Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
92/14.5TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CLÁUSULA PENAL CONVENCIONAL
REDUÇÃO POR EXCESSO DO CLAUSULADO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 334º, 810º E 812º C.CIVIL.
Sumário: I. A solução consagrada no art.º 812.º do CC, enquanto “norma que encerra um princípio de alcance geral, destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações”, é aplicável a todas as espécies de penas convencionais, e não apenas às previstas no art.º 810.º.

II. Pese embora não possa ser afastada pela vontade das partes, tratando-se de uma norma de tutela do devedor não deve prescindir da sua invocação por aquele a quem aproveita.

III. Tal entendimento não constitui obstáculo a que a cláusula penal convencionada, à semelhança do que ocorre com qualquer outra, seja sujeita ao controle que é exercido, nos termos gerais, pelas regras que limitam a liberdade das partes, aqui se incluindo o abuso de direito, porquanto, a válvula de escape que o sistema consagrou para a específica situação que integra a previsão do art.º 812.º acresce às regras gerais de controlo da autonomia da vontade, não as substituindo.

IV. Exerce abusivamente o direito à pena fixada em cláusula penal de escopo essencialmente compulsório, por cujos termos a empreiteira incorria em pesada sanção diária caso não iniciasse a obra no prazo de 30 dias fixado no contrato - atraso na prestação que, nos termos contratualmente estabelecidos, constituía fundamento resolutivo -, o credor que só vem a emitir declaração resolutiva 20 meses depois da devedora se ter constituído em mora, para lá até do prazo convencionado para a entrega da obra, reclamando a título de penalidades mais de €900.000,00, a acrescer à quantia pré-fixada em cláusula penal de prévia liquidação do dano decorrente da resolução do contrato.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório

A... instaurou contra B..., Limitada, acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe:

“a) € 901.395,00, a título de multas pelo atraso no início da execução da obra.

b) € 100.000,00, a título de cláusula penal pelo incumprimento definitivo do contrato, em consequência da resolução do contrato por culpa imputável à ré.

c) juros de mora sobre as quantias referidas, à taxa legal, desde a data da exigibilidade de tais montantes até efectivo e integral pagamento”.

Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com a ré contrato de empreitada, nos termos do qual esta se obrigou a construir um prédio de rés-do-chão, 1.º e 2.º andar, sito em ...

Nos termos do acordo celebrado, a obra teria o seu início no dia 16 de Abril de 2012, tendo sido estipulado que a mora no cumprimento da obrigação de iniciar os trabalhos faria incorrer a ré numa multa diária no valor de €1.485,00, correspondente a 3% o do valor total da empreitada.

Ajustaram ainda as partes - cláusula 8.ª do contrato - uma penalidade no valor de €100.000,00 em caso de incumprimento definitivo do contrato por banda da ré, montante em cuja fixação foi tida em devida conta a situação difícil em que o autor ficaria colocado perante os seus clientes no caso do contrato não vir a ser cumprido.

Mais alegou que a ré nunca deu início aos trabalhos, apesar de para tal ter sido insistentemente interpelada, vindo o demandante a interpelá-la numa derradeira ocasião por carta datada de 9 de Agosto de 2013, para que desse início à obra no prazo de 30 dias, sob pena de resolução do contrato. Em reunião que teve lugar no dia 27 de Novembro de 2013 a ré comunicou à autora que não iria cumprir o contrato, por não ter capacidade para o efeito, reconhecendo-se ainda devedora das penalidades emergentes do acordo celebrado que, todavia, logo declarou que não iria pagar por não dispor de meios financeiros para tanto.

Na sequência do assim declarado, a autora resolveu o contrato por carta datada de 13/12/2013, interpelando ainda a ré para proceder ao pagamento dos montantes de €100.000,00 e €901.395,00 correspondentes às penalidades fixadas, quantias que reclamou no âmbito desta acção, acrescidas dos juros de mora contados desde a data da interpelação, tudo nos termos dos art.ºs 798.º e seguintes, 810.º e seguintes, e 559.º, todos do CC, disposições legais que expressamente invocou.

