Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
968/09.1TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL DE ADVOGADO
CRIME CONTINUADO
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4º JUÍZO DO TRIBUNAL CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ARTºS 87º Nº 4 EOA, 135º Nº 1, 182º CPP E 30º Nº 2 CP
Sumário: 1.- O segredo profissional de advogado respeita aos assuntos profissionais conhecidos exclusivamente por revelação do seu cliente.
2.- O envio de escritos injuriosos por parte deste ao seu mandatário não estão a coberto do segredo profissional.
3.- São pressupostos tos da existência de uma continuação criminosa:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime ( ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada
- lesão do mesmo bem jurídico ( unidade do injusto de resultado)
- persistência de uma “situação exterior” que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente.
4. O protelamento no tempo das diversas decisões na prática dos crimes de injúria e ameaça e a falta de diminuição da culpa, são factores que afastam a continuação criminosa.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. O arguido AA..., já mais devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, mediante a aludida forma de processo comum e por tribunal singular, porquanto acusado pelo Ministério Público da prática de factos alegadamente consubstanciadores da autoria material, em concurso real de infracções, de dez crimes de injúrias agravadas, pp. pelos artigos 181.º, n.ºs 1 e 2 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l); de oito crimes de ameaças, pp. no artigo153.º, n.º 1, e, de um crime de ameaça agravada, pp. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal.

Arvorando-se a qualidade de lesado em virtude da conduta delitiva assim assacada e para ressarcimento dos danos não patrimoniais consequentemente sobrevindos, BB..., entretanto também mais identificado, deduziu pedido de indemnização civil visando obter a condenação do mesmo arguido a solver-lhe o pagamento da quantia de € 10.000,00.

1.2. No decurso da audiência, ponderando requerimentos aí apresentados pelo arguido[1];[2], a M.ma Juiz que presidia a tal acto processual, proferiu dois despachos, cujos teores se transcrevem, respectivamente:

(fls. 172/3)

Da leitura do preceito resulta, inequivocamente, que o segredo profissional na parte que aqui nos interessa, respeita aos assuntos profissionais conhecidos exclusivamente por revelação do cliente. Todos os outros factos, não estão a coberto do segredo profissional.

No caso dos autos, começo por lembrar que nem na acusação nem no pedido de indemnização civil, se diz que o arguido e o queixoso celebraram, à data dos factos, contrato de mandato.

Os factos denunciados, integram a prática dos crimes e não se confundem com uma relação de advogado/cliente que possa ter existido. Como dissemos, o art.º 87.º apenas proíbe o relato de factos cujo conhecimento adveio de serviços prestados por advogado e os factos denunciados não têm qualquer relação com eventual relação profissional que existiu, quanto muito, são posteriores a ela. Seria no mínimo estranho, que o advogado pudesse ser injuriado e ameaçado por um cliente e não pudesse reagir.

Em suma, os factos denunciados não se enquadram em nenhuma das situações previstas no art.º 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, e, como tal, podem ser livremente relatados e apreciados pelo Tribunal.

Pelo exposto, indefiro o requerimento em análise. Notifique.                                                     

(fls. 177)

O demandante foi indicado no pedido de indemnização cível para ser ouvido em declarações, nos termos do disposto no art.º 347.º do C.P.P. Por outro lado, as normas do C.P.Civil não se aplicam ao processo penal, no que se refere à tomada de declarações ao demandante, por existir norma expressa a regular tal matéria no C.P.Penal – art.º 347.º deste diploma.

Assim, não ocorre a invocada irregularidade.

Custas do incidente a cargo do arguido, que pela sua simplicidade, se fixam em 1 UC. Notifique.

1.3. Findo o contraditório, mostra-se proferida sentença, por cujo intermédio, e ao ora mais relevante, se decidiu:

- Não apreciar a responsabilidade criminal imputada na acusação ao arguido na parte respeitante aos alegados sete dos crimes de injúria agravada por que vinha acusado, temporalmente delimitados na sua ocorrência após Março de 2009, atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

- Absolver o arguido em causa da prática de três crimes de ameaça, por que vinha acusado.

- Condená-lo, porém, pela prática de três crimes de injúrias agravadas, pp. nos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal, na pena de 140 dias de multa por cada um dos crimes.

- Mais o condenar pela prática de cinco crimes de ameaça, pp. no artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, por cada um dos crimes.

- Ainda o condenar pela prática de um crime de ameaça agravada, pp. nos artigos 151.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 140 dias de multa.

- Em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condená-lo na pena única de 600 (seiscentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros).

- Condenar o demandado a solver a título ressarcitório e ao demandante BB..., a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros).

1.4. O arguido, irresignado com aqueles dois despachos interlocutórios e com a sentença final prolatada, interpôs recurso, extraindo dos requerimentos com que motivou tais desavenças, as seguintes conclusões:

(respeitantes ao despacho de fls. 172/3)

1. Invocou o arguido no decurso da audiência de julgamento a proibição de prova documental relativa a toda a correspondência carreada aos autos pelo ofendido, por estar abrangida pelo segredo profissional que o vincula como advogado.

2. Ao invés do que fora dado como assente, indeferindo o requerimento apresentado pelo arguido, está configurada nos autos, mormente e expressamente na acusação, a circunstância de ter existido uma relação profissional entre causídico (ofendido) e cliente (arguido), que lhe motivara o envio dos escritos, nomeadamente os injuriosos.

3. A norma do segredo profissional plasmada no Estatuto da Ordem dos Advogados e no C.C.B.E. (Código Deontológico dos Advogados da União Europeia) serve para blindar e proteger, em primeira linha, os interesses e a intimidade do cliente.

4. Tal protecção, sem prejuízo do direito a intentar uma queixa-crime, apenas comporta uma excepção, em favor do causídico: quando a revelação dos factos sujeitos a sigilo seja “Absolutíssimamente” necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do advogado, todavia com o requisito inultrapassável de autorização prévia do Presidente do Conselho Distrital respectivo.

5. A correspondência enviada por cliente ou ex-cliente a seu advogado ou ex-advogado por virtude das funções que este exerce ou exerceu (que é a situação dos autos) está sujeita a tal sigilo e só por força de tal excepção, autorizada, pode servir como meio de prova em juízo, dado que a obrigação de sigilo não se encontra limitada no tempo.

6. Tal excepção a existir, não cumpriu com tal requisito.

7. A) Assistindo ao arguido o direito de se remeter ao silêncio; B) Assistindo-lhe todavia também direito a comprovar a veracidade das afirmações injuriosas para legitimar a sua conduta; e, C) Considerando que a prova de tal veracidade por parte do arguido implicaria que este expusesse a intimidade do que fora discutido entre advogado e cliente;

8. Temos, então, que a defesa do arguido passa por um fenómeno de inversão do ónus da prova (ou de subversão de ónus) de tal segredo: o de ser o próprio arguido, em sua defesa, levado a “valorar” uma obrigação que era própria do advogado e não dele, nomeadamente revelar e justificar publicamente a que se referia quando confidenciou, além do mais, que havia passado por problemas de saúde de que o advogado se havia aproveitado (vd. acusação, § 5.º).

9. Considerações que de outra forma não sairiam do confessionário que é o escritório e a caixa do correio do advogado.

10. Ao expor publicamente tais cartas em queixa-crime, fez o advogado sua a chave da intimidade do arguido, ignorou o Presidente do Conselho Distrital que lho permitiria e abriu tal cofre.

11. Mas incoerentemente, volta a subverter em seu favor o dever de segredo, assistindo-lhe o direito (como o veio a fazer), em sede de audiência, de se escusar a depor sobre os factos que outrossim corroborariam a versão justificativa do arguido. 

12. Fora erradamente analisada a acusação ao se reputar como inexistente uma relação advogado/cliente para se fundamentar a decisão porá em dissídio, o que correctamente feito, implica (ria) decisão diversa da recorrida.

13. Foram violados os art.ºs 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e 2.3 do Código Deontológico dos Advogados da União Europeia.

Terminou pedindo que se determine a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por outra que considere os meios de prova documental dos autos como meios proibidos de prova, por preterição do sigilo profissional que os deveria carimbar, com todas as consequências legais.

