Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/18.0GTLRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
SENTENÇA CONDENATÓRIA
Data do Acordão: 03/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CP
Sumário: A aplicação de uma qualquer pena de substituição, incluindo a prevista no artigo 43.º do CP, dependendo de um juízo de adequação às finalidades da punição, apenas pode ser consagrada na sentença, no momento da escolha da pena, e não em momento posterior à da prolação daquele acto decisório.
Decisão Texto Integral:

Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



1. Relatório

A. interpôs recurso da decisão proferida no processo sumário n.º 47/18.0GTLRA, do juízo local criminal de Porto de Mós, Comarca de Leiria, que ordenou a passagem de mandados de detenção e condução do arguido para cumprimento da pena de prisão em que foi condenado.


1.1. Recurso do arguido (conclusões):

1) O recorrente apresentou em 03.06.2019 um requerimento com vista à apreciação da possibilidade de execução em regime de permanência na habitação de pena de prisão de dez meses,

2) Por despacho datado de 09.10.2019 a Mma juíza do Tribunal “a Quo” ordenou com nota de urgência a prévia informação aos serviços de reinserção social sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do recorrente,

3) Para poder apreciar da possibilidade de execução em regime de permanência na habitação de pena de prisão de dez meses, situação cumprida pelos serviços e com parecer positivo.

4) Com esta atitude o Tribunal “a Quo” criou espectativas ao recorrente, familiares e amigos, tendo o recorrente procedido a organização da sua vida diária de acordo com o estipulado.

5) Acontece que por despacho datado de 21.10.2019 o Tribunal “a Quo” dá o dito por não dito,

6) Ou seja, diz que errou e ordena no imediato a detenção e condução do recorrente para cumprimento da pena de prisão em que foi condenado.

7) Com esta atitude o Tribunal “a Quo” colocou em causa os direitos fundamentais do recorrente.

8) Tal erro coloca em causa a vida do ora recorrente.

9) O Tribunal “a Quo” no ponto 4 (quatro) do douto despacho refere:

“4. O que significa que a apreciação e decisão a propósito da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, teve ou teria o seu lugar no quadro daquela Sentença e/ou daquele Acórdão;”

10) Ora tal afirmação está errada, isto porque, a substituição da pena de prisão efetiva determinada pelo Tribunal Superior, para o regime de permanência na habitação, terá que ser decidida pela Mma juíza do Tribunal “a Quo”,

11) E terá que ser dessa forma, na medida em que o Acórdão do Tribunal Superior apenas se pronunciou/apreciou a questão da aplicação da pena de prisão aplicada ao ora recorrente, ser suspensa ou tornar-se efetiva no seu cumprimento.

12) O Acórdão do Tribunal Superior não se pronunciou nem se podia pronunciar, sobre a medida da pena mais favorável ao ora recorrente.

13) O Tribunal Superior não se pronunciou/apreciou a possibilidade da execução da pena aplicada ao ora recorrente, poder ser no regime de permanência na habitação,

14) Apenas se pronunciou/apreciou a aplicação da pena de prisão aplicada ao ora recorrente, ser suspensa ou tornar-se efetiva no seu cumprimento.

15) Nesta medida, deveria a Mma juíza do Tribunal “a Quo” ter decidido relativamente ao requerimento apresentado, pelo ora recorrente, com vista à apreciação da possibilidade de execução em regime de permanência na habitação da pena de prisão de dez meses,

16) Não procedendo deste modo, o despacho datado de 21/10/2019 é NULO, logo sendo NULO não pode o mesmo deferido.

17) Sendo NULO, esta nulidade afeta os mandados pelo que os mesmos não podem ser cumpridos.

18) Ao serem cumpridos a prisão do ora recorrente é ilegal.