Regularmente citada, a ré não apresentou contestação.

Por despacho proferido nos autos, foram os factos articulados na petição inicial tidos por assentes.

Notificadas as partes nos termos e para os efeitos do art.º 567º, n.º 2 do CPC, pronunciou-se a autora no sentido de dever a ré ser condenada no pedido, após o que foi proferida douta sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a ré no pagamento do montante de 100.000,00 € (cem mil euros), a título de cláusula penal indemnizatória, acrescido de juros de mora, à taxa legal comercial, desde 17.12.2013 até integral pagamento, e ainda na quantia de 178.200,00 € (cento e setenta e oito mil e duzentos euros) a título de cláusula penal compulsória, acrescida de juros de mora, à taxa legal comercial, desde a data da decisão até integral pagamento.

Inconformado com o decaimento parcial, apelou o autor e, tendo invocado as razões da sua discordância nas alegações que apresentou, condensou-as nas seguintes necessárias conclusões:

...

Tendo indicado como normas violadas os artigos 812.º, n.º 1 e 334.º, n.º 1 do CC, conclui pela procedência do recurso e consequente revogação da sentença apelada na parte impugnada.

Não foram apresentadas contra alegações.

*

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão sujeita à apreciação deste Tribunal consiste em indagar do acerto da decisão apelada quando, fazendo apelo ao instituto do abuso de direito, procedeu à redução do montante que resultaria da aplicação da cláusula penal moratória ajustada pelas partes.

II. Fundamentação

De facto

...

De direito

Não está em causa nos autos a caracterização do contrato celebrado entre autor e ré como contrato de empreitada, dado que por ele se obrigou a demandada a edificar um prédio de rés-do-chão e 1.º andar em ..., mediante o pagamento pelo primeiro, na qualidade de dono da obra, de um preço, pelas partes fixado em €495.000,00, acrescido de IVA.

Aceitam ainda autor e ré que do contrato celebrado, cuja validade e eficácia não vem questionada, resulta a sua recíproca vinculação ao clausulado. Conforme assinala o Mm.º juiz “a quo”, o contrato constitui para as partes lei imperativa, ficando ambas obrigadas ao seu cumprimento pontual (no sentido de cumprimento integral ou “ponto por ponto”), conforme resulta do disposto no art.º 406.º, n.º 1 do CC (diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).

Revela ainda o acervo factual apurado que, a despeito do convencionado, a ré, que se obrigara a dar início aos trabalhos no prazo máximo de 30 dias a contar da outorga deste contrato, que as partes reduziram a escrito e dataram de 15 de Março de 2012, e a concluí-los no prazo de 16 meses, nunca chegou a iniciar a obra. E face a este incumprimento da ré, veio o autor a resolver o contrato, o que fez mediante carta registada datada de 13/12/2013, conforme os factos provados igualmente evidenciam, resolução cuja licitude aqui não se discute.

Resolvido o contrato, reclamou o ora apelante da ré sociedade o montante de €100.000,00 fixado a título de cláusula penal, correctamente qualificada pelo Mm.º juiz “a quo” de liquidação prévia do dano por força da resolução do contrato, pressupondo portanto o incumprimento definitivo por banda da empreiteira, e €901.395,00, estes a título “de multas pelo atraso no início da execução da obra”.

Não vindo questionado o direito do autor a haver para si a aludida quantia de €100.000,00, nem tendo sido posto em causa o acerto da decisão recorrida quando considera cumuláveis a cláusula penal indemnizatória que prevê para a resolução do contrato e a cláusula penal moratória, insurge-se o apelante contra o que apelida de redução oficiosa indirecta do montante liquidado por aplicação desta última, actividade que ao Tribunal estaria vedada por força da disposição contida no art.º 812.º.

Vejamos, pois, da razão que lhe assiste (ou não).

