Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | PROVA POR RECONHECIMENTO | ||
Data do Acordão: | 11/10/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 3º J | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 147ºDO CPP | ||
Sumário: | 1. No reconhecimento podemos distinguir três modalidades: a)- o reconhecimento por descrição, b)- o reconhecimento presencial e c) - o reconhecimento com resguardo. 2. O reconhecimento por descrição, previsto no nº 1 do artº 147º do CPP, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação. 3. O reconhecimento presencial, previsto no nº 2 do mesmo artigo, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal – e ela só o será se «satisfizer o critério probatório da fase processual em que o reconhecimento teve lugar». 4. O reconhecimento com resguardo, previsto no nº 3 ainda do art. 147º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se pois, de uma forma de protecção da testemunha. 5. Não se aplicam as regras gerais previstas no referido artº 147º ao acontecimento ocorrido na audiência, em que o ofendido, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o autor dos factos que o tiveram (ao queixoso) como vítima. | ||
Decisão Texto Integral: | I- RELATÓRIO 1 - No 3º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum, perante o tribunal colectivo, com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, o arguido M..., solteiro, desempregado, residente em V…, Figueira da Foz, a quem foi imputada, a prática de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 do Código Penal (C.P.), como autor material e na forma consumada. A final, foi decidido julgar a acusação procedente, e, em consequência, condenar o arguido: a) como autor material de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 2 (dois) anos de prisão; b) Foi julgado o pedido cível formulado pelo demandante A... parcialmente provado e procedente, e condenado o demandado M... a pagar-lhe a quantia total de € 220 (duzentos e vinte euros), absolvendo-se o demandado do demais contra si peticionado. c) O pedido cível de reembolso formulado pelo demandante Hospital Distrital da Figueira da Foz, E.P.E. foi também julgado provado e procedente, e consequentemente o demandado M... foi condenado a pagar a quantia de € 108 (cento e oito euros), acrescida de juros, à taxa legal, contados da notificação do pedido ao demandado até efectivo e integral pagamento. d) Finalmente, o pedido cível de reembolso formulado pelo demandante I.S.S./I.P. – Centro Distrital de Coimbra foi julgado provado e procedente, e o demandado M... condenado a pagar ao demandante a quantia de € 25,15 (vinte e cinco euros e quinze cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, contados da notificação do pedido ao demandado até efectivo e integral pagamento. 2 - Inconformado, o arguido interpôs recurso da referida decisão, que motivou, formulando as seguintes conclusões: “(…) 1. Não se conforma o recorrente com o acórdão recorrido por entender decorrer do texto da decisão recorrida os vícios elencados na alínea a) e c) do n° 2 do art 410º, do CPP, ie, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova. 2. O tribunal a quo dá como provados os factos constantes da acusação pública nos termos expressos no acórdão para cuja análise se remete V. Exas. e que se considera reproduzido para todos os efeitos legais. 3. Alicerçando a sua convicção sobre a identidade do recorrente, exclusivamente no depoimento da testemunha/ofendido feita em audiência de julgamento. 4. Não estamos perante um caso de flagrante delito. 5. Ora, o acto de reconhecimento pessoal efectuado no decurso do inquérito estava enfermo de nulidade insanável, não tendo qualquer relevância no presente processo. 6. Na audiência de discussão e julgamento estavam presentes: a digníssima Magistrada do Ministério Público, os Ilustres Senhores magistrados judiciais que compõem o colectivo, a senhora funcionária judicial, a defensora do arguido, a testemunha/ ofendido e o ora recorrente. 7. Ou seja, nestas condições quando se pergunta ao ofendido se reconhece a pessoa que está atrás de si como sendo o autor material do crime, seria improvável que o ofendido o negasse, visto o recorrente, para além das restantes pessoas supra indicadas, ser a única pessoa presente na sala de audiências. 8. Trata-se, no fundo, de tentar reduzir "um dos mais fortes factores de distorção dos actos recognitivos que decorre do facto de quem é chamado a reconhecer, sobretudo, num ambiente de tensão, sentir-se constrangido a identificar positivamente alguém - o chamado “yes effect". 9. Não há qualquer outro meio de prova que valide o seu depoimento, que afaste a dúvida que no entender da defesa e à luz das mais básicas regras do processo penal permanece quanto à identidade do autor do crime em causa. 