Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2644/08.3TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 2.º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 483.º DO CÓDIGO CIVIL; ART. 12.º , N.º 1 DA LEI 24/2007, DE 19 DE JULHO.
Sumário: 1. A responsabilidade da Brisa perante os utentes das auto-estradas cuja exploração lhe foi concedida é de natureza extracontratual, regulada nos art.483.º e seguintes do Código Civil.

2. Em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária, em função da presunção de culpa estabelecida pelo artigo 12.º, n.º 1 da Lei 24/2007, de 19 de Julho.

Decisão Texto Integral:          Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... Companhia de Seguros,..... intentou a presente acção com processo sumário contra Brisa, Auto Estradas de Portugal, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 8.293,26 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento.

Alega que no dia 19-01-2007, pelas 9h, o veículo (...)-XV, circulava na AE1, no sentido Sul/Norte, na faixa de rodagem da direita, quando foi surpreendido pelo aparecimento de um animal de raça canina, proveniente do lado esquerdo, isto é, do separador central; que o condutor do veículo seguro na autora tentou evitar o embate no animal, guinando o veículo para o lado esquerdo, mas este voltou para trás em direcção ao separador central e foi nessa altura que se deu o embate com o cão; que a autora indemnizou o seu segurado na quantia de 8.293,26 €, pela perda total do veículo.

Contestou a ré Brisa, alegando que quer a própria quer a BNR/BT procederam ao patrulhamento do troço da AE onde ocorreu o atropelamento, não tendo detectado a presença de qualquer cão, nem deficiências na vedação, não lhe tendo sido comunicada a presença de qualquer cão na AE; que o condutor do XV seguia a uma velocidade muito superior a 120 km/hora ou é totalmente inábil e sem a destreza exigível para quem conduz um automóvel, pois, caso circulasse à velocidade por si indicada, sempre teria a possibilidade de evitar o acidente imobilizando o veículo no espaço visível à sua frente; e que o referido veículo embateu no talude da A.E., danificando um delineador, em cuja reparação a ré despendeu o montante de 63,97 €.

Concluiu pela improcedência da acção, pedindo em reconvenção a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de 63,97 €, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 11,48 € e de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

E, invocando encontrar-se a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e exploração da A1 – Auto Estrada do Norte, transferida por contrato de seguro, requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros B.....

A autora respondeu no sentido da improcedência da reconvenção.

Admitida a intervenção da Companhia de Seguros B..., veio esta contestar por impugnação, invocando o desconhecimento dos factos.
Foi proferido despacho saneador, que admitiu o pedido reconvencional formulado pela ré, tendo sido fixada a base instrutória, sem reclamações.

Procedeu-se a audiência de julgamento, que culminou com a resposta à base instrutória sem reclamações.

Após o que foi proferida sentença que concluiu assim:

         “Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a acção e condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 7 447,35 (sete mil quatrocentos e quarenta e sete euro e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros, a partir da citação, até integral pagamento.

Custas pela Autora e Ré, na proporção do decaimento, fixando-se em 1/3 e 2/3, respectivamente.

            Registe. Notifique.”

Desta sentença foi interposto recurso de apelação pela Brisa cuja alegação termina com as seguintes conclusões:

1- Vistos os autos e revisitada a douta P1. constatamos que a Autora, nos artigos 100 e sgts. alegou que a ré Brisa efectuou de forma grosseira e negligente a conservação e manutenção da Auto-estrada.

2- Ora, a matéria definitivamente assente, após Julgamento, desmente de modo cristalino a A. porque ainda no “rescaldo” da colisão foi vistoriada a rede de vedação pelo oficial de mecânica que esteve no local e posteriormente pelo sector da obra civil e por estes nada de anormal foi encontrado na vedação, que se encontrava em bom estado de conservação.

3ª- O último patrulhamento efectuado naquele local quer pelos Oficiais de Mecânica da — Brisa — Assistência Rodoviária, S.A., tendo passado o último patrulhamento no local cerca de 01 H3OM antes do acidente, quer pela GNR/BT, não detectaram a presença de qualquer cão, nem deficiências na vedação da A.E.

