Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1534/25.0T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO REGISTO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO AMBIENTAL
DESTRUIÇÃO TOTAL OU PARCIAL DO REVESTIMENTO VEGETAL DO SOLO DA RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL
INTERVENÇÃO COMPATÍVEL COM A PROTECÇÃO ECOLÓGICA E AMBIENTAL OU COM A PREVENÇÃO E REDUÇÃO DE RISCOS NATURAIS.
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DESCRIÇÃO DO TIPO DE VEGETAÇÃO QUE COBRIA O TERRENO QUE INTEGRA A RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL DESTRUÍDA PELA INTERVENÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 58.º DO DL N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO
ARTIGOS 20.º, N.º 1, ALÍNEA E), E 37.º, N.º 3, ALÍNEA A), DO D.L. N.º 166/2008, DE 22 DE AGOSTO
Sumário: I - A contra-ordenação ambiental prevista pelos arts. 20.º, n.º 1, al. e), e 37.º, n.º 3, al. a), do DL n.º 166/2008, de 22-08, implica a destruição total ou parcial do revestimento vegetal do solo da reserva ecológica nacional, sem qualquer distinção, o que incluiu plantas, arbustos ou árvores.

II - Muito embora a lei sancione, em termos gerais, a destruição da cobertura vegetal, admite, a título excepcional, condutas que escapam a essa interdição, designadamente quando a intervenção a realizar nos solos que integram a reserva ecológica nacional seja compatível com a protecção ecológica e ambiental ou com a prevenção e redução de riscos naturais.

III - Encontra-se ferida de nulidade a decisão da autoridade administrativa, proferida ao abrigo do art. 58.º do DL n.º 433/82, de 27-10, que não contém uma descrição (ainda que sucinta) dos factos, que permita exercer, de modo efectivo, a defesa, por se ter limitado, basicamente, a reproduzir o texto legal, imputando ao arguido a “destruição do revestimento vegetal”, sem nada acrescentar, em concreto, sobre a vegetação que existia no local (plantas, arbustos ou árvores) e que, devido à conduta do agente, acabou por ser destruída (total ou parcialmente).


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

         I - RELATÓRIO:

, veio interpor recurso da sentença proferida no dia 02-06-2025 …, que julgou improcedente a impugnação deduzida e que, em consequência, manteve a sua condenação pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave (destruição de revestimento vegetal) p. e p.  pelos arts. 20.º, n.º 1, al. e), e 37.º, n.º 3, al. a), ambos do DL n.º 166/2008, de 22-08 (alterado e republicado pelo DL n.º 239/2012, de 02-11), em conjugação com o art. 22.º, n.º 4, al. a) da Lei n.º 50/2006, de 29-08 (redação introduzida pela Lei n.º 114/2015, de 29-08):

--na coima especialmente atenuada de € 5 000 (cinco mil euros), acrescida das custas processuais administrativas de €102;

--na sanção acessória de reposição da situação anterior à infração e a minimização dos efeitos decorrentes da mesma, com a retirada do tout-venant aplicado no terreno sito na Rua …

                                                           *

A sentença proferida pelo tribunal a quo decidiu ainda:

a) suspender, em parte, a coima aplicada, no valor de € 2 000, pelo prazo de 1 (um) ano, condicionada ao cumprimento da sanção acessória;

b) manter o pagamento, em parte, da coima aplicada, no valor de € 3 000 (três mil euros), pela prática da contraordenação acima mencionada;

                                                           *

O recorrente apresentou as seguintes conclusões no recurso que interpôs:

8) A decisão administrativa que deu causa aos presentes autos padece de nulidade;

9) A contraordenação em causa nos autos é a que resulta do artigo 20º, nº 1, al. e) do Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional;

10) Se o que está em causa é a destruição do revestimento vegetal, há sempre que integrar esse conceito amplo e jurídico, nomeadamente se havia, antes da colocação tout-venant, revestimento vegetal? ou estamos perante uma mera presunção afirmar que, por causa da colocação do dito material foi destruído revestimento vegetal que, por hipótese ali estivesse? E qual foi a vegetação destruída?;