19) Daí que, salvo devido respeito pelo tribunal “a Quo”, não podia decidir como decidiu, pelo que decidir como decidiu significa coatar os direitos que o recorrente possui.
20) Andou mal novamente este tribunal, ao referir no seu ponto 5 (cinco) “Sob pena de, persistindo este Tribunal neste erro que ora verifica, agir em desrespeito pela decisão tomada pelo Tribunal Superior da Relação de Coimbra, que revogou a suspensão da execução da pena de dez meses de prisão e ordenou o seu cumprimento.”
21) Andou mal, na medida em que o Acórdão proferido pelo Tribunal Superior da Relação de Coimbra, apenas apreciou a suspensão ou o cumprimento efetivo da pena de dez meses de prisão aplicada ao ora recorrente,
22) Não apreciou o Tribunal Superior da Relação de Coimbra qual a medida de cumprimento mais favorável ao ora recorrente, apenas apreciou da suspensão ou o cumprimento efetivo da pena de dez meses de prisão.
23) Inexiste fundamento de facto e de direito para que a aplicação do regime de execução em regime de permanência na habitação não possa ser aplicada ao recorrente.

24) Ora, não pode efetivamente o recorrente concordar com o douto despacho, desde logo porque, o que o recorrente requer é a possibilidade de execução da pena aplicada seja em regime de permanência na habitação.

25) Salvo devido respeito pelo tribunal “a quo”, andou mal este tribunal ao não decidir o requerimento do recorrente com vista à apreciação da possibilidade de execução em regime de permanência na habitação de pena de prisão.

26) E como tal, e do exposto, não pode o tribunal “a Quo”, decidir pela emissão dos competentes mandatos de detenção e condução do arguido para cumprimento da pena de prisão em que foi condenado bem como a notificação do Arguido para no prazo de dez dias entregar os títulos de condução que o mesmo seja portador.

27) Desta forma, não pode o tribunal “a Quo” decidir pela improcedência do recurso apresentado.

28) Assim, ao decidir da forma supra descrita errou na apreciação dos factos, não se mostrando assim que o tribunal “a Quo tenha sido suficientemente exigente na formação da sua convicção e tendo procedido a uma análise errada.

29) Todas estas circunstancias supra elencadas só poderiam conduzir a um resultado distinto daquele que veio a ser considerado pelo Tribunal “a Quo”,

30) Igualmente, perante o supra exposto, e porquanto não resulta da motivação da sentença e do Acórdão do Tribunal Superior da Relação de Coimbra, não se percebe de que forma é que o Tribunal “a Quo” formou uma certeza absoluta relativamente à decisão proferida.
31) Assim, deverá ser revogado o despacho de 21-10-2019 recorrido e impugnado e substituído por outro que considere o requerimento do recorrente com vista à apreciação da possibilidade de execução em regime de permanência na habitação de pena de prisão procedente.

32) Termos em que o presente recurso deve ser julgado provado e procedente e por via disso, revogado o despacho recorrido e substituído por outro que julgue procedente o recurso.»


1.2. Respondeu o Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

1.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta acompanhou a resposta do Ministério Público, concluindo pelo não provimento do recurso do arguido.

2. Questões a decidir no recurso

O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).
Assim, a questão a decidir prende-se com a nulidade da decisão proferida, por não se pronunciar sobre a possibilidade de aplicação da pena prevista no art. 43º do Código Penal.
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3. Fundamentação

3.1.- Ocorrências processuais com relevo para a decisão:

1. Por sentença proferida em 7.6.2018, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, acompanhada de regime de prova.

2. Dessa sentença interpôs o Ministério Público recurso para esta Relação de Coimbra, tendo sido proferido Acórdão, a 8 de maio de 2019, que, revogando a pena de substituição, determinou o cumprimento da pena principal aplicada ao arguido, decisão que transitou em julgado.

3. A 3.6.2019, o arguido requereu que lhe fosse aplicado o regime de cumprimento da pena de prisão na sua habitação;

4. Por despacho datado de 9.10.2019, o tribunal a quo deu continuidade a tal requerimento, nomeadamente solicitando a realização de relatório social do arguido, e designando data para a sua audição.

