Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1884/09.2T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO SOCIAL
ACÇÃO
ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 04/05/2011
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GR. INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 23/2010, DE 30/08
Sumário: I – A alteração dos pressupostos legais de atribuição ao unido de facto sobrevivo das prestações por morte do beneficiário da segurança social unido de facto, falecido, não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, operada pela Lei nº 23/2010, de 30/08, tem natureza interpretativa e enquadra-se na 2ª parte do nº 2 do artº 12º do Cód. Civil, aplicando-se imediatamente aos processos judiciais pendentes.

II – Tal aplicação, contudo, não determina a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nesses processos.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         J…, solteiro, maior, comerciante, residente na Av. …, intentou em 10/11/2009, acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra o INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I. P., com sede na ..., pedindo se declare o A. como titular das prestações por morte decorrentes do óbito do seu companheiro, A…, e se condene o R. a reconhecê-lo, com as legais e ulteriores consequências, com efeitos retroactivos à data do falecimento daquele, ocorrido em 13/02/2009.

Para tanto e em resumo, alegou que viveu em união de facto durante mais de 20 anos, sem interrupção, com o falecido A…, beneficiário da Segurança Social, como um casal assumido, embora ambos solteiros, em perfeita economia comum; eram únicos sócios de um estabelecimento comercial, faziam as despesas comuns, auxiliavam-se mutuamente e assumiram, em conjunto, entre outras, todas as despesas escolares, médicas e extra curriculares de C… que desde a nascença ficou ao exclusivo encargo do A. e seu companheiro; neste momento não recebe salário, tem a seu cargo o referido C… e cuida ainda da mãe do falecido companheiro, encargos que determinam despesas avultadas para além das relativas à economia doméstica; não pode socorrer-se das pessoas que estariam legalmente obrigadas a prestar-lhe alimentos, pois os seus pais vivem modestamente de reformas no valor aproximado de 700,00 € e outros parentes vivem em difíceis condições económicas, não sendo conhecidos quaisquer rendimentos e/ou bens propriedade do falecido B…; julga, assim, o A. que deve ser reconhecido, à semelhança de um viúvo, como titular do direito às prestações por morte daquele, de acordo com o estabelecido no art.º 8º do DL 322/90, de 18/10, no Dec. Reg. nº 1/94, de 18/01 e na Lei nº 7/01, de 11/05.

         O R. contestou, impugnando os factos alegados pelo A., à excepção da morte do B… e do facto de este ser beneficiário da Segurança Social.

         Saneada e condensada a causa, foi, já na fase da instrução, proferido o despacho de fls. 80 a 84, julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide [artº 287º, al. e) do CPC], motivada pela entrada em vigor da Lei nº 23/2010, de 30/08, que alterou a Lei nº 7/2001, instituindo novo regime que se entendeu ser de aplicação imediata à situação do A.

         Inconformado, o R. interpôs recurso, encerrando a alegação que apresentou com as conclusões seguintes:

 […]

Não foi apresentada resposta.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que:

         - O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil[1]);

         - Nos recursos se apreciam questões e não razões;

         - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as duas questões a decidir são as de saber se (1) o novo regime de atribuição das prestações por morte de beneficiário da segurança social não casado ou judicialmente separado de pessoas e bens à pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, introduzido pelas alterações da Lei nº 7/2001, de 11/05, operadas pela Lei nº 23/2010, de 30/08, é ou não aplicável ao caso dos autos e (2) se da aplicação desse regime resulta inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, a extinção da instância.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A factualidade e incidências processuais relevantes para o conhecimento e decisão do recurso são as que decorrem do antecedente relatório que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


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         2.2. De direito

         2.2.1. Aplicabilidade do novo regime

         O A. fundamentou juridicamente o seu pedido no regime de acesso às prestações por morte dos beneficiários da segurança social instituído no Decreto-Lei nº 322/90, de 18/10, no Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18/01 e na Lei nº 7/2001, de 11/05.

