Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
209/09.1PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
Data do Acordão: 11/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 147ºDO CPP
Sumário: 1. No reconhecimento podemos distinguir três modalidades:
a)- o reconhecimento por descrição,
b)- o reconhecimento presencial e
c) - o reconhecimento com resguardo.
2. O reconhecimento por descrição, previsto no nº 1 do artº 147º do CPP, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação.
3. O reconhecimento presencial, previsto no nº 2 do mesmo artigo, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal – e ela só o será se «satisfizer o critério probatório da fase processual em que o reconhecimento teve lugar».
4. O reconhecimento com resguardo, previsto no nº 3 ainda do art. 147º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se pois, de uma forma de protecção da testemunha.
5. Não se aplicam as regras gerais previstas no referido artº 147º ao acontecimento ocorrido na audiência, em que o ofendido, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o autor dos factos que o tiveram (ao queixoso) como vítima.
Decisão Texto Integral: I- RELATÓRIO
1 - No 3º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum, perante o tribunal colectivo, com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, o arguido M..., solteiro, desempregado, residente em V…, Figueira da Foz, a quem foi imputada, a prática de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 do Código Penal (C.P.), como autor material e na forma consumada.
A final, foi decidido julgar a acusação procedente, e, em consequência, condenar o arguido:
a) como autor material de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) Foi julgado o pedido cível formulado pelo demandante A... parcialmente provado e procedente, e condenado o demandado M... a pagar-lhe a quantia total de € 220 (duzentos e vinte euros), absolvendo-se o demandado do demais contra si peticionado.
c) O pedido cível de reembolso formulado pelo demandante Hospital Distrital da Figueira da Foz, E.P.E. foi também julgado provado e procedente, e consequentemente o demandado M... foi condenado a pagar a quantia de € 108 (cento e oito euros), acrescida de juros, à taxa legal, contados da notificação do pedido ao demandado até efectivo e integral pagamento.
d) Finalmente, o pedido cível de reembolso formulado pelo demandante I.S.S./I.P. – Centro Distrital de Coimbra foi julgado provado e procedente, e o demandado M... condenado a pagar ao demandante a quantia de € 25,15 (vinte e cinco euros e quinze cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, contados da notificação do pedido ao demandado até efectivo e integral pagamento.

2 - Inconformado, o arguido interpôs recurso da referida decisão, que motivou, formulando as seguintes conclusões:
“(…)
1. Não se conforma o recorrente com o acórdão recorrido por entender decorrer do texto da decisão recorrida os vícios elencados na alínea a) e c) do n° 2 do art 410º, do CPP, ie, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova.
2. O tribunal a quo dá como provados os factos constantes da acusação pública nos termos expressos no acórdão para cuja análise se remete V. Exas. e que se considera reproduzido para todos os efeitos legais.
3. Alicerçando a sua convicção sobre a identidade do recorrente, exclusivamente no depoimento da testemunha/ofendido feita em audiência de julgamento.
4. Não estamos perante um caso de flagrante delito.
5. Ora, o acto de reconhecimento pessoal efectuado no decurso do inquérito estava enfermo de nulidade insanável, não tendo qualquer relevância no presente processo.
6. Na audiência de discussão e julgamento estavam presentes: a digníssima Magistrada do Ministério Público, os Ilustres Senhores magistrados judiciais que compõem o colectivo, a senhora funcionária judicial, a defensora do arguido, a testemunha/ ofendido e o ora recorrente.
7. Ou seja, nestas condições quando se pergunta ao ofendido se reconhece a pessoa que está atrás de si como sendo o autor material do crime, seria improvável que o ofendido o negasse, visto o recorrente, para além das restantes pessoas supra indicadas, ser a única pessoa presente na sala de audiências.
8. Trata-se, no fundo, de tentar reduzir "um dos mais fortes factores de distorção dos actos recognitivos que decorre do facto de quem é chamado a reconhecer, sobretudo, num ambiente de tensão, sentir-se constrangido a identificar positivamente alguém - o chamado “yes effect".
9. Não há qualquer outro meio de prova que valide o seu depoimento, que afaste a dúvida que no entender da defesa e à luz das mais básicas regras do processo penal permanece quanto à identidade do autor do crime em causa.
10. Não restam dúvidas à defesa, que a prova produzida é manifestamente insuficiente para a sustentabilidade da condenação.
11. Apenas as declarações de uma pessoa, designadamente do ofendido, não serão para isso suficientes, carecendo de ser corroboradas por outros meios de prova em termos tais que, em face da falta destes, sempre terá de se concluir pela inexistência de elementos suficientes à identificação do presumível autor do crime.
12. Não há dúvida de que entre a “prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto".
13. A defesa não confunde o preceituado no artigo 147° do CPP com o mérito ou demérito da prova testemunhal em sede de audiência de julgamento e muito menos com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art° 127° do CPP.
14. Todavia, não se conforma com o facto do juízo de "reconhecimento" do ora recorrente, que no fundo sustenta a condenação, se basear exclusivamente, na declaração do ofendido em sede de audiência de discussão e julgamento sem qualquer outro meio de prova que corrobore tal identificação.
15. Considera-se, pois, insuficiente a prova produzida para a condenação em causa bem como erro notório na apreciação da mesma.
16. Violando-se nestes termos os direitos de defesa do arguido consagrados no art° 32°, n°1 da CRP, designadamente o princípio in dúbio pro reo.
17. Não há qualquer outro meio de prova que valide o seu depoimento, que afaste a dúvida que no entender da defesa e á luz das mais básicas regras do processo penal permanece quanto à identidade do autor do crime em causa.
18. Não restam dúvidas à defesa que a prova produzida é manifestamente insuficiente para a sustentabilidade da condenação.
19. Apenas as declarações de uma pessoa, designadamente do ofendido, não serão para isso suficientes, carecendo de ser corroboradas por outros meios de prova em termos tais que, em face da falta destes, sempre terá de se concluir pela inexistência de elementos suficientes à identificação do presumível autor do crime.
20. Não há dúvida de que entre a "prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto".
21. A defesa não confunde o preceituado no artigo 147° do CPP com o mérito ou demérito da prova testemunhal em sede de audiência de julgamento e muito menos com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art° 127° do CPP.
22. Todavia, não se conforma com o facto do juízo de "reconhecimento" do ora recorrente, que no fundo sustenta a condenação, se basear exclusivamente, na declaração do ofendido em sede de audiência de discussão e julgamento sem qualquer outro meio de prova que corrobore tal identificação.
23. Considera-se, pois, insuficiente a prova produzida para a condenação em causa bem como erro notório na apreciação da mesma.
24. Violando-se nestes termos os direitos de defesa do arguido consagrados no art° 32°, n°1 da CRP, designadamente o princípio in dúbio pro reo.
25. Entende-se existir violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no n.° 1 do artigo 32° da Constituição, quanto à norma constante do artigo 127° do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um "reconhecimento" do arguido realizado exclusivamente pelo depoimento do ofendido, sem qualquer outro alicerce probatório que o sustente.
26. Termos em que deverá revogar-se a decisão recorrida.
          Como é de Justiça!»

3- O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.

4- Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.

5- O recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art. 417º, nº 2 do CPP, nada veio alegar.

6- Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art. 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber:
1)  insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
2) erro notório na apreciação da prova.
3) violação do princípio da livre apreciação de prova (art. 127º do C.P.P. , art. 355º do C.P.P. e art.32º da C.R.P.) e do princípio "in dubio pro reo".
4) validade do “reconhecimento” efectuado em audiência de julgamento


2. Do acórdão recorrido
2.1. São os seguintes os factos que o acórdão recorrido elenca como provados:
“1 – No dia 15 de Março de 2009, cerca das 5 horas e 15 minutos, na avenida Saraiva de Carvalho, Figueira da Foz, no Terminal Rodoviário, o arguido, acompanhado de indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, abordou o queixoso A... e exigiu que este lhe desse € 1, ao que o mesmo queixoso acedeu;
2 – Acto imediato, o arguido agarrou o queixoso pelos braços, enquanto o outro indivíduo o agarrava pelas pernas, e atirou-o ao chão, onde lhe desferiu vários pontapés nos membros inferiores, ao mesmo tempo que lhe exigiu todo o dinheiro que o queixoso no momento trouxesse consigo;
3 – Atemorizado e com receio pela sua vida e integridade física, o queixoso entregou o porta-moedas ao arguido, que retirou do mesmo a quantia de € 50;
4 – Depois, o arguido e o outro indivíduo de identidade não concretamente apurada abandonaram o local, fazendo seu aquele montante pecuniário, não obstante saber o arguido que o mesmo lhe não pertencia e que actuava contra a vontade do queixoso;
5 – Em consequência dos factos descritos, o queixoso sofreu dores na região dorso-lombar esquerda, equimoses nos terços médio e superior das faces posteriores dos antebraços direito e esquerdo, respectivamente, e ainda escoriações na face média do tornozelo direito e na face lateral do tornozelo esquerdo, tudo demandando cinco dias de doença, três dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional do mesmo queixoso; 
6 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de se apoderar do dinheiro do queixoso, usando a força e a violência da forma descrita para melhor conseguir os seus intentos;
7 – Mais sabia ser tal conduta proibida e punida pela lei penal;
8 – Para além das dores sofridas, sentiu-se também o queixoso triste e desprotegido pelas circunstâncias em que os factos acima descritos se passaram (o ser “atacado” por dois desconhecidos);
9 – Para além disso, e por causa da mesma factualidade, teve o queixoso de recorrer, no dia 16 de Março de 2009, ao serviço de urgências do Hospital Distrital da Figueira da Foz, tratamento hospitalar esse que importou encargos, para tal Hospital, na quantia de € 108;
10 – Para se dirigir ao Hospital Distrital da Figueira da Foz, nos termos referidos no ponto 9 (desta matéria fáctica assente), o queixoso deslocou-se de táxi, suportando os inerentes custos, no valor de € 70;
11 – Por outro lado, em consequência das lesões por si sofridas (e há pouco descritas), esteve o queixoso de baixa médica no período temporal de 16 a 20 de Março de 2009, tendo-lhe sido pago pelo I.S.S./I.P. – Centro Distrital de Coimbra o subsídio de doença no valor de € 25,15;
12 – Não foi restituído ao queixoso, até ao momento, o montante aludido no ponto 3 (da presente factualidade provada);
13 – O arguido nasceu em Cabo Verde, estando os seus pais separados;
14 – Veio para Portugal com dois anos de idade, vivendo primeiramente com a mãe e, a partir dos seus seis anos, com o pai;
15 – Quando frequentava, em 2006, o 7º ano de escolaridade foi inserido em curso técnico-profissional, de que veio a desistir, ausentando-se do mesmo sem o consentimento do progenitor;
16 – Desde então passou a assumir comportamentos de vadiagem, desaparecendo de casa às temporadas, sem avisar quem quer que fosse, e dormindo onde “calhava”;   
17 – À data da prática dos factos em causa nos presentes autos fora já o arguido julgado e condenado criminalmente pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, vindo logo depois da factualidade sub judicio a ocorrer o trânsito em julgado de três outras decisões condenatórias, por crimes de furto e roubo;
18 – Encontra-se o arguido, no presente momento, a cumprir pena de prisão subsidiária da multa em que foi condenado pela prática de um dos crimes de furto mencionados no ponto 17 (destes factos assentes) “. 

2.2. Quanto a FACTOS NÃO PROVADOS, “não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir”.

2.3. É a seguinte a MOTIVAÇÃO DA DECISÃO sobre matéria de facto proferida pelo tribunal "a quo":
O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, concatenada e “peneirada” à luz das regras normais da experiência da vida.
Assim, apesar de o arguido se ter (legitimamente) remetido ao silêncio no que toca à matéria fáctica descrita na acusação pública, a verdade é que o depoimento prestado em audiência de julgamento pelo queixoso A… foi bastante claro, coerente e circunstanciado, pois relatou ele o modo como foi abordado e sujeito à acção violenta do arguido e outro indivíduo (de ignota identidade).
Aliás, foi o queixoso que, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o (co-)autor dos factos que o tiveram (ao queixoso) como vítima, não ficando ao Tribunal qualquer dúvida quanto à boa sustentação daquela mesma identificação.
E foi, pois, este contributo o fundamental para que, à luz do princípio geral da livre apreciação da prova [art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.)], o Tribunal formasse a sua convicção no tocante ao arguido enquanto (co-)autor da prática dos factos descritos na acusação pública.
Não valorou o Tribunal, deste modo, o acto de reconhecimento pessoal efectuado no decurso do inquérito pelo queixoso (cfr. fls. 7 dos autos), pois é, além do mais, verdade que na data da realização de tal acto (16 de Março de 2009) o arguido era menor de idade (nasceu em 10 de Maio de 1991) e não foi assistido por defensor, algo que obrigatoriamente deveria ter ocorrido, sob pena de nulidade insanável [arts. 64º/n.º 1-c) e 119º-c) C.P.P.].
Por isso, e neste aspecto, desde já se declara a nulidade da diligência de reconhecimento constante do auto de fls. 7, não tendo o conteúdo de tal diligência qualquer relevância no presente processo.
Como se viu, o que valeu para a formação da convicção deste Tribunal, no contexto do referido princípio geral da livre apreciação da prova, foi, diversamente, a prestação testemunhal (nas suas diversas dimensões) do queixoso em sede de audiência de discussão e julgamento.
No mais, relevou também o depoimento da testemunha C..., agente policial que desenvolveu algumas “démarches” tendentes ao apuramento da identidade do(s) autor(es) dos factos ora em causa.
No tocante à personalidade e condições de vida do arguido, valeram as declarações do próprio, bem como o teor do relatório social de fls. 93 a 95 dos autos.
Por fim, tomou-se ainda em conta o conteúdo do relatório do exame médico-legal de fls. 21 a 23, dos documentos de fls. 63 a 66, 69, 117 (referentes às despesas reclamadas nos autos), e 150 a 153 e 155 a 174 (certificado do registo criminal e certidão de acórdão condenatório relativos ao arguido).

3. OBJECTO DO RECURSO

3.1. O recorrente veio impugnar a sentença recorrida, invocando os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova (art. 410°, n° 2, als. a) e c), do C.P.P.), violação do princípio in dubio pro reo, e violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no n.° 1 do artigo 32° da Constituição, quanto à norma constante do artigo 127° do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um "reconhecimento" do arguido realizado exclusivamente pelo depoimento do ofendido, sem qualquer outro alicerce probatório que o sustente.
Os vários vícios invocados em sede de apreciação da prova reconduzem-se à análise do “reconhecimento” efectuado, ou não, na fase de julgamento. Desta forma, os mencionados vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro na apreciação da prova, demandam a prévia apreciação sobre a realização de reconhecimento em audiência de julgamento, sua validade e sua apreciação probatória.