10. Não restam dúvidas à defesa, que a prova produzida é manifestamente insuficiente para a sustentabilidade da condenação. 11. Apenas as declarações de uma pessoa, designadamente do ofendido, não serão para isso suficientes, carecendo de ser corroboradas por outros meios de prova em termos tais que, em face da falta destes, sempre terá de se concluir pela inexistência de elementos suficientes à identificação do presumível autor do crime. 12. Não há dúvida de que entre a “prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto". 13. A defesa não confunde o preceituado no artigo 147° do CPP com o mérito ou demérito da prova testemunhal em sede de audiência de julgamento e muito menos com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art° 127° do CPP. 14. Todavia, não se conforma com o facto do juízo de "reconhecimento" do ora recorrente, que no fundo sustenta a condenação, se basear exclusivamente, na declaração do ofendido em sede de audiência de discussão e julgamento sem qualquer outro meio de prova que corrobore tal identificação. 15. Considera-se, pois, insuficiente a prova produzida para a condenação em causa bem como erro notório na apreciação da mesma. 16. Violando-se nestes termos os direitos de defesa do arguido consagrados no art° 32°, n°1 da CRP, designadamente o princípio in dúbio pro reo. 17. Não há qualquer outro meio de prova que valide o seu depoimento, que afaste a dúvida que no entender da defesa e á luz das mais básicas regras do processo penal permanece quanto à identidade do autor do crime em causa. 18. Não restam dúvidas à defesa que a prova produzida é manifestamente insuficiente para a sustentabilidade da condenação. 19. Apenas as declarações de uma pessoa, designadamente do ofendido, não serão para isso suficientes, carecendo de ser corroboradas por outros meios de prova em termos tais que, em face da falta destes, sempre terá de se concluir pela inexistência de elementos suficientes à identificação do presumível autor do crime. 20. Não há dúvida de que entre a "prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto". 21. A defesa não confunde o preceituado no artigo 147° do CPP com o mérito ou demérito da prova testemunhal em sede de audiência de julgamento e muito menos com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art° 127° do CPP. 22. Todavia, não se conforma com o facto do juízo de "reconhecimento" do ora recorrente, que no fundo sustenta a condenação, se basear exclusivamente, na declaração do ofendido em sede de audiência de discussão e julgamento sem qualquer outro meio de prova que corrobore tal identificação. 23. Considera-se, pois, insuficiente a prova produzida para a condenação em causa bem como erro notório na apreciação da mesma. 24. Violando-se nestes termos os direitos de defesa do arguido consagrados no art° 32°, n°1 da CRP, designadamente o princípio in dúbio pro reo. 25. Entende-se existir violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no n.° 1 do artigo 32° da Constituição, quanto à norma constante do artigo 127° do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um "reconhecimento" do arguido realizado exclusivamente pelo depoimento do ofendido, sem qualquer outro alicerce probatório que o sustente. 26. Termos em que deverá revogar-se a decisão recorrida. Como é de Justiça!» 3- O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso. 4- Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso. 5- O recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art. 417º, nº 2 do CPP, nada veio alegar. 6- Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art. 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber: 3.3. Dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP
3.3.1. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício – de conhecimento oficioso - resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97). Vejamos o nosso caso. Lendo a decisão recorrida, fácil é de concluir que a mesma está elaborada de forma muito equilibrada, lógica, encadeada e assaz fundamentada. O Tribunal valorou devidamente o depoimento da vítima para concluir pela culpabilidade do arguido no que tange ao domínio do facto criminoso, tendo relevado também o depoimento da testemunha C..., agente policial que desenvolveu algumas “démarches” tendentes ao apuramento da identidade do(s) autor(es) dos factos ora em causa. E, portanto, provou, para além de qualquer dúvida razoável, pelas circunstâncias da acção provada, que o autor do roubo foi, de facto, o arguido. O registo do acórdão é encadeado e lógico. Desta forma, inexistem vestígios de erros notórios na apreciação da prova. Ou de qualquer um dos outros vícios do artigo 410º do CPP. O tribunal decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a devidamente.
