Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
741/16.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOAS SINGULARES
PLANO DE INSOLVÊNCIA
EMPRESA
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.249, 250 CIRE
Sumário: 1. As pessoas singulares declaradas insolventes, que não sejam empresários ou titulares de qualquer empresa, estão impedidas pelo artigo 250º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas de apresentar plano de insolvência.

2. A qualidade de sócio, gerente ou administrador de uma sociedade comercial não equivale à titularidade de qualquer empresa.

Decisão Texto Integral:            

           

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

D (…) deu início a um processo especial de revitalização, o qual veio a ser concluído com a recusa de homologação do plano.

De seguida, aquele foi declarado insolvente.

Na assembleia de credores, para apreciação do relatório do Sr. Administrador da Insolvência, o insolvente pediu prazo para a apresentação de um “plano de insolvência”.

Apesar da maioria dos credores ter consentido naquele pedido, o tribunal rejeitou-o, referindo que a lei exclui ao requerente a possibilidade de apresentação de um plano de insolvência.


*

            Inconformado, o insolvente recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

Da não aplicação da proibição prevista no art.250º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE).

1. No seguimento da Assembleia de credores realizada no dia 25 de Maio de 2016, veio o devedor demonstrar interesse em apresentar um plano de insolvência nos termos do art 249º a contrario, proposta esta que contou com a aprovação da maioria estrondosa de credores.

2. Porém veio o Tribunal indeferir a mesma, fundamentando tal recusa no art. 250 do CIRE e na alínea a) do nº 1 do artigo 249.º do aludido diploma legal.

3. Salvo douto melhor entendimento, faz o Tribunal a quo uma interpretação errada dos dispositivos legais que avoca (art. 249º e 250º) , pois são esses mesmo dispositivos que -no nosso entender- legitimam, precisamente, a apresentação de um plano de insolvência por parte do Recorrente.

4. Ora, é de facto verdade que a insolvência de não empresários e de titulares de pequenas empresas encontra a sua regulação específica no capítulo II do CIRE.

5. Porém, o referido capitulo (incluindo, naturalmente, o disposto no art. 250º que prevê a proibição de apresentação de plano de insolvência) só é aplicável aos devedores que se subsumem em qualquer das alíneas do nº 1 do art 249º. (Pois são condições de verificação alternativa)

6. Podendo-se assim, concluir, que nos termos do art 249º, a contrário das alternativas em causa (se o devedor tiver sido titular de empresa nos último 3 anos ( al. a)), ou à data do início do processo tiver um passivo superior a 300.000 euros (al. b)), por exemplo, já pode apresentar um plano de insolvência, pois já não está a coberto da proibição constante do art 250º!

7. Assim, e como o devedor detinha à data do início do processo um passivo superior a 300.000 euros (estando fora das al. a) ou b) do art 249º, não se pode aplicar a proibição prevista no 250º do CRE

8. Pelo que, pode o insolvente, no presente caso, apresentar um plano de insolvência e sem que tal implique a confissão da mesma, porque o fez sempre à cautela e uma vez que nenhum recurso pendente (quer da decisão de não homologação, quer da decisão de insolvência) tem efeito suspensivo.

Da aplicação por analogia do regime aplicável a comerciantes, sob pena de violação do princípio da igualdade.

9. Sem prescindir, sempre somos da opinião que no presente caso a alínea a) do 249º do CIRE a contrário também seria de aplicar, pois entendemos que o insolvente deve ser considerado, por analogia e sob pena de violação do PP da Igualdade (art.13º da CRP), titular de exploração de qualquer empresa, para efeito de apresentação de plano de insolvência -E considerando-se, estava excluído da al.a) do 249º e por isso já não se lhe poderia aplicar a limitação do art. 250.

10. Mas ainda que se admita tal interpretação restritiva, o recorrente deve ser tratado para efeitos de apresentação a um plano de insolvência a um empresário- Porque efectivamente sempre o foi! Nunca, tendo feito outra coisa, senão trabalhar nas sociedades que constituíu, vivendo delas e para elas. Encontrando-se aliás na situação

em que se encontra, precisamente no seguimento de ter assumido a condição de gerente das empresas mencionadas no relatório apresentado pelo Sr.Administrador.

11. De facto, como todos sabemos as empresas não são redomas fechadas, nem vivem só por si. Pois necessitam das pessoas que lhes dão corpo, manifestam a sua vontade, as obrigam e garantem perante terceiros. Mantendo-se através de quem nelas investe e de quem dá o seu património para garantir as dívidas contraídas pelas mesmas.

12. Ora, a execução dos avales prestados pelos titulares não pode ser visto, senão como um indício de que as empresas não podem ser olhadas como entidades independentes, com perímetros fixos e estáticos, onde se pode circunscrever um perímetro delimitado de afectação, porque efectivamente não o são! E os seus avalistas são o exemplo disso mesmo. Uma vez que aquando dos incumprimentos, os credores acionam não só a empresa, como, solidariamente, os seus garantes.

13. Em suma, outra conclusão não se pode retirar daqui, senão a de que as pessoas singulares que formalmente não sejam titulares de empresas, mas que toda a vida fizeram parte da sua administração/gerência, atravessando-se pelas mesmas, empenhando as suas casas e todos os seus bens, devem, de facto, e por uma questão de razoabilidade e igualdade, ser encarados como empresários para efeitos de apresentação a um plano de insolvência, não lhes podendo coarctar um direito que sempre tiveram uma expectativa de poder exercer, sobretudo no momento em que as dificuldades económicas vivenciadas pelas suas empresas, se começam a reflectir na esfera económica e pessoal dos mesmos.