3.2. A QUESTÃO DO «RECONHECIMENTO EM AUDIÊNCIA»
3.2.1.O reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime, ou seja, identificar a pessoa que foi vista a praticar o facto criminoso, ou que tenha sido vista antes ou depois do facto, em circunstâncias fortemente indiciadoras de ter sido o seu autor.
É óbvio que o resultado probatório positivo, com o reconhecimento do arguido como autor dos factos criminosos em investigação, a traduzir já uma forte suspeição da sua culpabilidade, impõe ao legislador que prudentemente e de forma cuidadosa assegure as necessárias condições de genuinidade e seriedade do acto, impondo a observância de regras através das quais minimize o risco de precipitação ou de falta de rigor.
Em suma, dada a relevância que na prática assume para a formação da convicção do tribunal, e os perigos que a sua utilização acarreta, um reconhecimento tem necessariamente que obedecer, para que possa valer como meio de prova em sede de julgamento, a um mínimo de regras que assegurem a autenticidade e a fiabilidade do acto.” – Ac TC n.º 452/05 de 25 de Agosto de 2005.
Assim, quanto ao procedimento a que deve obedecer o reconhecimento de pessoas, dispõe o art. 147º, do C.P.P:
N.º 1 – Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
Nº 2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
 Nº 3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
 Nº 4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
N.º 4 do artigo 147.º alterado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 15.º alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (DR 29 Agosto).
Redacção anterior
Vigência: 15 Setembro 2007
Nº 5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
N.º 5 do artigo 147.º aditado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 15.º alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (DR 29 Agosto).
Vigência: 15 Setembro 2007
Nº 6 - As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.
N.º 6 do artigo 147.º aditado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 15.º alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (DR 29 Agosto).
Redacção anterior
Vigência: 15 Setembro 2007
Nº 7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.
De notar que a prévia descrição da pessoa a reconhecer permite verificar se a pessoa que o sujeito descreve corresponde ao identificando, avaliar a capacidade perceptiva e de memorização de quem faz a descrição e fixar os parâmetros físicos para a escolha das pessoas que devem entrar na cena cognitiva, o que permite o controlo da credibilidade do reconhecimento e, consequentemente, da sua efectiva atendibilidade.
Convém não esquecer que a pessoa a identificar deve ser colocada ao lado dos figurantes e sempre que possível deve apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento.
Do respeito pelo rigor imposto à respectiva disciplina resultará o valor da diligência como meio de prova, sempre a apreciar livremente pelo tribunal.
No reconhecimento podemos distinguir três modalidades:
a)- o reconhecimento por descrição,
b)- o reconhecimento presencial e
c) - o reconhecimento com resguardo.
O reconhecimento por descrição, previsto no nº 1 daquele artigo, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação.
Em regra, esta modalidade de reconhecimento funciona como acto preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
O reconhecimento presencial, previsto no nº 2 do mesmo artigo, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal – e ela só o será se «satisfizer o critério probatório da fase processual em que o reconhecimento teve lugar» (Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 416).
Esta modalidade de reconhecimento obedece aos seguintes passos:
- Na ausência da pessoa que deve efectuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar;
- Depois, este é colocado ao lado daqueles outros cidadãos e, se possível, apresentando-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que deve proceder ao reconhecimento [tal só não será possível no caso de uma alteração fisionómica irreversível];
- É então chamada a pessoa que deve efectuar a identificação que, depois de ficar diante do grupo onde se encontra o cidadão a identificar e portanto, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo perguntas e respostas – estas e qualquer outra que porventura, tenha sido efectuada, registada no auto respectivo.
O reconhecimento com resguardo, previsto no nº 3 ainda do art. 147º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se pois, de uma forma de protecção da testemunha.
Esta modalidade de reconhecimento obedece à sequência descrita para o reconhecimento presencial, mas agora a pessoa que vai efectuar a identificação deve poder ver e ouvir o cidadão a identificar mas não deve por este ser vista. Normalmente, o que sucede é que a pessoa que deve efectuar a identificação é colocada numa divisão distinta daquela onde se encontra o grupo que inclui o cidadão a identificar, separadas por um vidro polarizado que permite que aquela aviste, sem ser vista, o grupo [esta modalidade de reconhecimento não vale para a audiência].
O reconhecimento de pessoas que não tenha sido efectuado nos termos que ficaram expostos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu (nº 7, do art. 147º, do C. Processo Penal).
Estamos pois perante uma proibição de prova, isto é, o reconhecimento é inválido e não pode, por isso, ser usado no processo designadamente, para fundamentar a decisão [há quem entenda que se trata de uma nulidade - cfr. art. 118º, nº 3, do CPP - embora, ao nível do processo, a utilização de uma prova proibida tenha o mesmo efeito da nulidade do acto ou seja, a prova é nula e por isso não pode servir para fundamentar a decisão (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 126].