O pedido formulado assenta, pois, no transcrito parágrafo 6º da cláusula 7.ª, por cujos termos não se iniciando os trabalhos na data prevista, a empreiteira focava obrigada a pagar ao dono da obra uma multa diária de 3%o (três por mil) do valor da empreitada, sem prejuízo da faculdade igualmente conferida ao dono da obra de declarar resolvido o contrato a partir do 30.º dia da mora.

Qualificando a estipulação em causa de cláusula penal puramente compulsória, e ultrapassando a dúvida quanto à possibilidade do tribunal proceder oficiosamente à sua redução ao abrigo do disposto no art.º 812º do CPC, por tal efeito poder ser atingido pelo recurso ao instituto do abuso de direito, ponderou o Mm.º juiz “a quo” quanto segue:

“(…) na ausência do art.º 812º, n.º 1 (ou, entendemos nós, apesar de tal instituto jurídico), não deixaria de funcionar para o exercício abusivo de um direito, a norma, de alcance geral, contida no art.º 334.º do CC e de conhecimento oficioso.

Ora, parece-nos claro que a cláusula se apresenta como “manifestamente excessiva” e o seu pedido, nos termos em que o autor o faz, representa um claro abuso de direito.

Não estamos perante uma mera superioridade a nível quantitativo, mas perante uma pena compulsória manifestamente excessiva.

(…) Ora, neste quadro, importa apreciar o montante da cláusula penal por referência ao quadro contratual global em causa.

Para esse efeito, temos presente a natureza e condições de formação do contrato, a situação económica das partes, o prejuízo previsível no momento da celebração do contrato e ao prejuízo efectivamente sofrido pelo credor, às causas explicativas do não cumprimento do contrato, o que implica uma “apreciação global de todo o circunstancialismo objectivo e subjectivo do caso concreto, nomeadamente o comportamento das partes, a sua boa ou má-fé.

Com o devido respeito pela parte, in casu, julgamos ser manifestamente abusivo o direito que a cláusula confere ao autor, quando interpretado conforme o faz o autor, isto é, não tem limite temporal a eficácia da cláusula compulsória para o início do contrato.

Repare-se no seguinte: se a parte quisesse receber dois milhões de euros bastava deferir a resolução do contrato para mais um ano depois do que veio a ocorrer.

Ora, isto não é juridicamente justo, nem aceitável.

É verdade que para o autor, deixa claro no contrato, é muito importante que as obras se iniciem na data acordada.

Contudo, até por isso, não é aceitável, nem se compreende, como é que o autor deixa arrastar a mora pelo período de 20 meses.

A obra devida, segundo o acordo, devia estar concluída a 14 de Agosto de 2013, contudo, para o autor, em Dezembro de 2013, a ré ainda estava em mora.

Vistas as coisas sob o ponto de vista da cláusula compulsória, é para nós óbvio que a mesma a partir de determinada altura deixou de ter qualquer fundamento ou razão de ser.

Se o preço a pagar pelo autor, pela obra realizada integralmente, era de 495.000,00 €, como pode o mesmo reclamar o dobro só a título compulsório, porque a ré não iniciou a obra na data acordada? Tanto mais que o autor nada prestou à ré no âmbito do contrato celebrado.

Assim, procederemos à redução do montante devido a este respeito, para uma montante actualizado por referência à presente data, utilizaremos como critério o prazo de “mora razoável”.

Assim, pensamos que só é aceitável considerar ter existido mora durante os primeiros 120 dias (prazo que consideramos razoável e equitativo), sendo que, a partir daí, é manifestamente abusivo da parte do autor, na nossa apreciação, considerar o montante em causa como sendo ainda compulsório para cumprimento da obrigação devida.

Assim, a título de cláusula penal compulsória, fixaremos a mesmo como sendo devida ao autor o montante de 178.200,00 € (120 dias X 1.485,00 €) (…)”.

Pois bem, ultrapassada a tese da dupla função e natureza mista da cláusula penal, é hoje aceite a existência de várias penas convencionais, consoante a finalidade visada pelas partes e cada uma delas com a sua específica função. Haverá assim que distinguir se estamos perante uma cláusula de simples fixação antecipada do montante indemnizatório - a prevista no art.º 810.º, n.º 1[1]- ou se trata antes de uma cláusula penal de índole exclusivamente compulsória, cujo escopo não é já estabelecer a indemnização devida ao contraente fiel em consequência do inadimplemento da contraparte, mas antes forçar o cumprimento através da ameaça de uma pena que acresce à execução específica ou à indemnização a que houver lugar.

