Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
349/14.5TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
RECUSA
REGIME APLICÁVEL
PLANO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - INSTÂNCIA CENTRAL - SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 5 DO ART.º 17.º-F, N.ºS 2, 3 E 4 DO ART.º 212.º E ART.º 215.º DO CIRE
Sumário: I. As normas contidas nos n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 212.º do CIRE são aplicáveis no âmbito dos processos especiais de revitalização.

II. Tal solução justifica-se porquanto, em matéria de aprovação e homologação pelo juiz do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor valem as regras de homologação do plano de insolvência, nos termos do n.º 5 do art.º 17.º-F, não se vendo fundamento para exceptuar aquelas disposições, cuja razão de ser é, no âmbito do plano de revitalização, igualmente válida: uma vez que o credor em causa não viu o seu crédito atingido, não carece da protecção do voto.

III. Ocorre violação não negligenciável de regras procedimentais se para a aprovação do plano foram decisivos os votos daquele credor, impondo-se a recusa oficiosa da sua homologação, nos termos do art.º 215.º do CIRE.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório

A... e B..., casados entre si, residentes em (...) , invocando o atravessamento de período no qual enfrentam sérias dificuldades económicas em virtude da falta de liquidez, vieram, ao abrigo do disposto no art.º 17.º-C, nº 3, al.s a) e b) do CIRE, introduzido pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, comunicar a sua intenção de dar início ao procedimento especial de revitalização aqui previsto, tendo em vista a aprovação de plano de recuperação.

Procederam à junção das declarações a que aludem os artigos 17.º-A, n.ºs 1 e 2, art.º 17.º-C, n.º 1 e 24.º, n.º 1, todos do referido diploma, e indicaram a pessoa a nomear como administrador judicial provisório.

Tendo a nomeação recaído sobre a pessoa indicada, nomeação devidamente publicitada, prosseguiram os autos seus regulares termos, tendo o Sr. administradora nomeada feito juntar aos autos a lista provisória dos créditos a que alude o n.º 3 do art.º 17.º-D do CIRE, a qual, por não impugnada, foi convertida em definitiva (cfr. despacho de fls. 54).

Foi requerida em 28.11.2014 a prorrogação de prazo das negociações, igualmente publicitada pelo Tribunal (cfr. fls. 74 e ss.).

Foi de seguida apresentada proposta do plano de revitalização dos devedores, nos seguintes termos:

Crédito reconhecido e garantido:

D... , SA, pessoa colectiva nº (...) com sede na (...) em Lisboa, com uma dívida na quantia global de € 94.557,58 (noventa e cinco mil quinhentos e cinquenta e sete euros e cinquenta e oito cêntimos).

Créditos reconhecidos comuns

E..., SA, com uma dívida na quantia global de € 5.378,26 (cinco mil trezentos e setenta e oito euros e vinte e seis cêntimos).

F..., Sucursal em Portugal, com uma dívida na quantia global de € 5.417,25 (cinco mil quatrocentos e dezassete euros e vinte e cinco cêntimos).

G... , Sucursal em Portugal, pessoa colectiva nº (...) , com sede na (...) em Lisboa, com uma dívida na quantia global de 16.769,47 (dezasseis mil, setecentos e sessenta e nove euros e quarenta e sete cêntimos).

H... , S.A., com uma dívida no montante de 4.539,09 (quatro mil quinhentos e trinta e nove euros e nove cêntimos);

I... , S.A., com uma dívida no valor de 14,98 (catorze euros e noventa e oito cêntimos).

Proposta para os créditos comuns:

Propõe-se o perdão em 100,000% de juros vencidos e vincendos, contudo, como o E... e a H... não disponibilizaram aos devedores a descriminação em capital e em juros, entenderam os devedores considerar para todos os credores comuns os totais reclamados, propondo-se assim globalmente o perdão de 90 % desses totais.

Nos prazos de pagamento procurou seguir-se um critério e uma metodologia de equidade, mas tendo em vista a capacidade de pagamento dos Devedores, evitando-se criar falsas expectativas que a posteriori se concluiria serem inexequíveis.

