Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/14.6TBMDA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - V. N. FOZ CÔA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 50º DO ANTERIOR CPC – ART. 707º DO ACTUAL E ART. 804º DO ANTERIOR CPC – ART. 715º DO ACTUAL CPC
Sumário: I – Um contrato de abertura de crédito, ainda que seja um contrato consensual – por se considerar concluído com o mero acordo das partes –, não importa, só por si, a constituição da obrigação de reembolso de qualquer capital; tal obrigação apenas se constitui a partir do momento em que o cliente ou creditado utilize, efectivamente, qualquer capital, nos termos contratados.

II – Não resultando do aludido contrato que, no momento da sua celebração, tenha sido, desde logo, disponibilizado qualquer capital, nenhuma obrigação de reembolso se poderá considerar constituída nesse momento e, como tal, o documento que titula esse contrato não constitui título executivo para o efeito de exigir o cumprimento daquela obrigação.

III – O art. 50º do anterior CPC – assim como o art. 707º do actual CPC – apenas se aplica a documentos autênticos ou autenticados, pelo que, estando em causa um documento particular, não é admissível a prova complementar a que alude a norma citada para o efeito de provar a constituição da obrigação que nele foi prevista e que se pretende executar; tais documentos (particulares) apenas poderão servir de base à execução se reunirem as características que são exigidas pela alínea c) do art. 46º, ou seja, desde que esses documentos – assinados pelo devedor – importem (eles mesmos e independentemente de qualquer outra prova) a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação, cujo valor seja determinado ou determinável nos termos ali previstos.

IV – A prova complementar a que alude o art. 804º do anterior CPC – bem como o art. 715º do actual CPC – não pode ter como objecto o facto de que depende a constituição da obrigação, destinando-se apenas a provar o facto (seja ele uma condição suspensiva ou uma prestação a executar pelo credor ou por terceiro) do qual depende a exigibilidade da obrigação cuja constituição ou reconhecimento já terá que resultar do título executivo.

V – A efectiva disponibilização de fundos ou capital ao abrigo de um contrato de abertura de crédito não corresponde a uma prestação da qual dependa a exigibilidade da obrigação de reembolso desse capital, antes corresponde a uma prestação da qual depende a constituição desta obrigação e, como tal, a prova da realização dessa prestação não pode ser efectuada ao abrigo do disposto no art. 804º do anterior CPC (715º do actual CPC).

VI – Assim, um contrato de abertura de crédito do qual não resulte que tenha sido, desde logo, disponibilizado qualquer capital e que esteja formalizado em documento particular não constitui título executivo para o efeito de exigir o cumprimento da obrigação de reembolso de qualquer capital, ainda que seja acompanhado de qualquer outro documento que, sem qualquer intervenção do devedor, vise demonstrar a efectiva disponibilização ou utilização de fundos nos termos contratados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A A...., com sede na Avenida (...) , Lisboa, instaurou processo de execução contra B... e B... , residentes na Av. (...) , Meda, pedindo o pagamento da quantia global de 46.749,48€ referente a um contrato de empréstimo, sob a forma de abertura de crédito em conta corrente, no qual os Executados tiveram intervenção como fiadores.

Para fundamentar a execução, junta o aludido contrato e um documento que alude aos movimentos da operação.

O Ministério Público, em representação dos Executados, veio deduzir oposição à execução, sustentando que os documentos juntos não correspondem a títulos executivos, já que, não resultando do contrato que o valor em causa tenha sido efectivamente disponibilizado, os demais documentos também são irrelevantes por não conterem a assinatura dos Executados.

A Exequente contestou, sustentando a improcedência da oposição.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador onde se decidiu julgar procedente a oposição, absolvendo-se os Executados do pedido e julgando-se extinta a execução.

Inconformada com essa decisão, a Exequente veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

A. A exequente, é a A... , S.A., pelo que a sua pretensão, quando diz alega que a dívida é certa, líquida e exigível, tendo os títulos dados à execução força executiva com força bastante, nos termos da lei em vigor encontra fundamento, salvo melhor opinião, no disposto no artigo 9º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8, diploma que estabeleceu o regime jurídico da A... , S.A. (artigo alterado pelo Decreto-Lei n.º 56-A/2005, de 3/5 – que manteve a redacção do referido n.º 4), o qual dispõe que «os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela A... , prevejam a existência de uma obrigação de que a A... seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades».

B. Assim sendo, uma vez que o referido preceito legal não foi objecto de revogação expressa, nomeadamente pelo artigo 4º da Lei n.º 41/2013, de 26/6, impõe-se concluir que o referidos documentos particulares, por titularem actos/contratos realizados pela A... , preverem a existência de obrigações por parte dos mutuário e estarem assinados pelos executados, cabem na previsão do artigo 703º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, e revestem “de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.