Pode no entanto suceder que as partes, ao estipularem a pena, tenham tido em vista constituir uma ameaça sobre o devedor, impelindo-o a cumprir, prevendo todavia que, fracassado este objectivo prioritário, a pena passe a constituir, ela mesma, uma prestação apta a satisfazer o interesse do credor, que gozaria assim da faculdade de exigir do devedor, em alternativa à prestação originariamente fixada, a prestação acessória (ou seja, a pena)[2]. Neste caso estaremos perante uma cláusula penal em sentido estrito[3], legitimada pelo princípio da autonomia da vontade e consequente liberdade de auto vinculação das partes. Tal qualificação é aquela que, cremos, cabe à cláusula que se analisa.

Na verdade, analisado o acordo celebrado, dele não resulta que, para além da denominada “multa” diária, destinada a sancionar a empreiteira por cada dia de atraso no cumprimento da assumida obrigação de dar início à obra até 15 de Abril de 2012, fosse devido ao autor qualquer quantitativo indemnizatório para reparação dos danos causados pela mora, a calcular nos termos gerais ou mediante o estabelecimento de cláusula de prévia liquidação deste específico dano. Note-se que, tendo as partes feito consignar que o atraso na conclusão da obra provocaria ao autor um prejuízo estimado de pelo menos €300.000, não foi este o ilícito contemplado na cláusula que nos ocupa, que se destinou apenas e tão-só a prevenir para a situação da empreiteira -conforme, de resto, se verificou- incorrer em mora quanto à obrigação de dar início aos trabalhos.

Estaremos, deste modo, perante uma cláusula em sentido estrito, tal como a deixámos definida, em que o credor “ao mesmo tempo que cria um mecanismo compulsório, aceita que a prestação - in casu, de natureza pecuniária -, que aquele coenvolve, satisfará o seu interesse no cumprimento pontual, pelo que poderá exigir o pagamento da pena em vez da indemnização pela mora[4]. Não se trata, pois, de uma cláusula destinada a prefixar o montante de indemnização pelo dano da mora, nem a pena aqui prevista tem um intuito exclusivamente compulsório, uma vez que não se convencionou, repete-se, que à mesma acrescesse a indemnização eventualmente devida pelo atraso na prestação[5].

Seja como for, é hoje, ao que cremos, pacífico o entendimento de que a doutrina fixada no art.º 812.º, enquanto “norma que encerra um princípio de alcance geral, destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações”[6], é aplicável a todas as espécies de penas convencionais, e não apenas às previstas no art.º 810.º.

Questão diversa, e já não tão consensual, é a possibilidade dessa redução ter lugar oficiosamente.

Tendo a referida norma a natureza de ordem pública, parece que a solução que melhor acolhia tal natureza seria a da regra da oficiosidade[7]. No entanto, não é esta a posição prevalecente. Com efeito, ser uma norma de ordem pública significa que não pode ser afastada pelo acordo das partes, daqui não decorrendo necessariamente a legitimação da intervenção oficiosa do tribunal; depois, e essencialmente, tratando-se de uma norma de tutela do devedor, não deve prescindir da sua invocação por aquele a quem aproveita[8].

Não obstante, ainda que se perfilhe tal entendimento, parece que nada impede a que a cláusula em causa - à semelhança, aliás, do que ocorre com qualquer outra inserida num contrato - seja sujeita ao controle que é exercido, nos termos gerais, pelas regras que limitam a liberdade das partes, podendo determinar a sua invalidade. A par desta forma de controlo que é exercido sobre a própria cláusula, restrições existem no que respeita ao exercício, pelo credor, do direito à pena, neste âmbito se inserindo o poder de redução judicial consagrado no art.º 812.º, mas que não prejudica, a nosso ver, a possibilidade desse mesmo exercício ser submetido ao crivo de princípios de alcance geral, como são a boa-fé ou o abuso de direito convocado na decisão apelada[9]. Com efeito, “a expressa consagração legislativa de um poder especial de controlo não afasta o recurso a medidas de alcance geral, igualmente destinadas a controlar as manifestações da autonomia privada”[10].