Assim, os Devedores propõem-se pagar os seguintes montantes aos seguintes credores:

A) Créditos Comuns:

E... , S.A. € 537,83;

F... , € 541,72;

G... , Sucursal em Portugal € 1.676,95;

H... , S.A. € 453,90;

I... , S.A. € 14,98

Prazos e condições de pagamento:

E... , S.A. em 18 prestações mensais com o valor unitário de € 29,88;

F... , em 18 prestações mensais com o valor unitário de € 30,09;

G... , Sucursal em Portugal em 24 prestações mensais com o valor unitário de € 69,87;

H... , S.A. em 18 prestações mensais com o valor unitário de € 25,22;

I... , S.A. numa única prestação de € 14,98.

Aos credores comuns solicita-se um mês de carência após a homologação do plano.

B) Dos créditos garantidos, relativamente à divida à D... , S.A. esta é assumida integralmente e sem quaisquer reservas, não se propondo nenhum perdão quer de juros vencidos quer de juros vincendos, mantendo-se as condições contratadas entre Credora e Devedores, com o pagamento da prestação mensal de aproximadamente € 420,00;

C) Créditos ao Estado – conforme já supra mencionado resultam de 12 (doze) processos relativos a taxas de portagens, cf. ANEXO 1 (12 x 63,25 = 759,00), no montante global de € 759,00 (setecentos e cinquenta e nove euros, os quais os Devedores se propõem pagar em 7 (sete) prestações mensais iguais e sucessivas de € 108,43, não se considerando aqui juros moratórios uma vez que os Devedores ainda estariam em prazo de pagamento voluntário e não estarem contabilizados juros. Este pagamento em 7 prestações não fere minimamente o disposto no artigo 196º do CPPT, até porque estes créditos ainda nem estão em fase executiva. Atento o reduzido montante, e o reduzido prazo de pagamento, os Devedores propõem isenção de prestação de garantia.

Aos credores comuns e ao Estado não se propõe qualquer carência ou moratória.

*

O Sr. Administrador juntou aos autos o resultado da votação do plano, contabilizando o voto favorável da credora D... e os votos contra dos credores E... , S.A., F... , G... , Sucursal em Portugal, e H... , SA, após o que foi proferida decisão homologatória do plano.

Inconformada, recorreu a credora G... e, tendo minutado o recurso, concluiu as suas alegações como segue:

“ 1.ª Os devedores B... e A... – em conjunto com o Credor C... – manifestaram a sua vontade expressa de encetarem negociações conducentes à revitalização, por meio da aprovação de um plano de recuperação, tendo intentado um Processo Especial de Revitalização nos termos do disposto no artigo 17.º-C do CIRE.

2.ª- Nessa sequência, e em cumprimento da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º – C do CIRE, o Tribunal proferiu despacho de nomeação do Exmº AJP, anúncio que foi publicado no Portal Citius em 13/08/2014.

3.ª- Ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 17.º-D do CIRE, a Credora G... (Sucursal da S.A. Francesa) reclamou créditos no valor de €16.769,47 (dezasseis mil setecentos e sessenta e nove euros e quarenta e sete cêntimos) dentro do prazo legal para esse efeito.

4.ª- Os créditos da G... foram reconhecidos e devidamente incluídos na lista provisória de créditos apresentada pelo Exmo. Sr. Dr. Isidro Correia na secretaria do douto Tribunal e publicada em Portal Citius. (cf. n.º 3 do artigo 17.º-D do CIRE).

5.ª- Veio o Senhor Administrador Judicial Provisório informar os autos sobre as negociações e resultado da votação tendo concluído que “(…) Do total votação dos credores que apresentação a competente votação do plano de revitalização resulta que, votaram cinco credores e votaram a favor o credor D... , SA e os restantes credores (quatro) votaram contra, pelo que o plano de revitalização foi aprovado por 74,64%, atendendo ao voto a favor da D... . (…)”

6.ª- O plano apresentado pelos Devedores apenas salvaguardava a posição do Credor D... – na medida em que previa o pagamento integral do valor em dívida, sem qualquer perdão de juros vencidos ou vincendos e com a manutenção do prazo e das condições contratadas.

7.ª- No que concerne aos Credores comuns, a proposta apresentada implicava o pagamento de apenas 10% do montante reclamado, em prestações mensais e sucessivas que chegam a atingir (no caso da ora Recorrente) as 24 (vinte e quatro) tranches.

8.ª- O Credor hipotecário não deveria ter qualquer direito de voto no âmbito do plano de recuperação apresentado pelos devedores por inexistir qualquer alteração no seu crédito.

9.ª- Dispõe a alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º do CIRE que não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano.

