Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
423/08.7TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
SERVIDÃO ADMINISTRATIVA
INDEMNIZAÇÃO
DECISÃO ARBITRAL
RECURSO
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.17, 21, 54, 58, 64 C.EXP., DL Nº 374/89 DE 25/10, DL Nº11/94 DE 13/1, DL Nº 8/2000 DE 8/2
Sumário: 1. - Da decisão arbitral que fixa indemnização pela constituição de servidão administrativa imposta pela implantação numa parcela de terreno de uma conduta de transporte de gás natural cabe recurso para os tribunais judiciais.

2. - É o requerimento de interposição desse recurso que delimita o seu objecto e sobre o qual vai incidir a decisão judicial que dele conheça.

3. - Eventuais vícios ou irregularidades de que padeçam a vistoria ad perpetuam rei memoriam e o processo administrativo prévio à interposição de recurso da decisão arbitral devem ser arguidos nos termos e nos prazos, respectivamente, fixados pelos artigo 21º, nº7 e 54º do Código de Expropriações, sob pena de se considerarem sanados.

Decisão Texto Integral: Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso e face à simplicidade da questão suscitada, segue decisão sumária singular (artigos 700.º, n.º 1, alínea c) e 705.º do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24.08).

I.RELATÓRIO

1. A (…) e mulher, M (…) residentes no ... interpuseram contra REN Gasodutos, S.A., com sede na E.N. 116, Km. 31,25, Edifício Transgás, Vila de Rei recurso da decisão arbitral de 9 de Julho de 2008 que fixou em € 1.254,60 a indemnização devida pelos prejuízos resultantes da constituição de servidão administrativa pela construção do gasoduto Leiria-Braga (L2) a onerar a parcela identificada sob o nº 143, do prédio denominado Casal da Areia, sito na freguesia e concelho de Soure, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 23.175 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure sob o nº 991.

Os recorrentes insurgem-se contra o valor da indemnização proposto na decisão arbitral, alegam que esta não teve em devida conta outros prejuízos provocados aos recorrentes pela constituição da servidão, designadamente todos os pinheiros que foram abatidos pela recorrida e dali levados por ela ou por terceiros por ela contratados. Identificam o número de pinheiros que em seu entender foram abatidos por causa do gasoduto (42 pinheiros com 60 cm de diâmetro, 38 com 50 cm de diâmetro, 22 com 40 cm de diâmetro e 12 com 35 cm de diâmetro), alegando que cada tonelada era comercializada por € 50, sendo o valor total das árvores abatidas de € 11.300 (= 226 toneladas X € 50).

Por fim, alegam que o valor da indemnização não tem em conta o facto de o terreno ser atravessado longitudinalmente pela conduta do gás e por causa da sua configuração triangular toda a área do terreno ficou afectada, alegando que o terreno dos recorrentes tem a área de 2.460,15 m2.

Pedem a procedência do recurso e que a recorrida seja condenada a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia de € 10.820,30, valor que deve ser actualizado desde a data do corte das árvores (1994) até ao seu pagamento.

Notificada, a recorrida respondeu, alegando, em síntese, que a parcela onerada com a servidão tem 738 m2, corresponde a um rectângulo com 20 m de largura e 36,9 m de comprimento, acrescentando que era impossível que em tal parcela tivesse existido o número de árvores com os diâmetros referidos pelos recorrentes.

Sustenta que só foram cortados pinheiros em cerca de 500 m2 e que em 500 m2 não podem florescer 114 pinheiros com diâmetros entre 60 cm e 30 cm. Adianta ainda que a ficha de caracterização da parcela em causa, elaborada, em 15/10/1996, pelos serviços da concessionário Transgás, refere a existência de apenas 27 pinheiros, sendo, ao tempo, 20 desses pinheiros avaliados em Esc. 890$00 cada um e 7 em Esc. 1.500$00.

Conclui, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão arbitral.

Recorrentes e recorrida formularam quesitos e indicaram peritos.

Procedeu-se seguidamente à avaliação a que se referem os artigos 61º a 63º do Código das Expropriações, tendo os Srs. Peritos, que também responderam aos quesitos formulados pelas partes, por unanimidade, fixado em € 1.352,00 o valor da indemnização.

Notificadas as partes do laudo e respostas aos quesitos, vieram os recorrentes, por requerimento de fls. 168 a 170 formular pedido de esclarecimento aos senhores Peritos, que, com um sentido também unânime, os prestaram a fls. 176 a 177.