C. O documento que constitui o Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente de utilização simples assinado pelos executados revela a existência da obrigação dos executados e constituição da dívida. Tal documento complementado com o extracto de conta, que foi junto aos autos, resulta que o capital foi utilizado, e consequentemente mutuada a quantia que dele consta.

D. Da análise de tais elementos, conjugados com o contrato assinado pelos devedores, resulta que foi constituída/reconhecida uma obrigação pecuniária, cujo montante está determinado ou é determinável por simples cálculo aritmético, de acordo com as cláusulas constantes do contrato (Neste sentido veja-se AC  da Relação do Porto de 16/10/2012, AC da Relação de Coimbra de 07/02/2012; AC da Relação de Coimbra de 25/01/2011).

Sem prescindir,

E. Servem de título à presente execução contratos, que, não obstante a entrada em vigor novo Código mantêm, a sua força executiva.

F. Por força do artigo 6º, nº. 3 da Lei que aprovou o novo CPC, ainda que interpretado extensivamente, os títulos executivos que face ao antigo CPC tinham força executória, não perdem esse valor com entrada do novo CPC.

G. A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

H. A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível.

I. Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.

J. Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.

K. Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respetiva ação executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data da entrada em vigor da nova lei,

L. As expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.

M. A retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g. oposições à execução).

N. Ora, as razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, do nosso ponto de vista, sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.

O. Ponderando-se os dois interesses em confronto- os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas a fim de organizarem os seus planos de vida, evitando-se o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; o interesse público preocupa-se com a transformação da ordem jurídica de modo a adaptá-la o mais possível às necessidades sociais- o método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos. Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 862/13 e n.º 287/90).

P. Em suma, consideramos que a norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

Q. Como conclui o douto Acórdão do Tribunal Constitucional: aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de julho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem um disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.

R. Posto isto, aos contratos apresentados com o requerimento executivo foi conferida a característica da exequibilidade por força do disposto no artigo 46º, nº1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil. E, considerando a inconstitucionalidade da norma que retirou essa característica da exequibilidade, conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, na interpretação supra identificada, a mesma é inaplicável, pelo que se mantém o regime anteriormente previsto e, como tal, o documento apresentado pela exequente constitui um título executivo que, como tal deverão ser aceites, devendo a execução prosseguir a sua normal tramitação.

S. A presente sentença viola o disposto no artigo 4º e 6º da Lei n.º 41/2013, de 26/6, que aprovou o novo CPC; artigo 12º do C. Civil; artigo 703º, nº 1 alínea d) do CPC; artigo 9º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8 e artigos 2º, 13º e 18º n.º 2 da Lei Fundamental.

Nestes termos e mais de direito, pelos fundamentos expostos, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída em conformidade com os termos e com os fundamentos acima enunciados, com as legais consequências.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, onde formula as seguintes conclusões:

1.ª - Vem a exequente “ A... , S.A.” recorrer da decisão que julgou procedente a oposição à execução, absolvendo os executados do pedido e julgando extinta a execução contra estes, alegando que o Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente (de utilização simples) é título executivo nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil e que é inconstitucional a norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor, do elenco dos títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6.º n.º 3 da Lei n.º 41/2013, quando interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do anterior Código de Processo Civil.

2.ª - A norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil não tem aplicação in casu, uma vez que o documento dado à execução não prevê a existência de uma obrigação de que a Recorrente seja credora, mas tão somente a promessa de um empréstimo, só surgindo a obrigação, e consequentemente a dívida, no momento em que o crédito é concedido.

3.ª - O documento dado à execução não reúne os necessários requisitos para ser considerado título executivo, nem à luz da anterior versão do Código de Processo Civil, motivo pelo qual não está em causa a aplicação da norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor, do elenco dos títulos executivos, inexistindo qualquer inconstitucionalidade da decisão recorrida.

4.ª - Nenhuma censura merece a sentença recorrida, que não violou nenhum dos preceitos legais invocados, ou quaisquer outros.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o art. 703º do actual CPC – que veio retirar exequibilidade a documentos particulares que eram elencados como títulos executivos no art. 46º do anterior CPC – é inconstitucional por violação do princípio a segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático, quando aplicado a documentos particulares que foram emitidos em data anterior à sua entrada em vigor;

• Saber – caso se conclua pela aludida inconstitucionalidade – se os documentos em que se baseia a presente execução correspondem a título executivo em face da lei processual civil anterior e se, como tal, estão reunidas as condições de que depende o prosseguimento da execução.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se assente a seguinte matéria de facto:

1) Os presentes autos estão apensos à acção de processo executivo n.º 18/14.6TBMDA apresentada em 17 de Fevereiro de 2014, em que A... , S.A. designada como Exequente, reclama a entrega por B... e B... designados como Executados, do valor de €46.749,48.