(atinentes ao despacho de fls. 177)

1. O ofendido, também lesado, ao deduzir o PIC, transformou-se em verdadeiro sujeito processual: o de parte civil.

2. Como parte civil está impedido de depor como testemunha [art.º 133.º, n.º 1, alínea c)], do Código de Processo Penal, podendo todavia a requerimento, serem-lhe tomadas declarações [art.º 347.º] do Código de Processo Penal, o que fora pedido pela própria parte civil…

3. Todavia, quer uma quer outra norma têm ínsita a ideia de que “as partes civis, só porque o são, não estão impedidas de testemunhar, mas apenas o estão relativamente aos factos que tenham a ver com o arguido ou arguidos visados” – Ac. do STJ, de 10/10/2011, a respeito do art.º 133.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal –.

4. O mesmo é dizer que, como parte civil, o ofendido não pode prestar declarações relativamente aos factos consubstanciadores do dano moral; assim como a um assistente [art.ºs 346.º e 133.º, n.º 1, alínea b)], não podem ser tomadas declarações quanto aos factos acusatórios, já que ambos optaram por assumir um interesse na causa (um interesse indemnizatório ou um interesse na condenação).

5. Quisesse o ofendido/testemunha prestar declarações sem tais impedimentos, bastava-lhe não ter requerido PIC, assim como ao ofendido que queira testemunhar sobre os factos ilícitos, de que se queixa, basta que não venha a constituir-se como assistente. O que não pode, e a lei com tais normas pretende evitar, é que venha simultaneamente acusar e fazer provas, tudo de per si.

6. Só fazendo esta distinção se cumpre, em sede de PIC, com a igualdade de armas entre processo penal e processo civil, em que a parte demandante apenas pode lançar mão de declarações que lhe sejam desfavoráveis (normas relativas ao depoimento de parte).

7. Tais normas do art.º 552.º do Código de Processo Civil completam-se e harmonizam-se com as normas do processo penal, ex vi do art.º 4.º do último, não se excluem.

8. A decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 133.º, n.º 1, alínea c) e 347.º, ambos do Código de Processo Penal, assim como os art.ºs 552.º e segs. do Código de Processo Civil.

Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por outra que considere procedente a irregularidade arguida, com todas as consequências legais, mormente a invalidade dos actos viciados e a desconsideração do depoimento em causa.

(referentes à sentença final)

1. O recorrente impugna a matéria de facto vertida nos pontos I a III, V a XIII e XVI, alíneas B) e C) da decisão recorrida.

2. O tribunal a quo deu tais factos provados, mormente os relativos ao dolo, por presunção, quando não o deveria ter feito, e não deu simultâneamente outros por provados quando o deveria ter feito.

3. Tendo o arguido confessado a autoria de alguns dos escritos dos autos, cindiu erradamente o tribunal a quo essa confissão numa parte credível e numa parte não crível, quando tal lhe estava vedado por força do estatuído no art.º 360.º, do Código Civil.

4. Na verdade, quanto aos escritos de fls. 5, 6, 38 e 39, a única valoração feita em sede de motivação da pena e consequente medida pelo tribunal recorrido fora tal confissão; desconsiderou por completo esse tribunal as suas declarações acessórias a tal confissão de autoria, mormente as que procuravam lançar mão do art.º 180.º, n.º 2, do Código Penal.

5. Se o tribunal atribuiu credibilidade plena a declarações confessórias do arguido relativamente à autoria de alguns dos escritos, deveria ter provado a sua falta de credibilidade relativamente à negação de outros tantos, ou seja, a sua inexactidão, o que não fez.

6. Tal inexactidão seria apenas possível e objectivável com o concluir das diligências de perícia iniciadas em inquérito, que não chegaram a ter lugar.

7. Tendo a M.ma Juiz a quo valorado tal confissão (quando poderia não o ter feito), viciou a objectividade necessária à livre apreciação da prova prevista no art.º 127.º, do Código de Processo Penal, estando-lhe vedada a presunção do factor “dolo”.

8. O que integra um erro de julgamento, e bem assim uma contradição entre fundamentação e decisão.

9. Os crimes dos autos, além do mais pela sua homogeneidade, mereciam a consideração de crime continuado, pelo que foram violados os limites inultrapassáveis da culpa: os meios são os mesmos; o móbil também; as expressões são idênticas; o quadro exterior é o desagrado do arguido relativamente aos serviços prestados pelo ofendido; finalmente, os factos prolongaram-se no tempo.

10. Também não podia o tribunal valorar, como o fez, para a determinação da medida concreta da pena, as condenações do recorrente que, à data da prática dos factos destes autos não haviam ainda sido objecto de trânsito em julgado.

11. O juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, isto é, à data da prática dos factos. E tais antecedentes ainda não constavam, nem podiam constar, do CRC do arguido; deveria pois situar-se o tribunal a quo, ao proferir a decisão recorrida, na posição em que estaria caso os julgasse imediatamente após o cometimento, caso em que não constariam do CRC.

12. Tais considerandos de antecedentes (que formalmente não o eram) deveriam ter sido relegados apenas para sede de medida da pena por concurso de crimes, sob pena de se fazer um juízo duplicado de culpa e assim se aumentarem os limites mínimos e máximos de tal pena.

13. Em todo o caso, houve pena superior à culpa.

14. O recorrente controverte também o despacho que como “questão prévia” apreciou da suscitada questão de ineptidão do pedido de indemnização civil, ut fls. 231/233[3].

15. O arguido foi absolvido de alguns dos crimes e ainda assim condenado em indemnização a favor do demandante. Todavia, o que o recorrente não sabe, nem tem maneira de saber (porque tal não vem alegado, discriminado ou sequer concretizado), é se foi absolvido da parte cível em mais ou menos do que aquilo que era intuito do ofendido pedir por aquele determinado crime.

16. O despacho mencionado incorre numa contradição: A) Se há que alegar em tal requerimento o dano e o respectivo nexo de causalidade; B) Se o dano, no presente caso, se resume a uma quantia indemnizatória; C) Então, o ofendido tem de dar um valor máximo – e líquido – a tal quantia, tendo de o fazer relativamente a cada um dos crimes, sob pena de falta de causa de pedir e consequente ineptidão, cuja arguição mantém.

17. É necessário em PIC alegar o específico dano (montante) e respectivo nexo de causalidade – necessário à obrigação de indemnizar – que respalda a responsabilidade civil dos autos e que é inexistente/imperceptível/abstracto, sob pena de ficar ao critério do tribunal, em preterição ao art.º 661.º, do Código de Processo Civil.

18. A sentença e o despacho recorrido violaram o estatuído pelos art.ºs 29.º, n.º 4, da Constituição da República; 30.º, 40.º e 79.º, do Código Penal; 127.º e 344.º, ambos do Código de Processo Penal; 360.º, do Código Civil; 193.º e 661.º, estes do Código de Processo Civil.

Terminou pedindo que no provimento da impugnação seja determinada a revogação da sentença recorrida, absolvendo-se o recorrente da prática dos crimes elencados, quer por erro de julgamento, quer por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Subsidiariamente,

Acaso deva manter-se a condenação do arguido, seja proferido aresto que estabeleça uma pena circunscrita à sua efectiva culpa levando em consideração, nomeadamente:

- Que os crimes em causa configuram um crime continuado de injúrias e um crime continuado de ameaça, por referência à agravada;

- Os antecedentes criminais do arguido (seja, os transitados em julgado) à data do cometimento dos factos ilícitos dos presentes autos, isto é, os formalmente existentes à data do cometimento dos factos ilícitos.

Ainda se assim se não entender, sejam os autos reenviados para a 1.ª instância.

1.5. Cumprido o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público aos recursos interpostos do despacho de fls. 172/3, bem como da sentença final (parte crime), sustentando o improvimento de ambos.

1.6. Admitidos todos os recursos interpostos, foram os autos remetidos a esta instância.

1.7. Aqui, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer atinente aos recursos incidentes sobre os dois despachos interlocutórios, bem como sobre a sentença final, pugnando por igual improvimento.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se que nenhuma circunstância impunha a apreciação sumária de qualquer um dos recursos, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que devessem todos prosseguir, com a recolha dos vistos devidos, entretanto efectivamente cobrados, e submissão à presente conferência.