De novo, por requerimento de fls. 179 a 181, vieram os recorrentes insistir em pedido de esclarecimentos, designadamente, por discordarem da configuração da parcela do terreno onerada pela servidão descrita pelos senhores peritos, pedindo que, se for o caso, estes procedam à reformulação das suas conclusões, esclarecimentos e resposta aos quesitos formulados pelas partes.

Tal pretensão foi indeferida por requerimento de fls. 189, 190, com o argumento de que no recurso interposto da decisão arbitral os recorrentes apenas impugnaram o valor indemnizatório nela atribuído à parcela de terreno onerada pelo servidão, não podendo os mesmos agora alargar o objecto do recurso que teve apenas por base a referida discordância, acrescentando ainda que do relatório da avaliação, subscrito por unanimidade por todos os peritos que intervieram na diligência, e dos esclarecimentos prestados, também de forma unânime, acerca do mesmo, resulta cabalmente avaliado e esclarecido o seu objecto, “não subsistindo qualquer obscuridade ou incongruência plausível do mesmo que justifique uma segunda prestação de esclarecimentos”.

Foi designada data para a produção de prova, com comparência dos senhores peritos que prestaram esclarecimentos no acto, e inquirição de uma testemunha indicada pelos recorrentes.

Notificados para os efeitos do disposto no artigo 64º do Código das Expropriações, recorrentes e recorrida apresentaram alegações escritas, respectivamente a fls. 212 a 220 e fls. 227 a 232, sustentando os primeiros que o justo valor da indemnização, alcançado considerando o valor efectivo do terreno afectado pelo ónus de servidão e quantidade de árvores cortadas, deveria fixar-se em € 9.013,38, defendendo a segundo que a indemnização deveria fixar-se em € 1.352,00.

Foi proferida decisão que, julgando parcialmente procedente o recurso, fixou o valor da indemnização a pagar pela recorrida aos recorrentes em “€ 1.352,00 (mil trezentos e cinquenta e dois euros), actualizado por referência ao ano de 2008, condenando-se, ainda, na actualização a partir de tal data nos termos do art.º 24.º do Código das Expropriações, de acordo com os índices de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicados pelo I.N.E”.

2. Por não se conformar com essa decisão, dela interpuseram recurso os expropriados, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

I.

O objecto do presente recurso tem subjacente a constituição de uma servidão administrativa que resulta da colocação de uma conduta de transporte de gás natural inserida no projecto denominado “Gasoduto Leiria-Braga”.

II.

Acontece que o prédio dos Recorrentes e atingido pela servidão que aqui cuidamos não corresponde ao prédio descrito no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam e à parcela nº 143.

III.

Erradamente, foi atribuída aos Recorrentes a propriedade do prédio da parcela nº 143, da planta parcelar.

IV.

Originariamente, o perito que elaborou o auto de vistoria a.p.r.m. fez constar que os proprietários de tal prédio seriam (…) e mulher (…) (tendo estes, inclusive, sido notificados pela Recorrida de todos os procedimentos administrativos), que a faixa de tal servidão ocupava a área de 783 m2, que formava um triângulo e em tal faixa de terreno poderiam contar-se as árvores que dele constam.

V.

Sendo o único prédio pertencente aos Recorrentes naquele local, essa conclusão está completamente errada.

VI.

O prédio dos Recorrentes está a ser ocupado pela servidão numa área de 1150 m2, atravessado pela conduta do gás, longitudinalmente e pelo seu interior, marginado por duas faixas sobrantes do prédio, uma situada a nascente e outra localizada a poente.

VII.

O espaço ocupado pela servidão forma um rectângulo com 115 metros de comprimento.

VIII.

O prédio dos Recorrentes tem o formato de um trapézio rectangular, cuja base inferior mede 26 m e a superior 17 m e a distância entre as mesmas é de 115 m.

IX

A quantidade de árvores cortadas no prédio dos recorrentes é de número bem diverso ao indicado no auto de vistoria.

X.

O auto de vistoria a.p.r.m. apenas foi disponibilizado aos Recorrentes já depois de interposto o recurso da arbitragem, dado que todo o processo até à avaliação ter sido tratado (supõe-se) com o dito Abílio Portela e mulher.

XI.