2)No processo n.º 18/14.6TBMDA, a que esta oposição está apensa, figura como título executivo um documento epigrafado “Contrato de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples” outorgado em 29 de Setembro de 2006, no qual D... , Lda., na qualidade de primeira contratante, B... e B... na qualidade de fiadores e A... , S.A. acordam, entre o demais:

(…)2.CONTRATO:00350453004677792

5.MONTANTE: Até EUR:35.000,00 (trinta e cinco mil euros)

6.PRAZO

6.1- O prazo do presente contrato é de seis meses, com início na data da sua perfeição.

6.2- O prazo referido será automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos. (…)

7.UTILIZAÇÃO DOS FUNDOS: CONDIÇÕES E MOVIMENTO DA CONTA CORRENTE

7.1.-OS CLIENTES poderão utilizar a conta corrente mediante pedido escrito efectuado com uma antecedência mínima de três dias úteis, ou sempre que, após a apresentação de documentos que determinem débitos na conta de depósitos à ordem adiante identificada, se verifique esta não ter provisão suficiente para o efeito.(…)

12.CONTA DE DEPÓSITO À ORDEM: As utilizações e os reembolsos previstos neste contrato serão efectuados através da conta de depósito à ordem n.º 0453011266330 (…)

13.FORMA DOS PAGAMENTOS

13.1-Todos os pagamentos a que os CLIENTES ficam obrigados serão efectuados através de débito na sua conta de depósitos à ordem atrás referida, que os mesmos se obrigam a manter devida e atempadamente provisionada para o efeito, ficando desde já a A... autorizada a proceder às respectivas movimentações.

13.2-No caso de não se mostrar possível o pagamento integral dos créditos emergentes do presente contrato nas datas convencionadas e pelo meio indicado no número anterior, fica igualmente a A... autorizada a debitar pelo valor dos montantes em dívida e, independentemente de declaração, quaisquer outras contas existentes em nome dos CLIENTES e ou dos AVALISTAS/FIADORES, de que a A... seja depositária, para o que os mesmos AVALISTAS/FIADORES dão também e desde já o respectivo acordo e autorização de movimentação. (..)

19.INCUMPRIMENTO/EXIBILIDADE ANTECIPADA

19.1-A A... poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu pagamento imediato no caso de, designadamente:

a)Incumprimento pelos CLIENTES ou por qualquer dos restantes contraentes de qualquer obrigação decorrente deste contrato.(…)

20.GARANTIAS:

20.1- FIANÇA: A(s) pessoa(s) identificada(s) para o efeito no início do contrato constitui(em)-se FIADOR(ES) solidário(s) e principal(ais) pagador(es) de todas e quaisquer quantias que vierem a ser devidas à A... pelo(s) CLIENTES no âmbito do presente contrato DE EMPRÉSTIMO (…) e dá(ão) antecipadamente o seu acordo a prorrogações de prazo e a moratórias que forem convencionadas entre a A... e os CLIENTES.

(…)

21.CONFISSÃO DE DÍVIDA: Os CLIENTES confessam-se devedores das quantias disponibilizadas através desta abertura de crédito, dos respectivos juros, comissões, despesas e demais encargos previstos no presente contrato.

22.MEIOS DE PROVA:

22.1- Fica convencionado que o extracto da conta do empréstimo e bem assim todos os documentos de débito emitidos pela A... , e relacionados com o presnete contrato, serão havidos, para todos os efeitos legais, como documentos suficientes para prova e determinação dos montantes em dívida, tendo em vista a exigência, justificação ou reclamação judicial dos créditos que deles resultarem em qualquer processo.”(…)

3) No processo n.º 18/14.6TBMDA a que esta oposição está apensa, figura ainda como título executivo um documento epigrafado “Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente de Utilização Simples” outorgado em 8 de Janeiro de 2008, no qual no qual D... , Lda., na qualidade de primeira contratante, B... e B... na qualidade de fiadores e A... , S.A. acordam, entre o demais:

I.Por contrato considerado perfeito em 29/09/2006, a A... concedeu à 1.ª CONTRATANTE um empréstimo sob a forma de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples até ao montante de €35.000,00 (trinta e cinco mil Euros), garantido por fiança e aval prestado pelos 2.º CONTRATANTES, sobre livrança em branco subscrita pela Empresa.

II.Pretende agora a 1.º CONTRATANTE a alteração das condições do referido contrato nomeadamente a elevação do montante para €70.000,00 (setenta mil Euros), o que merece a concordância da A... , mantendo-se as garantias prestadas”.