4ª- A decisão preconiza uma solução com recurso ao disposto no art. 493º do CC e só por isso é que condena a Ré Brisa.

5ª- Os danos acautelados pelo art. 493° do CC que consagra uma presunção de culpa sem sair da responsabilidade aquiliana, para serem ressarcíveis têm de ser causados pela coisa, por força do segmento da norma: “Responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem” (SIC)

6ª- Serão danos causados pela auto-estrada, por exemplo, o desabamento do seu piso, queda de uma ponte, tudo ocorrências inerentes à coisa e por isso endógenas.

7ª- Milhentas outras situações, como é o caso dos autos, (animal que aparece na via) não podem ser tidas como causadoras de danos pela coisa em si mesma, porque ocorreu uma relação de estranheza relativamente a esta, provêm do exterior, sendo exógenas (para além dos animais podemos pensar noutras situações: gelo, óleos, peças deixadas por outros veículos etc, etc..).

8ª- A solução justa para estas situações de causas exógenas têm de assentar no mecanismo das regras e princípios básicos da responsabilidade extracontratual do art. 483°, n° 1 do CC.

9ª- Existirá responsabilidade nos casos da violação da disposição legal destinada a proteger interesses alheios, e no caso, tal disposição é nem mais nem menos do que o contrato de concessão da exploração da Brisa aprovado pelo DL 294I07 de 24/10.

10ª- Têm de incumbir sempre ao lesado provar a culpa, ou seja, o incumprimento dos deveres emergentes do contrato de concessão.

11ª- Inverter o ónus de prova nesta matéria com fixação de presunção de culpa da Brisa perante as ditas causas estranhas e anómalas à própria estrutura da Auto- estrada equivale a um juízo prévio e inaplicável de culpa.

12ª- A BRISA pode ser escrupulosíssima no cumprimento dos seus deveres de vedação e patrulhamento constantes, que nunca consegue evitar totalmente o surgimento de animais na via, tão fértil é a natureza na criação de situações imprevistas (os canídeos podem ali ser largados pela própria mão humana, podem, bem como os outros animais escavar túneis por debaixo das vedações, entrar pelos acessos e ou saídas que estão franqueadas, etc, etc...) e como fez consignar o douto Acórdão desse TRC — Apelação n° 3290/05 — Comarca de Pombal — a Brisa só conseguiria atingir um tal magno objectivo “se dispusesse de avançadíssima tecnologia e meios de patrulhamento em permanente deslocação num sentido ou noutro quiçá usando helicópteros de vigilância (...)‘

13ª- No mesmo sentido cfr. págs. n.°s 37 e 38 das conclusões do Douto Parecer elaborado pelo Prof. Dr. Manuel A. Carneiro da Frada, sobre a Responsabilidade da Brisa por Acidentes Ocorridos em Auto-estradas”, também publicado no Boletim Informação e Debate, iva Série, n.° 6, Setembro 2005, Associação Sindical dos Juizes Portugueses, a págs. 13 a 36), “(...) Os deveres da Brisa são, à partida, de qualquer modo, apenas os previstos na lei; esta configura direito especial em relação ao ad. 493 n.° 1, pelo que não existe margem para responsabilizar para além daquilo que deriva da respectiva tipificação legal:(..)”.

14º- A douta Sentença, ora recorrida, recorre à Lei 24/2007, de 18.07, no entanto, o aludido diploma legal incorre, salvo melhor opinião, em diversas inconstitucionalidades, nomeadamente, porque estabelece regras que violam o princípio da igualdade rodoviária e que surgem desarmónicas perante as leis gerais relativas ao tráfego, às concessões, ao processo e à responsabilidade civil, sendo assim atingido o princípio da igualdade (art. 13°, n.° 1, da C.R.P).

15ª- A referida lei consagra, com carácter geral, uma presunção de culpa das concessionárias de auto-estradas em matéria de (in)cumprimento de obrigações de segurança daquelas quanto a acidentes rodoviárias.