Cabe, pois, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A sentença sob censura teve por provada a seguinte factualidade:

I. Em dia indeterminado, compreendido entre Novembro de 2008 e Março de 2009, o arguido enviou uma carta dirigida ao denunciante BB…, que tinha sido seu advogado em alguns processos, no qual proferiu as seguintes expressões, visando o queixoso: “o senhor mentiu-me e quem mente uma vez mente um cento, é só dar-lhe verga e tempo, assim perde-se a confiança e credibilidade, eu nunca imaginei que tivesse semelhante carácter (...) um mentiroso apanha-se mais depressa que um coxo”.

II. No dia 24 de Março de 2009, o denunciante recebeu num envelope cujo remetente provinha do “W…, Lda.” um escrito enviado ao próprio pelo arguido, na qual este proferiu as seguintes locuções visando-o: “filho da puta cabrão, só te posso oferecer essa merda para meteres esse focinho vigarista, só quero partir-te um braço depois de levares uma carga de porrada”.

III. No dia 26 de Março de 2009, o queixoso BB... recebeu nova missiva proveniente do arguido, no qual este lhe dirigiu os seguintes termos: “Ó BB…, tu és mesmo um filho da puta e a qualquer momento vais ser atacado queremos quebrar-te de deixar-te o corpo todo amassado, menos a morte, mas deixar-te incapacitado de exerceres a actividade, que só andar a roubar os mais fracos”.

IV. Em dia indeterminado, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o arguido enviou nova missiva dirigida ao denunciante, na qual proferiu as seguintes expressões, visando o queixoso: “não te armes em esperto e arranjes esquemas fraudulentos para me lixar” (...) Tu tem muito cuidado comigo”.

V. Em dia indeterminado, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o queixoso BB... recebeu nova carta proveniente do arguido, no qual este proferiu as seguintes locuções, visando-o “Ó sacana filho da puta tu devias era estar na cadeia (...) Não tens moral nem carácter mas vais acabar espancado”.

VI. Em dia que não se logrou apurar, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o arguido enviou um sobrescrito ao queixoso BB..., ínsito em envelope com a indicação de “Finibanco” no qual proferiu as seguintes asserções, visando-o: “Ó filho da puta estiveste quase a ser apanhado para ser sovado mas falhou um pormenor, será na próxima”.

VII. Em dia que não se logrou apurar, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o arguido enviou um sobrescrito ao queixoso BB..., contido num envelope com a indicação de PSP, no qual proferiu as seguintes locuções, visando-o: “Ó vigarista, burlão tu vais ser apanhado pode crer já nos lembramos de apanhar a tua mulher, levá-la e depois deixá-la a rua”.

VIII. Em dia que não se logrou apurar, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o arguido enviou um sobrescrito ao queixoso BB..., dentro de um envelope com a indicação de BNP, na qual proferiu as seguintes afirmações, visando-o: “tu és o maior vigarista e burlão que há em Coimbra, vai roubar ao caralho (...) a tua hora está próxima, alcoviteiro”.

IX. Em dia que não se logrou apurar, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o arguido enviou um sobrescrito ao queixoso BB..., no qual proferiu as seguintes afirmações visando-o: “já temos um spray paralisante para te dar com ele para depois te dar a carga de porrada que prometemos vais ficar todo amassado”.

X. Em dia que não se logrou apurar, compreendido entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, o arguido enviou um sobrescrito ao queixoso BB..., na qual proferiu as seguintes afirmações, visando-o “lambe filho da puta vigarista burlão, qualquer dia apareces morto”.

XI. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, apelidando o denunciante BB... dos epítetos vexatórios descritos, atentatórios da sua honra, consideração, bom nome e da dignidade profissional, bem sabendo que o próprio é advogado de profissão e actuando em virtude de o mesmo o ter representado na veste de causídico, bem sabendo que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei.

XII. De igual forma, com o comportamento descrito, visou o arguido infundir no denunciante um fundando receio de que um mal futuro lhe havia de suceder, nomeadamente à sua integridade física e, por ocasião da última missiva, à sua própria vida.

XIII. O arguido bem sabia que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei, tendo actuado livre, deliberada e conscientemente.

XIV. O arguido está reformado e recebe cerca de € 380,00 mensais e angaria créditos para várias financeiras.

XV. Paga de renda de casa € 200,00.

XVI. O arguido foi condenado:

a. Por sentença de 06.07.2007, transitada em julgado em 23.07.2007, pela prática de um crime de difamação, ocorrido em 2006, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;

b. Por sentença datada de 21.08.2008, transitada em julgado em 02.03.2009, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento e um crime de injúria, ocorridos em 02.06.2004, na pena única de 275 dias de multa, à taxa diária de € 8,00;

c. Em 28.10.2009, por sentença transitada em julgado em 30.11.2009, pela prática de um crime de ameaça agravada, 2 crimes de injúrias e um crime de ameaça, na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, por factos de 21.11.2007 e 28.03.2008.

XVII. Em consequência das condutas descritas o demandante sentiu vergonha, humilhação e vexame.

XVIII. Em consequência das descritas condutas do arguido, o demandante sentiu efectivamente receio de que um mal futuro lhe podia suceder, nomeadamente à sua integridade física ou à própria vida, o que o deixou perturbado, inseguro, intranquilo e com temor.

XIX. Com as condutas descritas, o arguido conseguiu prejudicar a liberdade de determinação do requerente.

XX. O arguido também visou infundir na mulher do causídico, a qual desempenha funções de secretaria forense no escritório deste, um fundando receio de que um mal futuro lhe haveria de suceder, designadamente no que tange à sua integridade física e moral.

XXI. Com as condutas descritas, a produtividade do demandante foi afectada.

2.2. Já no que concerne a factos não provados, consignou-se na aludida sentença que:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, mormente que:

A honra, bom-nome e a dignidade pessoal e profissional do demandante ficaram sériamente abaladas com as condutas do arguido descritas.

2.3. Por fim, é do teor que segue a motivação probatória constante da decisão recorrida:

Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.

Analisemos em concreto.

O arguido explicou que o demandante foi seu advogado e não ficou agradado com a sua prestação. Também admitiu que escreveu as cartas que se encontram assinadas com o seu nome, juntas aos autos a fls. 5, 7, 38 e 39, pelo que nos tivemos qualquer dúvida em dar como provado o conteúdo das mesmas.

Porém, também não nos surgiram dúvidas que o arguido tinha sido o autor das demais cartas juntas aos autos.

Vejamos, então, as razões.

O demandante, de forma coerente e credível, explicou, a este propósito, que nunca teve, nem tem, problemas com outros clientes que pudesse originar a emissão das cartas em causa. O arguido foi o seu único cliente que fez participações à Ordem dos Advogados (já foram arquivadas) e ao D.I.A.P.

Depois de começar a receber as cartas em causa, apercebeu-se que o arguido começou a frequentar o café perto do seu escritório e constatou que sempre que o via recebia uma carta. Relatou que chegou a sair do escritório e não tinha correio (estando o arguido no referido café) e quando regressava já tinha uma carta (colocada em mãos, pois não tinha selo dos CTT).

Por outro lado, tomou conhecimento que outros colegas de profissão receberam cartas semelhantes, alguns por terem sido advogados do arguido e outros por serem advogados da parte contrária.

As testemunhas C..., D... e F..., todos advogados, confirmaram estes factos. Com efeito, os dois primeiros referiram que foram advogados do arguido e receberam cartas injuriosas e ameaçadoras, depois de deixarem de ser advogados dele. Muitas das expressões que estes advogados relataram e que constavam das ditas cartas são iguais ou semelhantes às cartas juntas aos autos. A testemunha F... explicou que era mandatária de uma contraparte de um processo do arguido e depois de lhe penhorarem bens começou a receber cartas semelhantes às que constam nos autos.

