Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1306/10.6TXCBR-R.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
INCUMPRIMENTO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 185º E 186º DO CÓDIGO DE EXECUÇÃO DAS PENAS E DAS MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE; 64º, N.º 1, 56º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: A conduta do condenado que pratica um crime da mesma natureza 3 meses depois de ser colocado em liberdade infirma definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da concessão da liberdade condicional, que é de revogar.
Decisão Texto Integral:

***

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

           

1. No Processo relativo à eventual revogação de concedida liberdade condicional [incidente de incumprimento – artigo 185º e 186º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro, doravante CEPMPL), no âmbito do Pº 1306/10.... do Juízo de Execução de Penas ... (Juiz ...), recorre o arguido AA da decisão da Mmª Juíza, datada de 10 de Outubro de 2023, que decidiu julgar verificado o incumprimento da liberdade condicional, revogando-lhe, assim, a liberdade condicional que lhe havia sido concedida.

            Fá-lo, concluindo, a final, o seguinte (em transcrição):

« – É hoje pacífico que, após a revisão do Código Penal de 1995, o acento tónico passou a estar colocado não na prática do crime (ainda que doloso e punido com pena de prisão), mas no facto de o comitente desde novo crime revelar a inadequação da suspensão ou da liberdade condicional para prosseguir as respectivas finalidades.

– Por isso é que é incontornável que a revogação da liberdade condicional, tal como sucede com a revogação da suspensão da pena, só deve ter lugar como medida de ultima ratio,

– Medida essa que só pode ter lugar quando seja devidamente ponderado que a prisão constitui a única forma de conseguir as finalidades da punição.

– Ponderação que não existe, de forma consistente e exaustiva, na decisão de que se recorre,

– Uma vez que não foi precedida, como atrás se referiu (cfr. pontos 5, a 9, e 15 a 18) das diligências/averiguações imprescindíveis.

– Acresce que, a irregularidade da omissão da presença do técnico na audição do arguido, em violação do artº 495º, nº 2, do C. P. Penal,

- Concita aqui a aplicação da regra do artº 123º, nº 2, do mesmo normativo, ordenando-se a respectiva reparação, consistente na realização de nova audição, com tal presença.

- Por outro lado, sendo o fim primordial da pena (apud artº 40º, do C. Penal) a reintegração do agente na sociedade,

- Reintegração essa para que estavam reunidas todas as condições aquando da concessão da liberdade condicional, pois que tal é pressuposto essencial dessa concessão,

10ª - Não se afigura como suficientemente impositivo dessa revogação a pratica do crime de condução sem habilitação legal nas condições em que ocorreu.

11ª - Pois que, sem mais, não revela inadequação da liberdade condicional para prosseguir as finalidades da punição.
Termos em que, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a remessa do processo ao Tribunal a quo para audição do arguido, com a presença do técnico e realização, pelo IRS, do pertinente relatório.
Subsidiariamente, e a não se se entender assim, sempre o recurso deverá proceder, revogando-se a decisão recorrida, com a manutenção da liberdade condicional».

 2. A Magistrada do Ministério Público de 1ª instância respondeu ao recurso, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.

           

3. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

            4. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante, CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b), do mesmo diploma.

             II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se se verificam, in casu, os pressupostos do incumprimento da liberdade condicional concedida ao arguido que possam justificar a decisão de revogação da dita liberdade condicional, averiguando-se ainda se foi preterida alguma formalidade legal nesse incidente de incumprimento.

            2. A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição):

«I – Relatório

O arguido AA foi colocado em liberdade condicional no dia 04.02.2021, por decisão proferida em 25.01.2021 pelo Tribunal de Execução de Penas – Juiz ..., no apenso H dos presentes autos, pelo período de tempo que lhe faltava cumprir, i.e., até 16.01.2024.

Cumpria então, sucessivamente, uma pena única de 4 anos e 9 meses de prisão, imposta no proc. 5847/17.... (que englobou as penas aplicadas nos procs. 85/14...., 11/15.... e 62/14....), e uma pena de 295 dias de prisão, cominada no proc. 556/03.... (por revogação da pena prestação de trabalho a favor da comunidade), pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade como reincidente e de três crimes de condução ilegal e ainda da pena de prisão remanescente decorrente da revogação da anterior liberdade condicional de 2 anos, 7 meses e 11 dias de prisão, relativa aos procs. 162/06.... e 1563/03.... (por crime de roubo, coacção, tráfico de menor gravidade, detenção de arma proibida e condução ilegal, tendo cumprido pena entre 21.02.2009 e 28.12.2012).


*

Com fundamento na violação das obrigações que lhe foram impostas na decisão que lhe concedeu a liberdade condicional, concretamente, da prática de ilícito criminal pelo libertado, foi instaurado o presente incidente de incumprimento da liberdade condicional.

*

O libertado foi ouvido em 10.07.2023, tendo então prestado declarações, com observância do legal formalismo.

*

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser revogada a liberdade condicional.

A Defesa, por sua vez, pugnou no sentido de não ser revogada a liberdade condicional concedida, nos termos e com os fundamentos do requerimento junto aos autos em 23.07.2023.


***

II – Fundamentos

2.1. O Tribunal é competente.

O processo é o próprio e mostra-se isento de nulidades, excepções ou quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.