4) No processo n.º 18/14.6TBMDA a que esta oposição está apensa, figura ainda como título executivo um documento epigrafado “Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente de Utilização Simples” outorgado em 30 de Novembro de 2012, no qual no qual D... , Lda., na qualidade de primeira contratante, B... e B... na qualidade de fiadores e A... , S.A. acordam, entre o demais:

I.Por contrato considerado perfeito em 29/09/2006, a A... concedeu à 1.ª CONTRATANTE um empréstimo sob a forma de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples até ao montante de €70.000,00 (setenta mil Euros) garantido por fiança e aval prestado pelos 2.º CONTRATANTES, sobre livrança em branco subscrita pela Empresa.

II.Pretende agora a 1.º CONTRATANTE a alteração das condições do referido contrato nomeadamente a redução do montante para €40.000,00 (quarenta mil euros), o que merece a concordância da A... , mantendo-se as garantias prestadas (…)”.

5) Figura ainda como documento complementar movimentos de operações da conta n.º 00350453004677792.


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IV.

Reagindo contra a decisão que julgou procedente a oposição por ter considerado que não existia título executivo, sustenta a Apelante que o documento dado à execução deve ser considerado título executivo bastante, porquanto o art. 703º do actual CPC – que veio retirar exequibilidade a documentos particulares que eram elencados como títulos executivos no art. 46º do anterior CPC – é inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

É certo que o art. 703º do actual CPC, ao elencar os documentos que podem servir de base à execução, não faz referência aos documentos particulares que eram referidos no art. 46º, nº1, alínea c), do anterior CPC – documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto – impondo-se, por isso, concluir que o actual CPC retirou aos aludidos documentos particulares a exequibilidade que lhes era conferida pelo anterior CPC.

A verdade é que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 408/2015[1] veio entretanto – já depois de proferida a sentença e depois de interposto o presente recurso – declarar, com força obrigatória geral, “…a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)”.

Assim, perante essa declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, serão inúteis quaisquer outras considerações a propósito dessa questão.

Nestes termos, baseando-se a presente execução em documento particular emitido em data anterior à entrada em vigor do actual CPC, a mera circunstância de esse documento não constar do elenco de títulos executivos que está definido no art. 703º do actual CPC não seria razão bastante para julgar procedente a oposição e o que importa saber é se o documento no qual se baseia a presente execução corresponde ou não a título executivo bastante em face do disposto no art. 46º do anterior CPC.

 A decisão recorrida – que também analisou a questão nesta perspectiva – considerou que o documento em causa não constituía título executivo em face do disposto no art. 46º do anterior CPC, na medida em que não representava a constituição ou o reconhecimento de qualquer dívida; estava em causa uma abertura de crédito em conta corrente cuja execução estava dependente de prestações futuras e que não poderia, só por si, configurar título executivo, mais considerando que a documentação complementar junta aos autos também não tinha essa virtualidade.

 Diz, no entanto, a Apelante que o documento em causa – que constitui o Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente de utilização simples – está assinado pelos Executados e revela a existência da obrigação dos executados e constituição da dívida, resultando do extracto de conta que foi junto aos autos que o capital foi utilizado, e consequentemente, mutuada a quantia que dele consta.

Analisemos, portanto, essa questão.

Dispunha o art. 46º, nº 1, alínea c), do anterior CPC que podiam servir de base à execução “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

 Os documentos dados à execução são, indiscutivelmente, documentos particulares que estão assinados pelos Executados (pretensos devedores) e, portanto, o que importa saber é se tais documentos importam ou não o reconhecimento ou a constituição de uma determinada (ou determinável por simples cálculo aritmético) obrigação pecuniária.

Os aludidos documentos correspondem a um “contrato de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples” e respectivas alterações, por via do qual os clientes poderiam vir a utilizar determinados fundos que a Exequente lhe disponibilizaria em determinadas condições, ficando, naturalmente, obrigados a proceder ao reembolso dos valores utilizados nos termos contratados.

Mas, como é bom de ver, a mera celebração desse contrato não comporta, só por si, a constituição de qualquer obrigação a cargo do “cliente”; nesse contrato, a instituição bancária não concede imediatamente qualquer crédito ao cliente e não lhe disponibiliza de imediato qualquer fundo, obrigando-se apenas a disponibilizar, no futuro, os fundos que o cliente lhe venha a exigir nos termos acordados e, ainda que o contrato estabeleça, desde logo, os termos e as condições em que o cliente deverá proceder ao reembolso dos fundos que vier a utilizar, essa obrigação apenas se constitui no momento em que lhe for disponibilizado qualquer capital nos termos contratados e caso isso venha, efectivamente, a acontecer. O contrato em causa assume-se, portanto, como um acordo que tem em vista a execução de prestações futuras (as que vierem a ser exigidas pelo cliente nos termos contratualmente estabelecidos) e a constituição futura das obrigações que correspondem a tais prestações e que dependem, naturalmente, da sua efectiva execução.