As cartas recebidas por estas testemunhas eram semelhantes às recebidas pelo demandante não só pelo seu conteúdo mas também por se usarem envelopes de instituições, estarem assinadas com nomes que não conhecem e por estarem sujas com o que presumem ser fezes.

Verificamos, assim, que estes quatro advogados, que têm em comum o facto de terem tido processos com o arguido, receberam cartas semelhantes, o que nos faz concluir que foi efectivamente o arguido que praticou os factos descritos.

Mas há mais. As testemunhas G... e H…, cunhado e irmã do arguido, respectivamente, explicaram que também recebiam cartas do arguido semelhantes às que constam dos autos (não só pelo seu conteúdo mas também por se usarem envelopes de instituições e estarem assinadas com nomes que não conhecem), tendo este já sido condenado por tais factos. A testemunha G...  prestou um depoimento que foi determinante para a nossa convicção, pois explicou que nas cartas recebidas pelo arguido ele utiliza recorrentemente expressões como “carga de porrada”, “cabrão”, “filho da puta”, “aldrabão”, “vai lamber o cu”, “tu és esperto mas vais ser apanhado”, “ó vigarista”, “burlão”. Ora, estas mesmas expressões são utilizadas nas cartas juntas aos autos, o que, mais uma vez, confirma a convicção que o arguido foi o autor das mesmas.

Estas duas últimas testemunhas indicadas também referiram que o arguido envia cartas sujas com excremento, o que também aconteceu no caso dos autos – cfr. cartas de fls. 42.

Claro está que quanto ao conteúdo das missivas, valoramos as cartas que se encontram juntas aos autos.

Por fim, comparamos as cartas de fls. 5, 7, 38 e 39, que o arguido confessa que são da sua autoria com as demais e verificamos que são usadas expressões semelhantes. A título de exemplo o tratamento “Ó BB...” tanto é utilizado na carta de fls. 38, que o arguido confessa que é da sua autoria, como na de fls. 47, que o arguido diz que não escreveu. Também na carta de fls. 40 se escreve “Ó sacana”. A expressão “Ó …” não sendo vulgar é utilizada em várias circunstâncias nas cartas indicadas.

Toda esta prova conjugada nos fez, então, concluir que o arguido era o autor de todos os escritos constantes dos autos.

Quanto aos factos relatados em XI a XIII, a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93, in B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido, consideramos o certificado de fls. 85.

Relativamente à situação económica do arguido aceitaram-se as declarações, dada a ausência de qualquer outra prova.

Em relação aos factos do pedido civil apresentado, valoramos, desde logo, as declarações do próprio demandante, que nos mereceram credibilidade, sendo certo que os danos invocados se mostram proporcionais aos factos. As regras da experiência confirmam que quem recebe este tipo de cartas, tem este tipo de danos.

Valoramos, ainda, as declarações de J…, esposa do demandante, que também trabalha no escritório e, por isso, vivenciou os factos.

Importa, ainda, dizer que as testemunhas … e …, amigos do arguido, prestaram depoimentos que não nos mereceram qualquer credibilidade. O primeiro disse que há cerca de 2 anos viu o demandante na rua a ter uma conversa pouco amigável mas não sabe com quem nem o motivo.

O segundo disse que, em Março ou Abril de 2010 que também ia a passar na rua e ouviu uma conversa pouco agradável do demandante com uma pessoa que também não identificou.

Além de serem pouco esclarecedores estes depoimentos, não é minimamente credível que o demandante tenha sempre conversas desagradáveis no meio da rua. Não valoramos, pois, estas declarações.

As demais testemunhas de defesa … , amigo do arguido,  …, teve negócios com o arguido,  …, ex-sócio, e …, executou serviços à empresa do arguido, apenas relataram que este é uma pessoa educada.

Não se fez prova quanto aos factos dados como não provados.


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como se mostra jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal –, é através das conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, nas quais sintetiza as razões do pedido [artigo 412.º, n.º 1, do mesmo diploma], que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal ad quem.

No caso presente, porque não emerge qualquer circunstância acarretando a necessidade daquela intervenção oficiosa, as questões a resolver consistem, então, em aquilatarmos se:

- Os documentos juntos aos autos com a acusação integram meio proibido de prova (objecto do 1.º recurso interlocutório).

- Era inadmissível o depoimento de parte prestado em audiência pelo ofendido (objecto do 2.º recurso interlocutório).

- Mostra incorrectamente julgada a matéria de facto constante dos pontos I a III, V a XIII e XVI, alíneas B) e C) da decisão recorrida.

- A descrita conduta do recorrente devia integrar-se como constituindo um crime continuado.

- A pena cominada ao mesmo o foi em quantum excessivo.

- O requerimento de dedução do PIC se mostra inepto (objecto do recurso final).

Vejamos de todas elas, salvo, naturalmente, eventual prejudicialidade de alguma das questões relativamente às subsequentes.

3.2. O arguido, aberta a audiência de julgamento, antecedendo a sua tomada de declarações, e, alegou, por forma a acautelar o direito ao silêncio que lhe assiste nessa posição processual, apresentou um requerimento solicitando que o tribunal a quo desconsiderasse os escritos que como meio documental de prova haviam sido indicados na acusação pelo Ministério Público.

Fundamento o de estarmos perante correspondência por si enviada ao ofendido no âmbito de uma relação profissional cliente/advogado, donde que sujeita a normas deontológicas próprias, rectius de sigilo ou, apenas susceptíveis da sua quebra mas mediante prévia autorização do Presidente do Conselho Distrital nos termos do art.º 87.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, circunstância que de todo não se verificou, e, logo, traduzindo-se em método proibido de prova, nulo ex vi do art.º 126.º, do Código de Processo Penal.

Exercitado o contraditório, a M.ma Juiz recorrida denegou a pretensão.

Donde o primeiro recurso interlocutório interposto, cuja dilucidação reclama, intui-se, uma breve resenha acerca da obrigação de segredo profissional dos advogados decorrente do respectivo Estatuto.

O advogado está obrigado, ética e juridicamente, a guardar segredo de todos os factos e documentos de que tome conhecimento, de forma directa ou indirecta, no exercício da sua actividade profissional. Esta obrigação é decorrência, não só da necessidade de tutela da relação de confiança que deve existir entre o cliente e o seu advogado (cfr. art.º 92.º, n.º 1, do EOA), como também do interesse público da função do advogado.

A enunciação, meramente exemplificativa, dos factos sujeitos a sigilo profissional, contida no n.º 1 do art.º 87.º do EOA, referencia, desde logo, os factos conhecidos exclusivamente por revelação do cliente ou revelados por ordem deste [al. a)], os comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante [al. d)], e aqueles de que lhe tenha sido dado conhecimento pela parte contrária do cliente ou seus representantes, durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio [al. e)], ou de que tenha tido conhecimento no âmbito de negociações malogradas em que tenha intervindo [al. f)]. Por seu turno, o n.º 3 do mesmo preceito alarga o sigilo aos “documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

Mas o segredo profissional não é um valor absoluto.

Na verdade, o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, quando tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes (n.º 4 do art.º 87.º).

Fora disso, o advogado deve escusar-se a depor como testemunha, quando a matéria da inquirição esteja a coberto do segredo profissional – tal como dispõem os art.ºs 135.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e os art.ºs 618.º, n.º 3 e 519.º, n.º 3, alínea c), estes no âmbito do Código de Processo Civil.

Aliás, os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo (n.º 5 do supra citado art.º 87.º).

Importa, porém, ter-se em conta que a extensão do segredo profissional está directamente relacionada com a existência efectiva de um segredo, o que vale dizer que se devem excluir do âmbito do segredo profissional factos notórios, factos de domínio público, factos revelados pelas partes, factos provados em juízo, documentos autênticos e autenticados.

Mas, vimos, os advogados podem revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital da Ordem dos Advogados.

O encimado art.º 135.º, dispõe, sob a epígrafe Segredo Profissional:

“1. Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3. O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência, do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4. Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.”

Por sua vez, o subsequente art.º 182.º, sob a epígrafe Segredo Profissional ou de funcionário e segredo de Estado, estatui, na parte que aqui interessa:

“1. As pessoas indicadas nos art.ºs 135.º e 137.º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou segredo de Estado.

2. Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 135.º e no n.º 2 do art.º 136.º”

º”.
Percebe-se o regime assim instituído, uma vez que, em termos gerais, o segredo profissional deverá ser entendido como a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício
[4]. Com efeito, o exercício de certas profissões exige, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que as pessoas que a elas tenham de recorrer revelem factos que interessam à sua esfera íntima (quer física, quer jurídica).

Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, consequentemente, reveste-se de um elevado interesse público. Nessa medida, a violação da obrigação a que ficam adstritos certos profissionais de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua actividade é punível não só disciplinarmente mas também criminalmente.

Por isso que a violação do segredo profissional assume interesse e ordem pública – impõe-se ao tribunal, não se limitando às relações advogado/cliente.

No incidente para quebra do respectivo dever de sigilo, o tribunal superior àquele em que se pretende inquirir um advogado deverá intervir em termos de ponderação de direitos. A doutrina criminal possui um largo discorrer sobre a matéria, designadamente no que toca ao interesse da boa administração da justiça versus a manutenção do sigilo. Lembra-se apenas Costa Andrade[5] que, a propósito dos casos de conflito entre o dever de sigilo e os valores ou interesses pertinentes à administração da justiça (maxime penal), relembrou devermos orientar-nos por alguns princípios essenciais, de que se destacam com interesse: «1.º - A revelação de um segredo é lícita quando for necessária para evitar a condenação penal de um inocente; 2.º - Os valores ou interesses encabeçados pelo processo penal (identificação e perseguição dos criminosos e repressão dos crimes passados), a saber a eficácia da justiça penal, não justificam, só por si, a revelação do segredo; 3.º - O conflito entre o dever de colaboração com a justiça e o dever de sigilo deve solucionar-se nos termos gerais da ponderação de interesses».

Mas urge não olvidar que o advogado pode ficar desvinculado da obrigação do segredo profissional e divulgar os factos que ao abrigo desse dever lhe foram confiados, mas para que tal aconteça, com quebra do sigilo profissional, terá de ser expressamente autorizado a fazê-lo pelo Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, ou pelo seu Bastonário, em caso de recurso da decisão daquele.

Em síntese, pode então afirmar-se que o segredo ou dever de sigilo profissional em causa pode caracterizar-se como relativamente disponível, nas condições a que alude o disposto no art.º 87.º, n.º 4, citado, mediante avaliação prévia da Ordem dos Advogados.

Ponto essencial é, todavia, o de que estejamos, de facto, perante uma situação de sujeição ao segredo ou sigilo profissional.

Assim, v.g., a existência de uma mera relação profissional não é suficiente para que se possa falar, desde logo, de dever de sigilo. Só os factos nucleares da relação estabelecida entre o agente e o cliente estão sujeitos a sigilo e não já os factos paralelos. Com efeito, se um advogado for consultado por um cidadão, que no decurso da consulta lhe transmite factos pessoais necessários ao esclarecimento jurídico que pretende e se, no final, para pagamento do serviço em causa, esse cliente emite um cheque de terceiro falsificando para esse efeito a respectiva assinatura, o dever de segredo profissional que impende sobre o advogado, apenas abrange os factos que lhe foram transmitidos na consulta e não já os que consubstanciam a prática de eventual crime de falsificação ou burla cometidos pelo cliente ao emitir o cheque em causa.
Anotou-se já em aresto dos nossos tribunais, que a relação constituída com o mandato forense apenas impõe dever de segredo sobre os factos inerentes ao exercício concreto do mandato, não criando um salvo-conduto para invocação de segredo por factos exteriores a essa relação, nomeadamente daqueles que integrem a prática de um crime. A relação profissional ou de proximidade que se constitui entre duas pessoas, e que justifica, em certos casos, a existência do dever de sigilo, tem um fim e um âmbito específicos, não podendo aquele dever ser alargado a factos nos quais se desempenhe um mero papel secundário, estranho àquela relação. Se, no exemplo, o sujeito que estaria obrigado ao segredo foi testemunha de um crime totalmente estranho à relação constituída, não restarão dúvidas de que não fará sentido invocar tal segredo.
Com efeito, o segredo profissional é um direito e um dever do Advogado.

Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o advogado possa, sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses em litígio.

Isto é, em linguagem mais chã, “só há segredo do que é segredo”, ou seja, do que só chegou ao conhecimento do advogado por confidência do seu cliente ou por ordem deste, ou chegou ao seu conhecimento apenas porque se confiou numa condição profissional que o impedia de revelar o que assim conhecia, ou que só conheceu porque a contraparte, depositando confiança na obrigação de segredo, lhe admitiu adiantar como forma de caminhar para uma solução amigável de determinado litígio. Todo o resto, ou seja, tudo aquilo a que ele teve acesso por outra via, ou a que qualquer pessoa podia ter acesso, é algo que lhe não foi comunicado em segredo e a que, por isso, não deve segredo.

Nesta perspectiva se compreende que alheia ao dever de sigilo esteja, conforme aludido art.º 87.º, n.º 4, a divulgação dos factos que seja absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado.

In casu, não vem precisado sequer se à data dos factos arguido e ofendido haviam outorgado um contrato de mandato; surpreende-se apenas que ele existiu anteriormente e que foi por causa do desempenho então desenvolvido nesse âmbito pelo segundo que o primeiro lhe dirigiu os escritos da acusação e do PIC.

Sucede, contudo, que os factos objecto dos autos, consubstanciam a eventual prática de ilícitos criminais visando o ofendido/advogado, e, portanto, alheios a qualquer vínculo contratual estabelecido nessa qualidade com o arguido.

Sufragar o alegado pelo recorrente redundaria em que o advogado injuriado e ameaçado por um cliente, não pudesse reagir por ter existido um mandato.

Isto é, a posição assumida no tribunal a quo deve manter-se, pois a de acordo com os normativos convocáveis.

3.3. Subsequente pomo de discórdia do arguido o que incide sobre o despacho que denegou deferimento a um outro requerimento seu apresentado também no decurso da audiência de julgamento, e por cujo intermédio opunha o impedimento do ofendido (uma vez que constituído parte civil) a prestar declarações.

Mostra-se patente o equívoco em que labora o recorrente.

Com efeito, são distintos os termos pelos quais o pedido de indemnização deve ser apreciado, consoante seja deduzido em processo civil ou em processo penal.

Além, norteado sobremaneira pelo princípio nuclear da disponibilidade das partes, alicerçado nas correspectivas normas adjectivas.

No segundo, regulado pelos termos definidos na atinente lei, visando essencialmente a busca da verdade material[6].  

Pelo que, regulando-se o pedido de indemnização por perdas e danos, processualmente, pela lei do processo penal, não há fundamento para se fazer apelo às regras constantes do pedido de indemnização apresentado em processo civil, ou eventual colisão entre as normas que disciplinam cada um desses domínios.

Concretizando, ao que ora releva, os termos em que há de fazer-se aqui a formulação do pedido, consigna o artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que o mesmo pode ser deduzido pelo lesado, que deverá logo indicar as provas (subsequente art.º 79.º, n.º 1), sem destrinça do requerimento de produção das constituendas, quanto da admissão das pré-constituídas, sucedendo que a falta de contestação do demandado não implica a confissão dos factos (art.º 78.º, n.º 3).

Do elenco destas normas respeitantes à tramitação do pedido de indemnização apresentado em processo penal, em ponto algum se vislumbra a inadmissibilidade de ser prestado depoimento de parte.

As normas relevantes ao caso presente resumem-se: ao artigo 348.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a impôr que o juiz que preside ao julgamento pergunte a testemunha (que o lesado era também enquanto indicada pelo Ministério Público) pela sua identificação, pelas suas relações pessoais, familiares e profissionais com os participantes e pelo seu interesse na causa, de tudo se fazendo menção na acta; ao antecedente artigo 347.º, epigrafado Declarações das partes civis (que o lesado igualmente era) cujo estatui: “1. Ao… lesado podem ser tomadas declarações, mediante perguntas formuladas por qualquer dos juízes ou dos jurados ou pelo presidente, a solicitação do Ministério Público, do defensor ou dos advogados do assistente ou das partes civis. 2. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 145.º e no n.º 3 do artigo 345.º.”, e, por fim, ao artigo 133.º, n.º 1, alínea c), quando determina estarem impedidos de depor como testemunhas as partes civis.

