, continua a caber ao credor a alegação dos factos constitutivos da relação subjacente, cabendo ao devedor, por força da inversão do ónus da provam provar que a relação nunca existiu ou deixou de existir. Mas para isso tem que saber qual a relação pressuposta pelo credor, sob pena de poder estar perante uma infinidade de causas possíveis[11]”.
Ora, no caso em apreço, o reconhecimento de dívida que acompanha a petição inicial não serve para inverter o ónus da prova da causa de pedir invocada para o pedido formulado nos presentes autos de restituição do “capital mutuado” – porquanto, como insistem os Apelantes, não são estes que constituem a relação fundamental que está na origem a tal reconhecimento de dívida, mas um acordo que “implicou perdões de capital e juros em dívida, bem como a alteração da taxa de juro” –, assim como não servirá para prova de uma alegação vaga de “um novo acordo”, “uma espécie de consolidação de créditos-débitos, com novas condições remuneratórias”.

Como salienta José Lebre de Freitas[12], para a individualização da causa de pedir que subjaz a um reconhecimento de dívida, não basta dizer que determinada obrigação deriva de diversos negócios jurídicos entre as partes, como não basta dizer que se pretende o pagamento coercivo do preço de uma venda, duma quantia mutuada ou do montante acordado duma indemnização por facto ilícito.

Tal alegação era ainda insuficiente para aferição do cumprimento do nº2 do artigo 458º do CC, ou seja, para que se pudesse determinar se, para a prova da relação fundamental, era suficiente ao documento escrito, uma vez se outras formalidades forem exigidas para esta, o reconhecimento de dívida não acarreta o efeito previsto no nº1, de inversão do ónus da prova.

Como se sustentou na decisão recorrida, caso tal reconhecimento de dívida se reportasse à soma dos mútuos, “não tendo sido observada a forma legalmente exigida em relação a, pelo menos, um dos contratos de mútuo invocados pelos Autores (no valor de 5.000.000$00), a declaração de reconhecimento de dívida pelos mesmos apresentada sempre seria insuscetível de provocar o efeito de inversão do ónus da prova a que alude o preceito legal citado.”.

A tal respeito, sustentam os Apelantes discordar da interpretação dada pelo tribunal a quo ao nº2 do art. 458º, porque este exige outras formalidades para a prova da relação fundamental e não para aferir da validade ou falta desta da relação fundamental invocada; a prova da relação mutuária não implica especiais exigências, mesmo que se venha a demonstrar que o contrato era válido por vício de forma.

Mais uma vez, não podemos dar razão aos Apelantes.

A alegação dos apelantes confunde dois conceitos: o reconhecimento de dívida sem indicação de causa enquanto fator de dispensa do credor da prova respetiva causa (e só a este se reporta o art. 458º) e enquanto meio de prova – no âmbito do art. 458º não se discute se tal documento serve, ou não, para prova de que foram emprestadas determinadas quantias, mas se o reconhecimento de dívida nela contido tem a força de inverter o ónus da prova da relação fundamental que lhe subjaz (ou da relação que constituiu a causa de pedir da presente ação), dispensando os autores da respetiva prova.

E o que estabelece o nº2 é que essa inversão do ónus da prova só ocorre se a própria declaração de reconhecimento da dívida respeitar a forma legal que seria exigida para a relação fundamental: por ex., se para a relação fundamental for exigida escritura pública, o reconhecimento da dívida a ela respeitante que conste de um documento particular não tem a força de dispensar o credor da prova da relação fundamental.

“Nos termos do nº2, a promessa ou reconhecimento deve observar a forma escrita, uma exigência justificada pela necessidade facilitar a prova de tal ato e para permitir a reflexão do devedor sobre a gravidade do mesmo. Se a validade da relação fundamental estiver dependente de forma mais solene, a promessa de reconhecimento deve observar igual forma[13]”.

“O nº2 exige que estas declarações revistam, pelo menos, forma documental. Caso a dívida/crédito resultem de fone (em especial contratual) para a qual a lei exija prova mais exigente, essa tem de ser a forma delas para que se verifique o efeito de inversão do ónus da prova que aqui se prevê[14]”.

Não se podendo socorrer do reconhecimento da dívida para efeitos de dispensa do ónus da prova dos factos que constituem a causa de pedir, sobre os autores continuava a incumbir a prova dos mesmos, prova que o tribunal recorrido entendeu não ter sido feita, dando como não provado que o falecido, nos anos seguintes ao mutuo inicial tenha continuado a entregar verbas ao réu a título de empréstimo (cfr., facto n. 5., dos factos “Não Provados”.

Com efeito, como salienta José Lebre de Freitas este meio de prova não se confunde com a confissão com valor de prova legal máxima, bastando ao devedor a prova do contrário para que seja ilidido – “A ilação que permite dar como provado o facto constitutivo da obrigação não é extraída diretamente da declaração do devedor, mas sim do conjunto formado por esta declaração e pela alegação do credor[15]”.