Por ser o seu único prédio no local, os Recorrentes “embalados” no erro cometido pelo perito que elaborou o auto de vistoria entenderam que o prédio da parcela nº 143 era o deles.

XII.

Este erro torna-se transversal e fundamental para a decisão tomada.

XIII.

Não pode é tornar-se efectivo para o cometimento de uma tão flagrante injustiça.

XIV.

Dada a notoriedade do erro, não pode a Recorrida prevalecer-se de um erro que só ela é causadora e responsável.

XV.

Os elementos que foram surgindo no processo eram de molde a contrariar os dados constantes daquele auto de vistoria e aos quais o tribunal recorrido não deu qualquer importância.

XVI.

O presente processo incide sobre uma causa de pedir que não tem assento na realidade.

XVII.

Não atendendo aos elementos probatórios novos, nomeadamente aos levantamentos topográficos e às explicações da testemunha arrolada pelos Recorrentes, o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 58º do Código das Expropriações e artigo 663º do CPC.

6. PEDIDO

Nestes termos, porque a decisão fez errada interpretação e aplicação da lei, deve, em provimento do presente recurso, ser revogada a decisão recorrida, anulando todo o processo, com base no erro sobre o seu objecto, tudo conforme à lei e à JUSTIÇA”.

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente a questão de alegadamente o prédio dos recorrentes onerado pela servidão administrativa não corresponder ao prédio descrito no relatório da vistoria ad perpetuam re memoriam e à parcela nº 143.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

São os seguintes os factos julgados provados pela primeira instância:

1) Por despacho base n.º 113/93, de 15/12, publicado no Diário da República, II série, n.º 109, suplemento, de 11 de Maio e com as plantas parcelares definitivas publicadas no Aviso n.º 9576-A 12004-A/2001 (II Série), suplemento do Diário da República n.º 243, II Série, de 15/10/2004, foi, a pedido da expropriante, declarada a utilidade pública da servidão administrativa da parcela 143, com a área de 738m2, da planta parcelar denominada “Casal da Areia”, necessária à execução da construção do Gasoduto Leiria - Braga - doc. de fls. 123 a 125;

2) A parcela faz parte de um prédio sito na freguesia de Soure, concelho de Soure, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º 23175 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure sob o n.º 00991/210386 – documentos de fls. 81 a 85;

3) A parcela expropriada é propriedade de A (…) e mulher M (…), desconhecendo-se se as suas confrontações uma vez que foram omitidas no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam – acórdão arbitral, a fls. 112;

4) A parcela em questão está incluída num prédio que dista cerca de 200 da estrada que liga o IC2 à vila de Soure, onde não existem infra-estruturas - Laudo de fls. 145 e ss;

5) A propriedade é dotada de fácil acesso, em zona de meia encosta, com ligeiro declive, localizada no lugar do Casal da Areia - Laudo de fls. 145 e ss.

6) Em função da sua localização, capacidade de uso, ocupação dominante e zonamento previsto na Planta de Ordenamento do PDM, consideraram tratar-se dum “solo para outros fins” (solo florestal) – Laudo de fls. 145 e ss.

7) De acordo com o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, o terreno da parcela encontrava-se ocupado por um povoamento de pinheiro bravo com cerca de 35 anos de idade média e os seguintes D.A.P.:

- 50% das árvores tinham cerca de 20 cm de DAP;

- 25% das árvores tinham cerca de 30 cm de DAP;

- 25% das árvores tinham cerca de 35 cm de DAP,

sendo que o povoamento era de cerca de 500 árvores por hectare – cfr. auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, a fls. 60 a 62;

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            O Decreto-Lei nº 374/89, de 25/10, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 8/2000, de 08/02, que, efectuando diversas alterações, aditamentos e revogações, procedeu à sua republicação, estabelece o regime de importação de gás natural liquefeito (GNL) e de gás natural (GN), do armazenagem de GNL e do tratamento, transporte e distribuição de GN ou de gases de substituição.

            Conforme resulta dos artigos 1º e 2º, nº1 do aludido diploma, as actividades de transporte e importação de gás natural, no estado gasoso ou liquefeito, e de distribuição de gás natural e dos seus gases de substituição são exercidas, mediante concessão ou licença, por empresas legalmente constituídas e para o efeito vocacionadas.

Compete ao Conselho de Ministros a aprovação das concessões a atribuir, estabelecendo a natureza e âmbito das mesmas[3].