3.2.2. A questão fundamental objecto do recurso é a de saber se também se aplicam as regras gerais ao acontecimento ocorrido na audiência destes autos, em que o ofendido, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o (co-)autor dos factos que o tiveram (ao queixoso) como vítima, não ficando ao Tribunal qualquer dúvida quanto à boa sustentação daquela mesma identificação.
Antes da Reforma de 2007, a jurisprudência maioritária entendia que “os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicam à instrução e inquérito e não à audiência de julgamento” - cf. Acórdãos do STJ de 01-02-96 CJ IV-I-198; de 11-05-2000, BMJ 497-293; de 2-10-96, BMJ 460-534; Acórdão da Relação de Évora de 07-12-2004, proc. 25/03-1; Acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2004, proc. 928/2004-3; Acórdão da Relação de Coimbra de 06-12-2006, proc. 146/05.9GCVIS.C1; Acórdão da Relação de Guimarães de 31-05-2004, proc. 2415/03-1; Acórdão da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240877; in www.dgsi.pt).
No entanto, foram surgindo soluções discordantes de forma que a jurisprudência se foi dividindo quanto à natureza dos reconhecimentos em audiência de julgamento:
- certa jurisprudência considerava que este tipo de reconhecimento consubstanciaria prova atípica, admissível nos termos do disposto no artigo 125º CPP (“são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”), valorada nos termos do artigo 127º CPP (livre apreciação da prova). A subjacente interpretação no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo CPP foi julgada inconstitucional por Acórdão nº137/2001, processo nº778/00 do Tribunal Constitucional.
- outra sensibilidade jurisprudencial entendia que o reconhecimento em audiência de julgamento integrado no relato de uma testemunha, não tem valor processual autónomo do depoimento prestado, sem prejuízo dos direitos do arguido, na medida em, na audiência de julgamento, vigora em toda a sua plenitude o Princípio do Contraditório. Assim sendo, devia o referido “reconhecimento” ser livremente apreciado, nos termos do artigo 127º CPP (cf. neste sentido de que “o reconhecimento de um arguido na audiência de julgamento é prova testemunhal e não prova por reconhecimento” os Acórdãos do STJ de 06-09-2006, proc. nº06P1392; da Relação do Porto de 19-01-2000, proc. nº 9940498 e de 07-11-2007, proc. 0713492).
Já o acórdão do Tribunal Constitucional nº425/2005, proc. 425/05, distingue o reconhecimento propriamente dito, do impropriamente designado reconhecimento, que não passa de “uma atribuição dos factos expostos no depoimento da testemunha a certa pessoa ou pessoas” e submete este às regras de apreciação da prova testemunhal e aquele à disciplina do art 147º do CPP.
E esclarece muito bem a diferença das situações:
“Assim sendo, nada impede o Tribunal de "confrontar" uma testemunha com um determinado sujeito para aferir da consistência do juízo de imputação de factos quando não seja necessário proceder ao reconhecimento da pessoa, circunstância em que não haverá um autêntico reconhecimento, dissociado do relato da testemunha, e em que a individualização efectuada – não tem o valor de algo que não é: o de um reconhecimento da pessoa do arguido como correspondendo ao retrato mnemónico gravado na memória da testemunha e de cuja equivalência o tribunal, dentro do processo de apreciação crítica das provas, saia convencido. Diferente – mas que não ocorreu nos autos – é a situação processual que ocorre quando, pressuposta que seja a necessidade de reconhecimento da pessoa, tida como possível autora dos factos, se coloca o identificante na posição de ter de precisar, entre várias pessoas colocadas anonimamente na sua presença, quem é que corresponde ao retrato mnemónico por ele retido”.
Gomes de Sousa, relator do Acórdão da Relação de Coimbra de 5-05-2010[1] (Pº 486/07.2GAMLD.C1) evidencia que o regime normativo da audiência de julgamento se mostra de difícil compatibilidade com o formalismo previsto no artigo 147º do Código de Processo Penal, claramente pensado para a fase de inquérito ou instrução.
De todo não deixa de assinalar que a questão da realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução por inércia das entidades investigadoras, por nulidade processual ou nulidade probatória do acto praticado em fase de inquérito ou instrução. Acrescenta que, nestes casos, se impõe uma tomada de posição do tribunal no sentido de considerar necessária e adequada a realização de um “reconhecimento”, ao qual será atribuída uma específica e autónoma força probatória.
Após as alterações introduzidas no art 147º do CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não restam quaisquer dúvidas de que um reconhecimento efectuado sem o cumprimento dos requisitos contidos nos artigos 147º, 148º e 149º do Código de Processo Penal “não tem valor como meio de prova”, seja qual for a fase do processo em que ocorreu, tal como se estatui nos artigos 147º, nº 7, 148º, nº 3 e 149º, nº 3, do CPP.
Ponto é que o tribunal tenha decidido realizar o reconhecimento previsto no art 147º do CPP ou que não tendo assim decidido, quando tal se revelava necessário, tenha optado por alcançar o respectivo resultado, no âmbito do depoimento da testemunha ou do ofendido.
No caso dos autos, o reconhecimento de pessoas tal como foi feito, em sede de inquérito, foi declarado nulo pois “na data da realização de tal acto constante do auto de fls. 7,  (16 de Março de 2009) o arguido era menor de idade (nasceu em 10 de Maio de 1991) e não foi assistido por defensor, algo que obrigatoriamente deveria ter ocorrido, sob pena de nulidade insanável [arts. 64º/n.º 1-c) e 119º-c) C.P.P.].”
De facto, a Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, com as alterações que introduziu na redacção do artº 147º do CPP, tornou o reconhecimento, enquanto meio de prova, sujeito a um mais apertado formalismo.
Contudo, tal assim é apenas no caso do reconhecimento stricto sensu, como modo de chegar ao conhecimento de alguém até então não conhecido nem identificado.