Do regime vertido nos artigos indicados, sobressai a identidade entre o concebível para a produção da prova testemunhal e o atinente ao da produção da prova por declarações pelas partes civis, ressalvadas diminutas discrepâncias, nomeadamente a de a segunda não ser precedida de juramento, o que bem se compreende num processo que almeja conciliar, com equidade, a igualdade de armas entre arguido e vítima.

Não sendo caso de apelo ao regime constante do processo civil, uma vez que o decorrente do processo penal tem norma própria prevenindo da admissibilidade, valor e termos em que podem ser prestadas as declarações por parte que haja deduzido PIC, fácilmente se conclui então do infundado também desta pretensão do recorrente.

3.4. O recurso interposto da decisão final, desdobra-se parte em impugnação da matéria de facto e parte em impugnação da matéria de direito.

Na primeira das aludidas vertentes, o arguido questiona da matéria de facto constante dos pontos I a III, V a XIII e XVI, alíneas B) e C) da decisão recorrida (conclusões 1.ª a 8.ª), porquanto, sustenta, o tribunal a quo deu tais factos provados, mormente os relativos ao dolo, por presunção, quando não o deveria ter feito, e cindiu erradamente a confissão assumida numa parte credível e numa parte não crível, desconsiderando por completo as suas declarações acessórias a tal confissão de autoria, mormente as que procuravam lançar mão do art.º 180.º, n.º 2, do Código Penal, o que tudo integra um erro de julgamento, e bem assim uma contradição entre fundamentação e decisão.

Como é consabido, o tribunal tem de decidir, após apreciação da prova, nos termos do disposto no art.º 127.º, do Código de Processo Penal, e, em caso de dúvida, decide em benefício do arguido.

A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres, documentos) conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.

A prova é valorada, tal qual é produzida em audiência.

O princípio da livre apreciação da prova, contido no mencionado art.º 127.º, impõe que a prova seja valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Tal princípio mostra-se intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art.º 374.º, n.º 2, do diploma adjectivo em causa.

Por isso que a prova por declarações, qualquer que ela seja, não dispensa um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções baseadas na correcção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.

Donde igualmente que a atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. Sucedendo, v.g., que o juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários[7].

In casu, a M.ma julgadora explana na motivação da sentença recorrida as razões que determinaram acolhesse a convicção de haver sido o arguido o autor de determinados escritos juntos aos autos (fls. 5, 7, 38 e 39) que, depois, fez chegar ao ofendido seu destinatário. Todavia, e ao invés do que reclama o recorrente, já não deu por provadas as pretensas “justificações” que o mesmo teria para tal autoria e remessa que, alegadamente, deles próprios resultariam. Sucede, com efeito, não resultar daquela confissão a aceitação do demais conteúdo dos escritos. Caso contrário, fácil seria comprovar então a emergência de uma qualquer das causas de justificação previstas pelo invocado art.º 180.º, n.º 2, do Código Penal: confessava-se a autoria do escrito e logo estaria feita a prova da verdade das imputações nele contidas! Tudo arredio à pretensa vinculação ao regime do coligido art.º 380.º, do Código Civil.

E, também não colhe a argumentação do recorrente no sentido em que o tribunal a quo teria acolhido a prova dos elementos subjectivos das infracções em questão por mera presunção.

Responde igualmente a decisão recorrida quando na motivação respectiva escreveu que Quanto aos factos relatados em XI a XIII, a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93, in B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.

Nada a opor ao assim exarado e nenhuma contradição entre a fundamentação e a decisão. Vale por dizer, da manutenção do acervo fáctico acolhido na 1.ª instância.

3.4. Entrando-se no domínio de dissídio de direito, primeira questão oposta à sentença final pelo arguido, a de que a materialidade comprovada devia antes subsumir-se à categoria dogmática do crime continuado, atenta a sua homogeneidade; serem os meios utilizados os mesmos; também o móbil; serem as expressões idênticas; o quadro exterior consistir no seu desagrado relativamente aos serviços prestados pelo ofendido, e, finalmente, haver-se prolongado no tempo (conclusão 9.ª).

Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.

É o que consta do n.º 2 do art.º 30.º do Código Penal.

Com efeito, sucede, por vezes, que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico –, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.

Ora, o fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente.

O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

São, assim, estes, os pressupostos do crime continuado:

- Realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);

- Homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);

- Unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada;

- Lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);

- Persistência de uma «situação exterior» que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.

A doutrina indica algumas das situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa:

- Ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos;

- Voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;

- Perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa;

- A circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidades de alargar o âmbito da sua actividade.

Nos termos do n.º 1 do art.º 79.º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime continuado é punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação.

Impõe-se ainda atender a duas decorrências dos requisitos que se enunciaram.

Tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art.º 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido. Foi este entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o n.º 3 aditado ao art.º 30.º do Código Penal pela mencionada Lei n.º 59/2007, quis integrar ao dispor: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentes pessoais.”

Pode dizer-se que seria então desnecessário tal aditamento, com o que se concorda. Mas o mesmo não permite a interpretação perversa que já foi apresentada de que daí resultaria a imperatividade do crime continuado quando nos vários crimes fosse sempre a mesma vítima. É que, como se viu, a matriz do crime continuado reside na diminuição considerável da culpa, por razões exógenas e só respeitada essa matriz é que se pode afirmar a ocorrência de crime continuado[8].

A outra decorrência é a de que, para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores, é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.

Face a estes elementos não se mostra adequada, ao invés do que propugna o recorrente, a integração das condutas por si cometidas num só crime continuado.

Com efeito, já se viu que só há crime continuado quando se verifica uma diminuição considerável da culpa do agente que deriva dum condicionalismo exterior que propicia a repetição das várias acções criminosas, mediante um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade.

O fundamento da diminuição da culpa encontra-se assim no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente e o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição.

Tudo conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se comporte de maneira diversa.

Sem diminuição de culpa e sem o correspondente circunstancialismo externo ao agente não se verifica crime continuado.

Da matéria de facto que se transcreveu não só não está directamente provada como nem resulta configurada uma situação exterior ao agente que o impeliria à repetição das condutas criminosas, nem a mencionada diminuição de culpa.

Antes resulta uma agravação dessa culpa, face à repetição das condutas pensadas ab initio.

A circunstância de se verificar a repetição do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. «a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa». Na verdade, ante a matéria de facto apurada o que se pode afirmar é que o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal.

Considerações que conduzem ao afastamento de um outro requisito da figura do crime continuado: protelamento no tempo das diversas decisões de cometimento de crimes.

Ou seja, o arguido não decidiu cometer novos crimes por dispor do esquema prático de execução que criara, antes o que resulta é que o engendrou para poder cometer a multiplicidade de crimes que intentou.

O que só por si, afastaria a unificação da sua conduta num crime continuado.

É de concluir no caso, como já o fez o Supremo Tribunal, embora para ilícito distinto, mas com argumentação perfeitamente extensível ao caso vertente, pela considerada existência de concurso real de crimes quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem e arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa.

Assim, designadamente, os respectivos acórdãos datados de 29 de Novembro de 2001 e de 9 de Junho de 2005 (procs. n.ºs 3116/01-5 e 1302/05-5, respectivamente), com o seguinte sumário:

«1. Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. Por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima. É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.

2. Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa “economia de esforço”, limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta.

(…)

4. Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente, cuja génese se encontra na disposição exterior das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente.

5. Se o arguido concebe um esquema de burlar várias pessoas que depois concretiza em múltiplas ocasiões, não se configura uma situação exterior ao agente que o impeliu à repetição das condutas criminosas nem a mencionada diminuição de culpa, antes resulta uma agravação dessa culpa, face à repetição das condutas pensadas e decididas ab initio.

6. É que não foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, mas o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal.»