A Apelação é de julgar improcedente.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Custas a suportar pelos Apelantes.                

                                                    Coimbra, 13 de dezembro de 2023 

     

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…).


[1] José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 65.
[2] Acórdão relatado por José Capacete, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do TRP disponível in www.dgsi.pt.
[4] José Lebre de Freitas, “Da Falta de causa de Pedir No Momento da Sentença Final de Embargos à Execução Titulada por Documento de Reconhecimento de Dívida”, disponível in ROA, III-IV 2018, e Novos Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil”, GESLEGAL. pp. 745-746. Para explicitar o regime contido no art. 458º CC, José Lebre de Freitas socorre-se da figura da abstração processual, traduzida numa inversão do ónus da prova, baseada no conceito de causa eficiente, isto é, de causa de efeitos jurídicos, a qual coincide com o próprio facto que a dívida resulta: “Libertar o credor do ónus de provar a relação fundamental significa libertá-lo da prova, que de outro modo lhe competia (C.C., art. 342º-1), do facto constitutivo do seu direito. A disposição do art. 458º do C.C. nada tem, pois, a ver com a figura substantiva do negócio abstracto, nem o conceito de causa nele utilizado se confunde com o de causa do negócio jurídico (…) – na previsão do art. 485º do CC, não é apenas a causa do negócio jurídico que não é indicada no acto do reconhecimento, mas todo o negócio de que a obrigação resulte – cfr., “A Confissão no Direito Probatório”, Coimbra Editora, 1991, pág. 390, nota 24.
[5] Fernando Pessoa Jorge, “Lições de Direito das Obrigações”, 1975/76, págs. 219 e 220. No sentido de que tal norma não consagra o principio do negócio abstrato, se pronunciam entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 440. Em igual sentido, Vaz Serra, “Negócios Abstractos”, in BMJ nº 83, págs. 32 e 62. Na expressão utilizada por João de Castro Mendes, tratar-se-ão de negócios com causa presumida – Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, revisto e atualizado, edição AAFDL, Lisboa 1985, pág. 190 e 191 –, ou puras presunções de causa, como são denominados por Mário Júlio de Almeida e Costa “Direito das Obrigações”, 9ª ed., Almedina, pág. 426.
[6] Cfr., Teoria Geral do Direito Civil”, 2010 6ª ed., Almedina, págs. 503 e 504..
[7] Cfr., Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9º ed., Almedina 1996, págs. 454 e 455.
[8] José Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, págs. 389 a 391.
[9] Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 31.01.2002, in CJ-STJ Ano X, T1, pp. 66, Acórdão do TRP de 03.07.2003, relatado por Fernando Samões, Ac. do STJ de 15.09.2011, relatado por Granja da Fonseca, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3f. Em sentido contrário à tese maioritária na doutrina e na jurisprudência, se pronuncia, porém, António Abrantes Geraldes: “Atento o regime prescrito pelo art. 485º do CC e a conexão existente entre o ónus de alegação e o ónus da prova, não descortinamos fundamento para impor ao credor, tanto numa acção declarativa como numa acção executiva, o ónus de invocar a causa da dívida reconhecida, pois só faz sentido impor o ónus de alegação àquele sobre quem recai simultaneamente o ónus da prova. Considerando que a lei, face a uma promessa de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento de dívida, presume a existência da respectiva causa, o credor está desonerado do respectivo ónus de prova (art. 344º, nº1 do CC), logo não faz qualquer sentido impor-lhe o ónus de alegação que, no contexto processual, parece totalmente despiciendo” – “Títulos Executivos”, estudo publicado na THEMIS, Revista da FDUNL, Ano IV-nº7-2003, pág. 63. Também no Acórdão do STJ de 21.10.2010, relatado por Lopes do Rego, adotando posição diversa da por nós seguida no presente acórdão, se defende que a presunção de existência da relação fundamental decorrente do regime estabelecido no art. 458º, implica a dispensa do credor exequente de invocar os respetivos factos constitutivos no requerimento executivo – acórdão disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.
[10] José Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”. Coimbra Editora, p. 391.
[11] Acórdão relatado por Fátima Galante, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.
[12] “Da Falta de Causa de Pedir (…)”, pp.476-747.
[13] Fernando Oliveira e Sá, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Editora, p. 215, nota II ao artigo 458º.
[14] Ana Prata, “Código Civil Anotado”, Vol. I (Artigos 1º a 1250º), Ana Prata Coord., Almedina, pp. 590-560.
[15] Segundo tal autor, a estrutura de tal declaração é a de um simples juízo sobre a existência de uma situação jurídica, isto é, sobre o resultado dum tratamento normativo da realidade, pelo que não lhe pode ser atribuída a natureza de ato representativo dessa realidade – cfr., obra citada, p. 392.