*

2.2. Os factos

Atentos os elementos documentais juntos aos autos, podem-se considerar demonstrados os seguintes factos:

1. Por decisão datada de 25.01.2021, proferida pelo Tribunal de Execução de Penas – Juiz ..., no âmbito do apenso H dos presentes autos, foi concedida ao arguido a liberdade condicional pelo período de 04.02.2021 até 16.01.2024;

2. À data de tal decisão, o arguido cumpria, sucessivamente, uma pena única de 4 anos e 9 meses de prisão, imposta no proc. 5847/17.... (que englobou as penas aplicadas nos procs. 85/14...., 11/15.... e 62/14....), e uma pena de 295 dias de prisão, cominada no proc. 556/03.... (por revogação da pena prestação de trabalho a favor da comunidade), pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade como reincidente e de três crimes de condução ilegal e ainda da pena de prisão remanescente decorrente da revogação da anterior liberdade condicional de 2 anos, 7 meses e 11 dias de prisão, relativa aos procs. 162/06.... e 1563/03.... (por crime de roubo, coacção, tráfico de menor gravidade, detenção de arma proibida e condução ilegal, tendo cumprido pena entre 21.02.2009 e 28.12.2012).

3. Por sentença transitada em julgado em 29.12.2022, proferida no processo nº 533/21.... que correu termos no juízo local criminal ... – J..., o arguido foi condenado na pena de 1 ano e 4 meses de prisão pela prática, em 30.05.2021, de um crime de condução sem habilitação legal.


*

2.3. O Direito

O instituto da liberdade condicional apresenta-se como a última fase de execução da pena de prisão, revestindo a natureza de um incidente (ou de uma medida) de execução da pena privativa de liberdade.

O condenado, uma vez cumprida parte da pena de prisão que lhe foi imposta (pelo menos metade em certos casos, dois terços noutros), vê recair sobre ele um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro em liberdade, eventualmente condicionado pelo cumprimento de determinadas condições – substancialmente análogas aos deveres e regras de conduta previstos para a suspensão da execução da prisão e para o regime de prova – que lhe são aplicadas.

Assim, são finalidades específicas de prevenção especial positiva ou de socialização que conformaram a intenção político-criminal subjacente ao instituto da liberdade condicional desde o seu surgimento (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, página 528).

Sendo a concessão de liberdade condicional alicerçada num juízo de prognose favorável realizado relativamente ao condenado, ou num juízo legal quando cumpridos 5/6 da pena se a mesma tiver duração superior a 6 anos, dispõe o art. 64.º do C.Penal que lhe é aplicável o disposto nos arts. 52.º n.ºs 1 e 2, 53.º, 54.º, 55.º als. a) a c), 56.º n.º 1 e 57.º, todos do mesmo diploma legal, sendo que a sua revogação determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida.

Assim, a liberdade condicional poderá ser revogada se o libertado tiver infringido grosseira ou repetidamente os deveres a que estava sujeito ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar, por esta via, que as finalidades previstas aquando da liberdade condicional não puderam ser alcançadas.

É expressa, portanto, a aproximação ao regime da suspensão da execução da pena de prisão, cujo art. 56.º n.º 1 do C.Penal, estatui que “a suspensão da execução da pena é revogada sempre que, no seu decurso o condenado: a) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção ou b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.

Ora, a finalidade essencial que está na base da concessão da liberdade condicional é a de permitir que o libertado paute a sua conduta afastado da prática de crimes.

No caso dos autos, e como decorre da factualidade apurada, o libertado, menos de 4 meses após lhe ter sido concedida a liberdade condicional, incorreu no cometimento de um crime de condução sem habilitação legal, ilícito este por si já antes praticado por mais do que uma vez, tendo dado origem a condenações anteriores em pena de prisão, cujas penas, inclusivamente, se encontravam englobadas na panóplia de penas em cumprimento sucessivo aquando da concessão da liberdade condicional.

Assim, conclui-se que o condenado ao cometer um facto típico, ilícito e culposo no período de vigência da liberdade condicional que lhe foi concedida, infringiu o mais básico propósito de inserção social ínsito à cominação de uma pena: a interacção em liberdade com os demais cidadãos, abstinente da prática de actos criminosos.

É inequívoco, pois, que o condenado, ao praticar um novo crime, frustrou as concretas finalidades que basearam a sua libertação condicional.

Na verdade, o objectivo da liberdade condicional é “criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante a qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” (n.º 9 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro), visando “uma adequada reintegração social do internado”.

Essa reintegração social foi frontalmente inviabilizada pelo condenado, infirmando o juízo de prognose favorável anteriormente realizado que esteve subjacente à concessão da liberdade condicional.

Com efeito, concede-se a liberdade condicional para o cidadão condenado alcançar a reintegração na sociedade e não para este voltar a praticar crimes, pondo em causa a ordem social e os bens jurídicos legalmente tutelados.

Consequentemente, impõe-se, como adequada e proporcional ao caso em apreço, a revogação da liberdade condicional, já que reclamada pela finalidade última da execução da pena de prisão qual seja “a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (cfr. art. 40.º n.º 1 do C. Penal).


***

III – Decisão

Em face do exposto, e ao abrigo do disposto nos arts. 64.º n.º 1 e 56.º n.º 1 als. a) e b), ambos do C.Penal, julgo verificado o incumprimento da liberdade condicional pelo condenado AA, revogando, assim, a liberdade condicional que lhe havia sido concedida.