11) No caso concreto, ficou por esclarecer, precisamente porque não resulta em parte alguma da decisão administrativa, se houve e qual foi a concreta vegetação que foi destruída;

12) O que seria de suma importância, não só para permitir perceber porque é que há uma contraordenação, nomeadamente o que é que se fez que não se poderia ter feito, mas também o exercício do direito de defesa do impugnante;

17) Por outro lado, no nº 2 do citado artigo 20.º consagra uma exceção ao nº 1 Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional;

18) Se há um desvio à regra, mais fulcral ainda se torna que se individualize e concretize a situação verificada, precisamente porque, além de não se saber se no local havia cobertura vegetal, também não se sabe se as espécies eventualmente existentes seriam simplesmente vegetação cujo corte é, de acordo com o art. 49.º, do DL n.º 82/2021, de 13-10 – que estabelece o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais no território continental e define as suas regras de funcionamento – obrigatório, sob pena de incurso em ilícitos contraordenacionais – cf. Art. 72.º, do citado DL n.º 82/2021;

19) E se se apurasse que havia coberto vegetal, mas que o arguido estava obrigado a cortá-lo, como decorrência do Decreto-Lei n.º 82/2021, de 13-10? A conduta teria a mesma conformação?;

20) A imputação dos factos centrais da contraordenação deveria, por isso, ter sido efetuada, e deveria tê-lo sido de modo preciso e concreto, não bastando a alegação que se atém à reprodução de conceitos jurídicos e que não permite, no caso concreto, o exercício do direito de defesa do arguido - Veja-se o que sumaria o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 31-10-2019, no processo n.º 344/19.8T9MFR.L1-9;

23) A decisão administrativa não continha todos os elementos essenciais que demanda o artigo 58.º, do RGCO, sendo nula, conforme já havia sido decidido anteriormente pelo douto Tribunal;

25) Da prova testemunhal produzida em sede de audiência de Julgamento, nomeadamente do Sr. Agente que elaborou o auto, o mesmo declarou que a fiscalização ocorreu no âmbito de uma denúncia, que não presenciou a colocação do tout-venant, não sabe quando é que o mesmo foi colocado, nem por quem;

26) O Sr. Agente não soube precisar se havia vegetação, nomeadamente que tipo de vegetação é que alegadamente existia e que terá sido destruída;

27) O Arguido conforme alegado na sua Impugnação não procedeu à colocação do tout-venant, nem destruiu qualquer vegetação, pois tudo o que foi feito foi há muito tempo e foi pela empresa A..., S.A, no âmbito do acordo outorgado em 09-02-2024 e junto aos autos;

28) As testemunhas arroladas pelo Arguido confirmaram e atestaram que a colocação do tout-venant ocorreu há muitos anos, e que foi a empresa A..., que efectuou os trabalhos no ano de 2004;

31) Caso existisse fundamentos para imputação da prática da contraordenação, mas que não se concede, visto que o Arguido/Recorrente, não praticou qualquer facto ilícito, já a mesma teria prescrito, uma vez que os atos praticados no terreno foram em 2004 pela empresa A..., S.A;

33) Ao contrário do que consta da Sentença, não foi concretizado temporalmente a data da prática da contraordenação e de quem foi o seu Autor;

38) Da decisão administrativa e judicial, apenas consta que foi verificado que naquele terreno estava colocado tout-venant, mas não consta quando é que o tout-venant foi lá colocado, quem é que o colocou, que vegetação é que havia, se é que havia, etc;

39) O auto não pode fazer, nem faz fé pública quanto à data da colocação do tout venant, do seu autor, da existência de qualquer vegetação, etc, uma vez que o Agente da Autoridade não presenciou tais factos, ou seja, a prática de tais atos;

40) Face ao acima invocado e à ausência de factos e prova, têm de ser dados como não provados os factos constantes nos pontos 3, 4, 6 e 7 dos factos dados como provados na Sentença, com todas as consequências legais daí resultantes, o que desde já e aqui se requer;

                                                           *

O MINISTÉRIO PÚBLICO, junto do Juízo Local Criminal de Leiria, respondeu ao recurso

                                                           *

Por seu turno, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação de Coimbra, emitiu parecer …

                                                           *

Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) Factos provados:

A primeira instância considerou como provados os seguintes factos:

“1. No dia 28 de dezembro de 2021 pelas 17h20 foi efetuada uma fiscalização pela autoridade policial, ao terreno sito na Rua …

2. O terreno pertence ao arguido, …

3. Verificou-se que o arguido procedeu à aplicação de tout-venant no solo tendo, para o efeito, procedido à movimentação de terras e alisamento das mesmas;

4. Esta ação teve como consequência, a destruição do revestimento vegetal que existia no local;

5. O terreno está inserido em área de Reserva Ecológica Nacional (REN), de acordo com a Carta de REN em vigor no Município ..., aprovada pela Portaria n.º 26/2016, …

6. O arguido não atuou com o cuidado que uma pessoa portadora duma reta consciente ético-jurídica teria atuado, ao não se informar e esclarecer, convenientemente, se poderia executar a ação de que vem acusado no terreno de que é proprietário.

7. O arguido agiu com negligência, pois tinha a obrigação de ter conhecimento das restrições de utilidade pública que oneram a sua propriedade, designadamente, as decorrentes do regime da REN.

8. O arguido não tem antecedentes contraordenacionais.

9. Em fevereiro de 2004, o arguido celebrou um acordo com … S.A. para colocação naquele terreno de manilhas de forma a escoar águas residuais.”

O tribunal recorrido julgou como não provados os seguintes factos:

“A) O arguido tivesse procedido ao corte de arvoredo;

B) O arguido tivesse conhecimento que o terreno de que é proprietário estivesse inserido em REN;

C) A ação praticada pelo arguido tenha causado prejuízos ambientais;

D) Com alteração do terreno, referida em 3 e 4, também, ficou com uma cota inferior à estrada de que é adjacente;

E) Desde pelo menos de 2006, lá se encontra o Tout-Venant;

F) O que está executado no local supradito, já vem desde 2004, e foi realizado pela empresa …

G) As manilhas referidas em 9, foram aterradas com pedras e restos de construção.”

b) Objecto do recurso:

… o recorrente … veio impugnar a sentença do tribunal a quo na parte em que julgou improcedente a questão jurídica, por si suscitada, relativa à nulidade da decisão administrativa por violação do art. 58.º do DL n.º 433/82, de 27-10.

A este propósito, veio alegar, com particular destaque, que a decisão administrativa é nula, por não conter todos os elementos essenciais descritos no art. 58.º do DL n.º 433/82, de 27-10, muito em particular por nada dizer sobre  se existia (ou não) vegetação no local e, em caso afirmativo, qual o tipo de vegetação, o que defende ser essencial para o preenchimento do ilícito de mera ordenação social.

A finalizar, entende que o tribunal de primeira instância cometeu uma “nulidade processual insanável”, por ter julgado improcedente a excepção, por si suscitada, da nulidade da decisão administrativa (ou seja, da decisão proferida pela “Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro”).

Apreciando e decidindo:

A respeito da nulidade da decisão administrativa, o tribunal recorrido deixou consignado essencialmente que “(…) a ação típica se realiza com a ação de destruir o coberto vegetal, seja ele qual for (…)”, que  “é certo que a decisão não especifica quais as espécies que foram destruídas pela referida ação, assim como não descreve quais os efeitos na biodiversidade de tal conduta” e que “contudo, considera este tribunal que tais aspetos são importantes, mas em sede de medida da coima, já não ao nível do preenchimento do tipo contraordenacional que se basta com a prova da destruição do coberto vegetal”.

A sentença recorrida entendeu que a decisão administrativa “descreve com suficiente precisão a conduta” e, por consequência, julgou improcedente a excepção invocada da nulidade da decisão administrativa, por considerar que não se afigurava necessário caracterizar ou descrever a vegetação que se encontrava no local e que foi destruída, para o apuramento da contra-ordenação de natureza ambiental imputada ao arguido AA.

De acordo com o disposto no art. 20.º, n.º 1, al. e), do DL n.º 166/2008 (diploma que criou o “Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional”), “(…) nas áreas incluídas na REN são interditos os usos e as ações de iniciativa pública ou privada que se traduzam em (…) destruição do revestimento vegetal, não incluindo as ações necessárias ao normal e regular desenvolvimento das operações culturais de aproveitamento agrícola do solo, das operações correntes de condução e exploração dos espaços florestais e de ações extraordinárias de proteção fitossanitária previstas em legislação específica”.