Normas violadas: 249º e 250 do CIRE, art 13 º da CRP.


*

            Não foram apresentadas outras alegações.

*

            A questão a decidir é a de saber se o insolvente pode apresentar um “plano de insolvência”.

*

            Os factos a considerar são os supra relatados e também:

O insolvente é trabalhador por conta de outrem, com um vencimento mensal ilíquido de 1.950,00 €.

Desde o ano de 2010, ele exerceu em exclusivo a atividade de sócio e gerente de uma sociedade unipessoal por quotas designada de D (…), Lda; ele declara que constituiu outras empresas que se viu obrigado a encerrar no ano de 2013.

O seu património é constituído pelo prédio urbano descrito na 2.ª CRP de Leira pela ficha com o n.º (...) /19940325-V, avaliado na matriz no ano de 2014 com o valor patrimonial de 71.339,83 €.

O seu passivo ascende a 1.739.465,97 €.


*

No CIRE, o Título XII, relativo às “disposições específicas da insolvência de pessoas singulares”, inclui no seu capítulo II a “insolvência de não empresários e titulares de pequenas empresas”.

Nele, o artigo 250.º (inadmissibilidade de plano de insolvência e da administração pelo devedor), esclarece que aos processos de insolvência abrangidos pelo referido capítulo não são aplicáveis as disposições dos títulos IX e X.

Nele, o art.249º define o seu âmbito de aplicação.

Como assinalam C. Fernandes e J. Labareda (CIRE anotado, 2009, página 807), “os arts.249º e seguintes complementam o regime especial aplicável à insolvência das pessoas singulares, agora por referência às que não sejam empresários ou sejam simplesmente titulares de pequenas empresas, segundo a epígrafe do capítulo onde se integram esses preceitos”.

O insolvente não é um empresário e não é titular de empresa; ele exerceu a atividade de sócio e gerente de uma sociedade e declara que constituiu outras empresas que se viu obrigado a encerrar no ano de 2013.

O insolvente é atualmente um trabalhador por conta de outrem.

            O facto do mesmo ter sido sócio gerente de sociedade comercial não corresponde a dizer que era titular de qualquer empresa.

A sociedade é uma pessoa jurídica diversa dos respectivos sócios, gerentes e administradores.

A empresa (organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica – conforme o art. 5º do CIRE) é da titularidade da sociedade e não dos respectivos sócios, gerentes ou administradores.

Sendo assim, o recorrente não foi titular de qualquer empresa. (Neste sentido, acórdão desta Relação, de 13.10.2015, proc 996/15, em www.dgsi.pt.)

Sem que esteja completamente esclarecido como constituiu e desenvolveu o recorrente outras empresas (falta de clara alegação nesse sentido), ele encerrou-as já no ano de 2013.

Assim, apenas podemos assegurar que o devedor recorrente é  pessoa singular, não titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Consequentemente, o mesmo fica sujeito ao regime aplicável aos devedores não empresários, impossibilitado de apresentar um plano de insolvência.

Defende o recorrente, como devedor que detinha à data do início do processo um passivo superior a 300.000 euros,  que está fora do âmbito do art 249º e não está proibido de apresentar um plano de insolvência.

Não tem razão porque aquele requisito diz apenas respeito ao devedor titular de empresa (ob. cit. pág.808), em conformidade com a epígrafe da norma e com a alternativa do seu nº1.

Segundo a interpretação que temos por correta,

O devedor singular, não empresário e não titular de empresa, cujo passivo seja superior a € 300 000, é abrangido pelo regime em questão;

O devedor singular titular de empresa, cujo passivo seja superior a € 300 000, não é abrangido pelo regime em questão (para o efeito, já não é uma pequena empresa);

Sendo titular de empresa e preenchendo os requisitos da alínea b) (a pequena empresa), ele é abrangido pelo regime em questão.

Por outro lado, o recorrente defende ainda a aplicação por analogia do regime aplicável a comerciantes, sob pena de violação do princípio da igualdade.

Porém, a integração por analogia apenas é aceitável no caso da lei ser tida por lacunosa (art.10º do Código Civil).

A lei em análise, pelo contrário, prevê e trata de modo diferenciado as situações das pessoas singulares e pequenos empresários, por um lado, das empresas e “pessoas singulares titulares de grandes empresas”, por outro lado.

A diferenciação está fundada em circunstâncias objetivas também diferenciadas.

No caso das pessoas singulares titulares de “grandes empresas”, por causa disto mesmo, a lei estabelece uma equiparação  às empresas em geral e preveniu um “plano de insolvência”.

No caso das pessoas singulares e das titulares de “pequenas empresas”, por causa disto mesmo, a lei preveniu um “plano de pagamentos”, sendo ainda certo que este procura evitar o proseguimento do processo de insolvência (art.255º do CIRE).

Sem prejuízo do que já dissémos sobre a distinção entre pessoas singulares, titulares de empresas e sociedades, devemos ainda considerar que foi precisamente por ser o recorrente uma pessoa distinta e independente da sociedade que lhe foi permitido ser avalista das obrigações da mesma entidade. Como gerente e sócio não deixou de estar protegido pela autonomia da sociedade limitada. E foi como pessoa independente, com a sua própria situação patrimonial, que se apresentou como avalista. E nesta condição de pessoa singular, não titular de empresa, foi já declarado insolvente.

Por fim, devemos também notar que o insolvente não apresentou qualquer plano e apenas se propos fazê-lo.

Por tudo isto, a decisão recorrida não merece censura.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se aquela decisão.

            Custas pelo Recorrente.

            Coimbra, 2016-09-13

Fernando Monteiro ( Relator)

Carvalho Martins

Carlos Moreira