10.ª- Com efeito, ao credor D... é facultada a possibilidade de se ver ressarcido na íntegra – inexistindo qualquer perdão, moratória ou outros – com a manutenção do prazo e condições contratadas.

11.ª- Ora, e na mesma senda de entendimento, concluiu a Meritíssima Juiz Francisca Martins Preto no Processo n.º 576/13.2TBSXL – que corre os seus termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Seixal – pela não homologação do plano de recuperação.

12.ª- Com efeito, entendeu o douto Tribunal que “Tendo em conta esta disposição legal – entenda-se a alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º do CIRE – e observando o mapa de votações apresentado pelo Sr. Administrador Judicial provisório, verifica-se que o credor garantido, por não ter sido o seu crédito modificado pelo plano, não tem direito de voto, nem conta para o apuramento do quórum de votação.”.

13.ª- Tal decisão proferida foi alvo de confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdão datado de 24/09/2013, tendo os Exmos. Senhores Juízes Desembargadores concluído que não se verificava, assim, o quórum de reunião necessário para a respectiva deliberação.

14.ª- De igual forma, veio o douto Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão proferido a 23/01/2014 no âmbito do Processo n.º 4303/13.6TCLRS-A.L1, concluir que “(…) os credores cujos créditos hajam sido relacionados na já referida lista mas que não hajam sido modificados pela parte dispositiva do plano não têm direito de voto, sendo de aplicar a delimitação constante do nº 2-a) do art. 212.

O que algum sentido prático faz, aliás, em caso como o dos autos em que a aprovação do plano resulta essencialmente do sentido de voto do credor que não viu os seus créditos por algum afectados, enquanto os restantes credores tiveram os seus créditos diminuídos em 75%.”.

Com tais fundamentos pretende a revogação da sentença recorrida.

*

Os apelados contra alegaram e, tendo suscitado a questão prévia da intempestividade do recurso, vieram invocar ter a credora D... “ perdoado” os 5 (cinco) meses de duração do PER -Agosto a Dezembro de 2014- durante os quais os devedores ora apelados não pagaram as prestações do crédito à habitação, assim contribuindo decisivamente para a exequibilidade do plano aprovado e homologado. Assinalaram ainda não ter a recorrente solicitado a não homologação do plano, faculdade conferida pelo disposto no art.º 216.º, aplicável “ex vi” do disposto no n.º 5 do art.º 17.º-F do CIRE, e que é condição da invocação de qualquer prejuízo daí decorrente, pugnando pela confirmação do entendimento expendido na sentença apelada no sentido da inaplicabilidade ao PER do n.º 2 do art.º 212.º do CIRE.

    *

Questão prévia:

Os apelados suscitaram a questão da intempestividade do recurso, defendendo ter o mesmo dado entrada no 2.º dia posterior ao termo do prazo sem que, no entanto, a recorrente possa prevalecer-se do prazo de complacência previsto no art.º 139.º do CPC, uma vez que não procedeu ao pagamento da multa de que depende a validade do acto praticado. E defendem tal entendimento baseados na afirmação da própria recorrente no sentido de ter sido notificada da decisão em 7 de Janeiro 2015, assim fixando o termo do prazo no dia 22.

Não estando em causa o prazo de recurso -15 dias, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 638.º, n.º 1 do CPC, 9.º e 17.º, estes do CIRE- e sendo verdadeira a afirmação imputada à recorrente, ainda assim não assiste razão aos  apelados.

Conforme a Mm.ª juíza a quo fez notar no despacho proferido, é aplicável o disposto no art.º 248.º do CPC, nos termos do qual os mandatários são notificados electronicamente (ex vi da remissão para o n.º 1 do art.º 132.º que, por seu turno, remete para a Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, seu art.º 15.º). Devendo o sistema informático certificar a data da elaboração da notificação, esta presume-se efectuada no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando não o seja. Resulta do assim preceituado que, certificando o sistema apenas e tão só a data da elaboração da notificação -e não aquela em que o destinatário dela toma conhecimento- irreleva que este à mesma tenha acedido no próprio dia da sua elaboração (tal como nas notificações postais irreleva que chegue ao destinatário antes da data que a lei estabelece presuntivamente). Deste modo, estabelecida a presunção em favor do notificando, só por este pode ser ilidida, a fim de fazer prova de que foi notificado posteriormente, não sendo permitida à contraparte a sua ilisão em prejuízo daquele, tendo em vista o encurtamento do prazo em curso. Isso mesmo foi decidido no aresto do STJ de 19/1/2012, proferido no processo n.º 86/05.1TBRSD.P1.S1 invocado pela Mm.ª juíza, aqui com plena aplicação, no qual se concluiu:

 “I - Para efeitos de determinação das datas da notificação electrónica, o legislador consagrou duas presunções: (i) a notificação por transmissão electrónica de dados presume-se feita na data da expedição e (ii) a expedição presume-se feita no terceiro dia posterior ao da elaboração da notificação ou no primeiro dia útil seguinte a este, quando o final do prazo termine em dia não útil.

II - O prazo para apresentação de alegações de recurso inicia-se na data em que se presuma feita a notificação por transmissão electrónica do despacho que o receba, ou seja, no terceiro dia posterior ao da elaboração da notificação ou no primeiro dia útil seguinte a este, quando o final do prazo termine em dia útil.

III - Tendo tal notificação ocorrido em data anterior àquela em que se presume efectuada, nenhum efeito se pode extrair de tal ocorrência, não podendo a contraparte invocar, para efeito de encurtamento do prazo, o recebimento ocorrido em data anterior, como decorre do disposto no n.º 6 do 254.º do CPC, segundo o qual as presunções da notificação postal ou electrónica só podem ser ilididas pelo próprio mandatário notificado, provando que não foram efectuadas ou que ocorreram em data posterior à presumida, por razões que lhe não sejam imputáveis.

IV - Ou seja, a presunção de notificação pode ser ilidida, mas sempre para alargamento do prazo, nunca para redução do mesmo, pelo que a ilisão da presunção da notificação não poderá ser efectuada pelo critério da leitura da peça processual, não se encontrando, aliás, elencado tal desiderato no texto legal.”

Valendo aqui de pleno a solução encontrada, é o recurso tempestivo.

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Há muito assente que pelo teor das conclusões se delimita e define o objecto do recurso, constitui única questão submetida à apreciação deste Tribunal decidir da aplicabilidade aos processos especiais de revitalização da disposição legal contida no n.º 2 do art.º 212.º do CIRE.

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II. Fundamentação

Importando à decisão a proferir quanto se deixou relatado em I., cabe referir que o processo especial de revitalização, introduzido no CIRE[1] pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, destina-se, nos termos ali prescritos, “a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I” (n.º 1 do art.º 17.º-A do CIRE).

A solução de evitamento da insolvência é assim suportada pelo acordo dos credores, impondo por isso a lei a respectiva aprovação por uma maioria qualificada dos créditos, em ordem a garantir a eficácia do plano aprovado que, deste modo, se torna vinculativo para os restantes.

Da análise do regime legal consagrado, resulta estarmos perante um processo de negociação entre credores e devedor, mediado e participado pelo administrador judicial provisório nomeado (cf. n.º 9 do art.º 17.º-D), cabendo ao juiz, conhecido o resultado das negociações, nas quais não interfere, proferir decisão nos termos previstos no art.º 17.º-F. Ocupa-se este último preceito das diligências subsequentes à aprovação de um plano de recuperação tendente à recuperação do devedor, distinguindo entre a aprovação unânime e aprovação sem unanimidade, sendo certo que em ambos os casos carece o mesmo de homologação judicial.

Enuncia o n.º 2 do preceito que, concluídas as negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, mas sem unanimidade -quando esta se verifique, rege o n.º 1 do preceito- o devedor remete o plano de recuperação aprovado ao tribunal.

Consoante dispõe o n.º 3, considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 17.º-D, podendo ainda o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados, caso considere que há probabilidade séria dos mesmos deverem ser reconhecidos, quando a questão não se encontre ainda decidida.

O n.º 4 impõe que a votação seja feita por escrito, aplicando-se o disposto no art.º 211.º, com as necessárias adaptações, sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora um documento com o resultado da votação.

Em matéria de aprovação e homologação pelo juiz rege o n.º 5, com remissão expressa para as regras homólogas do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º.

Feito o excurso pelas disposições legais relevantes, relembra-se que no caso em apreço foi proferida sentença homologatória do plano, aceitando para o efeito o Tribunal o voto favorável à aprovação expresso pela D... , credora titular do (único) crédito garantido, à qual não assistia, no entender da apelante, o direito de votar. E cremos que a razão está do seu lado.