16ª- Desta forma, passou a onerar as concessionárias com a demonstração de que não cometeram nenhuma violação dos deveres de segurança a que estavam adstritas, ou seja, são oneradas com a prova de um facto negativo.

17ª- Acresce, que o art. 12°, da Lei 24/2007, de 18 de Julho, ao conduzir a uma imputação objectiva de danos, sem limite máximo e atingindo situações já constituídas, viola directamente o estatuído nos art.°s 62°, n.° 1 e 13°, n.° 1, da C.RP..

18ª- Acontece que, esse mesmo preceito vem fixar uma presunção de incumprimento contrária às regras do processo equitativo, violando disposto no art. 20°, n.° 4, da C.R.P.

19ª - Pelas regras comuns da experiência humana de acordo como senso comum, de acordo com a equidade e com os normais critérios de prudência à Brisa é humanamente impossível demonstrar que não teve culpa no surgimento imprevisto de um animal nas faixas de rodagem da Auto-estrada.

20ª- Em quase todos os Acórdãos extraídos das decisões de todos os nossos Tribunais Superiores, incluindo o STJ, e atrás citados, deparamos com este juízo final: o percurso das Auto-estradas completamente vigiados.

21ª- Não existe nenhuma disposição legal que imponha a obrigação à Brisa de dotar as auto-estradas de vedações adequadas a impedir a entrada de animais na Auto- estrada, sejam eles selvagens ou domésticos, além disso, o tipo de vedação utilizado pela Brisa ao longo de toda a rede concessionada, e as suas características técnicas, obedecem ao projecto aprovado pela JAE - Junta Autónoma das Estradas ou actualmente pelo EP — Estradas de Portugal.

LEGISLAÇÃO

A douta Sentença que foi proferida fez incorrecta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 493°, n° 1 do CC e D.L. 294/97 e Bases Anexas.

SENTIDO CORRECTO DAS NORMAS

As mesmas normas que foram seguidas como fundamento de direito na Sentença, correctamente interpretadas e melhor aplicadas, ditam forçosa e obrigatoriamente um juízo definitivo absolutório para a Ré Brisa, uma vez que o ónus da prova estava e está do lado da A. que se diz lesada, não existindo na situação em equação nos autos nem inversão do ónus da prova e nem presunção de culpa“

Pede que a decisão seja revogada por outra que decida absolver a ré Brisa.

A autora respondeu sustentando a improcedência do recurso.

Cumpre decidir:

A matéria de facto provada dada como provada na 1ª instância é a seguinte:

1. A Ré Brisa é concessionária do Estado para a construção, conservação e exploração da Auto-Estrada do Norte A1 (al. a) da esp.).

2. A 30.11.2007, a Ré interpelou a A. para proceder ao pagamento da quantia de 63.97 € (al. b) da esp.).

3. No dia 19.01.2009, pelas 9.00 horas, ocorreu um acidente de viação na A.E. A1, ao km 185,470, no sentido Sul/Norte, onde foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) XV, propriedade de “C...Automóveis de Aluguer, S.A.”, conduzido na altura por D... (resp. ao ponto 1).

4. À data do acidente, o veículo (...) XV encontrava-se seguro na A., através do contrato de seguro do ramo “Automóveis Frota”, titulado pela Apólice nº(...) (resp. ao ponto 2).

5. O veículo XV circulava na faixa de rodagem da direita, a uma velocidade aproximada de 120 km/hora (resp. ao ponto 3).

6. De repente, e sem que nada o fizesse prever, o condutor do veículo seguro na A., foi surpreendido pelo aparecimento súbito e repentino de um animal de raça canina, proveniente do lado esquerdo, isto é, do separador central (resp. ao ponto 4).

7. O referido animal colocou-se à frente do veículo conduzido pelo condutor seguro na A. (resp. ao ponto 5).

8. Ao deparar-se com esta situação, o condutor do XV tentou evitar o embate no animal, guinando o veículo para o lado esquerdo (resp. ao ponto 6).

9. Foi nessa altura que se deu o embate objecto dos presentes autos (resp. ao ponto 7).

10. Em consequência deste embate, o condutor do XV embateu no mesmo e de seguida perdeu o controle da viatura que conduzia e veio a capotar (resp. ao ponto 8).