*

Custas a cargo do condenado, sem prejuízo do disposto no art. 4.º n.º 1 al. j) do Regulamento das Custas Processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.

*

Cumpra-se o disposto no art. 185.º n.º 7 do CEPMPL.

*

Após trânsito, junte certidão em ambos processos de liberdade condicional e no novo processo de liberdade condicional, para liquidação, abrindo vista ao Ministério Público nos termos e para os efeitos do disposto no art. 185.º n.º 8 do CEPMPL.

*

Comunique aos processos da condenação onde beneficiou de liberdade condicional».


            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

           

3.1. Vem o arguido recorrer da decisão judicial que julgou verificado o incumprimento da liberdade condicional que lhe havia sido concedida a partir de 4/2/2021, revogando, assim, a mesma.

3.2. A questão a resolver prende-se com os pressupostos da revogação da liberdade condicional[2].
Já sabemos que tal instituto da liberdade condicional foi pensado pelo nosso ordenamento jurídico, corria o ano de 1893 (Decreto de 6 de Junho e Regulamento de 16 de Novembro), então com natureza graciosa, com o intuito de benefício ou prémio aos condenados, a título de estímulo e recompensa pela boa conduta na prisão, desta forma permanecendo até ao Código Penal de 1982 (sempre visto como incidente de execução da pena de prisão).
Passou então a fazer do plano global da função de ressocialização da intervenção penal, como claramente emerge do preâmbulo de tal Código: «Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a liberdade condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão».

Trata-se, em Portugal, de um incidente da execução da pena de prisão (não devendo ser encarada como uma medida coactiva de socialização).

A liberdade condicional constitui, pois, uma medida de excepção que visa a suspensão do cumprimento da pena imposta, de molde a criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, permitindo dessa forma que o recluso recobre o sentido de orientação social enfraquecido devido à reclusão.

3.3. No nosso caso, tal liberdade condicional foi concedida pelo TEP em 25/1/2021 ao arguido recorrente pelo período de 4/2/2021 a 16/1/2024.

Entretanto foi decidida a revogação de tal liberdade condicional em incidente próprio, decisão essa agora alvo de recurso.

            Por expressa remissão do artigo 64º, nº 1 do Código Penal, doravante CP, os pressupostos da revogação da liberdade condicional estão regulados nos artigos 52º, 53º, nºs 1 e 2, 54º, 55º, alíneas a) a c), 56º, nº 1 e 57º do mesmo diploma.

Na parte que aqui primordialmente releva, determina o artigo 56º, nº 1 do CP que a suspensão da execução da pena de prisão – e, assim, in casu a concessão da liberdade condicional – é revogada sempre que, no seu decurso o condenado:

· alínea a): infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras e conduta impostos;

ou,

· alínea b): cometer crime pelo qual venha a ser condenado,

e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas [já sabemos que este pressuposto é aplicável a ambas as alíneas e não só à alínea b)].

Nos presentes autos está em causa a revogação da liberdade condicional do recorrente com base no fundamento previsto na aludida alínea b) do artigo 56º, nº 1 do CP.

Na verdade, e em termos objectivos, desde logo se constata que por sentença transitada em julgado em 29.12.2022, proferida no processo nº 533/21.... que correu termos no juízo local criminal ... – J..., o arguido foi condenado na pena de 1 ano e 4 meses de prisão pela prática, em 30.05.2021 (logo, em pleno período de liberdade condicional, decretada, já o sabemos, em 25/1/2021 e iniciada em 4/2/2021), de um crime de condução sem habilitação legal (esta Relação, no competente recurso, por aresto de 13/12/2022, aplicou tal mesma pena mas a executar em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios electrónicos à distância).

Disse-se que assim é em termos objectivos, pois que, como o segmento final do artigo 56º, nº 1, alínea b) do CP impõe, está posta de lado a revogação ope legis da suspensão da execução da pena – e, bem assim, da liberdade condicional – como efeito automático da prática de um novo crime doloso no respectivo período.

Ou seja, a revogação da liberdade condicional, que repristina a pena de prisão cuja execução estava interrompida, não é uma sanção pela prática de um novo crime no respectivo período, pois que aqui está em causa, ainda, a vinculação da pena aos factores de prevenção.

Recorramos, aqui chegados, ao eloquente aresto da Relação do Porto, exarado em 13/9/2023 (Pº 433/14.5TXPRT-J.P1):

«O que releva é poder ou não formular-se um juízo sobre a insubsistência da anterior previsão positiva sobre a ressocialização e a eficácia preventiva da liberdade condicional. Porque os princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena cobrem todo o respectivo processo aplicativo, e subsistem até à extinção da sanção imposta, a decisão de revogação da liberdade condicional é delimitada aos casos em que esse facto imponha a conclusão de que se frustrou o juízo de prognose que a havia fundamentado».

Já o aresto da Relação de Évora, datado de 28/4/2020 (Pº 1852/10.1TXEVR-O.E1), disserta assim:

«O “ratio” da aplicação, quer do instituto da suspensão da execução da pena, quer do regime da liberdade condicional, é o prognóstico favorável feito pelo tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias dos factos, que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhada ou não da imposição de deveres (ou) regras de conduta – sejam bastantes para o afastar da delinquência e satisfazer as necessidades da punição e atingir a sua reinserção.