O contrato de abertura de crédito pode ser definido como “o contrato pelo qual o banco (creditante) se obriga a colocar à disposição do cliente (creditado) uma determinada quantia pecuniária (acreditamento ou “linha de crédito), por tempo determinado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões[2].

A abertura de crédito configura-se como um contrato consensual, cuja formação e conclusão se completa com o mero acordo das partes e sem necessidade, portanto – ao contrário do que acontece com o contrato de mútuo –, de entrega de qualquer capital, podendo constituir-se e extinguir-se, cumprindo a sua função, sem que chegue a ser concedido crédito algum[3]. Mas, se é certo que a efectiva concessão ou disponibilização do crédito não é necessária para a válida formação do contrato, ela será necessária para a constituição da obrigação de reembolso do capital que venha a ser utilizado. Ou seja, o contrato fica concluído com o acordo das partes, mas a obrigação de reembolso de qualquer capital, ainda que tenha a sua fonte no contrato, apenas nasce e apenas se constitui no momento em que algum capital seja disponibilizado ou utilizado nos termos convencionados.

É certo, portanto, que o contrato de abertura de crédito – como é o caso do contrato que serve de base à execução – não importa, só por si, a constituição da obrigação de reembolso de qualquer capital; tal obrigação apenas se constitui – como dissemos – a partir do momento em que o cliente ou creditado utilize, efectivamente, qualquer capital, nos termos contratados e, não resultando do contrato dado à execução que tal tenha acontecido de imediato, nenhuma obrigação de reembolso se poderá considerar constituída nesse momento por efeito da celebração do contrato.

O aludido contrato não corresponde, portanto, a um documento que importe a constituição ou reconhecimento da concreta obrigação pecuniária que está a ser exigida na presente execução – a obrigação de reembolso do capital, alegadamente utilizado pelos clientes, e respectivos juros – e, como tal, não se insere no âmbito de previsão do art. 46º, nº 1, alínea c), do CPC.

Coloca-se, no entanto, a questão de saber se o aludido contrato – que, só por si, não tem exequibilidade – poderá ser considerado título executivo por ter sido acompanhado do extracto da conta corrente da operação que, na perspectiva da Apelante, demonstra a efectiva disponibilização de determinados fundos.

A decisão recorrida entendeu que não, considerando, em termos gerais, que o art. 50º do CPC apenas se aplica a documentos autênticos ou autenticados (o que não é o caso dos autos) e que, além do mais, o aludido documento nem sequer obedece às condições estabelecidas no documento que constitui base da execução (como exige o art. 50º), sendo que dele não resulta que tenha sido passado em conformidade com as cláusulas do contrato e dele não resulta, sequer, que constitua uma unidade negocial com o contrato de abertura de crédito, sendo insuficiente para demonstrar a disponibilização e utilização do crédito que é alegada pelo Exequente.

Vejamos, então, a questão.

Dispunha o art. 50º do anterior CPC que “Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”.

A norma em questão dispõe precisamente sobre situações idênticas à dos autos – em que a constituição da obrigação que se pretende exigir não decorre directamente do documento (contrato) que se limitou a prever a possibilidade de, no futuro, ela poder vir a ser constituída –, aí se determinado que, apesar de o documento não importar a constituição ou reconhecimento da obrigação (como seria necessário para que constituísse título executivo face ao disposto no art. 46º), pode ainda assim servir de base à execução, desde que se prove, por documento que reúna as características aí indicadas, que a obrigação se constituiu efectivamente na sequência da previsão das partes, documento que, numa situação como a dos autos, teria que comprovar a efectiva disponibilização de determinados fundos ao cliente (efectiva concessão de crédito), já que, como se disse, é esse o facto que determina a constituição da obrigação de reembolso desse capital.

Sucede, no entanto, que o citado art. 50º restringe o seu âmbito de previsão a documentos autênticos ou autenticados e, ao contrário do que pretende a Apelante, não tem aplicação a documentos particulares.

Com efeito, além de a aplicação da norma a documentos particulares não encontrar o mínimo apoio na letra da lei que discrimina, expressa e claramente, os documentos a que se reporta (documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal), também nos parece claro que a intenção e o pensamento legislativo ia precisamente nesse sentido.

E, para demonstrar isso, basta atentar na história do preceito e nas alterações que foi sofrendo ao longo do tempo.