Assim, se o poder conferido pelo art.º 812.º se destina a impedir uma actuação abusiva do credor, que se apresenta a reclamar uma pena que as circunstâncias existentes ao tempo revelam ser manifestamente excessiva, em termos de ofender a equidade, tal não exclui o recurso ao abuso de direito quando se mostrem verificados os respectivos requisitos.

E isso mesmo se verifica no caso presente, sendo assim de confirmar o juízo a este propósito formulado pelo Mm.º juiz “a quo”, o que agora se antecipa.

Inequívoco é resultar dos termos do contrato a relevância que para o autor e aqui apelante assumia a observância dos prazos convencionados. Isso mesmo é evidenciado pelo teor da pesada pena fixada para o atraso no cumprimento da obrigação de dar início aos trabalhos até ao 30.º dia subsequente à celebração, como ainda pela atribuição ao credor e ora apelante do direito de resolver o contrato no caso da mora perdurar por mais de 30 dias[11]. Mas se assim é, e tal como o Mm.º juiz “a quo” não deixou de assinalar, mal se compreende que, não tendo a ré dado início aos trabalhos no prazo fixado, só no mês de Julho o autor se lhe tenha dirigido por escrito, interpelando-a para cumprir e comunicando que pelos 92 dias de mora era devida a multa no montante de €136.620,00. Retenha-se ainda que nessa mesma missiva se alude já ao facto da ré ter invocado não dispor de meios financeiros para iniciar os trabalhos, o que, aliado ao período de tempo então já decorrido, indiciava fortemente que iria incorrer em incumprimento definitivo.

Acresce que, mau grado há muito lhe assistir o direito a resolver o contrato, o autor interpelou novamente a ré para cumprir por cartas datadas de 16/10/2012, data em que as penalidades contratualmente previstas ascendiam a €273.240,00 pelos 184 dias de mora; 16/1/2013, avisando das multas no valor de €409.860,00, correspondentes a 276 dias de mora; 16/4/2013, reclamando o valor de €542.025,00 de multas relativas a 365 dias de mora; e 9/8/2013, nesta reclamando o montante de € 714.285,00 correspondente às multas aplicadas pelos 481 dias de mora e fixando o prazo admonitório de 30 dias para iniciar a obra, findo o qual “o contrato seria resolvido”, sendo então exigível “a indemnização no valor de €100.000,00 prevista na cláusula 8.ª, acrescida das multas entretanto vencidas”. E apesar da fixação de tal prazo fatal, verifica-se que, decorrido o mesmo e persistindo a ré na omissão da prestação a que se obrigara, só em carta datada de 13/12/2013 o autor emitiu finalmente a declaração resolutiva, reclamando então o valor global de €1.001.395,00 a título de penas aplicadas.

Ora, da regra da boa-fé nasce a exigência – imperativa - das partes em tudo adequarem a sua conduta aos respectivos ditames, tanto na fase de formação do contrato (e antes até da vinculação, conforme impõe o art.º 227.º, no seu n.º 1) como na sua execução (cf. n.º 2 do art.º 762.º).

Nos termos do art.º 334.º CC, diz-se ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico destes.

Em tese geral, como é sabido, a doutrina do abuso do direito tem a função de “obstar a injustiças clamorosas a que poderia levar, na espécie, a aplicação de determinações abstractas da lei a um caso concreto”.[12]

O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não depende da culpa do agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo: surgindo como concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima.

(…)

Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa”[13].

Conforme decorre do convocado preceito, o instituto intervém quando ocorre um clamoroso afastamento dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito que se exercita, de modo que repugna o seu reconhecimento ou repugna reconhecê-lo nos precisos termos em que é invocado.