5. A 21.10.2019 foi proferida a seguinte decisão recorrida:

“Neste momento, apercebeu-se este Tribunal de ter incorrido em erro fáctico e, sequentemente, técnico-

jurídico, pelo qual se penitencia e o qual passa a corrigir nos termos que passa infra a explicitar:
1. sob a influência da consulta dos autos que correm termos diante deste Juízo sob o n.º179/14.4GBPMS, no âmbito dos quais, por Acórdão do Tribunal Superior de 05.06.2019, a suspensão da execução da pena dois anos de prisão aplicada por sentença proferida em 15.10.2015 e transitada em julgado em 16.11.2015, foi revogada, ordenando-se o cumprimento efetivo da pena de dois anos de prisão, e no seguimento do que, por Despacho proferido em 11.09.2019 nestes outros autos, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b) do artigo 12.º da Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, foi determinada a reabertura a audiência, com vista a apreciar e decidir da execução em regime de permanência na habitação da pena de prisão de dois anos, o que, aliás, já foi decidido por sentença de 08.10.2019;
2. este Tribunal formou a ideia, errada, de que se tratava, nos presentes autos, de situação idêntica, razão pela qual proferiu, aqui, o Despacho, baseado em tal erro, em 09.10.2019, com vista à apreciação da possibilidade de execução em regime de permanência na habitação da pena de prisão de dez meses cujo cumprimento foi determinado pelo Tribunal Superior;
3. porém, nestes autos, ao invés do que sucedeu naqueles outros, a Sentença foi proferida em Primeira Instância em 07.06.2018 e o Acórdão pelo Tribunal Superior em 08.05.2019, o mesmo será dizer, em momento temporal em que já há muito havia entrado em vigor a Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, e, portanto, já há muito vigorava o artigo 43.º do Código Penal na sua redação atual;
4. o que significa que a apreciação e decisão a propósito da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, teve ou teria o seu lugar no quadro daquela Sentença e/ou daquele Acórdão;
5. sob pena de, persistindo este Tribunal neste erro que ora verifica, agir em desrespeito pela decisão tomada pelo Tribunal Superior da Relação de Coimbra, que revogou a suspensão da execução da pena de dez meses de prisão e ordenou o seu cumprimento.

Pelo exposto, dou sem efeito o Despacho proferido em 09.10.2019 e, no respeito pelo ordenado pelo Tribunal Superior, determino que, de imediato,
1) se emita os competentes mandados de detenção e condução do Arguido para cumprimento da pena de prisão em que foi condenado; e
2) solicite, ainda, ao O.P.C. competente a notificação do Arguido para, no prazo de dez dias, entregar na secretaria deste Juízo ou em qualquer posto policial, os títulos de condução de que seja portador (artigo 500.º, n.º 2 do C.P.P. e artigo 69.º, n.º 3 do C.P.), a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir em que foi condenado, sob pena de, não fazendo, ser ordenada a sua apreensão, outrossim incorrer na prática de um crime de desobediência.


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Notifique/desconvoque de imediato, incluindo a diligência ordenada naquele Despacho.

Dê, igualmente, conhecimento à Digna Magistrada do Ministério Público, abrindo Vista.”

           


3.2.Conhecimento do recurso:

Estatui o art. 43º, n.º 1, do Código Penal:

Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º;
c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45º.

Esta norma foi introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que eliminou as penas de prisão substitutivas. Na verdade, da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 90/XIII, do Governo, extrai-se que o cumprimento da pena de prisão inferior a 2 anos em regime de permanência na habitação visou substituir as penas de substituição que implicavam o cumprimento de penas de curta duração, como a prisão por dias livres e o regime de semidetenção, em casos de baixo risco (sic). Assim, consta da exposição de motivos: “Não obstante, o procedimento atual em matéria de aplicação de penas à pequena criminalidade não é substancialmente alterado. O juiz continuará a proceder a uma dupla operação. Verificado que tem perante si um crime provado e concretamente punido com pena de prisão até dois anos, começará por determinar se é adequada e suficiente às finalidades da punição alguma pena de substituição (multa, suspensão da execução, trabalho a favor da comunidade) ou se é necessário aplicar a pena de prisão. Nesta última hipótese, ficam à sua disposição duas possibilidades de execução, pela ordem seguinte: ou em regime de permanência na habitação, ou dentro dos muros da prisão, em regime contínuo.”. Todas as operações referidas