No caso dos autos, a identificação do arguido por uma testemunha em audiência não configura um estrito acto de reconhecimento, o que aliás nem sequer foi pedido pelo tribunal a quo (não se ignora que já havia nos autos uma identificação por reconhecimento, não obstante ter sido, mais tarde, por sentença, considerado nulo, por razões formais).
Na acta nada consta – ou seja, não foi o tribunal que pediu um reconhecimento processual, enquanto meio de prova autónomo, assim mesmo considerado pela disciplina do nosso Código de Processo Penal.
Já se decidiu em aresto do STJ, que «um reconhecimento em audiência, para valer como meio de prova, terá de ser presidido pelo tribunal, e não, ser levado a efeito, durante o depoimento duma testemunha, mediante pedido do magistrado do MP para que esta, de entre vários arguidos, indique aquele a quem se refere».
No fundo, o que ali aconteceu foi uma mera identificação que de comum com o referido reconhecimento apenas tem a – incorrecta - nomenclatura.
Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 7.11.2007 (in www.dgsi.pr/jtrp, “o simples acto de uma testemunha na audiência identificar o arguido como o autor dos factos em julgamento insere-se no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da prova por reconhecimento”.
Não é esse o espírito da lei.
E mesmo percebendo à evidência que as alterações introduzidas o tenham sido de modo apressado, quiçá por pressão de casos assaz mediáticos, mesmo assim não têm nem a dimensão nem o alcance que lhe atribui o arguido.
«De outro modo estaria achada a fórmula de anular qualquer prova testemunhal pois bastaria que a testemunha perante a pergunta de saber se reconhecia o arguido, se virasse, olhasse ou apontasse para ele, para de imediato deixar de se poder valorar o seu depoimento» (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/3/2009 (Pº 1109/08-1).
A adição, pela lei nova, de um novo número ao art. 147.º do CPP, com a redacção atrás revelada, não se traduz numa qualquer novidade na disciplina do reconhecimento, apenas vindo dizer que, quer no inquérito, quer na instrução, quer no julgamento[2], o meio de prova que é o reconhecimento tem de obedecer ao formalismo enunciado naquele artigo.
Isto é, a lei nova não veio introduzir um novo meio de prova ou definir de maneira diferente o valor probatório daquele meio de prova - apenas veio dizer de forma inequívoca aquilo que já era suposto (e que muitas vezes se fazia na prática dos tribunais ) na lei antiga : que o meio de prova “reconhecimento” só o seria válido e eficaz se obedecesse ao formalismo do .º 2 do art. 147.º.
No domínio da lei antiga entendia-se (falamos do entendimento da jurisprudência e da prática dos tribunais) que o reconhecimento do arguido ou de alguém, feito por uma testemunha na audiência de julgamento, não tinha sempre de obedecer ao formalismo prescrito pelo art. 147.º CPP, pois este preceito legal só tinha aplicação nas fases de inquérito e de instrução (Ac STJ, de 2-10-1996, BMJ, 460.º-525; Ac STJ, de 1-2-1996, CJ/STJ, ano IV, t. I, p. 198 ; Ac STJ, de 11-5-2000, proc. n.º 75/2000, SASTJ, 41.º-76 ; Acs STJ de 11-05-2000, proc. n.º 75/2000, e de 17-02-2005, proc. n.º 4324/04 ; Ac STJ, de 2-10-1996, proc. N.º 96P728, www.dgsi.pt ; Ac STJ, de 6-9-2007, proc. n.º 06P1392, www.dgsi.pt ),
Esse entendimento e a prática correspondente não deverão sofrer abalo no âmbito da lei nova quando se trate não de proceder ao “reconhecimento“ do arguido mas à identificação do mesmo pela testemunha como sendo o autor dos factos em discussão. Isto por se entender (como antes se entendia) que em tais casos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do artigo 127.º do CPP, e não a «prova por reconhecimento» a que alude o artigo 147.º do mesmo diploma.
Entendia-se que esta interpretação do artigo 147.º não violava o princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, ou qualquer outra norma constitucional, como decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 425/2005, de 25-08-2005 (proc. n.º 452/05, publicado no DR n.º 195, II Série, de 11-10-2005, pp. 14574 a 14579).
No caso em apreço, na audiência houve lugar à identificação do arguido pelo ofendido, meio de prova submetido ao princípio do contraditório (artigo 327.º, 2, do CPP), não tendo sido sentida pelo tribunal a necessidade de recorrer ao meio probatório autónomo intitulado de «Reconhecimento de pessoas», tanto mais que já até havia sido ouvido – cfr. fls 145 - em julgamento o guarda da PSP C…, autor do relatório intercalar de fls 5 e 6 e que lançou muita luz sobre a forma como se chegou à identificação do arguido como o autor do facto criminoso nos autos (note-se que o tribunal recorrido deixa escrito na sua fundamentação que «relevou também o depoimento da testemunha C..., agente policial que desenvolveu algumas “démarches” tendentes ao apuramento da identidade do(s) autor(es) dos factos ora em causa).
Logo trata-se de uma prova não proibida, a valorar de harmonia com o referido princípio da livre convicção (cfr. artigo 355.º CPP).
Daí que seja irrelevante toda a crítica dirigida à correcção ou à observância estrita do formalismo legal imposto pelo artigo 147º.
Em todo o caso, também se sublinhava, e deve continuar a sublinhar-se, que tinham de considerar-se sanados quaisquer vícios do âmbito daquele artigo, existentes em reconhecimento efectuado em audiência, desde que não fosse logo arguida a nulidade do acto, quando o arguido a ele assistia (Ac STJ, de 14-4-1994, proc n. 46223 ; Ac STJ, de 2-10-1996, proc. N.º 96P728, www.dgsi.pt).
É precisamente no caso em apreço, não se vê dos autos (acta da audiência) que tenha sido, pelo arguido, invocada a nulidade do «reconhecimento».
Em suma, nem o tribunal recorrido estava inibido de valorar a identificação feita nos autos como simples prova testemunhal, de acordo com o princípio da livre valoração da prova, o mesmo acontecendo agora com este tribunal de recurso.