Portanto, são recíprocas, as razões, quer da revogação da suspensão da execução da pena, quer da revogação da liberdade condicional, atendendo às supra mencionadas previsões legais, sendo que o citado art. 64º, do CP, manda aplicar ao regime da revogação da liberdade condicional, regras da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Como salientam Leal Henriques e Simas Santos “a liberdade condicional tem como objectivo criar um período de transição entre a prisão e a liberdade durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” (in CP Anotado, Rei dos Livros 3 ª Edição, vol. 1, pag. 742), não esquecendo que a concessão da liberdade condicional deriva de um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro em liberdade.

Sobre estas questões, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, § 521, pág. 344), refere: “... o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco – digamos: fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada”

Em anotação ao citado art.º 56.º, do CP, Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 3.ª Edição, vol. I, Rei dos Livros, pág. 711, adiantam: “As causas de revogação não devem, pois, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão”.

A alteração introduzida pela revisão de 1995, passou a resultar que mesmo o cometimento de novo crime no decurso do período da suspensão de pena é insuficiente, só por si, para determinar a revogação da pena de substituição. Pôs fim à anterior redacção “profundamente criticável do ponto de vista politico-criminal” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, “As consequências jurídicas do crime”, 2005, p. 356).

Como refere Odete Oliveira, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, II, CEJ, 1998, p. 105: “O acento tónico passou a estar colocado, não no cometimento de crime doloso durante o período de duração da suspensão e correspondente condenação em pena de prisão, mas no facto de o cometimento de um crime e respectiva condenação revelarem a inadequação da suspensão para através dela serem ainda alcançadas as finalidades da punição”.

A revogação automática da pena de prisão suspensa findou, seguindo-se a Regra 10 da Recomendação Nº R (92) 16, adiantando a ideia de que “nos casos de desrespeito das condições ou obrigações impostas por essa sanção ou medida, não devem existir disposições na lei respeitantes à conversão automática em prisão de sanções ou medidas aplicadas.”

Portanto, a condenação por crime cometido no período, quer da suspensão da execução da pena de prisão, quer da liberdade condicional, não opera, automaticamente, a sua imediata revogação, devendo ser realizado, previamente, o juízo sobre a possibilidade de ainda se alcançarem, em liberdade, as finalidades da punição e da sua reinserção, que ditará a opção entre o regime do art. 55º ou do art. 56º do Código Penal.

Cons. Sá Pereira e A. Lafayette, in Código Penal Anotado e Comentado, pág. 189 e Leal Henriques e Simas Santos Código Penal Anotado, Rei dos Livros, vol. I pág. 713, sobre esta questão, adianta: “A alínea b) do n.º 1 refere-se à prática criminosa, qualquer que seja. Não importa que se trate, v.g., de crime doloso. O que interessa é apurar se o crime cometido contradiz as finalidades da suspensão, tornando-as inalcançáveis. E tal não constitui tarefa fácil, «pois obriga a uma grande certeza relativamente às circunstâncias envolventes do crime». Da conclusão a que se chegar, no desempenho de tal tarefa, depende a actuação, em concreto, deste artigo (impositivo de revogação) ou do artigo anterior (que oferece ainda uma oportunidade”.

Alguma doutrina e jurisprudência entendem que só a condenação em pena efectiva de prisão é reveladora de que as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão ou de concessão de liberdade condicional, não puderam ser alcançadas, indicando, a título de exemplo, respectivamente: - Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal, 2ªed., p. 236, adianta que, em princípio, “só a condenação em pena efectiva de prisão é reveladora de que as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão não puderam ser alcançadas” (o mesmo se aplicando ao regime da liberdade condicional), e,
- Os acórdãos de TRC 28.03.2012 e 11.05.2011, TRP 02.12.2009, TRE 25.09.2012, e o TRC, de 16-2-2017, proferido no processo n.º 1104/10.7TXCBR-M.C1 (todos disponíveis in www.dgsi.pt), este último, com o seguinte sumário: “I - Se o recorrente não se mostrou capaz de, em liberdade, prosseguir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; II - Se o arguido foi indiferente às obrigações que lhe foram impostas e pouco sensível aos efeitos do anterior período de reclusão; III - Com o cometimento do novo crime em pleno período de concessão da liberdade condicional (…); IV- Revela decididamente que o recorrente não estava em condições de cumprir as finalidades que estiveram na base da sua colocação em liberdade condicional, as quais não puderam, por meio desta, ser alcançadas, justificando-se a revogação da liberdade condicional”».

3.4. QUID IURIS, no caso particular do arguido?

O tribunal entendeu que, perante a notícia da prática de um novo crime de condução ilegal durante o período da liberdade condicional, o arguido incumpriu o instituto, revogando-lhe a liberdade condicional.

E o seu raciocínio foi este:

· «No caso dos autos, e como decorre da factualidade apurada, o libertado, menos de 4 meses após lhe ter sido concedida a liberdade condicional, incorreu no cometimento de um crime de condução sem habilitação legal, ilícito este por si já antes praticado por mais do que uma vez, tendo dado origem a condenações anteriores em pena de prisão, cujas penas, inclusivamente, se encontravam englobadas na panóplia de penas em cumprimento sucessivo aquando da concessão da liberdade condicional.

· Assim, conclui-se que o condenado ao cometer um facto típico, ilícito e culposo no período de vigência da liberdade condicional que lhe foi concedida, infringiu o mais básico propósito de inserção social ínsito à cominação de uma pena: a interacção em liberdade com os demais cidadãos, abstinente da prática de actos criminosos.