11. Após a peritagem do veículo, a A. atribuiu ao mesmo perda total, não existindo possibilidade de ser reparado (resp. ao ponto 10).

12. Assim sendo, a A. indemnizou o segurado na quantia de 8.293,26 €, a título de indemnização pela perda total do veículo XV (resp. ao ponto 11).

13. A 19.01.2007, a Ré Brisa tomou conhecimento através da linha Azul, do atropelamento de um animal cerca do km 185,5, sentido S/N (resp. ao ponto 12).

14. Deslocou-se imediatamente para o local um funcionário da Brisa (resp. ao ponto 13). 

15. A Ré efectua vigilância constante da sua área concessionada, quer através das suas patrulhas de oficiais mecânicos – Brisa Assistência Rodoviária, S.A –, como através de uma outra empresa participada, denominada Brisa – Conservação de Infra-Estruturas, S.A., vigia as vedações que se encontram espalhadas pelas auto-estradas de sua jurisdição, na detecção e verificação de situações anómalas, pondo termo às mesmas (resp. ao ponto 14).

16. Também a GNR/BT, a quem está atribuída a disciplina do tráfego fora dos centros urbanos, procede ao patrulhamento constante das Auto-Estradas da concessão, 24 sobre 24 horas (resp. ao ponto 15).

17. O último patrulhamento efectuado naquele local, quer pelos oficiais de mecânica da Brisa – Assistência Rodoviária, S.A., tendo passado o último patrulhamento no local ás 7h 20m, quer pela GNR/BT, não detectaram a presença de qualquer cão, nem deficiências na vedação da A.E. (resp. ao ponto 16).

18. Também não fora comunicada à Brisa a eventual presença de qualquer cão na A.E., fosse pela GNR/BT ou outros (resp. ao ponto 17).

19. Vistoriada a vedação após o acidente, não foi detectada nenhuma deficiência na mesma (resp. ao ponto 18).

20. O local onde ocorreu o acidente tem uma visibilidade de mais de 200 m (resp. ao ponto 19).

21. Após o embate com o cão, o veículo foi embater no talude da A.E., capotou e veio a imobilizar-se na berma direita da faixa de rodagem (resp. ao ponto 23).

22. Dos factos descritos resultaram danos na A.E., designadamente um delineador (resp. ao ponto 24).

23. Na sua reparação, despendeu a Ré o montante de 63,97 € (resp. ao ponto 25).

O Direito:

         Enveredou a sentença pelo entendimento de que a responsabilidade da Brisa para com terceiros é de natureza extracontratual subjectiva, recaindo sobre ela, Brisa, o ónus de provar que a culpa não lhe pertence.

Entende, igualmente, a recorrente que a responsabilidade deve ser apreciada à luz da responsabilidade extracontratual por facto ilícito, sustentando, no entanto, que, recaindo o ónus da prova da culpa sobre a autora, nos termos do art. 487 do Cód. Civil, não conseguiu esta provar a culpa dela, recorrente.

Também nós entendemos que a responsabilidade da Brisa perante os utentes das auto-estradas cuja exploração lhe foi concedida é de natureza extracontratual, regulada nos art.483 e seg. do Cód. Civil.

Como assim, o utente da auto-estrada, terceiro em relação ao contrato de concessão, que se considere lesado por falta de conservação e/ou manutenção da mesma, e que, por isso, pretenda exigir indemnização da concessionária, tem de alegar e provar todos os requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito (cfr. Acs. STJ de 30.4.2002, relatado por Reis Figueira e de 14.10.2004, relatado por Oliveira Barros, ambos in www.dgsi.pt).

No entanto, é a ré Brisa que, enquanto concessionária (Base XXXVI, nº 2 do DL 294/97 de 24.10, com as alterações do DL 287/99 de 27.10), tem o poder e o dever de vigiar a auto-estrada (ver Sinde Monteiro, RLJ ano 131º- pág. 50 e 109).