3.2.3. Por exemplarmente se referir a estas questões, aqui se deixa parte considerável do Acórdão do STJ de 3/3/2010 (Pª 886/07.8PSLSB.L1. S1)[3], publicado já depois da revisão do CPP de 2007:
«A questão fundamental que se coloca quanto ao reconhecimento em sede de audiência de julgamento é a da conformação que o mesmo acto deve assumir quando suceda em audiência.
A recente alteração introduzida pela Lei 48/2007 pretendeu esclarecer as divergências pré-existentes na jurisprudência, afirmando que as regras inscritas para o reconhecimento em sede de inquérito igualmente têm aplicação na fase de audiência, ou seja, a sua inobservância implica a proibição da sua valoração como prova.
Colocada perante a questão a tendência jurisprudencial anterior àquela Lei era maioritária no entendimento de que os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicavam à instrução, e inquérito, e não à audiência de julgamento (28). Argumentava-se que este tipo de reconhecimentos consubstanciava uma prova atípica que seria admissível nos termos do disposto no artigo 125º CPP, devendo ser valorada nos termos do preceituado no artigo 127º do mesmo diploma.
Tal entendimento foi objecto de apreciação no Acórdão do Tribunal Constitucional 137/2001 que se pronunciou no sentido de inconstitucionalidade, referindo que é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.
Num sentido convergente também se argumentava que o reconhecimento em audiência de julgamento corresponde ao relato de uma testemunha e não tem valor processual autónomo do depoimento prestado, sem que tal consideração prejudique os direitos do arguido, na medida em, na audiência de julgamento, vigora em toda a sua plenitude o princípio do contraditório.
Desenhado os caminhos seguidos pela jurisprudência anteriormente á Lei 48/2007 é importante que se diga agora que a alteração pela mesma introduzida, querendo resolver tudo o que concerne á questão, acaba por não resolver nada. Na verdade, subsiste a questão fundamental da indefinição da natureza da prova por reconhecimento o que tem subjacente a precisão sobre a sua finalidade.
Pressuposto básico da resolução de tal questão é o de que estamos perante a prova por reconhecimento quando não esteja identificado o agente do crime, sendo necessária a sua determinação. Constitui algo de absolutamente distinto a situação de confirmação como agente do crime em relação a alguém previamente identificado, investigado e assumido como sujeito processual com todo o catálogo de direitos inscritos como tal a qual se traduz numa intima comunicabilidade e interacção entre os diversos intervenientes processuais envolvidos no julgamento.
Imporá salientar aqui a aparente aporia em que se evolveu o legislador pretendendo tratar uniformemente situações que, de todo, não são susceptíveis de equiparação. Na verdade, em sede de audiência de julgamento rege o principio da publicidade e não se vislumbra como é que se possa evitar que neste acto, ou, previamente, e a partir do momento em que é pública a identidade do arguido, se possa evitar o eventual contacto ou uma possível identificação num espaço publico, ou privado, ou até a própria interpelação na abertura da audiência.
Na verdade, a questão fundamental não consiste em saber se o formalismo deve, ou não, ser observado em audiência de julgamento. Que não pode ser realizado, a não ser através de uma ficção, ou simulacro é, quanto a nós, um dado adquirido, pois que as regras que regulam a audiência de julgamento são incompatíveis com essa observância. A não ser que se interrompa a audiência para ir realizar o acto processual a uma esquadra de polícia o que, para além de ser ridículo e um desperdício de tempo, é desaconselhável e inútil.
Aliás, sendo desadequada tal prática é desaconselhável pois que o arguido, em fase de julgamento – antes mesmo da audiência – está publicamente exposto e já foi visto (ou pode ter sido visto) por todos os intervenientes processuais o que é uma mera decorrência da característica de publicidade dessa fase processual. Daí que um reconhecimento realizado, pela primeira vez, em audiência de julgamento seja substancialmente injusto, pois que já exposto o arguido aos olhares das testemunhas que o irão reconhecer. E aqui basta a mera possibilidade de tal já ter ocorrido. Desaconselhável, também, por ser já um dado adquirido por estudos em psicologia da memória que o “reconhecimento” deve ser realizado o mais próximo possível da data do evento.
“O tempo é um importante factor na determinação da fidelidade da identificação e o número de correctas identificações declina à medida que o intervalo de tempo entre o crime e o procedimento de identificação aumenta”. (30) Admitir um reconhecimento realizado pela primeira vez em audiência de julgamento é, além do exposto, uma clara violação do due process of law, na medida em que, na audiência, o arguido está exposto publicamente.
Sintetizando o exposto pode-se afirmar que a questão que legitimamente se coloca, desde logo, é a de saber até que ponto será exequível aplicar as regras do reconhecimento previstas no artigo 147º do CPP à audiência de julgamento em que há um inevitável contacto directo entre ofendidos e arguidos, não apenas na própria sala de audiências, como nos corredores do tribunal ou no simples acto de chamada para o processo realizada pelo funcionário judicial. Em todo o caso, mesmo que se considere possível, com as devidas adaptações, o cumprimento em audiência de julgamento das regras do artigo 147º, sempre ficará necessariamente excluída a possibilidade de ocultação do identificante a que alude o nº 4 do aludido preceito legal.
Na verdade, para além daquilo que constitui, quanto a nós, uma impossibilidade material temos por adquirido que o pensamento do legislador foi obliterado pela confusão entre prova testemunhal e prova por reconhecimento. Omitiu-se o pressuposto fundamental de que a prova por reconhecimento pressupõe a indeterminação prévia do agente do crime.
Assim, é, quanto a nós, linear que a situação em que a testemunha, ou a vítima, é solicitada a confirmar o arguido presente como agente da infracção não se configura um acto processual, consubstanciando o reconhecimento pessoal. Pelo contrário, tal confirmação da identidade de alguém que se encontra presente, e perfeitamente determinado, apenas poderá ser encarado como integrante do respectivo depoimento testemunhal.
Como refere Medina de Seiça o acto de reconhecimento visual de uma pessoa, na medida em que implica uma reevocação de uma percepção ocular anterior, apresenta profun­das similitudes com o processo mental próprio do depoimento testemunhal. Na verdade, «têm em comum o fundo: memórias empíricas» que, por meio da recordação podem emergir como informação disponível. Sustentados, pois, na complexa actividade mnemónica, ambos os meios de prova são par­ticularmente vulneráveis a múltiplos factores de distorção e engano que ocor­rem ao longo de todo o itinerário da cognição, da memorização e da evocação. Esta similitude, porém, não elimina as diferenças estruturais existentes entre as duas formas de percepção e recordação.
Numerosos estudos psicológicos têm posto em evidência que no teste­munho o depoente organiza a recordação mediante referentes de espaço e tempo, causa e efeito. Deste modo, as informações prestadas são apreensíveis com facilidade pelos destinatários, pois recondutíveis aos esquemas usuais da comunicação verbal. A situação é diversa quando se trata de efectuar um reconhecimento: dizendo-o com Cordero, aqui trabalha-se sobre uma maté­ria completamente alógica, que se presta aos «curtos-circuitos» de sensações racionalmente insondáveis.
 Por outro lado, em face de uma identificação visual feita por uma pes­soa, os meios de controle são muito mais limitados do que perante um tes­temunho. Neste último, o processo de composição da recordação pode ser aprofundado, vigiado e submetido a verificação, sobretudo no decurso da audiência mediante contra-interrogatório. Muito embora a pessoa que efec­tua o reconhecimento deva ser também ela objecto de interrogatório, em ordem a fiscalizar o mais possível o contexto em que terá ocorrido a sua percepção originária e a possibilidade de factores de erro entretanto ocorri­dos, certo é que o acto recognitivo em sentido estrito escapa a um efectivo controle.
Estamos, assim, reconduzidos ao postulado inicial do presente excurso e, consequentemente, levados a perfilhar o entendimento já expresso pelo Tribunal Constitucional quando refere que Não há dúvida de que entre a "prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto" (cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 775 e Massimo Ceresa Gastaldo, "La ricognizione personale "attiva" all’esame della Corte Costituzionale: facoltà di astenzione o incompatibilità del coimputato", in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 1, 1995, p. 264).
Desde logo, pode dizer-se que um testemunho, enquanto "juízo" de imputação fáctica, implica sempre um "reconhecimento" de um determinado sujeito – recte, uma individualização concretizadora ou um acto de identificação directa [cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 773, n. 173; v. também Daniela Vigoni, "La ricognizione personale", cit., p. 183; Giovanni Conso/Vittorio Grevi, Commentario breve al Nuovo Codice di Procedura Penale, Pádua, 1994, pp. 213 e ss.; Tommaso Rafaraci, "Ricognizione informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme probatorie" – nota a Cass. sez. II pen. 28 febbraio 1997 – in Cassazione Penale, n.º 6, 1998, pp. 1739-1747].
Contudo, não podem olvidar-se as diferenças qualitativo-funcionais entre estes dois domínios probatórios.
De tal pressuposto arranca também a mesma decisão na declaração do pressuposto de que importa ter presente o pressuposto específico – que autonomiza o reconhecimento e o erige como meio de prova – traduzido num inequívoco juízo de necessidade, direccionado, como se disse, ao esclarecimento de uma situação de incerteza subjectiva, em termos de a ele se recorrer apenas "quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa" (v. Alberto Medina de Seiça, "Legalidade da prova e reconhecimentos "atípicos" em processo penal., cit., p. 1413).
E se este juízo permite distinguir a valoração autónoma deste meio de prova daqueloutra relativa à prova testemunhal qua tale, também não é menos verdade que, por ele, se devem circunscrever à esfera da prova testemunhal os "reconhecimentos testemunhais", onde não se autonomize e onde não releve a necessidade de esclarecimento de uma qualquer situação de incerteza quanto à autoria dos factos e à identificação do agente.
De facto, a identificação subjacente a um depoimento testemunhal esgota a sua eficácia – e a possibilidade de o juiz o valorar – no âmbito de um meio probatório não direccionado ao reconhecimento de uma pessoa e, assim, qualquer "individualização" ou "reconhecimento" – em sentido impróprio, diga-se – que aí se faça não pode deixar de ter como pressuposto uma situação de determinação subjectiva, e, por isso, só poderá ser valorada dentro da esfera probatória de onde emerge – a prova testemunhal –, não lhe podendo ser reconhecido um valor probatório autónomo e separado.
Ou seja, por outras palavras, não estando implicada na produção e valoração deste meio de prova uma necessidade de se afastar uma situação de incerteza quanto à identificação de um sujeito, a funcionalidade e a finalidade inerentes a um acto de "reconhecimento" – de imputação – que se produza neste contexto terá sempre uma função exógena da que é cumprida pelo reconhecimento em sentido próprio – v. g. aferir da credibilidade e consistência do depoimento –, não podendo aquele ser autonomamente valorado para responder às situações onde se justifique a autonomização de um verdadeiro acto de reconhecimento.