· É inequívoco, pois, que o condenado, ao praticar um novo crime, frustrou as concretas finalidades que basearam a sua libertação condicional.

· Na verdade, o objectivo da liberdade condicional é “criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante a qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” (n.º 9 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro), visando “uma adequada reintegração social do internado”.

· Essa reintegração social foi frontalmente inviabilizada pelo condenado, infirmando o juízo de prognose favorável anteriormente realizado que esteve subjacente à concessão da liberdade condicional».

Esta decisão de revogação tem de ser tomada, obrigatoriamente, com base na situação fáctica existente no momento em que se encerra a discussão dos seus pressupostos.

Pela severidade que esta medida representa, esta deverá ser de última ratio tendo em conta a sua gravidade.

Consequentemente, o tribunal tem de ponderar o peso que este incumprimento deve representar para o juízo de prognose que tinha sido formulado anteriormente, aquando da concessão da liberdade condicional.

Por esta razão, a revogação apenas deverá ser aplicada quando o condenado apresentar indícios sérios de que irá reincidir ou quando a não revogação da liberdade condicional seja contraproducente para a sua ressocialização.

Destarte, apenas se deve considerar esta medida quando outra não consiga atingir o mesmo propósito.

Apesar de se poder considerar que a decisão poderia ter sido mais desenvolvida nesse particular, não se pode dizer que se gerou um efeito automático de revogação da liberdade condicional pela mera notícia do cometimento de mais um crime pelo arguido – o tribunal opinou que foi infirmado o juízo de prognose favorável anteriormente realizado, até pelo facto de ter sido cometido um crime da mesma natureza de alguns dos crimes que foram praticados pelo arguido e com base nos quais estava em cumprimento de pena até à sua libertação, por concessão da liberdade condicional, e num tão curto prazo de tempo, cumprindo, assim, o desiderato do artigo 56º, nº 1 do CP.

E não vislumbramos qualquer outra diligência que o tribunal poderia ou deveria ter levado a cabo com vista à instrução do incidente.

Tal novo crime – praticado apenas três singelos meses depois da sua liberdade - revela personalidade delinquente e uma total indiferença pela condenação de que foi alvo, infirmando definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da concessão da liberdade condicional, isto é, da esperança de, por meio desta manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade.

Como observa Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, p. 355, § 542, “o cometimento de um crime durante o período da suspensão é a circunstância que mais claramente pode pôr em causa o prognóstico favorável que a aplicação da pena de suspensão sempre supõe”.

Neste sentido se pronuncia o ac. da Relação de Coimbra de 01-02-2012, proferido no proc. nº 1574/10.3TXCBR-C.C1:

«Tendo o arguido praticado um novo crime doloso precisamente durante o período de liberdade condicional - crime de roubo, com violência física contra as pessoas, pelo qual foi condenado em pena de prisão, é manifesto que a concessão da liberdade condicional não cumpriu a finalidade primacial, devendo por essa razão ser-lhe revogada».

Portanto, concluímos que a concessão da liberdade condicional, na fase em que foi determinada, não obteve sucesso na sua função preventiva quer especial, quer geral, pois que não se se revelam afinal de forma suficiente sinais seguros de uma evolução pessoal decorrente de tal medida que se sobreponham àqueles parâmetros, e que possam justificar a manutenção da liberdade condicional enquanto medida de natureza excepcional.

A ponderação que aqui releva – em resultado de tudo quanto foi carreado para os autos e tudo o acima exposto – é a de que, no presente caso, as expectativas de reinserção não são manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da restituição à liberdade do condenado/recluso.

Diga-se ainda que em nada contende com este nosso raciocínio a circunstância de ter sido aplicada, por esta Relação, pena efectiva de prisão a cumprir no domicílio pela prática do crime levado a cabo durante o período da liberdade condicional.

Então, esteve em causa adequar a pena e a sua execução a um certo crime, contexto em que o facto de ter sido cometido durante a liberdade condicional certamente relevava mas não seria decisivo; agora, e pelo contrário, está em causa o impacto desse crime sobre a própria liberdade condicional, que, aliás, se refere a uma pena mais grave e por crimes mais graves.

Não vemos, assim, por que razão o facto de, pelo crime entretanto cometido se determinar certa pena (e modo de execução dela) que lhe seja adequada, haveria de condicionar a decisão sobre a revogação.

No nosso caso, estamos a revogar a liberdade condicional relativamente a uma pena por crimes bem mais graves do que uma mera condução ilegal por alguém que, em liberdade condicional, cometeu mais crimes.

Daí que a Meritíssima Juiz do TEP de Coimbra não pudesse tomar outra decisão que não fosse a de revogar a liberdade condicional ao ora recorrente.

3.5. E nem se diga que foram preteridas formalidades essenciais prévias à decisão de revogação.

O relatório referido no recurso apenas alude ao cumprimento pelo arguido da obrigação de ser presente e cordato com a DGRSP e da obrigação de se inscrever no IEFP, nada adiantando sobre o juízo de prognose, infirmado ou não, pelo cometimento deste novo crime[3].

Para além disso, o arguido foi ouvido presencialmente, como impõe a lei.