Logo de seguida, acrescenta o n.º 2 do citado art. 20.º que “(…) excetuam-se do disposto no número anterior os usos e as ações que sejam compatíveis com os objetivos de proteção ecológica e ambiental e de prevenção e redução de riscos naturais de áreas integradas em REN (…)”.

Por seu turno, o art. 37.º, n.º 3, al. a), do DL n.º 166/2008, de 22-08, estatui que constitui contraordenação ambiental muito grave a “(…) realização de usos ou acções interditos nos termos do artigo 20.º (…)”;

Trata-se de uma contra-ordenação ambiental de execução livre, que pode ser cometida através de todos os meios admissíveis, conforme decorre dos segmentos destes preceitos legais em que se proíbe, de um modo genérico, a realização dos usos e das acções de iniciativa pública ou de iniciativa privada que impliquem a “destruição do revestimento vegetal”.

A contra-ordenação pode ser cometida independentemente do meio utilizado, não se exige um meio específico de destruição do revestimento vegetal de terrenos que integrem a reserva ecológica nacional, o que abrange, designadamente, o corte, a incineração ou a movimentação de terras.

A contra-ordenação ambiental prevista pelos arts. 20.º, n.º 1, al. e), e 37.º, n.º 3, al. a), do DL n.º 166/2008, implica a destruição total ou parcial da cobertura vegetal do solo, que integra a reserva ecológica nacional, sem qualquer distinção, o que incluiu plantas, arbustos ou árvores.

Note-se que a lei interdita e sanciona a eliminação total ou parcial, através de qualquer meio (de acordo com as palavras constantes do texto legal, “são interditos os usos e as ações”, sem qualquer detalhe ou especificação), do “revestimento vegetal”, o que engloba todas as espécies vegetais que estejam a servir para a cobertura do solo que integre a reserva ecológica nacional, incluindo árvores, arbustos ou plantas.

            Muito embora a lei sancione, em termos gerais, a destruição de toda a cobertura vegetal, admite, a título excepcional, condutas que escapam a essa interdição, em que se permite, em determinadas condições, a destruição de espécies vegetais de terrenos que integram a reserva ecológica nacional. 

A segunda parte da al. e) do n.º 1do art. 20.º do DL n.º 166/2008, de 22-08, admite a destruição da cobertura vegetal desde que enquadrada no aproveitamento agrícola do solo, nas operações correntes de exploração florestal ou nas acções extraordinárias de protecção fitossanitária.

Por seu turno, o n.º 2 do art. 20.º deste diploma legal, permite a eliminação da cobertura vegetal de solos integrantes da reserva ecológica nacional quando a intervenção a realizar seja compatível com a protecção ecológica e ambiental ou com a prevenção e redução de riscos naturais.        

Por princípio, estão interditas e são sancionadas todas as acções que impliquem a destruição (total ou parcial) do coberto vegetal (v.g. plantas, arbustos e árvores) de um terreno integrante da reserva ecológica nacional.

Todavia, a título excepcional, essa interdição fica excluída quando a destruição do revestimento vegetal decorra do aproveitamento agrícola, da exploração florestal corrente do solo ou quando seja justificada por motivos ecológicos, ambientais ou para redução de riscos naturais.

Isto significa que não se mostra irrelevante ou indiferente para o preenchimento do ilícito de mera ordenação social em causa conhecer o tipo de vegetação existente no local, muito em particular saber se a cobertura vegetal apresentava interesse ecológico ou, se pelo contrário, a sua eliminação decorre do aproveitamento agrícola ou florestal do solo ou se colhe justificação na necessidade de prevenção e de redução de riscos naturais.

Ao contrário do que se sustenta na sentença recorrida, afigura-se indispensável para o preenchimento da contra-ordenação ambiental prevista pelos arts. 20.º, n.º 1, al. e), e 37.º, n.º 3, al. a), do DL n.º 166/2008, de 22-08, conhecer, ainda que de forma simplificada (ou minimamente detalhada), que tipo de vegetação cobria o terreno que integra a reserva ecológica nacional e que foi destruída pela movimentação e pelo alisamento de terras.