A construção, manutenção e reparação das instalações, gasodutos e redes de distribuição do gás que integrem os projectos das concessionárias são efectuadas por estas, suportando os respectivos custos[4].

Na sequência daquele diploma, o Decreto-Lei nº 11/94, de 13 de Janeiro, veio estabelecer o regime aplicável às servidões necessárias à implantação e exploração das infra-estruturas das concessões de serviço público relativas ao gás natural, no seu estado gasoso (GN) ou líquido (GNL), e dos seus gases de substituição, genericamente denominadas de “servidões de gás”[5].

Conforme decorre do seu artigo 3º, tendo em conta o interesse público subjacente ao serviço de gás natural, compete exclusivamente às respectivas concessionárias optar, com vista à implantação e exploração das infra-estruturas, pela aquisição dos imóveis por via negocial ou pelo recurso ao regime de servidões previsto no Decreto-Lei nº 11/94 ou ao das expropriações por causa de utilidade pública nos termos do Código das Expropriações.

De acordo com o artigo 4º, nº1, ficam sujeitos a servidões de gás os prédios rústicos ou urbanos que não tenham sido objecto de expropriação ou de aquisição por via negocial e que sejam abrangidos pelos projectos de traçado aprovados para: a) gasodutos de transporte de GN, estações de compressão, postos de redução de pressão e respectivas infra-estruturas; b) instalações de produção, armazenagem, tratamento ou condicionamento de gás a enviar às redes de distribuição, bem como pelos postos de compressão, redução de pressão, controlo e medida que façam parte das redes de distribuição e das respectivas infra-estruturas; c) terminais de recepção, armazenagem e regasificação de GNL e respectivas infra-estruturas.

Determina o artigo 5º ainda do mesmo citado diploma que as servidões de gás têm por finalidades: a) permitir a ocupação do solo e do subsolo na exacta medida requerida pela instalação das infra-estruturas necessárias às actividades do gás natural; b) Permitir, em cada momento, às entidades titulares dos direitos de construção ou exploração dos componentes do sistema referidos nas alíneas do n.° 1 do artigo 4º o efectivo exercício desses poderes, nomeadamente a passagem e a ocupação temporária de terrenos ou outros bens em virtude das necessidades de estudo, construção, ampliação, vigilância, exploração, conservação e reparação das infra-estruturas afectas às concessões de serviço público relativas ao gás natural; c) Garantir a eficiência e a segurança no funcionamento das infra-estruturas afectas às concessões de serviço público relativas ao gás natural; (d) Garantir a segurança das pessoas e dos bens nas áreas a que se refere o artigo 4º, nas zonas com estas confinantes, bem como em quaisquer outras potencialmente abrangidas pelos riscos inerentes e previsíveis do funcionamento das várias instalações e equipamentos.

À constituição das servidões de gás, representando uma inequívoca limitação ao direito de propriedade, deve corresponder uma contrapartida traduzida em indemnização que compense, por essa limitação, os proprietários dos prédios por elas onerados, como é reconhecido pelos artigos 11º do Decreto-Lei nº 374/89 e 16º do Decreto-Lei nº 11/94, cuja obrigação de pagamento recai sobre a concessionária ou licenciada.

O montante da indemnização é determinado por acordo das partes ou, na falta dele, por arbitragem[6].

O exercício dos poderes conferidos pelas servidões de gás não depende de prévio início ou conclusão dos processos de determinação, cálculo e pagamento das correspondentes indemnizações[7]. Contudo, existindo elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento se revista de interesse para aqueles processos de determinação, cálculo e pagamento das indemnizações, pode realizar-se, a requerimento de qualquer das partes e previamente ao exercício dos poderes conferidos pelas servidões de gás, uma vistoria ad perpetuam rei memoriam, por perito escolhido de entre os constantes da lista oficial do distrito da localização do imóvel[8].