3.2.4. Como tal, acreditamos que a crítica do recorrente emerge de uma manifesta confusão entre prova por reconhecimento e prova testemunhal.
O reporte testemunhal ao acto processual praticado no inquérito ou a afirmação de que o arguido foi o autor dos factos incursos em tipicidade criminal concretiza-se no conceito de prova testemunhal e não de prova por reconhecimento.
Embora o tribunal recorrido afirme que “foi o queixoso que, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o (co-)autor dos factos que o tiveram (ao queixoso) como vítima”, o certo é que o Tribunal não ficou com qualquer dúvida quanto à boa sustentação daquela mesma identificação, dado ter sido este “contributo o fundamental” para que, à luz do princípio geral da livre apreciação da prova [art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.)], o Tribunal formasse a sua convicção no tocante ao arguido enquanto (co-autor da prática dos factos descritos na acusação pública.
Validada esta identificação, no âmbito da prova testemunhal, improcede a argumentação do recurso na parte respeitante ao «reconhecimento efectuado em audiência».
 


3.3. Dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP

3.3.1. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício – de conhecimento oficioso - resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Vejamos o nosso caso.

Lendo a decisão recorrida, fácil é de concluir que a mesma está elaborada de forma muito equilibrada, lógica, encadeada e assaz fundamentada.

O Tribunal valorou devidamente o depoimento da vítima para concluir pela culpabilidade do arguido no que tange ao domínio do facto criminoso, tendo relevado também o depoimento da testemunha C..., agente policial que desenvolveu algumas “démarches” tendentes ao apuramento da identidade do(s) autor(es) dos factos ora em causa.

E, portanto, provou, para além de qualquer dúvida razoável, pelas circunstâncias da acção provada, que o autor do roubo foi, de facto, o arguido.

  O registo do acórdão é encadeado e lógico.

  Desta forma, inexistem vestígios de erros notórios na apreciação da prova.

  Ou de qualquer um dos outros vícios do artigo 410º do CPP.

  O tribunal decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a devidamente.

3.3.2. Quanto à livre apreciação da prova, diremos ainda o seguinte:

O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.

Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.

Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.

Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.

Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:

os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);

A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;

Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;

A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;

Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.

A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência

            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.

            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.

É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.

As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).

            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.3.3. Uma palavra sobre o princípio «in dubio pro reo», também tido por violado pelo recorrente.

No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.

O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.

Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.

Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:

«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».

Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.

«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).

Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.

Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.

O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.

Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.

As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.

Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:

«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.».

Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.

Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado, fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.

Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.

E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.

Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.

É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.

Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.

Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.

Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.

Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto.

Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.

Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».

O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.

Não ficou o Tribunal da Figueira da Foz, vivendo ao vivo este evento, em estado de dúvida, assente no cotejo dos dois depoimentos da vítima e do guarda C… .

E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).

Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.

3.3.4.Em suma:

Reportando-nos ao caso concreto, sustenta o recorrente que o acórdão recorrido enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão porque o tribunal não dispunha dos elementos probatórios necessários para poder concluir que foi o arguido o autor dos factos descritos na factualidade assente como provada, dado que o reconhecimento efectuado pelo ofendido em inquérito foi declarado nulo, não podendo valer como prova, e o reconhecimento efectuado em audiência não observou os requisitos legais.

Ora,

· a invocada ilegalidade do reconhecimento – já por nós afastada - não integra o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;
· o tribunal explicitou convenientemente o raciocínio seguido para alcançar o convencimento sobre a factualidade provada, bem como o motivo por que julgou, sem que tal ofenda as regras da experiência;
· não resulta minimamente do acórdão condenatório ora sob censura que o tribunal tenha chegado a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, tenha escolhido a versão factual desfavorável ao Arguido ora Recorrente.

O recurso improcede, portanto, quanto a este segmento também.

3.4. Aqui chegados, só resta a este tribunal validar a decisão recorrida, bem como a pena aplicada, tida por justa.



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III- Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em NEGAR provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão recorrida.

  Condena-se o recorrente em custas, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ, ainda aplicável aos autos], sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza.

Coimbra, 10 de Novembro de 2010
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Paulo Guerra – por vencimento


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João Trindade - Presidente


                                                         SEGUE VOTO DE VENCIDO

VOTO DE VENCIDO


Votei vencida, embora reconheça mérito aos argumentos da tese vencedora, cujo resultado obtém uma solução menos formalista e mais adequada à dinâmica da audiência de julgamento.

Não fora a reforma penal introduzida pela Lei nº Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto e concordaria com o tratamento jurídico da questão, que aliás está em consonância com a jurisprudência do STJ anterior à referida reforma.

Aliás, também a jurisprudência da restantes instâncias anterior à Reforma de 2007 era esmagadora no sentido de entender que “os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicam à instrução e inquérito e não à audiência de julgamento” (cf. Acórdão da Relação de Évora de 07-12-2004, proc. 25/03-1; Acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2004, proc. 928/2004-3; Acórdão da Relação de Coimbra de 06-12-2006, proc. 146/05.9GCVIS.C1; Acórdão da Relação de Guimarães de 31-05-2004, proc. 2415/03-1; Acórdão da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240877; in www.dgsi.pt).

Em resumo, entendia-se que a prova por reconhecimento só nas fases de inquérito e de instrução  devia obedecer ao formalismo imposto no art 147º do CPP, pelo que se em audiência, uma testemunha identificasse o(s) arguido(s), durante o seu depoimento, estando a ser produzida prova testemunhal, não era exigível o formalismo que o art. 147.º do CPP já prescrevia.

Assim mesmo se defendia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, Proc. n.º 553/05:

(…) II - O «reconhecimento» feito em audiência integra-se num complexo probatório que lhe retira não só autonomia como meio de prova especificamente previsto no art. 147.°, como lhe dá sobretudo um cariz de instrumento, entre outros, para avaliar a credibilidade de determinado depoimento, inserindo-se assim, numa estrutura de verificação do discurso produzido pela testemunha. Nesta perspectiva, tal «reconhecimento» feito em audiência, a avaliar segundo as regras próprias do art. 127.º do CPP, não carece, para ser válido, de ser precedido do reconhecimento formalizado - o reconhecimento propriamente dito - realizado nas fases de investigação - o inquérito e a instrução; cf. Acs. do STJ de 11-05-2000, Proc. n.º 75/2000 e de 16-06-2005, Proc. n.º 553/05 e Ac. do TC de 25-08-2005, Proc. n.º 425/05 [in www.stj.pt]

Todavia, com a Reforma de 2007, foi aditado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o nº 7 do artigo 147º do CPP, em vigor desde 15 de Setembro de 2007 e que prescreve: O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer. ( sublinhado nosso).

O que obviamente inclui a fase de julgamento, pelo que é manifesto que o legislador veio consagrar uma posição diametralmente oposta à anteriormente defendida pela esmagadora maioria da jurisprudência que defendia a inaplicabilidade das regras do artigo 147º do CPP à audiência de julgamento, como alerta o Prof  Maximiano Vale.

 http://penal2trabalhos.blogspot.com/2008/04/o-reconhecimento-em-processo-penal.html

Afigura-se-nos constituir uma subtileza radicada em equívoco quando em certos casos concretos, em que se torna necessário em audiência de julgamento apurar a identificação do agente,  confundi-la com a identificação suscitada por qualquer dúvida ou incerteza acerca do seu envolvimento nos factos.

Distinção que é exemplarmente revelada no Ac da rel do Porto de 17 de Março de 2010, onde se pode ler: “A prova por reconhecimento só tem lugar quando surgem dúvidas em relação à individualização de uma determinada pessoa, [“Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa (…)” – art. 147.º, n.º 1, CPP]; e a regulamentação minuciosa a que obedece é determinada pelo melindre e pela importância que o acto tem no desenvolvimento do processo, visando assegurar a fidedignidade da reconstrução mnemónica. Por seu lado, a identificação do arguido por uma testemunha, em audiência, é apenas um pormenor do depoimento, um elemento adicional e complementar que contribui para a avaliação da sua credibilidade – sublinhado nosso.

É certo que a 1ª primeira fase do reconhecimento não deixa de ser uma «declaração» onde a testemunha descreve aquilo de que se recorda – solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação art.º 147º n.º 1 do Código Processo Penal.

Pode até nem ser necessário passar à segunda fase, o que não dispensa a obrigação legal de fazer constar a diligência de auto de reconhecimento, conforme o disposto no art 99º do CPP.