Mas, neste caso, não vemos qualquer necessidade de convocar o técnico de reinserção social (referido no artigo 495º, nº 2 do CPP, aplicável também a esta nossa situação), na medida em que está em causa a revogação da liberdade condicional nos termos do artigo 56º, nº 1, alínea b) – e não alínea a) -, ex vi do artigo 64º, nº 1 do CP.

Damos assim a nossa concordância ao explanado nesta parte pelo Acórdão da Relação de Évora, datado de 27.4.2021 (Pº 302/13.6PAPTM-A.E1)[4]:
«Desde logo, quanto ao elemento literal, quando se menciona no n.º 2 do art.º 495.º, o “técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”, deve entender-se, em nossa opinião, que tais condições são as condições previstas no n.º 2 do art.º 50.º do CP, ou seja, os “deveres, regras de conduta ou obrigações” cuja falta de cumprimento motiva, nos termos referidos no n.º 1 da norma, a comunicação ao tribunal pelos serviços respetivos.
É na sequência dessa comunicação e, portanto, nessas situações, que o procedimento previsto no n.º 2 tem lugar, não podendo, a nosso ver, ser descontextualizado.
E por assim ser, faz todo o sentido (e é essa a ratio da lei) exigir a presença do condenado no tribunal, para, perante o juiz e com a presença concomitante do técnico que tem como funções apoiar e fiscalizar aqueles, poder explicar as circunstâncias que levaram ao incumprimento das condições de suspensão. A presença simultânea do condenado e do técnico permite estabelecer uma relação dialética em que o contraditório se pode concretizar em termos dinâmicos, possibilitando a prestação imediata de qualquer esclarecimento ou dúvida que a tomada de declarações possa suscitar. Também habilitará o tribunal, em face do conteúdo de tais declarações, a, eventualmente, decidir modificar os deveres impostos (art.º 51.º, n.º 3 do CP), determinar a sujeição do condenado a tratamento médico ou a cura em instituição adequada (art.º 52.º, n.º 3 do CP) ou, de forma geral, a tomar qualquer das decisões previstas nos artigos 55.º e 56.º do CP.
Aliás, caso o tribunal não fixe (nos termos do n.º 2 do art.º 50.º do CP) como condição de suspensão de execução da pena deveres, regras de conduta ou regime de prova e o potencial motivo de revogação seja apenas e tão-só a prática de crime (cfr. art.º 56.º, n.º 1, alínea b) do CP), cumpre questionar porque motivo se exigiria sempre, para além da presença do condenado, concomitantemente, a presença de um técnico “que apoia a fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” que, in casu, não foram impostas?
Não faz sentido.
Ao invés, é significativa, em termos sistemáticos, a colocação do teor do n.º 3 após o recorte procedimental traçado pelos números 1 e 2 do art.º 495.º do CPP.
Com efeito, é nessa norma que se estabelece o dever de comunicação da condenação pela prática de qualquer crime durante o período de suspensão.
Caso a lei tivesse pretendido aplicar o procedimento do n.º 2 quanto às duas situações (falta de cumprimento de condições – n.º 1 e condenação por crime durante a suspensão – n.º 3), seria sistematicamente lógico que fixasse os dois deveres de comunicação previamente ao procedimento instituído para as duas etiologias da revogação da suspensão de execução da pena. Com a ordenação numérica do artigo em questão pretendeu excluir a referida etiologia da prática de crime, ficando os procedimentos previstos nos números 1 e 2 hermeneuticamente recortados para as situações de falta de cumprimento das condições da suspensão que aí se mencionam».
Note-se que o Acórdão da Relação de Coimbra de 25.09.2019, proferido no processo 121/13.0JALRA-A.C1 decidiu que:
«Se porventura a suspensão da execução da pena tiver sido uma suspensão tout court, não subordinada ao cumprimento de deveres, ou se mesmo tendo sido fixados deveres não tiver sido determinado o apoio no seu cumprimento, devendo a fiscalização ser efectuada pelo próprio tribunal em momento determinado, normalmente, no termo do prazo de suspensão – o caso típico da condição de pagamento de indemnização – não terá sentido a exigência da parte final do nº 2 do art. 495º do CPP, que se reporta apenas às situações em que tenha operado o nº 1 do mesmo artigo e por referência ainda ao nº 4 do art. 51º, nº 4 do art. 52º e nº 2 do art. 53º, estes do Código Penal».
Ou seja, extrapolar indiscriminadamente da obrigação de audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão para todos os casos em que está em causa a revogação da suspensão ou da liberdade condicional traduz, quanto a nós, interpretação não consentida pelo texto legal, sabido que toda a interpretação pressupõe o recurso ao sentido útil da norma.

Ouvir presencialmente o arguido, sim, mas sem necessidade da presença do técnico de reinserção social, assente que não estão em causa incumprimentos de regras de conduta ou de obrigações derivadas da decisão de liberdade condicional (que apenas fixou residência ao arguido, obrigou-o a acatar as orientações da DGRSP, a manter conduta socialmente adequada, a procurar exercer actividade laboral e a não frequentar locais relacionados com o tráfico de estupefacientes) mas tão-somente o cometimento de novo crime durante a mesma.