E, por isso, antes da Lei nº 24/2007 de 18.7, se convocava o disposto no art. 493, nº 1 do Cód. Civil e se entendia que a apreciação da responsabilidade da concessionária, devendo ser feita à luz da responsabilidade civil extracontratual, deveria levar em conta a inversão do ónus da prova estabelecida naquele preceito do Cód. Civil, que fazia recair sobre a concessionária uma presunção legal de culpa e também de ilicitude (assim, Sinde Monteiro, RLJ 131º-108).

Porém, esta questão do ónus da prova foi resolvida pela referida Lei nº 24/2007, que veio consagrar expressamente uma presunção de culpa sobre as concessionárias das auto-estradas.

Com efeito, essa lei, que entrou em vigor a 19 de Julho de 2007, veio estabelecer no n.º 1 do seu art. 12: “Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a: a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.”

Assim, pode dizer-se: que, perante o referido art. 12 da Lei nº 24/2007, é hoje claro que, em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária; que, ao intervir no debate jurisprudencial e doutrinal sobre o ónus da prova, a dita norma assume carácter interpretativo relativamente a uma tal questão (cfr. Ac. STJ de 16.9.2008, relatado por Garcia Calejo e Ac. STJ de 1.10.2009, relatado por Santos Bernardino, publicados em www.dgsi.pt; ver, ainda, sobre a intenção interpretativa, plasmada nos trabalhos preparatórios da lei, o Ac. TC nº 597/2009 de 18.11.2009, publicado no DR II série, nº 248, de 24.12.2009); e, ainda, que tendo a norma carácter interpretativo, ela é de aplicação imediata, sendo, por isso, de aplicar ao acidente dos autos.

Caberá, pois, à concessionária demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável.

Em resumo, a apreciação do caso sub judice deve ser feita à luz da responsabilidade civil extracontratual, levando-se, porém, em conta a inversão do ónus da prova estabelecida no art. 12, nº 1 da Lei nº 24/2007.

Devendo a apreciação ser feita à luz da responsabilidade civil por facto ilícito, não se poderá, no entanto, prescindir/deixar de considerar a existência de um defeito da estrada, que pode ser de construção, de manutenção, de sinalização ou de iluminação (porque só o defeito em coisa imóvel é susceptível de causar o dano) e o nexo de causalidade entre este defeito ou anomalia e o dano (RLJ 131º-109 e 378).

Ora, o efectivo aparecimento de um animal constitui “uma anomalia que justifica a presunção de que na construção ou na manutenção não foi observado o cuidado devido” (RLJ 131º-111).

A existência de um animal na auto-estrada faz, portanto, presumir a existência de um defeito de construção ou de manutenção da via, causal do acidente e dos danos daí decorrentes; defeito que pode não estar apenas ligado às vedações na zona do acidente; é que, com facilidade, pode o animal entrar num local distante do ponto do acidente, eventualmente até através da zona das portagens (RLJ 131º-111).

Observa a recorrente que da matéria assente no julgamento decorre que no “rescaldo” da colisão foi vistoriada a rede de vedação pelo oficial de mecânica que esteve no local e posteriormente pelo sector da obra civil e por estes nada de anormal foi encontrado na vedação, que se encontrava em bom estado de conservação; e que o último patrulhamento efectuado naquele local quer pelos Oficiais de Mecânica da Brisa — Assistência Rodoviária, S.A., tendo passado o último patrulhamento no local cerca de 1 h e 30 m antes do acidente, quer pela GNR/BT, não detectaram a presença de qualquer cão, nem deficiências na vedação da A.E.

Porém, a matéria de facto provada, que consta dos pontos 17, 18 e 19, é manifestamente insuficiente para que a Brisa possa ilidir a presunção de culpa que sobre ela recai.

A invocada circunstância de depois do acidente a rede de vedação ter sido vistoriada pelos oficiais de mecânica da Brisa – Assistência Rodoviária, S.A. que efectuaram o último patrulhamento no local às 7 h e 20 m – e pela GNR/BT, que não detectaram a presença de qualquer cão, nem deficiências na vedação da A.E. (17 e 19), não significa que a referida ré tenha procedido a uma vigilância bem feita, eficaz, em ordem a detectar eventual deficiência da vedação.