A assembleia de credores é o órgão deliberativo da insolvência, consagrando o n.º 1 do art.º 72.º, no que respeita à sua composição, o princípio da universalidade, com o significado de que nela têm assento todos os credores, independentemente do montante dos créditos que titulam[2]. Sendo aquela que se vem de enunciar a regra, pode o juiz limitar a participação na assembleia de alguns credores (cf. n.º 4 do art.º 72.º), consagrando a lei, nalguns casos, a exclusão do direito de voto. É o que ocorre, para o que aqui releva, com os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano (cf. art.º 212.º, n.º 2, al. a).

O n.º 3 do art.º 17.º-F já citado, expressando que se considera aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos previstos no n.º 1 do art.º 212.º, silencia qualquer referência aos números imediatos, omissão que fundamenta o entendimento daqueles que defendem a inaplicabilidade do regime contido no n.º 2 deste último preceito[3]. Não cremos, todavia, que tal corresponda à melhor interpretação.

O n.º 1 do art.º 212.º, se nele atentarmos, fixa apenas o quórum deliberativo, fórmula que vale igualmente para efeitos de aprovação do plano de revitalização através da remissão feita pelo n.º 3 do art.º 17.º-F. Contudo, aqui o cálculo será efectuado “com base nos créditos relacionados na lista de créditos a que se referem os nºs 3 e 4 do art. 17-D”, ou seja, tendo em conta a lista elaborada pelo Sr. administrador, contemplando os vários créditos reclamados pelos credores interessados e que, conforme ocorreu no caso vertente, face à ausência de impugnação, se tornou definitiva, deste modo se adaptando a base de cálculo à diversa realidade do PER. No entanto, daqui não decorre necessariamente a atribuição do direito de voto a todos os créditos constantes da aludida lista, nem isso resulta, a nosso ver, do preceito que se analisa, acabando o universo dos créditos com direito de voto por ser delimitado por via das exclusões consagradas nos n.ºs 2 a 4 do art.º 212.º, cuja consideração se impõe ao juiz competente para homologar o plano de revitalização. A solução ora perfilhada justifica-se porquanto, já se disse, em matéria de aprovação e homologação pelo juiz valem as regras de homologação do plano de insolvência, nos termos do n.º 5 do art.º 17.º-F, não se vendo motivo para exceptuar aquelas disposições, cuja razão de ser é, no âmbito do plano de revitalização, igualmente válida: uma vez que o credor em causa não viu o seu crédito atingido, não carece da protecção do voto[4].

E que o entendimento exposto é o que melhor se adequa às finalidades de um e outro processos fica patente com o caso dos autos, em que o plano foi aprovado com o voto único da credora titular do crédito garantido, e que permaneceu incólume, contra os votos contra de quatro dos cinco credores comuns -sendo o abstinente titular de um crédito que em pouco ultrapassa a dezena de euros-, que viram os seus créditos decepados, reduzidos a 10% do seu valor e com um plano prestacional que no caso da recorrente atinge os 24 meses, sendo-lhes ainda pedido um mês de carência[5], tendo-se o seu voto revelado perfeitamente inútil.

Resulta do exposto ter sido admitido e computado o voto correspondente a crédito ao qual a lei, nos termos das disposições citadas, não confere tal direito. E note-se que se tal ocorre porque o crédito garantido titulado pela D... não foi minimamente atingido pelo plano de revitalização aprovado, ocorreria de igual modo se estivéssemos perante sacrifício de escassa relevância. Vale isto por dizer que, ainda a ser verdade -o que não foi alegado em devido tempo, nem se mostra adquirido para o processo- quanto foi pelos recorrentes (só) agora, em sede de recurso, invocado, no sentido daquela credora ter perdoado aos devedores as cinco prestações vencidas durante o período do PER, tal facto não levaria à alteração da conclusão a que se chegou.

E qual a consequência de tal violação de lei?

Epigrafado de “Não homologação oficiosa”, o art.º 215.º, deferindo “ao tribunal o cargo de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano”[6], impõe ao juiz que recuse a homologação do plano aprovado pelos credores sempre que ocorra “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”, assim estando em causa tanto aspectos de procedimento como de substância, estes atinentes ao conteúdo do plano. Mas, atente-se, não é qualquer desvio que implica a recusa de homologação, exigindo a lei que se trate de “violação não negligenciável”, deixando ao intérprete a difícil tarefa de concretização do conceito. De todo o modo, do que não há dúvida face à literalidade da disposição legal, é que violações menores deverão ser desconsideradas.