A segunda fase do reconhecimento, ocorre apenas no caso em que a identificação não foi cabal e obedece ao procedimento prescrito no n.º 2 do art.º 147º do Código Processo Penal: afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.

Claro está que a falta de salas de identificação nos nossos tribunais constitui um obstáculo que deve ser removido pelo recurso às salas das esquadras da PSP, para o que eventualmente haverá que interromper  a audiência com prejuízo do princípio da continuidade prescrito no art 328º ,º 1, do CPP.

O facto da pessoa a identificar ter sido já observada, não impede o cumprimento do formalismo legal dado que o reconhecimento apela à memória da primeira visão, e nem sempre a memória de factos mais antigas é menos eficaz. Segundo o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Proc. Penal II volume, pgs. 175/176) “o cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento evidencia a importância e falibilidade deste meio de prova, quando não foram tomadas as devidas precauções. Por isso que as estabelecidas na lei o são sob pena de invalidade do reconhecimento (art.° 147º, n.º 4 - actualmente n.º 7 CPP). (...)

É evidente que se a testemunha tiver tido indicações prévias de quem é a pessoa ou qual a coisa a identificar, nomeadamente pela prévia indicação da suspeita, exibição de fotografia do suspeito ou de qualquer outro modo, o reconhecimento só tem valia probatória desde que substancial e formalmente se respeitem as regras de procedimento estabelecidas por lei.

A prova por reconhecimento é uma prova muito delicada e porque irrepetível deve ser rodeada de cuidados especiais para assegurar a sua fiabilidade”.

Reportando-nos ao caso concreto, da fundamentação da sentença resulta claramente que o tribunal necessitou da identificação processada pelo ofendido para formar a sua convicção no tocante ao arguido enquanto (co-)autor da prática dos factos descritos na acusação pública. – sublinhado nosso.

Até porque o tribunal a quo não valorou  o acto de reconhecimento pessoal efectuado no decurso do inquérito pelo queixoso (cfr. fls. 7 dos autos), porque o declarou nulo.

Consequentemente, embora o tribunal a quo não tenha designado a identificação efectuada como reconhecimento na pessoa do arguido feito na audiência de discussão e julgamento, antes a integrasse na prova testemunhal, o certo é que em termos ontológicos o que ocorreu, de forma absolutamente ilegal, por violadora das regras que regulamentam este meio de prova, foi um efectivo reconhecimento do arguido - art. 147.º do CPP.

Assim sendo tal reconhecimento não obedeceu ao disposto art. 147.º do CPP pelo que NÃO TEM VALOR COMO MEIO DE PROVA.

O Prof Germano Marques da Silva ( ob citada II 2ª edição ) na nota 2 da pág 175 dá conta que “É muito frequente na prática processual perguntar-se aos ofendidos e testemunhas no decurso da audiência se reconhecem o arguido presente. Esta prova pode ter muita importância quando negativa, mas não tem o valor de reconhecimento quando positiva, isto é, quando a testemunha declara que sim, que reconhece o arguido.”

Ensina o Prof. Manuel da Costa Andrade: “Na medida em que optou por consagrar expressamente um regime de reconhecimento imposto, o legislador português demarcou-lhe ao mesmo tempo os limites. Que o intérprete e aplicador do direito não estão legitimados a ultrapassar.”

Aliás, embora a propósito do reconhecimento fotográfico, já foi proferida decisão nesta relação por acordão de 06-05-2009  em que foram – e bem em nosso modesto entender - consideradas as consequências da inobservância do formalismo legalmente estipulado no processo de obtenção de prova por reconhecimento, por efeito da reforma introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

Com efeito foram produzidos os seguintes argumentos no mencionado acordão:

“(…) tendo o julgamento dos presentes autos ocorrido após as alterações da Lei n.º 48/2007, os reconhecimentos efectuados em audiência de julgamento estão sujeitos às exigências formais previstas no artigo 147º do CPP, conforme o expressamente estabelecido no n.º 7 deste preceito - «O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer».


Em sentido contrário vinha a orientação do STJ, destacando-se o Acórdão de 6-9-2006, disponível in
www.dgsi.pt que decidiu:

«I- Conforme jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, o reconhecimento em audiência de certa pessoa como autora de determinado facto não está sujeito aos requisitos exigidos no art. 147º do CPP.

II- É que em tais casos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do art. 127º do CPP, e não a «prova por reconhecimento» a que alude o referido art. 147º.

III- E esta interpretação do art. 147º não viola o princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32º, n.º 1, da CRP, ou qualquer outra norma constitucional, como entendeu o TC no Ac. n.º 425/05, de 25-08-2005.».

Ora, este entendimento não se compagina com o disposto no n.º 7 do preceito, de que o reconhecimento está sujeito ao formalismo prescrito pelo art. 147º seja qual for a fase do processo em que ocorrer. ( sublinhado nosso).

Constata-se, assim, que o tribunal a quo valorou uma prova que não foi produzida de acordo com a lei. Logo, atendeu a um meio de prova nulo (artigo 118º, n.º 3 do CPP), pelo que deve ser efectuado novo julgamento, já que perdeu eficácia a produção da prova realizada – art. 328º do CPP.

Na audiência a ter lugar, devem os reconhecimentos fotográficos ser efectuados de acordo com a lei e, revelando-se imprescindível a presença do arguido em audiência, deverá determinar-se a sua comparência (nos termos do n.º 3 do artigo 334º do CPP) para a realização de reconhecimento presencial, sem prejuízo de, caso o arguido falte, serem retiradas as devidas consequências. “

*

Em conclusão, teria declarado o reconhecimento efectuado sem valor probatório com o consequente reenvio nos termos assinalados.

                                                                       Isabel Valongo




[1] Acórdão este que poderia ter o seguinte sumário:

1. O reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento. nos termos dos artigos 355º, nº1, in fine, nº 2 e artigo 356º, nº 1, b) do Código de Processo Penal, não lhe sendo aplicável o disposto nos seus nºs 2 e 3.

2. Caso já tenha sido realizado um reconhecimento em inquérito, torna-se desnecessário repeti-lo em audiência de julgamento.

3. A realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução, ou se realizado, enfermar de nulidade processual ou nulidade probatória.

4. O artigo 147º do Código de Processo Penal não determina a repetição de reconhecimentos, limitando-se a impor ao tribunal que, se entender adequado proceder a um reconhecimento em audiência de julgamento, este deverá observar o formalismo ali previsto.

5. A ineficácia da prova contida no nº 7 do artigo 147º do Código de Processo Penal não é uma nulidade processual em sentido restrito nem uma “inexistência”, mas sim uma proibição de valoração da prova.


 
[2] A questão que legitimamente se coloca, desde logo, é a de saber até que ponto será exequível aplicar as regras do reconhecimento previstas no artigo 147º do CPP à audiência de julgamento em que há um inevitável contacto directo entre ofendidos e arguidos, não apenas na própria sala de audiências como nos corredores do tribunal ou no simples acto de chamada para o processo realizada pelo funcionário judicial. Em todo o caso, mesmo que se considere possível, com as devidas adaptações, o cumprimento em audiência de julgamento das regras do artigo 147º, sempre ficará necessariamente excluída a possibilidade de ocultação do identificante a que alude o nº 4 do aludido preceito legal.
[3]Sufragam a nossa tese outros arestos dos vários tribunais da Relação deste país.