A necessidade de prevenção e de redução de riscos naturais, como é o caso dos fogos rurais, pode justificar a remoção ou a destruição de vegetação (“matos”) que seja destituída de qualquer interesse ecológico e que se encontre nas proximidades de habitações ou de outras edificações.  

Conforme se deixou exposto, existem, ainda que a título excepcional,  acções de remoção ou de eliminação do revestimento vegetal de solo integrante da reserva ecológica nacional que são permitidas por lei e que, por isso, não integram a prática da contra-ordenação de natureza ambiental que se mostra imputada nestes autos ao recorrente AA.

Devido as excepções que se mostram contempladas pelo art. 20.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 166/2008, de 22-08, afigura-se indispensável apurar que vegetação existia no local, de modo a determinar se a conduta imputada ao recorrente AA estava interdita ou se, pelo contrário, era permitida ou até imposta por outros dispositivos legais.  

Não são todos os usos ou acções de destruição do revestimento vegetal que são proibidos por lei e que, por conseguinte, integram a prática da contra-ordenação ambiental que se encontra tipificada, como se viu, pelos arts. 20.º, n.º 1, al. e), e 37.º, n.º 3, al. a), do DL n.º 166/2008, de 22-08.

A decisão da autoridade administrativa (e, por consequência, a sentença recorrida) limita-se, basicamente, a reproduzir o texto legal, sem mais nada acrescentar, especificar ou detalhar, deixando singelamente expresso que a conduta imputada ao recorrente AA teve como consequência a “destruição do revestimento vegetal que existia no local”.

Seja para afastar, seja para confirmar, a argumentação apresentada pelo recorrente … relativa aos fogos rurais, a decisão administrativa não pode deixar de descrever, com um detalhe mínimo, a vegetação que existia e que foi destruída pela movimentação e pelo alisamento de terras, assim como, mutatis mutandis, uma acusação de um crime de furto ou de roubo não se deve cingir à alegação genérica e singela que o agente subtraiu e que se apropriou de uma “coisa móvel alheia” que pertencia à vítima.

Ou, noutra perspectiva, que o agente se encontrava a conduzir um veículo automóvel a uma “velocidade superior” à permitida naquele local.

Ainda que não seja possível estabelecer um completo paralelismo com os processos criminais, devido à diferente natureza das infracções em causa, a decisão administrativa proferida em processo contra-ordenacional visa “(…) assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados (…)”- vide, neste sentido, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in “Contra-ordenações - Anotações ao Regime Geral”, Vislis, pág. 322.

Torna-se difícil a defesa num caso de imputação genérica de factos, como a que foi dirigida nestes autos ao recorrente …, em que nada se menciona, em concreto, sobre a vegetação que existia no local (sejam plantas, sejam arbustos ou sejam árvores) e que, devido à conduta imputada ao agente, acabou por ser destruída (total ou parcialmente).

Nem tão-pouco, devido à deficiência da matéria de facto, se consegue confirmar ou contrariar aquilo que se deixou alegado no presente recurso.

Não se sabe se, através da movimentação ou do alisamento de terras (matéria de facto julgada provada), foram derrubados arbustos ou árvores, simplesmente, removidas ou eliminadas plantas, até para que o recorrente AA não viesse a ser sancionado pela prática de um outro ilícito de mera ordenação social, conforme deixou alegado. 

A concretização da matéria de facto torna-se ainda mais necessária perante a impugnação judicial e o recurso apresentados pelo recorrente … (alegou, em síntese, como se viu, que não “destruiu qualquer vegetação” e que “o que foi feito foi há muito tempo e foi pela empresa …, S.A”) e perante os documentos fotográficos juntos aos autos (a fazer fé nestes elementos de prova, o terreno em causa foi sofrendo alterações ao longo dos últimos anos).

As contra-ordenações ambientais, como é o caso, são reguladas pela Lei n.º 50/2006, de 29-08 (Lei Quadro das Contra-ordenações Ambientais), e, subsidiariamente, pelo DL n.º 433/82, de 27-10 (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas) - vide art. 2.º, n.º 1, Lei n.º 50/2006.