Resulta daqui que o cumprimento da pena de prisão inferior a 2 anos em regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição, em sentido próprio: tem um caráter não institucional, sendo cumprida em liberdade, e pressupõe a prévia determinação da medida da pena de prisão, que substitui, constituindo uma forma de combater a pena de prisão (cf. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, págs. 30-31).

Ora, de molde a possibilitar a imediata extinção das penas substitutivas detentivas – prisão por dias livres e regime de semidetenção -, o legislador previu, no art. 12º da Lei n.º 94/2017, um regime transitório, possibilitando ao condenado em prisão por dias livres ou em regime de semidetenção requerer ao tribunal a reabertura da audiência para que a prisão que faltasse fosse cumprida em regime de permanência na habitação.

Se daqui decorre com clareza, por um lado, a mencionada natureza de verdadeira pena de substituição da nova pena de “regime de permanência na habitação”, prevista no art. 43º do Código Penal, por outro lado fica clarificado que a sua aplicação terá de ter lugar na sentença condenatória, não sendo possível uma sua aplicação posterior (o que justificou a criação de um regime transitório excecional para aplicação da nova pena de substituição a casos concretos em que a pena de prisão havia sido substituída por uma outra pena detentiva de cumprimento institucional).

Na verdade, a aplicação de uma qualquer pena de substituição, incluindo a prevista no atual art. 43º do Código Penal, depende de um juízo de adequação às finalidades da punição, que apenas pode ser formulado na sentença, no momento da escolha da pena, e pelo tribunal do julgamento, não podendo ser aplicada num momento posterior à sentença condenatória (no mesmo sentido, reportando-se à pena de substituição de regime de permanência na habitação anteriormente prevista no art. 44º do Código Penal, desde a reforma de 2007, vejam-se os Acórdãos da Relação de Guimarães de 2.11.2015, proc. 5/14.4GFPRT.G1, de 30.5.2016, proc. 197/15.5YRGMR.G1, e da relação de Coimbra, de 10.12.2013, proc. 157/10.2GVSVV-A.C1, todos em www.dgsi.pt).

            No caso dos autos, o arguido foi condenado na pena de 10 meses de prisão pela prática de um crime p. e p. pelo art. 292º do Código Penal, em primeira instância; na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, esta Relação de Coimbra determinou o cumprimento da pena principal, revogando assim a substituição da pena que havia sido operada pela primeira instância – acórdão que transitou em julgado, não sendo assim suscetível de alteração.

            É certo ter existido manifesto lapso da Exma. Juiz a quo no despacho que proferiu em 9.10.2019, incidente sobre requerimento do arguido, posterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória, onde deduziu a sua pretensão de lhe ver aplicada a pena substitutiva em causa.

            Porém, um lapso notório e evidente em que incorreu a primeira instância, corrigido num prazo curto, é insuscetível de criar uma legítima expetativa de vir a ser deferida a pretensão do arguido – o que nunca poderia suceder, como o tribunal a quo, e bem, posteriormente afirmou no despacho recorrido, o que lhe é permitido pelo art. 380º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código de Processo Penal.

            Em consonância, bem andou o tribunal a quo quando ordenou a emissão de mandados de detenção para o arguido cumprir a pena de prisão em que foi condenado, por decisão transitada em julgado.


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4. Decisão

Nos termos expostos, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido A.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.

Coimbra, 18 de março de 2020

Ana Carolina Cardoso (relatora)

João Novais (adjunto)