Já se disse que da interpretação do contrato resulta a importância para o autor do cumprimento do prazo fixado para o início da obra. E tanto assim, repete-se, que o atraso nesta prestação lhe conferia, por expressa convenção das partes, o direito potestativo de resolução do mesmo. Mas se assim é, mal se compreende, à luz do princípio da boa-fé que deve nortear as partes durante toda a vida do negócio, que o autor tenha permitido o arrastamento da situação moratória por 20 longos meses, com a consequência do avolumar das penalidades previstas para este ilícito contratual, quando há muito se adivinhava que a ré iria recair numa situação de incumprimento definitivo. Decerto que ao estipularem tal penalidade não tomaram as partes em consideração a possibilidade do autor, decorrido o prazo da mora que lhe concedia o direito de resolver o contrato, não usasse de tal faculdade, antes permitindo que tal situação se prolongasse para além até da data fixada para entrega da obra, indiferente ao decurso do prazo que o próprio fixara na interpelação admonitória feita em Agosto e até à declaração da ré no sentido de que não iria cumprir, o que sempre configuraria uma recusa de cumprimento, conducente a uma situação de incumprimento definitivo “ipso facto”.

A cláusula penal em apreço foi estipulada com um escopo essencialmente - ainda que, como se viu, não exclusivamente - compulsório, o que resulta claro dos termos do negócio (cf. art.ºs 236-º e 238.º) e o autor de resto reconhece. Mas foi esta mesma finalidade, querida pelas partes, que resultou completamente atraiçoada pelo autor, quando permitiu o arrastamento da situação moratória para lá do prazo fixado para a conclusão da obra, vindo assim reclamar um montante a este título ultrapassando os €900.000,00 (a que acresce, recorda-se, o valor de €100.000,00 referente à cláusula de pré liquidação do dano decorrente da resolução do contrato por causa imputável à empreiteira), quando o preço fixado para a obra correspondia sensivelmente a metade desse valor.

Não podemos assim deixar de secundar quanto a este respeito observou o Mm.º juiz “a quo”, quanto ao exercício abusivo do direito à pena, por ser evidente, à luz dos princípios da boa-fé (boa fé em que também assenta o abuso de direito) que a eficácia de uma cláusula cujo escopo fundamental era compelir a contra parte a iniciar os trabalhos tinha um natural limite temporal, não se destinando a permitir que o credor mantivesse indefinidamente o contrato com a única finalidade, que a factualidade apurada revela, de avolumar o crédito proveniente das pesadas penalidades fixadas para a mora. E o carácter abusivo do exercício do direito do autor é também evidenciado pelo resultado a que se chegou, dada a exorbitância do valor a este título reclamado.

Todavia, e com respeito pelas conclusões do recurso, cumpre precisar que não se trata aqui do tribunal proceder à redução oficiosa da pena cujo cumprimento é reclamado, por se afigurar a mesma, à luz das circunstâncias presentes, claramente excessiva e ofensiva da equidade, pressuposto da intervenção correctiva e moderadora prevista no art.º 812.º; o que está em causa é antes o comportamento do credor durante a vigência do contrato, designadamente o exercício abusivo do direito concedido pela dita cláusula, consubstanciado no prolongamento artificioso da situação moratória. A esta luz parece acertada a redução do tempo de mora ao “prazo razoável”, critério utilizado na sentença apelada, concordando-se ainda com a fixação do mesmo em 120 meses (que, a pecar, será por excesso, atendendo a que o direito à resolução nascia para o credor no 31.º dia de atraso na prestação, dada a reconhecida essencialidade para o autor do cumprimento deste prazo), sendo, a partir daí “manifestamente abusivo da parte do autor (…), considerar o montante em causa como sendo ainda compulsório para cumprimento da obrigação devida”[14].

Não se trata, pois, de fazer intervir o abuso de direito e com isso descaracterizar e inutilizar o instituto da redução, sendo diferentes os pressupostos de aplicação de um e outro institutos.