3.3.2. Quanto à livre apreciação da prova, diremos ainda o seguinte: O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP. Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: – os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas); – A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; – Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais; – A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso; – Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto. A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt). Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt). A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).
3.3.3. Uma palavra sobre o princípio «in dubio pro reo», também tido por violado pelo recorrente. No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte: «Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum». Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253). Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada. Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira. O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo. Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam. Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009: «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.». Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado, fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela. Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados. E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados. É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade. Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa. Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos. Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto. Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados. Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa». O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido. Não ficou o Tribunal da Figueira da Foz, vivendo ao vivo este evento, em estado de dúvida, assente no cotejo dos dois depoimentos da vítima e do guarda C… . E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133). Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.
3.3.4.Em suma: Reportando-nos ao caso concreto, sustenta o recorrente que o acórdão recorrido enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão porque o tribunal não dispunha dos elementos probatórios necessários para poder concluir que foi o arguido o autor dos factos descritos na factualidade assente como provada, dado que o reconhecimento efectuado pelo ofendido em inquérito foi declarado nulo, não podendo valer como prova, e o reconhecimento efectuado em audiência não observou os requisitos legais. Ora, · a invocada ilegalidade do reconhecimento – já por nós afastada - não integra o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; O recurso improcede, portanto, quanto a este segmento também. 3.4. Aqui chegados, só resta a este tribunal validar a decisão recorrida, bem como a pena aplicada, tida por justa. III- Dispositivo Condena-se o recorrente em custas, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ, ainda aplicável aos autos], sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza. Coimbra, 10 de Novembro de 2010 __________________________________________ Paulo Guerra – por vencimento __________________________________________ João Trindade - Presidente SEGUE VOTO DE VENCIDO VOTO DE VENCIDO
Votei vencida, embora reconheça mérito aos argumentos da tese vencedora, cujo resultado obtém uma solução menos formalista e mais adequada à dinâmica da audiência de julgamento. Não fora a reforma penal introduzida pela Lei nº Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto e concordaria com o tratamento jurídico da questão, que aliás está em consonância com a jurisprudência do STJ anterior à referida reforma. Aliás, também a jurisprudência da restantes instâncias anterior à Reforma de 2007 era esmagadora no sentido de entender que “os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicam à instrução e inquérito e não à audiência de julgamento” (cf. Acórdão da Relação de Évora de 07-12-2004, proc. 25/03-1; Acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2004, proc. 928/2004-3; Acórdão da Relação de Coimbra de 06-12-2006, proc. 146/05.9GCVIS.C1; Acórdão da Relação de Guimarães de 31-05-2004, proc. 2415/03-1; Acórdão da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240877; in www.dgsi.pt). Em resumo, entendia-se que a prova por reconhecimento só nas fases de inquérito e de instrução devia obedecer ao formalismo imposto no art 147º do CPP, pelo que se em audiência, uma testemunha identificasse o(s) arguido(s), durante o seu depoimento, estando a ser produzida prova testemunhal, não era exigível o formalismo que o art. 147.º do CPP já prescrevia. Assim mesmo se defendia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, Proc. n.