Reafirma-se, assim, não poderem ser unificadas as condutas do arguido num crime continuado de injúrias e num outro idêntico crime continuado de ameaças, punível pelo mais grave deles, por se não descortinar a exigível diminuição do grau de culpa nas condutas que os consubstanciam.

3.5. Segunda questão de direito colocada pelo recorrente no domínio do recurso interposto da decisão final, a que contende com o quantum de pena aplicado, que reputa de excessivo, isto porque o tribunal a quo valorou, indevidamente, na determinação dessa medida, antecedentes criminais que como tal não podiam ser considerados (conclusões 10.ª a 12.ª).

Com efeito, argumenta, escreveu-se na sentença recorrida que “…O arguido tem antecedentes criminais, sendo que já tem condenações por crimes de difamação, ameaças e injúrias. Já antes dos factos havia violado o bem jurídico honra e consideração. Posteriormente aos factos foi condenado pela prática de um crime de dois crimes de ameaças.

Ponderando tudo quanto se acaba de referir, e atenta a moldura…”.

Ora, sucede, aduz, que não podia o tribunal valorar para a determinação da medida concreta da pena tais as condenações do recorrente uma vez que, à data da prática dos factos destes autos, não haviam ainda sido objecto de trânsito em julgado. Com efeito, precisa, deu-se como provado, além do mais, que o arguido fora condenado por decisão de 21 de Agosto de 2008 e transitada em 2 de Março de 2009, pela prática de vários crimes, entre os quais de injúria. Deu-se igualmente como provado que por sentença de 28 de Outubro de 2009, transitada a 30 de Novembro de 2009, fora condenado por ameaça agravada, por dois crimes de injúrias e por um crime de ameaça. Por sua vez, os factos em apreço nestes autos respeitam ao período compreendido entre Novembro de 2008 e Março de 2009, prolongando-se depois outra conduta entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010. Ou seja, à data da prática dos factos destes autos (pelo menos aos ocorridos até Março e, por outro lado, até Novembro de 2009) ainda não existia formalmente tal condenação e logo tais “antecedentes”.

A argumentação do recorrente é meramente formal, pois que o juízo de advertência contido nas condenações de que foi alvo era já facto que ele não devia ter menosprezado, pese embora à data da prática de alguns dos ilícitos efectivamente ainda não estivesse transitada a sentença que o condenara, provisoriamente, digamos.

As condenações sofridas nos hiatos temporais que indica eram circunstância que o deviam ter impelido a pautar-se por conduta distinta daquela que assumiu.

Em todo o caso, lembremos que por factos praticados em 2006, já ela estava condenado por sentença proferida em Julho de 2007, ou seja, bem antes do início da conduta delitiva aqui em causa; por outro lado, a factualidade ocorrida entre Abril de 2009 e Fevereiro de 2010, tinha já condenação transitado de 2 de Março de 2009 (por factos de 2004), sempre com respeito a injúrias, ameaça ou coacção, isto é, ilícitos de natureza similar ou congénere à ora em causa.

Adequada então a menção feita na decisão recorrida, que nenhuma censura merece por isso.

3.6. Última questão decidenda a que respeita à da invocada ineptidão do pedido de indemnização.

Vai aqui a irresignação do recorrente contra o excerto da decisão final que como “questão prévia “ – ut fls. 231[9] – denegou a excepção que opusera ao PIC, isto porquanto (conclusões 15.ª a 17.ª), fundamenta, o arguido não sabe, nem tem maneira de saber (porque tal não vem alegado, discriminado ou sequer concretizado), se foi absolvido da parte cível em mais ou menos do que aquilo que era intuito do ofendido pedir por aquele determinado crime.

Mais uma vez, o entendimento sufragado no tribunal a quo se mostra conforme aos cânones aplicáveis. Na verdade, o demandante não estava vinculado a descriminar concretamente a cada um dos ilícitos cuja autoria assacava ao demandado, o correspectivo valor indemnizatório que entendia dever ser o arbitrado. Na configuração que fez da lide, precisou os concretos factos que consubstanciavam a causa petendi, simultâneamente reclamando o valor indemnizatório que achava dever ser o devido, por tal forma delimitando o montante para ale do qual o responsável não podia ser condenado. Nada mais se lhe impunha. Ocorrendo a hipótese de apenas parte da factualidade ser dada como provada, tarefa cometida ao tribunal a de determinar se acaso se mostravam preenchidos os pressupostos conducentes ao emergir da obrigação de indemnizar do demandado, o que era o caso, e, após, dentro do limite definido pelo pedido formular arbitrar a indemnização que fosse tida como a adequada.

Donde que nada a censurar no que concerne, igualmente.


*

IV – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos, se nega provimento aos dois recursos interlocutórios, bem como ao recurso da sentença final, todos interpostos pelo arguido/demandado.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um dos primeiros em 3 UCs, e pelo interposto da sentença final em 5 UCs.

Notifique.


*

Coimbra, 21 de Setembro de 2011


SEGREDO PROFISSIONAL DE ADVOGADO

CRIME CONTINUADO

REQUISITOS

Artºs 87º nº 4 EOA, 135º nº 1, 182º CPP E 30º Nº 2 CP

[1] (…) vem a acusação respaldar a inúmera correspondência alegadamente enviada pelo arguido ao ofendido no âmbito de uma relação profissional cliente/advogado sujeita a normas deontológicas próprias. Ora, tais escritos, levam à prova dos factos ilícitos, de que o arguido vem acusado, considerações de ordem pessoal que se encontram vinculadas ao segredo profissional, que é pedra de toque dessa relação. O arguido a querer defender-se de tais expressões de que vem acusado, teria de pôr a descoberto factos próprios e pessoais que transmitiu confidencialmente ao ofendido, que não se coibiu de expô-las publicamente sem prévia autorização do Presidente do Conselho Distrital nos termos do art.º 87.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados. Tal facto, subverte assim, a confiança que está implícita na relação advogado/cliente. Trata-se, obviamente, de expressões injuriosas e ameaçadoras e tem o ofendido direito a insurgir-se contra estas.

Todavia, decorrendo do Estatuto da Ordem dos Advogados, existia aqui um conjunto de interesses confluentes sendo de impor ao ofendido, que ponha o interesse do cliente acima do seu próprio.

Tais factos, e provam os presentes autos, não podem pois, fazer prova em juízo, por se tratar de prova dele constante pelo que considera tal questão prejudicial à sua tomada de declarações, questão essa, que decidida mais tarde, punha em causa o direito ao silêncio por parte do arguido.

Requer-se assim, que tal prova seja considerada proibida com todas as consequências legais.

[2] A defesa requer que fique consignado em acta que o ofendido prestou declarações respeitantes ao PIC que formulou, e nessa qualidade – de parte civil – estava impedido de o fazer nos termos do art.º 133.º, n.º 1, al. c) do CPP bem como as normas relativas ao depoimento de parte aplicada subsidiariamente ao presente caso, irregularidade que assim se argúi expressamente.

[3] Cujo é do teor que segue:

Ineptidão do Pedido de indemnização civil

Veio o arguido invocar a ineptidão do pedido cível apresentado e consequente nulidade do mesmo, invocando, para tanto e em síntese, que:

O demandante não discriminou o montante indemnizatório pedido por cada tipo de crime em análise nos presentes autos, tornando-se a causa de pedir quanto a tal montante indemnizatório ininteligível, ao abrigo do art.º 193.º, n.º 2, al. b);

Notificado para vir exercer o contraditório, o demandante respondeu nos termos de fls. 163 e 164.

Cumpre apreciar.

Nos termos do art.º 193.º do C.P.C, n.ºs 1 e 2, als. a) e b). “1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2. Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;”.

A causa de pedir constitui o facto jurídico de que procede a pretensão do autor, ou seja, os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção.

Cabe assim ao Autor o ónus de invocar, na petição inicial, os factos integradores da causa de pedir, pelo que faltando estes a causa de pedir é ininteligível, o que acarreta a nulidade da petição inicial, nos termos do preceituado no art.º 193.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil.

Da análise do pedido cível apresentado pela demandante, pode constatar-se resultarem os factos em que se baseia a causa de pedir respeitante ao mesmo, tanto através da alusão a factos concretos, como remetendo para os constantes da acusação particular e acusação pública.