Identicamente, não procede o argumento de que mediante a intervenção do abuso de direito foi posto em causa “o convencionado entre as partes, desvirtuando-se a lex contractus, e pondo em causa os princípios da segurança e da confiança jurídica”.

Com efeito, começou por se dizer que, sendo específico o campo de aplicação do mecanismo correctivo e moderador previsto no art.º 812.º, daqui não resulta a impossibilidade de submeter as cláusulas penais de qualquer natureza e as condições do seu exercício à fiscalização assente em normas e princípios de alcance geral, como é o caso do abuso de direito, desde que verificados os respectivos pressupostos (e não em qualquer caso, conforme sem rigor aponta o apelante na sua conclusão 13.ª). Pretender o contrário seria fazer prevalecer a vontade das partes em toda e qualquer situação, de modo que, fora do específico controlo exercido pelo art.º 812.º - para mais dependente do pedido do devedor -, ainda que a cláusula penal estipulada fosse nula (por violação, por exemplo, do disposto no art.º 280.º) ou o exercício do direito à pena claramente abusivo - que não apenas por força do excesso -, ainda assim estaria o Tribunal impedido de tal declarar, entendimento este inaceitável. É que a válvula de escape que o sistema consagrou para a específica situação que integra a previsão do art.º 812.º acresce às regras gerais de controlo da autonomia da vontade, não as substitui.

Argumenta por fim o apelante que o Tribunal não dispunha da factualidade indispensável à ponderação do carácter excessivo da cláusula que determinou a sua redução, por nada resultar dos autos quanto às condições económicas das partes, nomeadamente da ré, não fornecendo igualmente qualquer informação quanto às vantagens que possa ter retirado do incumprimento ou benefícios que possa ter colhido da inclusão das cláusulas que voluntariamente subscreveu.

A este respeito dir-se-á que o único elemento disponível atinente à situação económica da ré é o que consta das missivas que pela próprio autor foram enviadas, nas quais se alude ao facto daquela justificar o incumprimento com a ausência de meios financeiros que lhe permitissem dar início aos trabalhos. Nada mais se sabe mas, ressalvado o respeito pela opinião expendida, também não era indispensável que se soubesse. O fundamento de aplicação do instituto do abuso de direito foi, como se disse, o exercício abusivo por banda do autor do direito conferido pela cláusula que accionou, pelos motivos que se explicitaram, e sem que para tanto fosse invocada a situação económica da ré ou eventuais benefícios que haja colhido da estipulação em causa, que para este efeito se afiguram irrelevantes.

Não releva igualmente a conclusão de que as penalidades fixadas na sentença recorrida perfazem, no seu conjunto, montante ligeiramente inferior aos €300.000,00 correspondentes ao prejuízo estimado pela partes.

Já se referiu que no §1.º da cláusula 7.ª do contrato celebrado as partes fizeram consignar a necessidade imperiosa para o autor do cumprimento do prazo de conclusão dos trabalhos, dada a existência de compromissos com terceiros cujo incumprimento se traduziria num prejuízo não inferior a € 300.000,00. Apesar deste valor não ter obtido consagração em eventual cláusula penal de prévia liquidação do dano decorrente da violação deste prazo, faz-se notar que o que está desta feita em causa é o atraso na conclusão da obra, o que pressupõe que a mesma tenha sido iniciada. Deste modo, parece óbvio que esta referência não tem directamente a ver com a cláusula que nos ocupa, por ser perfeitamente possível que, não tendo as obras começado em prazo - fazendo incorrer a ré empreiteira na cláusula penal stricto sensu cuja aplicação está em causa nos autos -, fossem no entanto tempestivamente concluídas, tal como é verdadeiro o inverso[15].

Por outro lado, e decisivamente, o fundamento da redução do valor reclamado não assentou no regime do art.º 812.º, nem em considerações assentes no confronto do montante reclamado com o dos prejuízos sofridos, mas antes, repete-se, no exercício abusivo do direito conferido pela cláusula no particular circunstancialismo que se deixou relatado. E por assim ser, a solução alcançada não é contrariada por este derradeiro argumento.

