Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1205/13.0GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INJÚRIA
TIPICIDADE
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÁGUEDA - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 181.º DO CP
Sumário: O lexema “chavalo”, dirigido a um agente de autoridade no exercício das suas funções, constituindo linguagem grosseira e boçal, não reúne aquele mínino de dignidade ético-penal apto a fazer intervir o tipo de crime previsto no artigo 181.º do CP.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

            1.         O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº), deduziu acusação contra o arguido A..., imputando-lhe a prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido (de futuro, apenas p. p.) pelo art. 181º nº 1, 184º e 132º nº 2 al. l), todos do Código Penal (de futuro, apenas CP).

            Tal acusação foi considerada manifestamente infundada pela M.mª Juíza, que assim a rejeitou nos termos do art. 311º nº 1 al. a) e nº 3 al. d) do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP).

            2.         Inconformado, recorre o Mº Pº de tal decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

            «1ª - Discordamos do douto despacho proferido, a 23.02.2014, nos presentes autos, o qual rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A..., imputando-lhe a prática de um crime de injúria agravada, p. e p. nos arts. 181°-1,184°e 132°-2-l), todos do CP, cometido na pessoa de B..., militar da GNR de Águeda, por considerar que a mesma é manifestamente infundada, na medida em que a factualidade ali descrita não constitui qualquer crime.

            2ª - O Tribunal nunca poderá rejeitar uma acusação quando a subsunção jurídica a realizar seja controversa, ou seja, quando admite diversos resultados interpretativos possíveis.

            3ª - O despacho de acusação proferido nos autos cumpre todos os requisitos constantes do art. 283°-3do CPP, mostrando-se claramente descritos os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime de injúria agravada.

            4ª - A M. Juiz a quo, no momento do saneamento do processo, optou por manifestar a sua mera discordância quanto à suficiência ou gravidade das palavras proferidas pelo arguido ao ofendido, militar da GNR, considerando que não foi preenchido o elemento objectivo do tipo de crime em causa.

            5ª - Estando-lhe vedada tal análise, no momento processual em causa, a M. Juiz a quo violou claramente o princípio do acusatório, na sua vertente de separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga.

            6ª - Quanto à concreta factualidade plasmada no despacho de acusação, a M. Juiz a quo limitou-se a fragmentar o discurso do arguido, para depois o analisar na sua mera literalidade, isto é, sem atender ao contexto em que o mesmo ocorreu e a especial qualidade do seu destinatário - um militar da GNR, devidamente fardado e em pleno exercício da sua função de autoridade.

            7ª - O militar ofendido deslocou-se, juntamente com outros três militares, até à casa dos pais do arguido, em virtude de chamada telefónica efectuada, por estes, para o Posto da GNR de Águeda, onde se relatou a ocorrência de desacatos entre o arguido e os seus pais, o que poderia configurar uma situação de violência doméstica.

            8ª - As expressões proferidas pelo arguido, dirigindo-se ao ofendido e militar B... - "oh chavalo! O que é que tu queres! está mas é calado porque isto não é nada contigo"; "sim, tu ó chavalo, o que é que tu queres? É por teres aí os teus seguranças que te estás a armar? olha-me nos olhos, sabes o que me apetece jazer agora? matar-te a ti e a eles os três!" - são ostensivamente ofensivas da honra e consideração devidas àquele.

            9ª - O mero recurso a dicionário não permite captar o verdadeiro significado e intencionalidade de uma palavra verbalizada, sendo imperioso conhecer o contexto em que a mesma é proferida, bem como o referente sócio-cultural do seu emissor e receptor.

            10ª - A linguagem utilizada pelo arguido visou deliberadamente ofender a honra e consideração, moral e social, que é devida ao ofendido, militar da GNR e em exercício das suas funções de autoridade.

            11ª - Com as descritas expressões, quis e conseguiu o arguido diminuir o ofendido, tratando-o como um seu conhecido, chamando-o implicitamente de cobarde e manifestando total desprezo pela sua vida e pelas funções que então desempenhava.

            12ª - O despacho recorrido desconsiderou as regras da experiência comum e violou o disposto nos arts. 32°-5 e 219°-1 da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 311°- 2-a)-3-d) do Código de Processo Penal.

Termos em que, dando-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público, nos seus precisos termos e qualificação jurídica, com subsequente agendamento da audiência de julgamento, farão V. Ex.as a costumada JUSTIÇA!»

3.         A M.mª Juíza sustentou o seu despacho.

Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         A DECISÃO RECORRIDA (transcrição)

            «O Ministério Público acusou, em Processo Especial Abreviado e por Tribunal Singular, A..., filho de ... e de ..., nascido a 29.03.1972, casado, residente na ..., em Águeda imputando-lhe, como autor material e na forma consumada, a prática de um crime de injúria agravada, p. e p. nos arts. 181º-1, 184º e 132º-2-l), todos do Código Penal.