º 553/05: (…) II - O «reconhecimento» feito em audiência integra-se num complexo probatório que lhe retira não só autonomia como meio de prova especificamente previsto no art. 147.°, como lhe dá sobretudo um cariz de instrumento, entre outros, para avaliar a credibilidade de determinado depoimento, inserindo-se assim, numa estrutura de verificação do discurso produzido pela testemunha. Nesta perspectiva, tal «reconhecimento» feito em audiência, a avaliar segundo as regras próprias do art. 127.º do CPP, não carece, para ser válido, de ser precedido do reconhecimento formalizado - o reconhecimento propriamente dito - realizado nas fases de investigação - o inquérito e a instrução; cf. Acs. do STJ de 11-05-2000, Proc. n.º 75/2000 e de 16-06-2005, Proc. n.º 553/05 e Ac. do TC de 25-08-2005, Proc. n.º 425/05 [in www.stj.pt] Todavia, com a Reforma de 2007, foi aditado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o nº 7 do artigo 147º do CPP, em vigor desde 15 de Setembro de 2007 e que prescreve: O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer. ( sublinhado nosso). O que obviamente inclui a fase de julgamento, pelo que é manifesto que o legislador veio consagrar uma posição diametralmente oposta à anteriormente defendida pela esmagadora maioria da jurisprudência que defendia a inaplicabilidade das regras do artigo 147º do CPP à audiência de julgamento, como alerta o Prof Maximiano Vale. http://penal2trabalhos.blogspot.com/2008/04/o-reconhecimento-em-processo-penal.html Afigura-se-nos constituir uma subtileza radicada em equívoco quando em certos casos concretos, em que se torna necessário em audiência de julgamento apurar a identificação do agente, confundi-la com a identificação suscitada por qualquer dúvida ou incerteza acerca do seu envolvimento nos factos. Distinção que é exemplarmente revelada no Ac da rel do Porto de 17 de Março de 2010, onde se pode ler: “A prova por reconhecimento só tem lugar quando surgem dúvidas em relação à individualização de uma determinada pessoa, [“Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa (…)” – art. 147.º, n.º 1, CPP]; e a regulamentação minuciosa a que obedece é determinada pelo melindre e pela importância que o acto tem no desenvolvimento do processo, visando assegurar a fidedignidade da reconstrução mnemónica. Por seu lado, a identificação do arguido por uma testemunha, em audiência, é apenas um pormenor do depoimento, um elemento adicional e complementar que contribui para a avaliação da sua credibilidade – sublinhado nosso. É certo que a 1ª primeira fase do reconhecimento não deixa de ser uma «declaração» onde a testemunha descreve aquilo de que se recorda – solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação art.º 147º n.º 1 do Código Processo Penal. Pode até nem ser necessário passar à segunda fase, o que não dispensa a obrigação legal de fazer constar a diligência de auto de reconhecimento, conforme o disposto no art 99º do CPP. A segunda fase do reconhecimento, ocorre apenas no caso em que a identificação não foi cabal e obedece ao procedimento prescrito no n.º 2 do art.º 147º do Código Processo Penal: afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual. Claro está que a falta de salas de identificação nos nossos tribunais constitui um obstáculo que deve ser removido pelo recurso às salas das esquadras da PSP, para o que eventualmente haverá que interromper a audiência com prejuízo do princípio da continuidade prescrito no art 328º ,º 1, do CPP. O facto da pessoa a identificar ter sido já observada, não impede o cumprimento do formalismo legal dado que o reconhecimento apela à memória da primeira visão, e nem sempre a memória de factos mais antigas é menos eficaz. Segundo o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Proc. Penal II volume, pgs. 175/176) “o cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento evidencia a importância e falibilidade deste meio de prova, quando não foram tomadas as devidas precauções. Por isso que as estabelecidas na lei o são sob pena de invalidade do reconhecimento (art.° 147º, n.º 4 - actualmente n.º 7 CPP). (...) É evidente que se a testemunha tiver tido indicações prévias de quem é a pessoa ou qual a coisa a identificar, nomeadamente pela prévia indicação da suspeita, exibição de fotografia do suspeito ou de qualquer outro modo, o reconhecimento só tem valia probatória desde que substancial e formalmente se respeitem as regras de procedimento estabelecidas por lei. A prova por reconhecimento é uma prova muito delicada e porque irrepetível deve ser rodeada de cuidados especiais para assegurar a sua fiabilidade”. Reportando-nos ao caso concreto, da fundamentação da sentença resulta claramente que o tribunal necessitou da identificação processada pelo ofendido para formar a sua convicção no tocante ao arguido enquanto (co-)autor da prática dos factos descritos na acusação pública. – sublinhado nosso. Até porque o tribunal a quo não valorou o acto de reconhecimento pessoal efectuado no decurso do inquérito pelo queixoso (cfr. fls. 7 dos autos), porque o declarou nulo. Consequentemente, embora o tribunal a quo não tenha designado a identificação efectuada como reconhecimento na pessoa do arguido feito na audiência de discussão e julgamento, antes a integrasse na prova testemunhal, o certo é que em termos ontológicos o que ocorreu, de forma absolutamente ilegal, por violadora das regras que regulamentam este meio de prova, foi um efectivo reconhecimento do arguido - art. 147.