Em face a todo o exposto, e improcedendo todos os argumentos recursivos, impõe-se confirmar a decisão apelada.

III Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 03/11/2015                                                                

Maria Domingas Simões (Relator)

Adjuntos:

1º - Alexandre Reis

2º - Jaime Ferreira

***


[1] “Aquela em que as partes, ao estipulá-la, visaram tão-só liquidar antecipadamente, de modo ne varietur, o dano futuro” - Prof. Pinto Monteiro, “Cláusula Penal e indemnização”, Colecção Teses, Almedina, Reimpressão, pág. 601
[2] A cláusula penal assim estipulada configura uma obrigação com faculdade alternativa do credor – Prof- Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 613.
[3] Ob. e autor cit., págs. 18/19 e 609 e seguintes.
[4] Sem que tal exclua, sublinha-se, o direito a indemnização pelo não cumprimento definitivo -nos termos gerais ou eventualmente, como aqui ocorreu, pré fixada em cláusula penal a tanto destinada, posto que a pena fixada na cláusula que ora se analisa, foi dirigida à situação de atraso na específica obrigação de dar início os trabalhos.
[5] Neste sentido, a propósito da cláusula prevista no contrato celebrado entre a RTP e a Filmform que esteve na origem do importante acórdão STJ de 3 de Novembro de 1983, Prof. Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 477, nota 1089. 
[6] Ainda o Prof. Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 495 e novamente na pág. 730.
[7] Neste sentido, Ana Prata, “Cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade contratual”, Reimpressão, pág. 642, nota 1157 “Constituindo a redutibilidade judicial da pena uma medida com fundamento em princípios de ordem pública, ela deve ser actuada oficiosamente pelo tribunal, com independência, pois, do pedido do devedor”. Neste mesmo sentido, o acórdão desta Relação de Coimbra de 19/1/21, processo n.º 421/03.3 TBAVR.C, acessível em www.dgsi.pt, também citado na sentença recorrida.
[8] Assim, Pinto Monteiro, ob. cit., págs. 735-736, e, a título exemplificativo, acs. STJ de 12/9/2013, processo n.º 1942/07.8 TBBNV.L1.S1, e de 24/4/2012, processo n.º 605/06.6 TBVRL.P1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. A solicitação do devedor há-de fazer-se por via de acção ou reconvenção ou ainda de defesa por excepção, caso em que terá de ser invocada na contestação (cf. o acórdão de 24/4/2012).
[9] Neste preciso sentido e aqui seguido de muito perto, o autor e obra que vimos citando, pág. 722.
[10] Idem, pág. 723.

[11] Conforme é sabido, o contrato bilateral torna-se resolúvel desde que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento, correspondendo a resolução à destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes com base num facto posterior à celebração do contrato. Este direito tanto pode resultar da lei, como da convenção das partes (art. 432.º, n.º 1 do CC), tal como se verificava no caso vertente, tendo as partes convencionado cláusula resolutiva expressa (que se assume como fonte de um direito potestativo de extinção da relação contratual) de conteúdo claro: o atraso superior a 30 dias no cumprimento da obrigação de dar início à obra por parte da empreiteira conferia ao autor o direito de resolver o contrato, operando a resolução por mera declaração à contraparte (n.º 1 do art.º 436.º do Código Civil).
[12] Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações”, Coimbra, 1958, a págs. 63- 64.

[13] Na feliz síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível on-line.
[14] Da sentença apelada.
[15] De resto, dir-se-á, a ter o autor sofrido efectivamente prejuízos no montante aqui referido, sempre seria de equacionar o seu contributo para os mesmos à luz do art.º 570.º, culpa de que o tribunal conhecerá, mesmo que não alegada (cfr. art.º 572.º). Com efeito, dado que o incumprimento da ré se verificou logo no momento inicial, sempre seria de colocar a hipótese, que se afigura possível, daquele, após a resolução do contrato, contratar com novo empreiteiro a realização da obra, quiçá dentro do prazo inicialmente acordado com a ré.