O Código de Processo Civil de 1961 – aprovado pelo Dec. Lei nº 44129 – enunciava como títulos executivos (no art. 46º, b) os documentos autênticos extra-oficiais, aludindo, na alínea c), aos documentos particulares. E no art. 50º, definindo as condições de exequibilidade dos documentos autênticos extra-oficiais, separava claramente as escrituras públicas dos demais documentos autênticos, estabelecendo que só as aludidas escrituras serviam como título executivo relativamente a obrigações futuras que nela fossem previstas, desde que acompanhadas de documento complementar que comprovasse a efectiva constituição da obrigação. Ou seja, conforme intenção expressa do legislador, a norma em questão não era, sequer, aplicável a todos os documentos autênticos e muito menos seria aplicável aos documentos particulares.

Essas disposições legais foram alteradas pelo Dec. Lei nº 47690 de 11/05/1967, passando a ser enunciados como títulos executivos os documentos exarados ou autenticados por notário (ao invés dos documentos autênticos extra-oficiais a que aludia a norma anterior) e o art. 50º continuou a fazer uma clara distinção entre as escrituras públicas e os demais documentos exarados ou autenticados por notário, estabelecendo que só as aludidas escrituras serviam como título executivo relativamente a obrigações futuras que nelas fossem previstas, desde que acompanhadas de documento complementar que comprovasse a efectiva constituição da obrigação.

O Dec. Lei 329-A/95, de 12/12, veio estender a exequibilidade relativamente a obrigações futuras (desde que feita prova complementar da sua efectiva constituição) a todos os documentos exarados ou autenticados por notário (a que aludia a alínea b) do art. 46º), referindo-se expressamente, no respectivo preâmbulo, que “ampliam-se as circunstâncias em que os documentos autênticos ou autenticados podem servir de títulos executivos, quando neles se convencionem prestações futuras”, deixando claro, na nossa perspectiva, que essa ampliação se reportava exclusivamente a documentos autênticos ou autenticados (excluindo, portanto, os documentos particulares) e que, como tal, apenas visava conferir essa exequibilidade (que, anteriormente, se restringia às escrituras públicas) a todos os documentos autênticos ou autenticados e não a qualquer outro tipo de documento.

E o Dec. Lei nº 116/2008, de 04/07, veio alterar as aludidas normas, mas apenas no sentido de equiparar aos documentos exarados ou autenticados por notário os documentos exarados ou autenticados por outras entidades ou profissionais com competência para o efeito.

Significa isto, portanto, que o legislador sempre teve a preocupação – e a clara intenção – de restringir os documentos que podiam servir de título executivo relativamente a obrigações futuras (desde que acompanhados de prova complementar no sentido de comprovar a efectiva constituição da obrigação). Essa exequibilidade, que estava inicialmente limitada às escrituras públicas, foi sendo sucessivamente alargada mas apenas no que toca a documentos autênticos ou autenticados, nunca tendo abrangido os documentos particulares, sendo evidente – pelas alterações de redacção dos arts. 46º e 50º - que o âmbito de previsão do art. 50º sempre esteve ligado aos documentos que eram referidos na alínea b) do art. 46º e não aos documentos particulares que estavam incluídos numa outra alínea desta disposição legal.

Concluímos, portanto, em face do exposto, que o art. 50º do CPC não tem aplicação a documentos particulares, pelo que estes documentos apenas poderão servir de base à execução se reunirem as características que são exigidas pela alínea c) do art. 46º, ou seja, desde que esses documentos – assinados pelo devedor – importem (eles mesmos e independentemente de qualquer outra prova) a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação, cujo valor seja determinado ou determinável nos termos ali previstos[4].

Não é esse, como vimos, o caso do documento (contrato de abertura de crédito) que serve de base à presente execução porque o mesmo não incorpora a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária que está aqui a ser exigida.  

E ainda que existam decisões dos nossos tribunais em sentido contrário[5], não nos parece que seja possível admitir aquela prova complementar ao abrigo do disposto no art. 804º, nº 1, do anterior CPC, onde se dispõe que “quando a obrigação esteja dependente de condição suspensiva ou de uma prestação por parte do credor ou de terceiro, incumbe ao credor provar documentalmente, perante o agente de execução, que se verificou a condição ou que se efectuou ou ofereceu a prestação”.

Com efeito, o que está em causa nesta norma é apenas a verificação de um facto do qual depende a exigibilidade da obrigação e não a verificação de um facto do qual depende a própria constituição e existência da obrigação. A constituição ou reconhecimento da obrigação terá que resultar do título executivo, nos termos que se encontram regulados nos arts. 46º e segs. e só no caso de existir título executivo válido, nos termos das referidas disposições legais, se poderá colocar a questão de saber (mediante a prova a que alude o art. 804º) se está ou não verificada a condição ou executada a prestação da qual depende a exigibilidade da obrigação cuja constituição ou reconhecimento resulta do título executivo.

Isso mesmo referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto[6], quando dizem não dever ser confundida a previsão do art. 50º e do art. 804º, reportando-se o primeiro à fase da constituição da obrigação enquanto o segundo apenas se reporta à fase da sua execução e demonstração da sua exigibilidade.

