Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
99/21.6T9SCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: CONVITE À CORRECÇÃO DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
VÍCIOS DO ARTIGO 410.º
N.º 2
DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
DILIGÊNCIAS DE INVESTIGAÇÃO NA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 287.º E 410.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – Perante a posição que o Ministério Público tome no termo do inquérito, o arguido ou o assistente podem requerer a abertura de instrução, podendo o assistente, em alternativa, reclamar hierarquicamente.

II – Face ao AFJ 7/2005, o requerente da abertura da instrução nunca pode ser convidado a corrigir o seu RAI relativamente à descrição dos factos.

III – O RAI que não contenha a descrição dos factos imputados ao arguido é nulo e tal nulidade é insanável e, por isso, de conhecimento oficioso.

IV – Só a falta de fundamentação das sentenças, dos acórdãos e dos despachos de aplicação de medidas de coacção constitui nulidade, constituindo a falta de fundamentação dos restantes dos actos decisórios mera irregularidade.

V – Os vícios do artigo 410.º do C.P.P. estão previstos, tão-só, para as sentenças, e não também para os demais despachos decisórios.

VI – Não dispondo o assistente dos elementos necessários que permita  imputar ao arguido os concretos factos em falta no termo do inquérito, por nem todos terem sido objecto de investigação, ao invés de requerer a realização da instrução deve suscitar a intervenção do superior hierárquico do Magistrado do Ministério Público para que a investigação prossiga, indicando as diligências que pretenda ver realizadas, nomeadamente as que refere no RAI, dado que a instrução não é um complemento do inquérito.

Decisão Texto Integral:
Relator: João Abrunhosa
1.ª Adjunta: Helena Lamas
2.ª Adjunta: Teresa Coimbra
*

…, decidiu-se rejeitar a abertura de instrução, quanto aos Arg.[1] , …, S.A.”, ….” e “Câmara Municipal …”, …, nos seguintes termos (sublinhados nossos):

Os assistentes, inconformados com o arquivamento dos autos, vieram requerer a abertura de instrução, esgrimindo argumentos de sentido contrário, pugnando pela verificação de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo art.º 152.º-B, n.º 1, n.º 2 e n.º 4 do Código Penal, um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo art.º 144.º, alínea b) do Código Penal, e um crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148, n.º 3 do Código Penal.

Contudo, o requerimento para abertura de instrução não descreve convenientemente os elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime.

No caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público e tal como decorre do disposto nos art.º 288.º, n.º 4 e art.º 309.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, o requerimento da abertura de instrução é que define e limita o objecto do processo a partir da sua formulação, dando-se assim expressão prática à estrutura acusatória do processo do processo penal, consagrada no art.º 32.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, salvaguardando igualmente o princípio do contraditório e o direito de defesa do arguido.

A absoluta falta de factos imputados aos visados …, dispensa mais considerações a este respeito, concluindo-se que não se encontram preenchidos nem o elemento objectivo nem o elemento subjectivo do crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo art.º 152.º-B, n.º 1, n.º 2, e n.º 3, b) do Código Penal.

Também quanto a este crime, constata-se que os assistentes não imputam nenhum facto a …, concluindo apenas pela verificação de ofensas graves à integridade física dos assistentes, sem sequer indicar quais as lesões sofridas, nem tão pouco as circunstâncias que levaram à sua verificação. …

Deste modo, conclui-se que não se encontram preenchidos nem o elemento objectivo nem o elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148.º, n.º 3 do Código Penal.


*


Por todo o exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes por inadmissibilidade legal da instrução.


*

Não se conformando, os Assistentes …, interpuseram recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

“... 1.   Vem o presente recurso emanado da rejeição por inadmissibilidade legal da instrução do requerimento de abertura de instrução, …

29.       Da interpretação dos citados normativos, a que também se reporta a decisão recorrida, salvo devido respeito, consideramos que por força do artigo 287º, nºs 2 e n.º 3. do CPP àquele requerimento nenhuma exigência legal faltará para que o torne inábil à concretização dos objetivos pretendidos.

30.       Desta forma, consideramos que o requerimento de abertura de instrução reúne as necessárias condições à sua validade.

32.       Face ao exposto, consideramos que a decisão recorrida viola assim o disposto nos artigos 286º e 287º do CPP.

[2]


*

O Exm.º Magistrado do MP[3] respondeu ao recurso, …


*

A Município … respondeu ao recurso, …

*

Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …

*

[4][5], ….

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a única questão fundamental a decidir no presente recurso é a seguinte:

Cumprimento pelo RAI[6] dos requisitos legais para que possa ser admitido.