Por outro lado, o facto de ter sido vistoriada a vedação após o acidente e de não ter sido detectada nenhuma deficiência na mesma, não equivale, em rigor, a dizer que não existia deficiência na vedação (18).

Finalmente, e como se salienta na sentença, não está excluída a hipótese de o cão se ter introduzido pela zona das portagens, penetrando assim na via de modo alheio às condições de segurança.

Assim, não está afastada a presunção da existência de um defeito de construção ou de manutenção da auto-estrada, causal do acidente nem a presunção de culpa da ré Brisa em relação ao acidente.

Inconstitucionalidade da Lei nº 24/2007:

Imputa a recorrente a este diploma a violação do art. 13, nº 1 da CRP – porque estabelece regras que violam o princípio da igualdade rodoviária e “que surgem desarmónicas perante as leis gerais relativas ao tráfego, às concessões, ao processo e à responsabilidade civil” e por conduzir a uma imputação objectiva de danos, sem limite máximo e atingindo situações já constituídas, imputação essa que também viola o art. 62, nº 1 da CRP – e do art. 20, nº 4 da CRP – ao fixar uma presunção de incumprimento contrária às regras do processo equitativo.

Embora não o diga expressamente quererá a recorrente ver apreciada a constitucionalidade da norma do art. 12, nº 1, al. b) da Lei nº 24/2007, que foi a única aplicada.

Também aqui se remete, no essencial, para o Ac. STJ de 16.9.2008, para o Ac. TC nº 596/2009 de 18 de Novembro, publicado no DR II série, nº 248 de 24.12.2009 que recaiu sobre o mencionado acórdão do Supremo e para o supracitado Ac. TC nº 597/2009.

Assim, e em relação à igualdade rodoviária, recordar-se-á que o art. 13 da CRP não significa igualitarismo ou igualdade formal, ou seja, não impõe que se dê um tratamento igual a situações que são diferentes.

As estradas concessionadas são diferentes das comuns: pressupõem elevados níveis de segurança e a sua utilização é feita mediante o pagamento de uma taxa. Justificam, pois, um tratamento diferenciado (cfr. Ac. TC n º 597/2009, Sinde Monteiro, RLJ 131º- 49-50).

Não existe, assim, violação do princípio da igualdade nem sequer do princípio da proporcionalidade.

Não existe, também, a consagração de qualquer responsabilidade objectiva das concessionárias de auto-estradas sem compensações, que possa fundamentar a violação do direito à propriedade privada (art. 62, nº 1 da CRP).

Com uma tal responsabilidade não se pode confundir a consagração de uma presunção de culpa e da inerente regra da distribuição do ónus da prova.

Finalmente, não se vê que a regra de presunção de culpa, que é de direito substantivo (ver Sousa Ribeiro, Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, II, 455), contenda, de algum modo, com as regras do processo equitativo, ou seja, com um tratamento processual imparcial.

O estabelecimento da presunção de culpa, com a consequente inversão do ónus da prova, justifica-se: pelas dificuldades que o utente lesado tem de demonstrar quais as circunstâncias que permitiram a presença do animal na via que permitem fundamentar um juízo de culpa da concessionária, pois “… aquele [utente] é invariavelmente alheio ao aparecimento de animal na auto-estrada, não goza aprioristicamente de qualquer possibilidade de controlo sobre a fonte do perigo e revela a posteriori uma incapacidade quase absoluta de recolha de elementos de prova sobre a causa da presença do animal naquele local”; e pelas especiais responsabilidades das concessionárias pela segurança das auto-estradas, pela sua vedação, pela monitorização do tráfego, detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente conforme as Bases XXXVI, n º 2, Base XXII, nº 5, a) e Base XXXVI, nº 3, anexas ao DL nº 294/97 de 24.10, sendo lógico que, recaindo sobre as concessionárias o dever de evitar a presença de animais nas auto-estradas, sobre elas recaia também a presunção de culpa (Ac. TC nº 597/2009).

Não se descortina, pois, qualquer violação do art. 20, nº 4 da CRP.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.