Também Eurico Lopes Cardoso[7] afirma que “Não deve confundir-se a prova da exigibilidade da obrigação, regulada no nº 2 do art. 804º, com a prova complementar das escrituras públicas de crédito e semelhantes, referida no nº 2 do artigo 50º (…) Ambos os preceitos falam na necessidade de demonstrar que foi feita alguma prestação pelo exequente mas as hipóteses que cada um deles contempla são perfeitamente distintas: - No caso do artigo 804º, trata-se de provar o vencimento da obrigação; no do artigo 50º, a obrigação pode estar vencida mas tem de se fazer prova do seu montante”.

Refira-se, aliás, que a aplicação da norma citada para o efeito de provar a constituição da obrigação que foi prevista no título significaria que a prova da constituição da obrigação prevista em documento particular seria bem mais fácil do que a prova da constituição da obrigação prevista em documento autêntico ou autenticado; estando em causa um documento particular, essa prova poderia ser efectuada por qualquer meio probatório, nos termos que estão consignados no art. 804º, mas, estando em causa um documento autêntico ou autenticado, essa prova teria que ser efectuada através dos documentos que estão previstos no art. 50º. E, a admitir-se – como teria que ser o caso – que o art. 804º, sendo aplicável a documentos particulares, também teria que ser aplicável a documentos autênticos ou autenticados, ficaria sem qualquer aplicação e sem qualquer sentido útil a norma do art. 50º.

É certo, portanto, que o art. 804º não se aplica à prova do facto do qual depende a constituição da obrigação, visando apenas a prova do facto do qual depende a exigibilidade da obrigação cuja constituição ou reconhecimento já resulta do título executivo no qual a execução se baseia.

Ora, o que está em causa nos presentes autos é a própria constituição da obrigação que é objecto da execução. A prestação a executar pela Exequente (efectiva concessão do crédito ou disponibilização de fundos) não é condição de exigibilidade de uma obrigação dos aqui Executados previamente constituída e existente, cuja prova pudesse ser feita nos termos do citado art. 804º (mediante documento ou, não sendo isso possível, por qualquer outro meio de prova); tal prestação assume-se como um facto do qual depende a constituição da obrigação de reembolso do capital mutuado e que, como tal, só admitiria prova documental, nos termos do art. 50º, se o documento onde foi prevista a constituição dessa obrigação fosse um documento autêntico ou autenticado. Estando em causa – como está – um documento particular, não é admissível essa prova complementar, sendo que, como decorre do disposto no art. 46º, al. c), o documento particular apenas pode servir de base à execução se dele resultar a efectiva constituição ou reconhecimento de uma obrigação cujo valor esteja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, o que, manifestamente, não ocorre com o documento (contrato) que serve de base à execução, documento este que, além de não importar a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, nem sequer permitiria, só pelas suas cláusulas, a determinação do seu valor.

Não obstante a inaplicabilidade ao caso sub judice do disposto nos arts. 50º e 804º, poder-se-ia admitir que, como se considerou no Acórdão do STJ de 05/05/2011[8], o título executivo pode ser complexo e que, como tal, pode ser admitido como título um conjunto de documentos que, isoladamente, não tinham força executiva. Diz-se, no sumário desse Acórdão que “O título executivo é complexo quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo” e, acrescenta-se “Se um complexo documental particular, de aparente exequibilidade extrínseca e intrínseca, é recognitivo de uma obrigação pecuniária, exigível e líquida, preenche o título executivo extrajudicial tipificado na al. c) do art. 46.º do CPC”.

Refira-se, no entanto, que, no que toca a documentos particulares, isso poderá significar, na prática, a admissão da prova complementar que está prevista no art. 50º e que, como se referiu, o legislador reservou para os documentos autênticos ou autenticados.

De qualquer forma e salvo o devido respeito, para que tal fosse possível sempre seria necessário que o conjunto desses documentos – articulados e complementados entre si – pudesse ser inserido na previsão das normas legais que determinam as condições necessárias para a exequibilidade dos documentos, impondo-se, portanto, no que toca a documentos particulares, que o conjunto dos documentos apresentados permitisse concluir que, com a assinatura do devedor, se havia constituído ou havia sido reconhecida uma obrigação, cujo valor estivesse ali determinado ou que fosse determinável por simples cálculo aritmético, como exige a alínea c) do art. 46º.