Após a aprovação de um projecto de traçado de redes e equipamentos de gás natural, mas antes da implantação das suas infra - estruturas, o processo é precedido da comunicação, por carta registada com aviso de recepção, pela concessionária aos interessados nos termos do artigo 12º do aludido Decreto - Lei nº 11/94, de 13 de Janeiro, na qual lhes será dado a conhecer: a) a delimitação precisa da área dos bens sobre a qual incide a oneração destes, resultante da servidão de gás; b) os encargos e limitações a que ficam sujeitos os bens abrangidos pelo projecto de traçado, com destaque para a sua natureza, extensão, data do início e faseamento da duração; c) sempre que possível e com base em relatório de perito, o quantitativo proposto para a indemnização a que se refere o artigo 16º, bem como as demais condições a que se refere o seu nº 4; d) a proposta de acordo a que se refere o nº 3 do artigo 16º; e) a caracterização das diligências previsíveis nas quais será o notificando chamado a participar, com a indicação das respectivas datas expectáveis, locais de realização e duração; f) o endereço, telefone e outras referências da entidade notificante e, havendo-os, dos seus representantes regionais ou locais; g) a possibilidade de o notificando requerer uma vistoria ad perpetuam rei memoriam, bem como o prazo e os termos em que o pode fazer, de acordo com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 10º, sendo o conteúdo da comunicação enunciada sob as alíneas a), b) f) e g) publicitado nos termos do nº1 do artigo 13º do referido diploma.

Qualquer interessado poderá pronunciar-se, no prazo de 10 dias, contados da publicação a que se refere a alínea b) do mencionado artigo 13º, sobre a legalidade dos encargos, mediante exposição escrita enviada por carta registada com aviso de recepção à entidade concessionária, a qual, no prazo de 10 dias sobre a sua recepção, a deverá remeter, para apreciação, à DGE[9].

À vistoria ad perpetuam rei memoriam se refere o artigo 21º do Código de Expropriações, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 25º do Decreto - Lei nº 11/94, de 13 de Janeiro, prevendo o nº7 do primeiro daqueles normativos: “Recebido o relatório, a entidade expropriante, no prazo de cinco dias, notificará o expropriado e demais interessados por carta registada com aviso de recepção, remetendo-lhes cópia do mesmo e dos respectivos anexos, para apresentarem reclamação contra o seu conteúdo, querendo, no prazo de cinco dias”.

Com ou sem a realização da mencionada vistoria, não existindo acordo sobre o valor da indemnização, qualquer das partes interessadas poderá requerer à Direcção-Geral de Energia (DGE) a constituição da arbitragem, a qual integra três árbitros, designados um por cada uma das partes e o terceiro por acordo de ambas ou, na falta deste, pela DGE[10]. Da decisão arbitral cabe recurso para os tribunais, nos termos do Código das Expropriações[11].

Delineado e exposto o quadro normativo aplicável, impõe-se a análise do percurso processual até aqui calcorreado.

Por requerimento datado de 19 de Setembro de 2007, dirigido à Direcção Geral de Geologia e Energia, o recorrente Armindo Portela pediu a “constituição de arbitragem”, nos termos do artigo 17º de Decreto - Lei nº 11/94, de 13/1, alegando ter a Trangás feito atravessar uma conduta no prédio rústico do requerente, sito em Casal da Areia, freguesia de Soure, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 23.175, sem lhe ter, por esse facto, pago qualquer indemnização[12].

Após nomeação dos três árbitros a integrar a comissão arbitral, esta procedeu à arbitragem com vista ao cálculo da indemnização devida pela constituição de uma servidão administrativa resultante da colocação de uma conduta de transporte de gás natural na parcela nº 143, pertencente ao prédio localizado na freguesia de Soure, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 23.175 e descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº 00991/210386, tendo elaborado o relatório constante de fls. 106 a 111, bem como proferido acórdão que, com base nos critérios apontados no referido laudo, fixou, por unanimidade o valor da indemnização em € 1254,60[13].

O cálculo do valor da indemnização teve por base, além “das características visíveis da parcela e da sua área envolvente”, o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, como expressamente se alude no relatório arbitral.

Notificados desse relatório e decisão, vieram Armindo Marques Gaspar Portela e esposa dela interpor recurso para o Tribunal Judicial de Soure.

O recurso interposto funda-se tão somente na discordância dos recorrentes quanto ao valor da indemnização, alegando que a mesma deve ser fixada em € 10.820,30, valor que deve ser actualizado desde a data do corte das árvores (1994) até ao seu pagamento.

Procedeu-se então à avaliação da parcela nº 143 da planta parcelar anexa ao processo, a qual faz parte do prédio sito no lugar de Casal da Areia, freguesia e concelho de Soure, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 23.175 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure com o nº 00991/210386, com registo de aquisição a favor dos recorrentes.