Desta forma, não se poderá dizer que seja ininteligível a causa de pedir.

Por outro lado, não será por não se fazer uma discriminação do montante indemnizatório pretendido por cada crime que será ininteligível o pedido, até porque os critérios a atender para a determinação do montante indemnizatório têm natureza substantiva, apenas interessando que constem do requerimento os factos em que se alicerça o pedido, o dano, bem como o nexo de causalidade entre o facto e o dano, e cabendo, depois, ao Tribunal, fazer a análise do quantum indemnizatório a atribuir.

Finalmente, do pedido cível apresentado, constam verdadeiros factos e não apenas meras conclusões, como se pode verificar por uma análise do mesmo, não cabendo proferir despacho de aperfeiçoamento, tanto é que o arguido se veio defender de alguns desses factos (art.º 193.º, n.º 3 do C.P.C.).

Assim, não se verifica qualquer circunstância das previstas no art.º 193.º do C.P.C., pelo que caberá considerar improcedente a excepção invocada pelo arguido.

Notifique.

[4] Assim também o Parecer n.º 56/94 do Conselho Consultivo da Procuradoria segundo o qual “o segredo profissional é a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional”.
[5] In Comentário Conimbricense do Código Penal, edição 1999, págs. 798 e 799.
[6] Escreveu-se, a propósito, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Janeiro de 1995, publicado na CJ (Acs STJ, III, tomo I, pág. 181):
“I. A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos; porém, processualmente, é regulada pela lei processual penal.” 
[7] Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Volume I, pág. 207.

[8] Com interesse sobre esta concreta argumentação, vd. o Ac. do STJ, de 1 de Outubro de 2008, in processo n.º 08P2872, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Armindo Monteiro, acessível em www.dgsi.pt, no qual se exarou: “Como regra o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal (concurso real) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal) – art.º 30.º n.º 1, do CP –, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa, ou seja, tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica é posta em crise, ou seja pelo número de vezes que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente.

No ensinamento, pleno de actualidade, do Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções – Caso julgado e Poderes de Cognição do Juíz, a págs. 118, “o direito penal não valora negativamente certas condutas apenas por valorar, valora-as para, emprestando-lhes a força desta sua valoração, alcançar no processo de motivação dos indivíduos um papel decisivo; valora-as para determinar.

A pluralidade de infracções não abdica, pois, de uma actividade material do agente, de modificação do mundo exterior, a que corresponde uma afirmação plúrima da volição ou vontade criminosa.

O crime, na definição de Amelung, citado por Karl Prelhaz Natcheradetez, in o Direito Penal Sexual, Ed Almedina, 1985, 116, constitui, apenas, um caso especial de fenómenos disfuncionais, geralmente o mais perigoso. O crime é disfuncional enquanto contradiz uma norma institucionalizada (deviance), necessária para a sobrevivência da sociedade.

Os desvios à regra da determinação legal da pluralidade de infracções estão representados pelo concurso aparente de normas e crime continuado, este já com afloramentos na Idade Média mas só como processo pragmático de obstar a que o autor do furto em série permanecesse longo tempo privado de liberdade, estando previsto no art.º 30.º n.º 2, do CP, e, pela sua descrição se vê que o legislador como que, por ficção, ditada por razões de economia, de política criminal e de justiça material, reconduz a pluralidade de infracções à unidade criminosa, a um único delito.

São assim nos termos legais pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa – n.º 2, do art.º 30.º, do CP.

Ao art.º 30.º, foi, pela recente reforma ao CP, introduzida pela Lei n.º 59/07, de 4/9, introduzido o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2, não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa.

Esta alteração, correspondente ao n.º 2, do art.º 33.º no Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções, foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão, em 8.2.64, no sentido de que só, com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.

Essa discussão não mereceu conversão na lei por se entender que o legislador reputou tal necessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado ao preceito citado.

Diferente não é o pensamento de Jescheck para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado por tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa são distintos com relação a cada acto individual sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos – cfr. Tratado de Derecho Penal, I, Parte Generale, I, ed. Bosh, pág. 652 e segs e Acs. deste STJ, de 10.9.2007, in CJ, STJ, Ano XV, TIII, 193 e de 19.4.2006, in CJ, STJ, Ano XIV, TII, 169.

IV. A alteração introduzida, à parte a evitável polémica interpretativa que trouxe (cfr. a Circular Interna da PGR n.º 2 /2008-DE, de 9.8.2008, citada pelo Exm.º Magistrado do M.º P.º em 1.ª instância, tendo presente a errada divulgação da notícia pelos mais díspares meios de comunicação social de que a norma do n.º 3 viria permitir uma punição leve dos abusadores sexuais, fez questão de significar que “as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado de décadas”, que já se deixou expresso), é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia a nível deste STJ, ou seja de que quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometido num quadro, em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, sem prescindir-se, como, aliás aquela Circular fez questão de sublinhar, da indagação casuística requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não registarem.

Sobre esta hipótese o legislador manteve um eloquente silêncio, de forma alguma afirmando automaticamente, sem mais, o crime continuado, excluindo-o fora daquele favorecente circunstancialismo.

Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzisse ao crime continuado, afastando-se um concurso real (Cfr. Ac. do STJ, de 8.11.2007, P.º n.º 3296/07 - 5.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.), só significa que este deve firmar se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.

Interpretação em contrário seria, até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art.º 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais em ofensa ao disposto no art.º 18.º, da CRP.

Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado recentemente levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que lhe atalhar o pensamento.

V. São circunstâncias exteriores, retratadas in Unidade e Pluralidade de Infracções, autor cit., págs. 246 a 250, que apontam para aquela redução de culpa:

Desde logo a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos., veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido;

A circunstância de voltar a registar-se outra oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele;

A perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa;

O facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.”
 

[9] Ineptidão do Pedido de indemnização civil

Veio o arguido invocar a ineptidão do pedido cível apresentado e consequente nulidade do mesmo, invocando, para tanto e em síntese, que:

O demandante não discriminou o montante indemnizatório pedido por cada tipo de crime em análise nos presentes autos, tornando-se a causa de pedir quanto a tal montante indemnizatório ininteligível, ao abrigo do art.º 193.º, n.º 2, al. b);

Notificado para vir exercer o contraditório, o demandante respondeu nos termos de fls. 163 e 164.

Cumpre apreciar.

Nos termos do art.º 193.º do C.P.C, nºs 1 e 2, als. a) e b). “ 1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2 - Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;”.

A causa de pedir constitui o facto jurídico de que procede a pretensão do autor, ou seja, os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção.

Cabe assim ao Autor o ónus de invocar, na petição inicial, os factos integradores da causa de pedir, pelo que faltando estes a causa de pedir é ininteligível, o que acarreta a nulidade da petição inicial, nos termos do preceituado no art.º 193º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil.

Da análise do pedido cível apresentado pela demandante, pode constatar-se resultarem os factos em que se baseia a causa de pedir respeitante ao mesmo, tanto através da alusão a factos concretos, como remetendo para os constantes da acusação particular e acusação pública.

Desta forma, não se poderá dizer que seja ininteligível a causa de pedir.

Por outro lado, não será por não se fazer uma discriminação do montante indemnizatório pretendido por cada crime que será ininteligível o pedido, até porque os critérios a atender para a determinação do montante indemnizatório têm natureza substantiva, apenas interessando que constem do requerimento os factos em que se alicerça o pedido, o dano, bem como o nexo de causalidade entre o facto e o dano, e cabendo, depois, ao Tribunal, fazer a análise do quantum indemnizatório a atribuir.

Finalmente, do pedido cível apresentado, constam verdadeiros factos e não apenas meras conclusões, como se pode verificar por uma análise do mesmo, não cabendo proferir despacho de aperfeiçoamento, tanto é que o arguido se veio defender de alguns desses factos (art.º 193.º, n.º 3 do C.P.C.).

Assim, não se verifica qualquer circunstância das previstas no art.º 193.º do C.P.C., pelo que caberá considerar improcedente a excepção invocada pelo arguido.

Notifique.