E, nessa perspectiva, poder-se-ia admitir como título executivo o contrato de abertura de crédito junto aos autos conjugado com qualquer outro documento que, com a intervenção do devedor, permitisse concluir que a obrigação que havia sido prevista naquele contrato se havia constituído, efectivamente, por valor determinado ou determinável por cálculo aritmético, como aconteceria, por exemplo, se tal contrato fosse acompanhado de qualquer documento, assinado pelo devedor, onde se declarasse ter sido recebido ou disponibilizado um determinado valor ou um qualquer documento equivalente. Mas, salvo o devido respeito, não poderia ser considerado para esse efeito um mero extracto da conta corrente que foi elaborado pela Exequente sem qualquer intervenção do devedor, já que, se é certo que o contrato de abertura de crédito não demonstra, só por si, a constituição de qualquer obrigação a cargo dos Executados, também é certo que o aludido extracto, não tendo qualquer intervenção do devedor – não correspondendo, sequer, ao extracto da conta do devedor onde tenha sido creditado o valor mutuado –, não tem qualquer idoneidade para demonstrar a efectiva disponibilização de qualquer valor e a constituição da correspondente obrigação de reembolso, sendo por isso, insuficiente para demonstrar ao tribunal a probabilidade da existência do direito que o título visa assegurar.

Concluímos, portanto, que – tal como se considerou na decisão recorrida – os documentos juntos não constituem título executivo bastante para fundamentar a presente execução, razão pela qual se confirma a decisão, improcedendo o recurso.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Um contrato de abertura de crédito, ainda que seja um contrato consensual – por se considerar concluído com o mero acordo das partes –, não importa, só por si, a constituição da obrigação de reembolso de qualquer capital; tal obrigação apenas se constitui a partir do momento em que o cliente ou creditado utilize, efectivamente, qualquer capital, nos termos contratados.

II – Não resultando do aludido contrato que, no momento da sua celebração, tenha sido, desde logo, disponibilizado qualquer capital, nenhuma obrigação de reembolso se poderá considerar constituída nesse momento e, como tal, o documento que titula esse contrato não constitui título executivo para o efeito de exigir o cumprimento daquela obrigação.

III – O art. 50º do anterior CPC – assim como o art. 707º do actual CPC – apenas se aplica a documentos autênticos ou autenticados, pelo que, estando em causa um documento particular, não é admissível a prova complementar a que alude a norma citada para o efeito de provar a constituição da obrigação que nele foi prevista e que se pretende executar; tais documentos (particulares) apenas poderão servir de base à execução se reunirem as características que são exigidas pela alínea c) do art. 46º, ou seja, desde que esses documentos – assinados pelo devedor – importem (eles mesmos e independentemente de qualquer outra prova) a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação, cujo valor seja determinado ou determinável nos termos ali previstos.

IV – A prova complementar a que alude o art. 804º do anterior CPC – bem como o art. 715º do actual CPC – não pode ter como objecto o facto de que depende a constituição da obrigação, destinando-se apenas a provar o facto (seja ele uma condição suspensiva ou uma prestação a executar pelo credor ou por terceiro) do qual depende a exigibilidade da obrigação cuja constituição ou reconhecimento já terá que resultar do título executivo.

V – A efectiva disponibilização de fundos ou capital ao abrigo de um contrato de abertura de crédito não corresponde a uma prestação da qual dependa a exigibilidade da obrigação de reembolso desse capital, antes corresponde a uma prestação da qual depende a constituição desta obrigação e, como tal, a prova da realização dessa prestação não pode ser efectuada ao abrigo do disposto no art. 804º do anterior CPC (715º do actual CPC).

VI – Assim, um contrato de abertura de crédito do qual não resulte que tenha sido, desde logo, disponibilizado qualquer capital e que esteja formalizado em documento particular não constitui título executivo para o efeito de exigir o cumprimento da obrigação de reembolso de qualquer capital, ainda que seja acompanhado de qualquer outro documento que, sem qualquer intervenção do devedor, vise demonstrar a efectiva disponibilização ou utilização de fundos nos termos contratados.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Publicado no DR, I Série, de 14/10/2015.
[2] Cfr. José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, pág. 501.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, revista e actualizada, pág. 682 e Acórdão do STJ de 13/12/2000, Col. Jur., Acórdãos do STJ, Ano VIII, tomo III, pág.174 e segs.
[4] Neste sentido se decidiu nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 03/10/2013 e 26/01/2010, proferidos nos processos nºs 8159/12.8TBOER.L1-6 e 5548/08.6TCLRS.L1-7, respectivamente; no Acórdão da Relação de Coimbra de 21/03/2013, proferido no processo nº 195/11.8TBGVA-A.C1 e no Acórdão da Relação do Porto de 02/02/2015, proferido no processo nº 5901/13.3YYPRT-B.P1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Acórdãos citados pela Apelante.
[6] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 107.
[7] Manual da Acção Executiva, 1987, pág. 220.
[8] Proferido no processo nº 5652/9.3TBBRG.P1.S1, disponível em http://www-dgsi.pt.