*

Cumpre decidir.
O MP tem a direcção exclusiva do inquérito (art.º 263º/1 do CPP[7]).
Findo este, no processo comum e relativamente a crimes públicos ou semi-públicos, o MP deve tomar uma de duas posições: ou arquiva ou acusa (art.ºs 276º/1, 277º e 283º do CPP).
Perante isso, respectivamente, o Assistente ou o Arg. podem requerer a abertura de instrução (art.º 287º/1 do CPP)[8],[9].
O Assistente pode, em alternativa, reclamar hierarquicamente (art.º 278º do CPP).
No presente caso o MP arquivou os autos[10].
Perante este despacho de arquivamento, os Assistentes vieram requerer a abertura da instrução[11].
Como vimos, entendem os Recorrentes que o seu RAI contém todos os elementos necessários para poder sustentar e definir o objecto do processo.
Vejamos se lhes assiste razão[12].
O acórdão do STJ de 12/05/2005, com o n.º 7/2005, veio fixar a seguinte jurisprudência: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.".
Não vislumbramos razões para divergir desta jurisprudência, nem para a considerar ultrapassada, nos termos do disposto nos art.°s 445º/3 e 446º/3 do CPP, pelo que o requerente da abertura da instrução nunca pode ser convidado a corrigir o seu RAI, relativamente à descrição dos factos.
As imputações genéricas não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal[13], pelo que nunca uma acusação ou um RAI se podem bastar com esse tipo de imputações.
O RAI deve ainda conter as indicações tendentes à identificação do Arg..
Se o RAI não contiver a descrição dos factos que se imputam ao Arg., é nulo. Tal nulidade é insanável e, por isso, de conhecimento oficioso (art.º 119º do CPP), aplicando-se aqui o disposto relativamente à acusação (art.º 283º/3-b) do CPP), conforme impõe o art.º 287º/2 do CPP[14].
No presente caso, do RAI apresentado pelos Assistentes não contém as imputações de facto indispensáveis ao preenchimento dos tipos pelos quais pretendem ver os Arg. pronunciados.
Quanto às imputações em falta, remetemos para o despacho recorrido, supra transcrito, que se mostra muito bem fundamentado, nomeadamente as passagens que sublinhámos, porque seria fastidioso e inútil estar aqui a repetir tais passagens.
A propósito do despacho recorrido, ao qual os Recorrentes imputam os vícios de falta de fundamentação (art.º 379º/1-a) do CPP) e de erro notório na apreciação da prova (art.º 410º/2-c) do CPP), importa referir o seguinte:
Só a falta de fundamentação das sentenças, acórdãos (art.º 379º(1-a) do CPP) e dos despachos de aplicação de medidas de coacção (art.º 194º/4 do CPP), constitui nulidade. A falta de fundamentação dos restantes dos actos decisórios constitui mera irregularidade[15].
E os vícios do art.º 410º do CPP estão previstos, tão-só, para as sentenças e não para quaisquer outros despachos decisórios[16], nomeadamente para o tipo de despacho aqui em crise.
Isto posto, regressemos ao RAI.
Admitimos que os Recorrentes, que podiam ter requerido diligências de prova durante o inquérito (art.º 69º/2-a) do CPP)[17], não dispunham de elementos que lhes permitissem imputar os referidos factos em falta, porque nem todos terão sido objecto de investigação durante o inquérito.
Mas, assim sendo, deveriam ter suscitado ou requerido a intervenção do superior hierárquico do Magistrado do MP, para que a investigação prosseguisse, indicando as diligências que pretendia ver realizadas, nomeadamente as que referem no seu RAI[18].
Não o tendo feito, não podia a pretendida instrução suprir essas lacunas da investigação.
Na verdade, como já vimos, toda a investigação deve ser realizada durante o inquérito, porque a instrução não é um complemento deste e “... destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não a completar, ampliar ou prolongar o inquérito ou à feitura de uma outra investigação dos factos, levada a cabo pelo juiz, diferente da do MP ...”.
Improcede, pois, o recurso.

*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e confirmamos a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes, com taxa de Justiça que se fixa em 3 (três) UC, para cada um deles.


*

Notifique.

D.N.


*****

(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

*****






[1] Arguido/a/s.
[2]
[3] Ministério Público.
[4] Supremo Tribunal de Justiça.
[5]
[6] Requerimento para abertura da instrução.
[7] Código de Processo Penal.
[8] Nesse sentido, cf. acórdão da RP de 30/01/2008, relatado por Francisco Marcolino, in www.gde.mj.pt, Processo 0716298, …

[9] Sobre a instrução, ver ainda Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2008, p. 581 e 582, …

[10] Por despacho de 29/11/2022, …
[11] Requerimento com o seguinte teor:

… requer-se, assim, a V. Exa. que seja declarada aberta a instrução;

1. Que seja solicitada à Câmara … que informe …

2. Que seja solicitada …, enquanto dona de obra e na qualidade de …, que informe …

3. Que sejam inquiridas as testemunhas…

4. Que sejam requeridas perícias médico-legais aos ofendidos …

5. REQUEREM: Declarações de Parte da Administração das sociedades …, ou do(s) Engenheiro(s) responsável(eis) …
               [12] …
[13] Nesse sentido, cf. acórdão do STJ de 06/05/2004, relatado por Santos Carvalho, no processo 04P908, in www.gde.mj.pt, …
[14] Nesse sentido, cf. Ac. da RP de 02/06/2004, in www.dgsi.pt, proc. 0346961, …
[15] Neste sentido, cf. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 2008, p. 55, e Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pp. 277.
No mesmo sentido, ver Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pág. 1075, e acórdão do STJ de 20/09/2006, relatado por Pereira Madeira, in www.dgsi.pt, processo 01P4250, …
[16] Neste sentido, ver o acórdão do STJ de 20/06/2002, relatado por Pereira Madeira, no proc. 01P4250, …
No mesmo sentido, cf. o acórdão da RL de 31/10/2017, relatado por Artur Vargues, no proc. 3335/16.7T9SNT.L1-5, in www.dgsi.pt, …
[17] Para o caso de o MP não realizar diligências de inquérito, veja-se o importante acórdão da RE de 20/12/2012, relatado por António João Latas, in www.gde.mj.pt, processo 642/12.1TASTB.E1, …
[18] Sobre o uso dos mecanismos de intervenção hierárquica ou de abertura da instrução, ver o parecer P000312009 do Conselho Consultivo do MP, de 08/11/2012, in www.dgsi.pt, relatado por Pimentel Marcos, …
E o acórdão da RE de 06/11/2012, relatado por Ana Brito, in www.gde.mj.pt, processo 427/09.2TAABF.E1, … Importa ter em conta o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 713/2014, de 28/10/2014, …