E como bem aduz o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer:

«(…) não fazerem sentido as alegações efectuadas no recurso interposto a respeito da eventual obtenção de novo relatório social do arguido e, muito menos, a respeito da suposta necessidade de audição do mesmo na presença do técnico que acompanhou a execução da liberdade condicional, uma vez que o incidente de incumprimento instaurado não visou averiguar eventual violação dos deveres impostos ao arguido aquando da concessão da liberdade condicional, mas apenas dar-lhe oportunidade de se pronunciar quanto ao crime por si praticado no decurso da mesma – não havendo assim qualquer razão para considerar aplicável o disposto no nº 2 do art. 495º do Código de Processo Penal no âmbito da audição efectuada, ou para que fosse ordenada qualquer das diligências mencionadas no nº 5 do art. 185º do CEPMPL».
Inexiste, assim, qualquer nulidade ou irregularidade processual.

3.6. Finalmente, dir-se-á que não faz qualquer sentido invocar[5], neste processo, um alegado estado de necessidade desculpante que retiraria a sua culpa, no circunstancialismo fáctico que o levou à prática do novo crime do Pº 533/21.... pois o que aqui temos é uma decisão judicial transitada em julgado e que concluiu que o arguido agiu dolosamente (logo, com culpa) na prática do crime em apreço.
Tal causa de exclusão da culpa poderia e deveria ter sido invocada nesse processo (consultado o acórdão desta Relação junto aos autos denota-se que apenas aí foi discutida, em sede de recurso, a medida da pena e não os factos) e já não aqui, quando é certo que lidamos com uma sentença transitada em julgado.

3.7. CONCLUINDO:
Não merece censura formal ou substancial a decisão de revogação da liberdade condicional.

            III – DISPOSITIVO       

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo da aplicação do preceituado no artigo 4º, nº 1, alínea j) do RCP.


Coimbra, 21 de Fevereiro de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra

Adjunto: Rui Pedro Lima

Adjunto: João Bernardo Peral Novais

(vencido nos termos do voto que se anexa):

«Voto vencido a decisão que antecede pelas seguintes razões:


a) Nos termos do art. 56.º, n.º 1, als., a), e b), do Código Penal, ex vi do n.º 1, do art. 64.º, do mesmo código, que a liberdade condicional “… é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.

Deste normativo resulta que a revogação da liberdade condicional não opera “ope legis” mas sim “ope judicis”, como resulta do citado art. 56.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal; torna-se necessário avalizar se o cometimento do crime pôs em causa as finalidades que estiveram na base do decretamento da liberdade condicional.

Como se pode ler na decisão que obteve vencimento (sublinhados meus), “As causas de revogação não devem, pois, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão” (…) A alteração introduzida pela revisão de 1995, passou a resultar que mesmo o cometimento de novo crime no decurso do período da suspensão de pena é insuficiente, só por si, para determinar a revogação da pena de substituição  (Leal-Henriques e Simas Santos”),  (…) Pôs fim à anterior redacção “profundamente criticável do ponto de vista politico-criminal” (Figueiredo Dias) (…) “O acento tónico passou a estar colocado, não no cometimento de crime doloso durante o período de duração da suspensão e correspondente condenação em pena de prisão, mas no facto de o cometimento de um crime e respectiva condenação revelarem a inadequação da suspensão para através dela serem ainda alcançadas as finalidades da punição”.

No caso, a decisão sob recurso, proferida pelo Tribunal de Execução de Penas (TEP), não faz qualquer juízo concreto sobre se o crime praticado durante a liberdade condicional coloca ou não em causa as finalidades que estiveram por detrás da concessão da liberdade condicional; a decisão sob recurso limita-se a constatar a prática de um crime durante o período da liberdade condicional, socorrendo-se de uma fundamentação, a qual na sua abstracção pode servir para qualquer situação em que esteja em causa a prática de um qualquer crime no decurso da liberdade condicional, acabando por na prática considerar a revogação “ope legis” da liberdade condicional e não «ope judicis».

Note-se que a decisão proferida pelo TEP nem sequer faz referência, nos factos provados, à circunstância de a pena aplicada no processo nº 533/21...., que tinha como objecto o crime praticado durante a liberdade condicional, ter sido punido não com pena de prisão em meio institucional, mas sim com a pena de prisão executada em regime de permanência na habitação – cfr. facto provado 3.

b) Ora, constata-se que no processo nº 533/21.... se considerou que;

- o relatório dos serviços de reinserção social junto aos autos avaliou de forma positiva o percurso do arguido desde que foi libertado condicionalmente (cumprimento das obrigações que lhe foram impostas, esforço no sentido de obtenção de ocupação laboral, inserção familiar, e inscrição numa escola de condução);

- que o crime praticado (crime de condução sem habilitação legal) não provoca elevado alarme social, tanto  que existiram períodos, na nossa história relativamente recente, em que tal prática nem sequer constituía crime, mas sim uma contra-ordenação.

             E face a esse contexto ali se concluiu  que “num último esforço para evitar a reclusão num estabelecimento prisional (o que afastaria o arguido da sua família e da sociedade em geral, e dificultaria a possibilidade de finalmente obter licença de condução), e numa derradeira tentativa de procurar que a reinserção social do arguido se processe ainda no seu meio social, revogamos a pena de prisão com execução suspensa, e decidimos executar a pena de prisão de 22 meses em regime de permanência à habitação com fiscalização de meios electrónicos à distância - art 43º do Cód. Penal.

       c) A nossa doutrina e jurisprudência tem considerado que, normalmente, só a aplicação de pena de prisão efectiva coloca irremediavelmente em causa os pressupostos que estiveram por detrás da concessão da liberdade condicional. No caso, ainda foi possível, no referido processo nº 533/21.... formular um juízo – é certo que limitado – de que a reinserção social do arguido se pudesse processar fora do meio prisional, o que, como vimos foi desconsiderado pela decisão recorrida.

  d) Acresce que não se sabe sequer de que forma a pena aplicada naquele processo nº 533/21...., relativo ao crime cometido no decurso da liberdade condicional, teve ou não efeitos positivos na reinserção do arguido.