Concluída a mesma, foi elaborado o laudo de fls. 145 a 150, no qual os cinco peritos nomeados, procedendo ao cálculo da indemnização devida pela oneração da parcela em causa com a servidão administrativa, convergem, por unanimidade, no valor de € 1.352,00.

Após prestação de esclarecimentos pelos Senhores Peritos e produzida a demais prova requerida, as partes apresentaram alegações, nos termos do artigo 64º do Código de Expropriações, aplicável ex vi do artigo 25º de Decreto - Lei 11/94, de 13 de Janeiro.

Em tais alegações, os recorrentes manifestando, uma vez mais, as razões da sua discordância com o valor arbitrado a título de indemnização, invocam, pela primeira vez, falta de correspondência entre o prédio onerado pela servidão, e objecto dos autos, e o prédio descrito no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam.

A Srª Juíza do Tribunal de primeira instância delimitou o objecto do recurso submetido à sua apreciação ao conhecimento do valor indemnizatório pela oneração da parcela descrita nos autos com a servidão do gasoduto, considerando que a questão suscitada pelos recorrentes - de que a vistoria ad perpetuam rei memoriam incidiu sobre uma parcela que não é a destes - extravasa o objecto do recurso, estando o tribunal vinculado ao pedido formulado aquando da interposição do mesmo.

Diz o artigo 58º do Código de Expropriações que “no requerimento de interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente deve expor logo as razões da discordância, oferecer todos os documentos, requerer as demais provas, incluindo a prova testemunhal, requerer a intervenção do tribunal colectivo, designar o seu perito e dar cumprimento ao disposto no artigo 577º do Código de Processo Civil”.

Neste requerimento de recurso, que constitui um misto de impugnação e de acção, deve o recorrente esgotar a indicação dos fundamentos da sua discordância em relação ao conteúdo da decisão arbitral que pretende impugnar.

É ele que delimita o objecto do recurso, e não as alegações previstas no artigo 64º do Código de Expropriações[14].

Como é hoje reconhecido maioritariamente na doutrina e na jurisprudência, as decisões arbitrais revestem-se de verdadeira natureza jurisdicional, não podendo qualificar-se de meros arbitramentos[15]. Desta forma, a decisão arbitral transita em tudo o que não seja objecto de impugnação. A falta de impugnação, nos termos do artigo 58º do Código das Expropriações, significa conformação com o decidido pelos árbitros.

Como se salienta no Acórdão da Relação do Porto de 07.04.2011[16], “intervindo o tribunal de comarca em 2ª instância, como tribunal de recurso, o seu poder de cognição delimita-se pelas alegações dos recorrentes, nos termos dos artºs 684º e 690º do CPC. Aliás, essa delimitação é, desde logo, imposta pelo artº 58º do CE/99 (…), ao prescrever que, no recurso da decisão arbitral, o recorrente deve expor logo as razões da discordância”.

No caso concreto:

- os recorrentes não usaram da faculdade conferida pelo artigo 13º nº 2 do Decreto -Lei nº 11/94, de 13 de Janeiro;

- não reclamaram do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, nem arguiram qualquer irregularidade, nos termos do artigo 54º do Código das Expropriações;

- na interposição do recurso da decisão arbitral, os fundamentos da impugnação limitam-se à discordância acerca do valor da indemnização, sem alusão a qualquer outro, designadamente desconformidade entre a parcela onerada com a servidão imposta pela implantação do gasoduto e aquela sobre a qual incidiu a vistoria ad perpetuam rei memoriam.

Note-se que, pelo menos, com a notificação da decisão arbitral, os recorrentes tomaram conhecimento da existência do processo administrativo que teve lugar para constituição de uma servidão administrativa resultante da colocação de uma conduta para transporte de gás natural a onerar a designada parcela nº 143.

No relatório arbitral que acompanhou tal decisão acha-se descrita não só a parcela em causa, como o prédio de que a mesma faz parte, isto é, o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 23.175 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure com o nº 00991/210386, com registo de aquisição a favor dos próprios recorrentes, com expressa menção das respectivas áreas e indicação de outros elementos identificadores.

Também refere o mesmo relatório que o cálculo do valor da indemnização devida pela oneração da referida parcela teve também por base o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam.

Significa tal que, pelo menos a partir da notificação daquela decisão arbitral e relatório, os recorrentes ficaram inteirados da identificação da parcela e do prédio que a integra, e ainda que foi realizada vistoria ad perpetuam rei memoriam, cujo auto, se antes não lhes foi facultado, poderiam consultar no processo administrativo ou requerer cópia do mesmo, e arguir todas as irregularidades de que pudesse padecer não só o auto, mas o próprio processo em causa.