º do CPP. Assim sendo tal reconhecimento não obedeceu ao disposto art. 147.º do CPP pelo que NÃO TEM VALOR COMO MEIO DE PROVA. O Prof Germano Marques da Silva ( ob citada II 2ª edição ) na nota 2 da pág 175 dá conta que “É muito frequente na prática processual perguntar-se aos ofendidos e testemunhas no decurso da audiência se reconhecem o arguido presente. Esta prova pode ter muita importância quando negativa, mas não tem o valor de reconhecimento quando positiva, isto é, quando a testemunha declara que sim, que reconhece o arguido.” Ensina o Prof. Manuel da Costa Andrade: “Na medida em que optou por consagrar expressamente um regime de reconhecimento imposto, o legislador português demarcou-lhe ao mesmo tempo os limites. Que o intérprete e aplicador do direito não estão legitimados a ultrapassar.” Aliás, embora a propósito do reconhecimento fotográfico, já foi proferida decisão nesta relação por acordão de 06-05-2009 em que foram – e bem em nosso modesto entender - consideradas as consequências da inobservância do formalismo legalmente estipulado no processo de obtenção de prova por reconhecimento, por efeito da reforma introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto. Com efeito foram produzidos os seguintes argumentos no mencionado acordão: “(…) tendo o julgamento dos presentes autos ocorrido após as alterações da Lei n.º 48/2007, os reconhecimentos efectuados em audiência de julgamento estão sujeitos às exigências formais previstas no artigo 147º do CPP, conforme o expressamente estabelecido no n.º 7 deste preceito - «O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer». … «I- Conforme jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, o reconhecimento em audiência de certa pessoa como autora de determinado facto não está sujeito aos requisitos exigidos no art. 147º do CPP. II- É que em tais casos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do art. 127º do CPP, e não a «prova por reconhecimento» a que alude o referido art. 147º. III- E esta interpretação do art. 147º não viola o princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32º, n.º 1, da CRP, ou qualquer outra norma constitucional, como entendeu o TC no Ac. n.º 425/05, de 25-08-2005.». … Ora, este entendimento não se compagina com o disposto no n.º 7 do preceito, de que o reconhecimento está sujeito ao formalismo prescrito pelo art. 147º seja qual for a fase do processo em que ocorrer. ( sublinhado nosso). Constata-se, assim, que o tribunal a quo valorou uma prova que não foi produzida de acordo com a lei. Logo, atendeu a um meio de prova nulo (artigo 118º, n.º 3 do CPP), pelo que deve ser efectuado novo julgamento, já que perdeu eficácia a produção da prova realizada – art. 328º do CPP. Na audiência a ter lugar, devem os reconhecimentos fotográficos ser efectuados de acordo com a lei e, revelando-se imprescindível a presença do arguido em audiência, deverá determinar-se a sua comparência (nos termos do n.º 3 do artigo 334º do CPP) para a realização de reconhecimento presencial, sem prejuízo de, caso o arguido falte, serem retiradas as devidas consequências. “ * Em conclusão, teria declarado o reconhecimento efectuado sem valor probatório com o consequente reenvio nos termos assinalados.
Isabel Valongo
1. O reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento. nos termos dos artigos 355º, nº1, in fine, nº 2 e artigo 356º, nº 1, b) do Código de Processo Penal, não lhe sendo aplicável o disposto nos seus nºs 2 e 3. 2. Caso já tenha sido realizado um reconhecimento em inquérito, torna-se desnecessário repeti-lo em audiência de julgamento. 3. A realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução, ou se realizado, enfermar de nulidade processual ou nulidade probatória. 4. O artigo 147º do Código de Processo Penal não determina a repetição de reconhecimentos, limitando-se a impor ao tribunal que, se entender adequado proceder a um reconhecimento em audiência de julgamento, este deverá observar o formalismo ali previsto. 5. A ineficácia da prova contida no nº 7 do artigo 147º do Código de Processo Penal não é uma nulidade processual em sentido restrito nem uma “inexistência”, mas sim uma proibição de valoração da prova. |