Normas procedimentais são todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo (…).

Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as relativas à parte dispositiva do plano mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”[7].

Pese embora a categorização dos vícios, porque submetidos ao mesmo regime, esbatido fica o relevo da distinção. Mas qual então o critério que permite a elevação de uma violação de lei à categoria de não negligenciável, permitindo a desconsideração de outra?

Claramente não negligenciável será a violação de norma imperativa que acarrete a produção de um resultado vedado por lei; inversamente, poderá ser menosprezada a infracção que atinja apenas regras de tutela particular, as quais podem ser afastadas com o consentimento do titular do interesse protegido. Tal é o critério avançado Por Carvalho Fernandes e J. Labareda[8], o qual parece impor-se por si mesmo. Todavia, reconhecendo que a violação de lei, pressupondo a prática de acto não admitido ou omissão de formalidade imposta, se reconduz sempre e a final à prática de uma nulidade processual, numa orientação mais geral, defendem os mesmos autores ser de apelar ao critério geral consagrado no n.º 1 do art.º 195.º do CPC, tendo-se assim por desvio relevante aquele que afecta o exame e a boa decisão da causa. Dada a clara adequação do regime das nulidades à previsão normativa do art.º 215.º, aqui se acolhe o aludido critério.

De volta ao caso dos autos, constata-se ter a Mm.ª juíza homologado o plano no pressuposto de que se verificava o quórum deliberativo exigido por lei, sendo certo que foram considerados votos de créditos que, nos termos da al. a) do n.º 2 do art.º 212.º, a eles não tinham direito. Foi assim cometida nulidade que influenciou sem dúvida a decisão da causa quando se apele ao critério consagrado no referido art.º 195.º, uma vez que os votos assim contabilizados como válidos foram absolutamente decisivos na aprovação do plano que, sem eles, contava apenas com votos contra. Trata-se indubitavelmente de violação de norma procedimental não negligenciável, a impor ao juiz a recusa da aprovação do plano, irrelevando que não tenha sido pedida por nenhum dos interessados a sua não homologação, ao contrário do que parece depreender-se das contra alegações produzidas pelos recorridos. Daí que a decisão homologatória não possa subsistir, impondo-se a sua substituição por outra que recuse a homologação do plano.

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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em revogar a decisão recorrida, recusando a homologação do plano de revitalização apresentado pelos requerentes A... e B....

Custas pelos apelados.


Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida


[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, pág. 425.
[3] Assim, embora sem grande desenvolvimento, Carvalho Fernandes e J. Labareda, em anotação ao preceito, na obra citada, “Mas o quórum, como o texto também esclarece, é calculado sobre a totalidade dos créditos constantes da lista definitiva -ou, se ainda não existir, dos créditos não impugnados acrescidos daqueles, aos quais, apesar de contestados, tenha sido atribuído direito de voto- não havendo pois lugar à aplicação do regime do n.º 2 do art.º 212.º”. Em sentido contrário, Luís M. Martins, in “Recuperação de Pessoas Singulares”, 2012 – 2.ª ed., págs.62 e 63,também em anotação ao art.17º-F.
[4] Neste preciso sentido, acórdãos da Relação de Lisboa de 23/1/2014, processo n.º 4303/13.6 TCLRS-AL1-2 e de 9/12/2014, processo n.º 1614/13.4 TBALQ.L1, e desta Relação de Coimbra de 1/4/2014, processo n.º TBLRA-A.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Sendo nosso entender que a nova redacção do preceito introduzida ao preceito pelo DL 26/2015, de 6 de Fevereiro, com início de vigência em 1 de Março, sanciona este entendimento.
[5] Sem que das considerações feitas se pretenda extrair qualquer argumento em favor da tese de eventual tratamento desigual dos credores, aqui não suscitada pela recorrente e que seria de êxito duvidoso, atendendo a que o crédito titulado pela D... se encontra garantido por hipoteca incidente, ao que resulta dos autos, sobre a casa de morada de família dos requerentes, circunstâncias que justificariam o tratamento diferenciado.
[6] Carvalho Fernandes, João Labareda, ob. cit., pág. 117.
[7] Idem.
[8] Ainda no CIRE anotado, pág. 119.