         O Decreto-Lei nº 322/90 definiu e regulamentou a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social (artº 1º, nº 1), consubstanciando tal protecção, em termos gerais, na atribuição das prestações pecuniárias denominadas pensões de sobrevivência e subsídio por morte (artº 3º, nº 1) aos cônjuges e ex-cônjuges, descendentes, ainda que nascituros, incluindo os adoptados plenamente, e ascendentes (artº 7º, nº 1).

         No artº 8º estendeu aquele diploma o direito às prestações por morte dos beneficiários da segurança social às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do artº 2020º do Código Civil, subordinando a prova da verificação daquela situação e a determinação das condições de atribuição das prestações a um processo a definir através de decreto regulamentar.

         O nº 1 do artº 2020º do Cód. Civil estabelecia que “aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º”.

         As alíneas a) a d) do nº 1 do artº 2009º indicam a ordem das primeiras[2] pessoas obrigadas a alimentos, a qual começa pelo cônjuge ou ex-cônjuge [a)], abrangendo seguidamente os descendentes [b)], os ascendentes [c)] e os irmãos [d)].

         O processo a que faz menção o artº 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 322/90 foi definido pelo Decreto Regulamentar nº 1/94. Aí se reiterou que tem direito às prestações por morte a pessoa que, no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges (artº 2º), ficando a respectiva atribuição dependente de sentença judicial que lhe reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do disposto no artigo 2020º do Código Civil (artº 3º, nº 1). No caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das mesmas prestações (artº 3º, nº 2).

         O requerimento das prestações por morte, a conceder ao abrigo do diploma em análise, deveria ser acompanhado de certidão da sentença judicial que fixasse o direito a alimentos ou declarasse a qualidade de titular das prestações por morte (artº 5º).

         A situação foi objecto de nova abordagem legislativa através da Lei nº 135/99, de 28/08, em cujo artº 3º, al. f) se reafirmou que quem vive em união de facto tem, entre outros, direito a protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei, esclarecendo ainda o artº 6º que:

1 - Beneficia dos direitos previstos nas alíneas f) e h) do artigo 3º da presente lei quem reunir as condições previstas no artigo 2020º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais civis.

2 – Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.

3 – Não obsta ao reconhecimento da titularidade do direito às prestações a inexistência ou insuficiência dos bens da herança para atribuição da pensão de alimentos.

4 – O direito à prestação pode ser reconhecido na acção judicial proposta pelo titular contra a herança do falecido com vista a obter a pensão de alimentos, desde que na acção intervenha a instituição competente para a atribuição das prestações.

5 – O requerente pode propor apenas acção contra a instituição competente para a atribuição das prestações.

A Lei nº 7/2001, de 11/05, veio estender a produção de efeitos jurídicos às uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo, definindo no artº 1º, nº 1 o seu objecto como sendo a regulação da situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos.

Revogando embora a Lei nº 135/99 (artº 10º), continuou a atribuir às pessoas que vivem em união de facto, além de outros, direito a protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei [artº 3º, al. e)] e a esclarecer, no artº 6º, que:

1 – Beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no artigo 2020º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais cíveis.

2 – Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.

A interpretação das normas legais a que acabou de ser feita referência não tem sido pacífica, podendo, sobre os pressupostos legais da atribuição das prestações por morte do beneficiário da segurança social à pessoa que com ele vivesse em união de facto, detectar-se duas correntes jurisprudenciais e doutrinárias[3].

Uma, minoritária, que parte da interpretação restritiva da remissão feita pelo artº 6º da Lei nº 7/2001 para o artº 2020º do Cód. Civil, da natureza da pensão de sobrevivência e do princípio constitucional da proporcionalidade, entendendo que na acção instaurada contra a instituição de segurança social competente o Autor não tem de alegar e provar a necessidade de alimentos, mas apenas a situação da união de facto, ou seja, que no momento da morte do beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges[4].