O art. 58.º, n.ºs 1 a 3, do DL n.º 433/82, de 27-10, enumera os requisitos a que deve obedecer a decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima ou sanções acessórias decorrentes da prática de uma contra-ordenação.

Para além de outros requisitos legais, relativos, por exemplo, à identificação dos arguidos, à indicação das normas aplicáveis ou às provas constantes dos autos, a al. al. b) do n.º 1 deste dispositivo exige que a “decisão condenatória” contenha também a “(…) a descrição dos factos imputados (…)” ao agente.

A descrição dos factos, ainda que sumária ou sucinta, afigura-se essencial para que o agente possa estruturar, de modo efectivo, a sua defesa, na medida em que, só com esse conhecimento, consegue contrariar a matéria de facto e de direito que integra o ilícito de mera ordenação social que lhe é imputado nos autos.

As garantias de defesa implicam que o arguido fique inteirado dos factos que lhe são imputados (ainda que sem o grau de exigência de uma acusação deduzida em processo criminal), para além de terem de lhe ser comunicadas as normas jurídicas e os meios de prova que sustentam a “decisão condenatória” proferida pela autoridade administrativa.

Não obstante, o art. 58.º do DL n.º 433/82, de 27-10, não estabelece a consequência jurídica resultante do incumprimento do regime jurídico nele fixado, ou, dito por outras palavras, não prevê, de modo expresso, o vício decorrente da decisão da autoridade administrativa não respeitar os requisitos legais.   

Deste modo, o intérprete deve socorre-se dos pertinentes dispositivos constantes do CPP, na medida em que, conforme resulta do art. 41.º do DL n.º 433/82, “sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.

António Beça Pereira entende que a inobservância de alguns dos requisitos estabelecidos no art. 58.º do DL n.º 433/82 “não é sancionada como nulidade”  e que “neste caso, nos termos dos artigos 118.º, n.º 1 e 123.º do CPP, apenas poderá existir irregularidade e será segundo as regras deste instituto (artigo 123.º do CPP) que se apurará da possibilidade de aproveitamento (ou não) do processado desde a decisão administrativa (inclusive)”in “Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas”, Livraria Almedina, págs. 104 e 105.   

Noutra perspectiva, Oliveira Mendes e Santos Cabral consideram que o “(…) incumprimento dos requisitos enumerados no n.º 1 implica a existência de uma nulidade nos termos cominados pelo art. 379.º do CPP (…)”  - in “Notas ao Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas”, Almedina, pág. 155.

No mesmo sentido, Simas Santos e Lopes de Sousa entendem que “(…) a falta de requisitos previstos no n.º 1 constitui uma nulidade da decisão, de harmonia com o preceituado nos arts. 374.º, n.ºs 2 e 3, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP” - in “Contra-ordenações – Anotações ao Regime geral”, Vislis, pág. 322.

Na jurisprudência, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-04-2024, proferido no âmbito do Proc. n.º 1190/23.0T8OLH (acessível em www.dgsi.pt), sufragou a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação, sujeitou-a ao regime jurídico decorrente do art. 283.º do CPP e entendeu que a nulidade, por falta de descrição completa dos elementos constitutivos da infracção, não é susceptível de ser suprida ou colmatada em momento posterior do processo.

Em sentido divergente, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-03-2022, proferido no âmbito do Proc. n.º 173/21.9T8TND (acessível em www.dgsi.pt) entendeu que o incumprimento dos requisitos enumerados pelo n.º 1 do art. 58.º do DL n.º 433/82, de 27-10, consubstancia a nulidade prevista pela al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ex vi art. 41.º daquele diploma, que pode ser suprida pela autoridade administrativa competente.

Ao contrário do que sucede no processo penal, no regime geral das contra-ordenações não se encontra prevista a dedução de acusação, enquanto peça processual da autoria do Ministério Público (ou do assistente), que, após o encerramento da fase preliminar de inquérito, implica a narração dos factos imputados ao arguido, a indicação dos dispositivos legais aplicáveis e das provas recolhidas, que são submetidas ao juiz de julgamento, com a perspectiva de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.