            Da acusação consta que o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar aí descritas, dirigiu-se a B... (militar da GNR, que se havia deslocado, devidamente uniformizado e juntamente com outros três militares da GNR, até à habitação dos pais do arguido) dizendo-lhe, em voz alta, “oh chavalo! O que é que tu queres! está mas é calado porque isto não é nada contigo!”. Consta ainda que, não obstante o ofendido B..., na qualidade de militar da GNR, o ter advertido que não lhe podia falar naqueles termos, o arguido logo retorquiu, dizendo-lhe ainda “sim, tu ó chavalo, o que é que tu queres? É por teres aí os teus seguranças que te estás a armar? olha-me nos olhos, sabes o que me apetece fazer agora? matar-te a ti e a eles os três!”. Consta ainda da acusação que, ao agir nos termos descritos, o arguido que tais expressões eram ofensivas da honra e consideração devidas a tal militar da GNR, que bem sabia estar uniformizado e no exercício das respectivas funções, e actuou de modo livre e consciente, bem sabendo proibida a sua conduta e que, assim, incorria em responsabilidade criminal.

            Cumpre apreciar.

            Dispõe o art. 311.º, n.º 1, al. a) do C.P.Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

            Considera-se que a acusação é manifestamente infundada, nos termos d) do n.º 3 do art. 311.º do C.P.Penal, se os factos não constituírem crime.

            Ora, considerando os elementos objectivos e subjectivos aí descritos, entende o Tribunal que os mesmos não são suspeitáveis de reconduzir-se ao crime de injúria agravada ou outro qualquer crime.

            Vejamos.

            Dispõe o art. 181.º, n.º 1 do Cód. Penal que “ Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”.

            Trata-se de um crime doloso, cujo bem jurídico tutelado é a honra.

            A honra vem conhecendo ao longo do tempo diversas conceptualizações, afigurando-se correcta a concepção adoptada por Faria Costa, segundo a qual “a honra é um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade. Desta forma, a comunidade em que cada um se insere não constitui a fonte da honra, apenas o lugar em que ela se deve actualizar“ - vd. José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 606 e 607, Coimbra Editora, 1999.

            No tipo legal criminal do artigo 181.º do Código Penal “a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.(…) O ordenamento jurídico português alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores.” - in Ob.cit… .

            O tipo objectivo do ilícito consiste numa imputação directa à vítima de factos e/ou de palavras ofensivas da honra e consideração desta.

            Deve entender-se, à semelhança do que entendimento adoptado no Ac. TRL, 09.04.91, Proc. 0013035, in www.dgsi.pt, que para se concluir se uma conduta é ou não lesiva da honra “deve o julgador orientar-se por um critério objectivo, tendo em conta o valor social da honra, a carga ofensiva da conduta em função das circunstâncias, a condição da pessoa, à relação entre o agente e o ofendido, costumes, etc; sendo irrelevante a maior ou menor sensibilidade às ofensas”.

            O tipo subjectivo deste ilícito criminal preenche-se com o dolo genérico da conduta do agente, em qualquer uma das suas formas, de directo, necessário ou eventual, previstas no art. 14.º do Cód. Penal.

            Para que se verifique um crime de injúria é necessário que as expressões consistam numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração.

            Mas, como se pode ler no acórdão da Relação de Coimbra de 06.01.2010, proc. n.º 862/08.3TAPBL.C1, cujo relator foi Jorge Jacob, “a ofensa à honra ou consideração não é susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objecto de sanção penal”.

            Pode ler-se ainda no citado acórdão o seguinte: “Como é sabido, a vida em sociedade pauta-se por normas, nem todas elas de carácter jurídico. A teia de relações sociais que necessariamente se estabelece em torno de cada indivíduo e que lhe permite interagir com os demais, pressupõe, por força da própria natureza humana, uma regulação normativa. Basicamente, é usual distinguir-se entre normas religiosas, normas de costume, normas morais e normas jurídicas - Para desenvolvimento do tema, veja-se Alessandro Groppali, “Introdução ao Estudo do Direito”, 3ª Ed., pags. 31/35..

            As primeiras, valem nas relações entre os crentes de uma mesma religião ou fé e entre estes e o Deus em que acreditam. A violação destas normas importa, para o crente, a sanção do castigo divino e a desaprovação dos outros crentes.

            As normas de costume respeitam ao comportamento em determinadas circunstâncias; são normas de conveniência, de decoro, de higiene, de etiqueta ou de cerimónia. A sua violação acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância, e pode importar ainda um sentimento de mal-estar ou desconforto social para quem, respeitando por princípio essas normas, delas se afastou. A sanção que as acompanha é, pois, essencialmente, uma reprovação social.