Se os recorrentes não tomaram conhecimento do conteúdo do referido auto antes da sua junção ao processo judicial pela entidade recorrida - fls. 60 a 62 -, tal se deveu ao próprio desinteresse daqueles, que a partir da notificação da decisão arbitral não podiam ignorar a sua existência.

E mesmo junto ao processo o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, não reagiram os recorrentes ao seu conteúdo, não invocaram, no prazo e pelos mecanismos legais de que dispunham, qualquer vício ou irregularidade que o pudesse afectar, pelo que a existirem, ter-se-ão sanado[17].

Se à primeira instância, em sede decisão sobre o recurso interposto da decisão arbitral, estava vedado o conhecimento da invocada desconformidade ou falta de correspondência entre a parcela dos recorrentes onerada pela servidão administrativa e a parcela sobre que incidiu a vistoria ad perpetuam rei memoriam, pelas razões já apontadas, por maioria de razão não pode demandar-se da segunda instância tal conhecimento, que a permitir-se, constituiria forma de esvaziar a própria delimitação do objecto de recurso imposta à primeira instância pelo artigo 58º do Código das Expropriações.

De todo o modo, sempre importa acrescentar que consta da matéria dada como provada pela primeira instância, e que não foi objecto de impugnação, nos termos do artigo 685º-B do Código de Processo Civil, a identificação da parcela onerada pela servidão administrativa e o prédio de que faz parte.

Considerando o objecto do recurso, delimitado pelas conclusões dos recorrentes, e já antes fixado, uma vez que a decisão recorrida apenas cuidou da fixação do valor da indemnização devida aos recorrentes que, nessa parte não a impugnaram, resta confirmar a decisão recorrida.


*

Conclusão:

-Da decisão arbitral que fixa indemnização pela constituição de servidão administrativa imposta pela implantação numa parcela de terreno de uma conduta de transporte de gás natural cabe recurso para os tribunais judiciais.

- É o requerimento de interposição desse recurso que delimita o seu objecto e sobre o qual vai incidir a decisão judicial que dele conheça.

- Eventuais vícios ou irregularidades de que padeçam a vistoria ad perpetuam rei memoriam e o processo administrativo prévio à interposição de recurso da decisão arbitral devem ser arguidos nos termos e nos prazos, respectivamente, fixados pelos artigo 21º, nº7 e 54º do Código de Expropriações, sob pena de se considerarem sanados.


*

Nestes termos, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando, pelas razões expostas, a decisão recorrida.

Custas: pelos apelantes.

 


Judite Pires (Relatora)


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] Art.º 664º do mesmo diploma
[3] Artigo 3º do referido diploma.
[4] Artigo 5º, nº 1.
[5] Artigo 1º, nº 1 deste último Decreto-Lei.
[6] Nº 3 do artigo 16º do Decreto-Lei nº 11/94.
[7] Artigo 10º, nº 1 do citado Decreto-Lei nº 11/94.
[8] Artigos 10º e 11º.
[9] Artigo 13º, nºs 2 e 3.
[10] Artigo 17º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 11/94.
[11] Artigo 17º, nº 6.
[12] Cfr. fls. 121.
[13] Cfr. fls. 106 a 113.
[14] Neste sentido, Salvador da Costa, “Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores”, anotados e comentados, 2010, 389; Acórdão desta Relação de 09.05.06, processo nº 287/06.
[15] Cfr. Elias da Costa, “Guia das Expropriações por Utilidade Pública”, 2ª ed., pág. 175 e Alves Correia, “As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública”, pág. 154; os Acs. do TC, nº 757/95, DR-2ª série, de 27.03.96, e nº 262/98, DR-2ª série, de 09.07.98; o Ac. do STJ de 02.12.93, CJ/STJ-93-III-159; e os Acs. Relação do Porto de 07.06.83, CJ-83-III-259, de 17.12.87, CJ-87-V-215, de 22.10.91, CJ-91-IV-269, e de 01.03.99, 03.02.00, 05.02.04, 12.05.05, 22.09.05, 11.05.06 e 29.11.06, todos em www.dgsi.pt.
[16] Processo nº 1089/08.0TBLSD.P1, www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Salvador da Costa, ob. cit., pág. 334.