Outra, maioritária, defendendo que o direito às prestações por morte do beneficiário da segurança social não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens conferido a quem com ele vivesse há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges depende da alegação e prova, na acção instaurada contra a instituição competente, não apenas da situação de união de facto, mas também dos demais requisitos previstos no nº 1 do artº 2020º do Cód. Civil, com referência ao artº 2009º, nº 1, als. a) a d) do mesmo diploma legal, designadamente da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter da herança do falecido, do cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes e dos irmãos[5].

 Foi, entretanto, publicada a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, que alterou vários artigos da Lei nº 7/2001 e lhe aditou o artº 2º-A.

Essa Lei nada dispôs sobre a data da sua entrada em vigor, pelo que, decorrida a vacatio legis, começou a vigorar em 04/09/2010. Mesmo quanto aos preceitos com repercussão orçamental, que o artº 6º estabeleceu só produzirem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, aquela Lei está em plena vigência, uma vez que a Lei do Orçamento do Estado para 2011 (Lei nº 55-A/2010, de 31/12) está já em execução.

São duas as alterações essenciais introduzidas pela Lei nº 23/2010.

Uma, de natureza substantiva, refere-se aos pressupostos legais ou factos constitutivos do direito, rechaçando definitivamente o entendimento de que os interessados tinham de alegar e provar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de obtê-los da herança ou das pessoas indicadas nas als. a) a d) do nº 1 do artº 2009º do Cód. Civil e passando a exigir apenas a alegação e prova da união de facto há mais de dois anos[6].

Outra, de índole processual, relativa ao modo de exercício do direito, deixando de ser necessário que o interessado instrua o requerimento das prestações por morte com certidão da sentença judicial que o declare titular daquelas prestações e bastando a prova documental da união de facto.

Assim, nos termos do artº 2º-A da Lei nº 7/2001, aditado pela Lei nº 23/2010, a união de facto pode ser provada por qualquer meio legalmente admissível (nº 1), nomeadamente por declaração emitida pela Junta de Freguesia competente que, no caso de morte de um dos membros da união de facto, atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento. Nessa hipótese, a declaração da Junta de Freguesia deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão de óbito do falecido (nºs 2 e 4).

A entidade responsável pelo pagamento, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação e desde que não tenham decorrido mais de quatro anos (artº 6º, nºs 2 e 3).

Encontrando-se a presente acção pendente quando entraram em vigor as alterações (e aditamento) à Lei nº 7/2001, operadas pela Lei nº 23/2010, coloca-se a questão da aplicabilidade ou não de tais alterações, isto é, põe-se-nos um problema de aplicação da lei no tempo.

A própria Lei nº 23/2010 não contém qualquer norma de direito transitório que resolva a questão.

Há, pois, que recorrer às normas de direito transitório geral essencialmente constantes dos artºs 12º e 13º do Cód. Civil, distinguindo as alterações, de natureza substantiva e de índole processual introduzidas pela Lei nº 23/2010.

No tocante às de natureza substantiva – dispensabilidade de alegação e prova da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter da herança ou das pessoas indicadas nas als. a) a d) do nº 1 do artº 2009º do Cód. Civil e suficiência da prova da união de facto – importa começar por saber se estamos perante uma norma inovadora ou, pelo contrário, se a norma em causa tem carácter interpretativo.

Sobre as leis interpretativas escreveu Baptista Machado[7]:

“É de considerar como lei interpretativa (por natureza) aquela que, com o fim de pôr cobro à controvérsia (ou pelo menos à incerteza) sobre o sentido de certa regra jurídica, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado; não necessariamente uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior – que até pode não existir – mas um sentido que os operadores jurídicos podiam ter extraído da norma.”

E prossegue[8]:

“Para que uma LN (lei nova) possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.”

Como atrás se referiu, no domínio da legislação anterior à Lei nº 23/2010 era claramente controvertido – tendo-se até formado duas correntes jurisprudenciais e doutrinárias opostas – saber se a necessidade de alimentos e a impossibilidade de obtê-los da herança ou das pessoas indicadas nas als. a) a d) do nº 1 do artº 2009º do Cód. Civil tinham ou não de ser alegadas e provadas, isto é, se eram ou não factos constitutivos do direito às prestações.

As alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010 fazem – ao dispensarem a alegação e prova daquelas necessidade e impossibilidade – uma opção clara por uma das soluções preconizadas no domínio da lei anterior, situando-se dentro dos quadros da controvérsia existente.

A conclusão a extrair é, sem dúvida, a de que a Lei nº 23/2010 tem natureza interpretativa, integrando-se, de acordo com o nº 1 do artº 13º do Cód. Civil, na lei interpretada e sendo, consequentemente, de aplicação imediata (com as ressalvas, que aqui não relevam, previstas na 2ª parte do referido nº 1 e no nº 2 do artº 13º do Cód. Civil).

Mesmo que assim se não entendesse e se qualificasse aquela norma como inovadora, sempre a mesma seria de aplicação imediata por se integrar na previsão da 2ª parte do nº 2 do artº 12º do Cód. Civil.

Com efeito, aí se estabelece que quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor[9].

É que o facto constitutivo essencial do direito às prestações por morte não é, ou não é só, a morte do beneficiário unido de facto. É a situação jurídica do unido de facto sobrevivente, desencadeada pelo mencionado decesso, mas que deste se autonomiza, subsistindo no tempo.

No tocante às alterações de natureza processual decorrentes da vigência da Lei nº 23/2010 – dispensabilidade de instrução do requerimento das prestações com certidão de sentença judicial declarativa da qualidade de titular das prestações por morte e ónus da entidade responsável pelo pagamento de promover a competente acção judicial com vista á comprovação da união de facto, se tiver dúvidas sobre a sua existência – há que ponderar que a nova lei processual é de aplicação imediata, mas não retroactiva, o que significa que se aplica às acções futuras e aos actos que futuramente se praticarem nas acções pendentes.

Contudo, aquelas alterações traduzem-se, na prática – sem prejuízo da acção judicial com vista á comprovação da união de facto quando a entidade responsável pelo pagamento tenha dúvidas sobre a sua existência – na cessação da competência material dos tribunais para declararem a qualidade de titular das prestações por morte e na correspondente atribuição dessa competência administrativa à entidade responsável pelo pagamento.

Ora, de acordo com o artº 24º da Lei nº 52/2008, de 28/08 (LOFTJ), vigora entre nós o princípio da perpetuatio jurisdictionis (ou perpetuatio fori), segundo o qual a competência é fixada no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto, o que não é o caso, se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.

Ou seja, resumindo, são aplicáveis ao caso em apreciação as alterações de natureza substantiva introduzidas na Lei nº 7/2001 pela Lei nº 23/2010, mas não as de índole processual.


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2.2.2. Inutilidade superveniente

Na decisão sob recurso entendeu-se que a aplicabilidade ao caso em apreciação das alterações operadas pela Lei nº 23/2010 importava a inutilidade superveniente da lide porquanto “a presente acção, indispensável face à legislação que à data da sua instauração regia a obtenção das referidas prestações por morte, é agora desnecessária e inútil uma vez que a prova da união de facto terá de ser feita por outro meio e que não é mais necessário demonstrar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter de determinadas pessoas”.

Vejamos.

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide está prevista no artº 287º, al. e), como causa de extinção da instância.

Como escreve o Prof. Lebre de Freitas[10], “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.

A presente acção judicial, proposta ao abrigo do regime anterior à Lei nº 23/2010, tinha como escopo a declaração da qualidade do unido de facto sobrevivo (o A. José Arlindo da Silva Vieira) de titular das prestações por morte do beneficiário da segurança social unido de facto falecido (João Leonardo Correia Pinto).

Para tanto propôs-se o Autor demonstrar não apenas a união de facto por mais de dois anos, como também a sua necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter da herança ou das pessoas indicadas nas als. a) a d) do nº 1 do artº 2009º do Cód. Civil.

Já não é, mercê das alterações substantivas operadas pela Lei nº 23/2010, aplicáveis à presente acção, necessário que demonstre os dois últimos requisitos enunciados – necessidade dos alimentos e impossibilidade de obtê-los.