Isto porque, resulta destes autos que a sentença proferida pelo TEP é precedida de um relatório dos serviços de reinserção social datado de 24-2-2023.

E o período da liberdade condicional terminava apenas no dia 24-1-2024.

No caso, o tribunal a quo decidiu revogar a liberdade condicional em 10-10-2023, ou seja, ainda antes do decurso do período relativo à liberdade condicional, num momento em que se encontrava em execução a pena de prisão em regime de permanência na habitação, e sem sequer solicitar relatório actualizado relativo à situação do arguido.

  E assim sendo, no momento em que foi revogada a liberdade condicional não se sabe se o arguido mantinha a reinserção familiar e social, se a actividade laboral continuava, e especialmente, se o arguido logrou ou não obter título de condução válido (recorde-se que estava inscrito numa escola de condução).

e) Em suma, não revogaria a liberdade condicional, uma vez que a sentença sob recurso não só desconsidera completamente a avaliação efectuada no processo nº 533/21.... no sentido de que a reinserção social do arguido ainda poderia ocorrer fora do meio prisional (tanto que até a omite dos factos provados), como ainda porque, ainda antes do decurso do período relativo à liberdade condicional, foi proferida a mesma sentença revogatória sob recurso, sem sequer se pedir informação actualizada sobre a situação do arguido, parecendo-nos que a revogação da liberdade condicional, com o consequente cumprimento do remanescente da pena de prisão, coloca em causa os objectivos perseguidos com a referida pena de prisão executada na habitação.

E o regresso à prisão nestas circunstâncias (sem que seja ao menos tenha sido feita a avaliação dos efeitos que possa ou não ter produzido a referida pena de prisão executada na habitação, e sem que tenha sido avaliado globalmente todo o período em que decorreu a liberdade condicional), em nada contribui para a reinserção do arguido, tendo a desvantagem de o afastar do seu meio familiar e social (onde está inequivocamente inserido), e sem sequer se saber se obteve, ou não, entretanto, licença para conduzir.

João Novais»


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).


[2] Sendo da competência dos Tribunais de Execução de Penas o incidente de incumprimento da liberdade condicional [cfr. o artigo 138º, nº 4, alínea c) de t CEPMPL].
[3] Veja-se até que, lendo o dito relatório constante do Pº 533/21...., pedido por esta Relação, consta da sua conclusão o seguinte:

«De acordo com o exposto, podemos concluir que os objetivos subjacentes à aplicação da medida de flexibilização da pena de liberdade condicional estão a ser atingidos, demonstrando o libertado condicionalmente motivação na consolidação de um projeto de vida em torno de valores normativos, excetuando o seu envolvimento em alegadas práticas criminais, ocorridas durante o período de execução da referida medida»(onde já se abre o flanco para estas eventuais ilicitudes praticadas no decurso da liberdade condicional – fala-se aí até em outros inquéritos por posse de estupefacientes, ainda em investigação).
[4] Note-se, contudo, que entendemos que a audição do arguido, nesta situação, deve ser presencial (o que foi, já se vê).
Como é salientado no Ac. RE de 21.05.2019, processo nº 126709.5PTSTB-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, relativamente à aludida questão, “…a doutrina e jurisprudência maioritárias acolhem o entendimento de que, previamente à decisão sobre a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, impõe-se, como regra, a obrigatoriedade da audição pessoal e presencial do arguido/condenado e que a preterição dessa audição, integrará a nulidade insanável prevista na al. c) do artigo 119º do CPP.
Neste sentido, cf., na doutrina, entre outros, Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 18.ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 234; Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal - Notas e Comentários, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 1485; André Lamas Leite, “A Suspensão da Execução da Pena Privativa da Liberdade sob Pretexto da Revisão de 2007 do Código Penal”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra editora, 2007, pág. 586; e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição, Lisboa 2011, pág. 1252: e na jurisprudência vide, entre muitos outros, Ac.s da RE de 30/09/2014, proc. 335/03.0TAABF.E1, de 05/12/2017, proc. 293/03.1TAVFX.E2 e de 05/06/2018, proc. 175/99.0GACTX.E1; Ac.s da RL de 27/11/2018, proc. 693/09.3TDLSB.L1-5 e de 29/04/2015, proc. 4/01.6GDLSB.L1-9; Ac.s da RP de 07/02/2018, proc. 24/16.6PGGDM-A.P1 e de 10/10/2018, proc. 921/09.5PEGDM.P1; Ac.s da RC de 05/11/2008, proc. 335/01.5TBTNV.P1-D.C1, de 02/12/2015, proc. 13/09.7PECTB-C.C1 e de 06/02/2019, proc. 221/14.9SBGRD-A.C1; e Ac.s da RG de 18/4/2016, proc. 1629/03.0PBBRG.G1 e de 25/02/2019, proc. 89/13.2TAVRM-A.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt”.
[5] Repare-se que apenas tal se alega em motivação e não nas Conclusões.