            As normas morais radicam numa noção de “bem” e de “mal”, são normas cuja violação gera uma intensa reprovação por parte dos membros da comunidade e que nos casos mais ostensivos conduz a uma verdadeira desqualificação social do infractor, que se verá olhado com desdém ou deixará de ser aceite em certos círculos sociais.

            Por fim, as regras jurídicas prendem-se com o núcleo essencial da convivência humana. Tutelam valores de tal modo relevantes para a vida em sociedade que o Estado impõe coactivamente a sua observância, estipulando sanções para os infractores.

            Todos estes grupos de normas se reflectem, directa ou indirectamente, na personalidade moral dos indivíduos e todas as sociedades, pelo menos, as sociedades de pendor humanista, tutelam a personalidade moral.

            Assim sucede entre nós, tutelando a Constituição da República Portuguesa a personalidade moral, consagrando a sua inviolabilidade no art. 25º, nº 1 - Art. 25º, nº 1, da CRP: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”..

            No desenvolvimento desse princípio, o Código Civil consagra uma tutela geral, estatuindo, no respectivo art. 70º, nº 1, que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

            O direito penal, por seu turno, tutela a honra e reputação do indivíduo, enquanto expressão da irrenunciável dignidade pessoal.

            Honra, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal, tanto pode ser a honra subjectiva ou interior, no sentido de juízo valorativo que cada um faz de si mesmo, como honra objectiva ou exterior, correspondente à consideração de que alguém goza entre quem o conhece, ao bom nome e reputação no contexto social envolvente - Para desenvolvimento do tema veja-se José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 603, em anot. ao art. 180º..

            A ofensa à honra ou consideração não é, no entanto, susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objecto de sanção penal.

            Posto isto, e já com vista à decisão da questão essencialmente colocada no recurso, importa que nos perguntemos se alguma das expressões proferidas pelo arguido tem a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes penalmente tuteladas, porque se assim não for, a sorte do recurso estará traçada, sem necessidade de maior indagação.” – acórdão consultável na integra em www.dgsi.pt.

            Tendo em consideração a linha de pensamento expresso no referido acórdão, não pode deixar de conclui-se que nenhuma das expressões dirigidas ao militar da GNR melhor identificado nos autos alcança o limiar de dignidade penal a que se reconduz o crime de injuria: na verdade as palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido não constituem a imputação de quaisquer factos ofensivos da sua honra ou consideração ou mesmo de palavras ofensivos da honra ou consideração.

            Não há dúvida que as expressões “O que é que tu queres! está mas é calado porque isto não é nada contigo!”, não constitui qualquer imputação de facto ofensivo da honra e consideração nem mesmo existem nelas palavras ofensivas da honra e consideração. Trata-se apenas de faltas de educação ou grosserias, que não obstante serem geradoras de repulsa social, não assumem dignidade penal, deixando intocável a honra e consideração devida ao militar (não se traduzem em imputação de factos ou formulação de juízos de valor sobre o referido militar).

            Também a expressão: “o que é que tu queres? É por teres aí os teus seguranças que te estás a armar? olha-me nos olhos, sabes o que me apetece fazer agora? matar-te a ti e a eles os três!”, não assume dignidade penal. Poder-se-ia dizer que ao fazer-se alusão aos “seguranças” se estava a insinuar que aquele estaria com medo não fora estar acompanhado de três militares. Ainda assim, afigura-se-nos que tal expressão deixa intocável a honra e consideração do referido militar. São apenas expressões reveladoras de grossaria que apenas podem macular quem as diz; a expressão “olha-me nos olhos, sabes o que me apetece fazer agora? matar-te a ti e a eles os três!”, também é, do nosso ponto de vista, insusceptível de atingir a honra e reputação do referido militar, porque não contém em si qualquer imputação de facto ou juízo de valor acerca do militar. Poderia eventualmente constituir uma ameaça ou eventualmente de resistência e coacção, mas na acusação não se faz qualquer alusão aos elementos subjectivos de tais crimes.

            Resta-nos a expressão “Chavalo”. Será esta uma expressão ofensiva da honra e reputação do militar visado? Não cremos que seja. Consultado o dicionário pode ler-se “ Diz-se de um indivíduo adolescente, jovem”- "chavalo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/chavalo. a utilização de tal expressão, muito embora possa considerar-se “calão” não tem qualquer sentido pejorativo da dignidade do militar, porquanto a mesma é utilizada para designar pessoa jovem.