Mas continua a ser indispensável ao Autor demonstrar, ainda que agora o possa fazer com mais facilidade, a união de facto por mais de dois anos – que o R. contestou – sem o que, mesmo no novo procedimento administrativo instituído pelo artº 2º-A da Lei nº 7/2001, aditado pela Lei nº 23/2010, o direito às prestações por morte não será reconhecido.

Ou seja, pese embora a diminuição das exigências legais, o Autor nada obteve, nada viu reconhecido ou declarado, motivo pelo qual a extinção da instância o remeteria para o ponto de partida, obrigando-o a iniciar um procedimento administrativo que teria por objecto algo que é já objecto desta acção e que nela continua a poder utilmente ser alcançado.

Inexiste, portanto, a nosso ver, inutilidade superveniente da lide, inexistindo, pois, também, fundamento para a decretada extinção da instância, o que implica o prosseguimento dos autos[11] e [12].

Nos termos do artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

I – A alteração dos pressupostos legais de atribuição ao unido de facto sobrevivo das prestações por morte do beneficiário da segurança social unido de facto falecido não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, operada pela Lei nº 23/2010, de 30/08, tem natureza interpretativa e enquadra-se na 2ª parte do nº 2 do artº 12º do Cód. Civil, aplicando-se imediatamente aos processos judiciais pendentes.

II – Tal aplicação, contudo, não determina a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nesses processos.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento dos pertinentes termos processuais.

         As custas são a cargo do apelante, já que o apelado não deu causa ao recurso nem contra-alegou (artº 449º do Cód. Proc. Civil).


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Artur Dias

Jaime Carlos Ferreira

Voto de Vencida da Relatora Regina Rosa:

Vencida como relatora.

         No projecto que apresentei e que não obteve provimento no aspecto relativo à inutilidade superveniente da lide, disse, quanto a tal:

“ (…) Descortina-se, quanto a nós, a ratio legis que está na base destas novas soluções: a necessidade de pôr termo a um processo formal e exigente que a lei impunha seguir para se obter os benefícios previstos no art.3º, als.e), f), g) não alterados na lei nova, e a divergência de interpretação feitas na jurisprudência.

O interessado nas prestações aí previstas deixa, assim, de propor acção contra a entidade responsável pelo pagamento e de provar a verificação dos pressupostos estabelecidos no art.2020º/1. Mesmo que não tenha necessidade de alimentos, tem direito a esses benefícios, bastando-lhe provar, para a atribuição dos mesmos e perante a instituição competente, a existência da união de facto nos termos estabelecidos no referido art.2º-A, conforme resulta do art.8ºdo DL 322/90 e art.41º do DL142/73, na nova redacção introduzida pelos arts.4º e 5º, respectivamente, da Lei 23/10.

É inequívoco que a Lei 7/01, na nova redacção dada pela Lei 23/10 e republicada, veio regular em novos moldes o regime jurídico de acesso aos benefícios previstos nas referidas als.e), f) e g) do art.3º, abstraindo dos factos que lhe dão origem.

Ora, em face dos princípios contidos no art.12º do C.C. atrás aludidos, cremos não haver dúvidas de que essa nova redacção é de aplicação imediata ao caso sub judice. No caso dos arts.2º-A, 6º e art.2020º/1, C.C., verifica-se que os mesmos dispõem directamente sobre o conteúdo de determinadas situações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem. Logo, nos termos do art.12º/2-2ª parte, deve entender-se que esses normativos abrangem as relações jurídicas constituídas no domínio da anterior redacção, e que subsistam à data da entrada em vigor da nova redacção.

Quer isto dizer que o direito abstracto do A. ao benefício previsto na al.e) do art.3º, surge com a morte do companheiro, beneficiário da segurança social. Ocorrida ela em Fevereiro de 2009, a partir desse momento constituiu-se, ex lege, uma relação jurídica duradoura, cujo conteúdo é regulado pela lei, e que se mantinha aquando da entrada em vigor em Setembro de 2010 da lei nova, para cuja órbita entrará.