Nos processos de contra-ordenação, havendo indícios da prática de um ilícito de mera ordenação social, a autoridade administrativa competente deverá proferir uma “decisão condenatória”, com observância dos requisitos que se mostram previsto pelo art. 58.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 433/82, de 27-10.

Essa decisão é distinta da acusação deduzida em processo penal (vide arts. 283.º a 285.º do CPP), na medida em que, para além de ser da autoria de uma autoridade administrativa (em vez do Ministério Público ou do assistente), pressupõe que ao agente venham a ser aplicadas coimas ou sanções acessórias, como resulta do disposto na al. d) do n.º 1 do art. 58.º.

Enquanto que no processo penal, o Ministério Público (ou o assistente) solicita ao juiz que o arguido venha a ser julgado pela prática dos factos descritos na acusação que integram um ilícito de natureza criminal, com vista à aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, nos processos de contra-ordenação, a autoridade administrativa aplica, por sua iniciativa, uma coima ao agente, cuja decisão se torna definitiva, sem necessidade de intervenção do tribunal, caso não venha a ser impugnada judicialmente.

Por isso, a “decisão condenatória” deve ser fundamentada, para além de dever conter a indicação da coima e das sanções acessórias aplicáveis, requisitos que não surgem enumerados pelo n.º 3 do art. 283.º do CPP.

Caso essa decisão venha a ser impugnada pelo arguido, estabelece o art. 62.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, que “(…) recebido o recurso (…), deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público (…) que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação (…)”.

Havendo a interposição de recurso judicial por parte do arguido, a “decisão condenatória” constituirá a peça processual onde, com o encerramento da fase administrativa do processo, estão narrados os factos imputados ao arguido, indicados os dispositivos legais aplicáveis e oferecidas as provas recolhidas, que são submetidos a apreciação por parte do juiz, na sequência de despacho proferido pelo Ministério Público.

Nestes casos, a “decisão condenatória” assumirá a função de uma “acusação”, ainda que em sentido impróprio, enquanto peça processual que concentra os factos e os ilícitos que são submetidos a apreciação pelo tribunal. 

Conforme se deixou escrito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-11-2008, proferido no Proc. n.º 08P2804 (in www.dgsi.pt): “ (…) a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente, devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão (…)”.

Acrescenta-se ainda, neste aresto, que “(…) na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo MP como acusação (art. 62.º, n.º 1), torna-se necessário o recurso ao art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41.º, n.º 1): segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção (…)”.

Independentemente de equivaler a uma acusação ou a uma sentença criminal (e por isso, de se aplicarem, respectivamente, o n.º 3 do art. 283.º ou o n.º 1 do art. 379.º, ambos do CPP) é nula a “decisão condenatória” que não contenha uma descrição, ainda que sucinta, dos factos imputados, de modo a permitir ao arguido o exercício, de modo efectivo, dos seus direitos de defesa.

Encontra-se ferida de nulidade a decisão da autoridade administrativa, proferida ao abrigo do art. 58.º do DL n.º 433/82, que não contém uma descrição dos factos, que permita exercer, de modo efectivo, a defesa, por se ter limitado, basicamente, a reproduzir o texto legal, imputando ao arguido  a “destruição do revestimento vegetal”, sem nada acrescentar, em concreto, sobre a vegetação que existia no local (plantas, arbustos ou árvores) e que, devido à conduta do agente, acabou por ser destruída (total ou parcialmente).

Deste modo, o recurso interposto pelo arguido … deverá ser julgado procedente e, em consequência, deverá ser revogada a sentença proferida …, que julgou improcedente a questão jurídica da nulidade da decisão da autoridade administrativa proferida nestes autos.

….

III – DECISÃO:

Em face do exposto, acordam os juízes que integram a 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso do arguido … e, em consequência, revogar a sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 3 e declarar a nulidade da “decisão condenatória” da “Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro”, por falta de descrição dos factos.

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP).

           

                                              Lisboa, 10 de Dezembro de 2025

                                                                        Paulo Registo

                                                                António Miguel Veiga

                                                                 Ana Carolina Cardoso