            Assim, embora se possa considerar que alguma da linguagem seja grosseira, constituindo utilização de linguagem desbragada, denotando profunda falta de educação por parte de quem a profere, não pode dizer-se que constitua um atentado à personalidade moral do interlocutor. Na verdade, nenhuma das expressões “contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/04/2006, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0515927.; não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/12/2007, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0745811..” – cfr. acórdão supra citado.

            Alias, a jurisprudência tem entendido que até a mera verbalização das palavras obscenas, são absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 25/06/2003, in www.dgsi.trp.pt, proc. nº 0312710. – ver uma vez mais o mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

            Assim, não constituindo os factos narrados na acusação susceptíveis de constituírem a prática de um crime contra a honra e, porá força da inexistência de elementos subjectivos, não se vislumbrando que tais factos sejam susceptíveis de se enquadrarem em qualquer outro tipo de crime, decide-se rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.Penal.».

            5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

            QUESTÕES A RESOLVER: do bem ou mal fundado da rejeição da acusação

            5.1.     Segundo a acusação, o arguido teria dirigido ao ofendido, militar da GNR, as seguintes expressões: “oh chavalo! O que é que tu queres! está mas é calado porque isto não é nada contigo!”, bem como “sim, tu ó chavalo, o que é que tu queres? É por teres aí os teus seguranças que te estás a armar? olha-me nos olhos, sabes o que me apetece fazer agora? matar-te a ti e a eles os três!” .

            Adianta-se desde já estarmos de acordo com a decisão da 1ª instância, e considerarmos pouco mais se lhe poder acrescentar.

            Na verdade, de todo o arrazoado, a única palavra que pode relevar para o crime de injúrias (a acusação imputa apenas o crime de injúrias) será “chavalo”.

            Para além do significado já referido na sentença recorrida e que pode ser encontrado em qualquer dicionário, a palavra “chavalo” constitui gíria ou calão, um jargão muito usado entre determinadas “culturas” ou grupos de adolescentes ou jovens, à semelhança de “pá”, “meu”, “cena”, “puto”, “tipo”...

            Nessas circunstâncias, o uso de tal linguagem funciona como mecanismo de coesão, possibilitando e traduzindo o sentimento de pertença ao grupo.

            Em qualquer outra circunstância, e para quem não faz parte do “grupo”, o uso de tais palavras incomoda o interlocutor que, as mais das vezes, se sente desrespeitado.

            Os bens jurídicos protegidos pela incriminação da injúria são a honra e a consideração.

            E, como referia Beleza dos Santos [[2]], «A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público».

            A injúria anda associada à noção de insulto e de ultraje.

            Contudo, nem todos os juízos ou palavras depreciativas são susceptíveis de integrar o crime de injúrias; a tutela penal «(...) não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função». [[3]]

«A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação. A injúria é mais do que isso, e quando se pune um acto injurioso não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da dignidade individual, da honra e consideração de terceiros.» [[4]].
Havendo que atentar na diferença entre a censurabilidade ética e a censurabilidade penal, «um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração.». [[5]]

            No caso dos autos, sem dúvida que a palavra “chavalo” dirigida a um agente de autoridade no exercício das suas funções constitui linguagem grosseira e boçal.

            Contudo, sendo por isso reveladora duma atitude de desrespeito pelos agentes de autoridade, ela não reúne aquele mínino de dignidade ético-penal capaz de suportar o cometimento do crime de injúria.

            No contexto em que o foi, a expressão utilizada (toda a expressão) manifesta uma atitude provocatória e de desrespeito, mas não mais do que isso: com ela, o arguido tratava o agente como um seu igual, no sentido de indiferença pelos poderes de autoridade em que ele mostrava investido.

            Sucede que uma atitude ou palavra desrespeitosa colide com a ética do relacionamento social, mas não é suficiente para consubstanciar uma violação dos bens jurídico-penais atinentes à honra e consideração.

            Assim, conclui-se que, pese embora o incómodo que o agente visado possa ter sentido com o desrespeito do arguido, a conduta deste não assume a gravidade suficiente para merecer a tutela do direito penal.

            III.       DECISÃO

6.         Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em julgar o recurso não provido.

Sem custas, atenta a qualidade do Recorrente.

Coimbra, 10 de Julho de 2014                                                    

 (Isabel Silva - relatora)

 (Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)


      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».

      [[2]] In “Revista de Legislação e Jurisprudência” (RLJ), ano 92°, págs. 161 e 168.

      [[3]] Pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 07.12.2005 (Processo 0515154, nº do Documento: RP200512070515154), citando um outro acórdão (proferido no recurso nº 332/02), a que não tivemos acesso.
      [[4]] Leal Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 1982”, 2.º vol., Rei dos Livros, 1986, pág. 204.
      [[5]] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (TRE), de 02.07.1996, in Coletânea de Jurisprudência (CJ), ano 1996, tomo IV, pág. 295.