Atento o afirmado, conclui-se que a pretensão aduzida encontra satisfação fora da acção judicial. Daí a inutilidade do prosseguimento da lide e consequente extinção da instância, sem apreciação do mérito da causa, conforme considerou a 1ª instância com a concordância do autor.

A decisão recorrida não suscita, pois, qualquer censura.

Regina Rosa


[1] Diploma a que pertencem as disposições legais adiante citadas sem outra menção.
[2] As alíneas e) e f) impõem ainda a obrigação de alimentos aos tios, durante a menoridade do alimentando e ao padrasto e à madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste.
[3] Cfr. Ac. RC de 15/02/2011 (Proc. 646/10, relatado pelo Des. Jorge Arcanjo, aqui Adjunto), que, com a devida vénia, se seguirá de perto.
[4] Cfr. França Pitão, União de Facto no Direito Português, 2000, pág. 189; Pires da Rosa, “Ainda a união de facto e pensão de sobrevivência”, Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 3, nº 5, 2005, págs. 111 e seguintes; Guilherme da Fonseca, RMP, Ano 25, nº 99, pág. 157; Ac. TC nº 88/2004, de 10/02/2004 (DR, II Série de 16/04/2004); Ac. STJ de 20/04/2004, CJ (STJ), XII, II, 30; Ac. RL de 25/11/2004, CJ, XXIX, V, 101; Ac. RL de 04/11/2003, de 03/02/2005 e de 16/01/2007 e Ac. RC de 09/05/2006, estes em www. dgsi.pt.
[5] Cfr. Acórdãos do STJ de 13/09/2007, 23/10/2007, 28/02/2008, 27/05/2008, 16/09/2008 e de 23/09/2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt; Acórdãos do TC nº 195/03 (DR, II, de 22/05/2003), nº 159/05 (DR, II, de 28/12/2005), nº 614/05 (DR, II, de 29/12/2005); Rita Xavier, Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, págs. 16 e seguintes.
[6] O artº 6º, nº 1 da Lei nº 7/2001, na redacção da Lei nº 23/2010, passou a preceituar que “o membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, independentemente da necessidade de alimentos”, sendo que a al. e) do artº 3º confere aos unidos de facto nas condições previstas naquela Lei direito a “protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei”.
[7] Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1983, pág. 246.
[8] Obra citada, pág. 247.
[9] Cfr. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil – Casos de Aplicação Imediata, Critérios Fundamentais, Coimbra, Almedina, 1968, pág. 96; P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, págs. 60/61; e Oliveira Ascensão, Introdução ao Estudo do Direito, Ano lectivo de 1970/1971, revisão parcial em 1972/1973, edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, págs. 435 e seguintes.
[10] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 512.
[11] Acresce que, prosseguindo os autos a sua tramitação, ficará definido que são aplicáveis ao caso sub judice as alterações substantivas introduzidas pela Lei nº 23/2010 e o R. impedido de suscitar novamente essa questão, sendo duvidoso que o mesmo sucedesse no caso de se entender que  havia inutilidade superveniente da lide.
[12] Neste sentido, cfr. Acórdãos desta relação de 08/02/2011 (Proc. 986/09.0TBAVR.C1, relatado pelo Des. Manuel Capelo), 15/02/2011 (Proc. 646/10.9T2AVR.C1, relatado pelo Des. Jorge Arcanjo), 23/02/2011 (Proc. 515/09.5T2AVR.C1, relatado pelo Des. Alberto Ruço) e de 02/03/2011( Proc. 837/10.2T2AVR.C1, relatado pelo Des. Pedro Martins), todos em www.dgsi.pt/jtrc. Contra: Acórdãos desta Relação de 15/02/2011 (Proc 121/09.4T2AVR.C1, relatado pelo Des. Fonte Ramos e com voto de vencido do Des. Pedro Martins) e de 23/02/2011 (Proc. 1029/10.6T2AVR.C1, reatado pelo Des. Arlindo Oliveira e com voto de vencido do Des. Beça Pereira), também em www.dgsi.pt/jtrc.