Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
660/11.7TXCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: LICENÇA DE SAÍDA JURISDICONAL
FALTA
AUDIÇÃO
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 11/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, 5.º, N.º 3, 79.º, N.º 1, 138.º, N.ºS 2 E 4, AL. B), 189.º A 192.º DO CEPMPL (LEI N.º 115/2009, DE 12-10); ARTIGO 138.º, DO REGULAMENTO DOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS (DL N.º 51/2011, DE 11-04); ARTIGO 119.º, AL. C), DO CPP
Sumário: I - As decisões que concedem ou denegam, a recluso de estabelecimento prisional, licenças de saída jurisdicionais podem ser alteradas, modificadas ou mesmo revogadas, se, em função do escopo que pretendem alcançar, circunstâncias supervenientes o justificarem, dando-se, assim, corpo ao processo evolutivo do regime de execução da pena.

II - A alteração da decisão de concessão de licença de saída jurisdicional para denegação da mesma licença, sem que o condenado seja ouvido sobre os motivos determinantes, consubstancia irregularidade, oficiosamente cognoscível, nos termos do disposto no art. 123.º, n.º 2, do CPP, que afecta a decisão modificada, tornando-a ineficaz.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Em 1 de Abril de 2014, foi concedida ao recluso, A..., uma licença de saída jurisdicional, por sete dias, a marcar e não antes de 1 de Maio de 2014, mediante a imposição das seguintes condições:

a) Regressar ao Estabelecimento Prisional até ao termo do prazo determinado (dia e hora fixados);

b) Residir durante o período de licença, na morada por si mencionada no aditamento ao requerimento inicial, ou na que for indicada pela D.G.R.S, a constar do mandado a emitir;

c) Não frequentar zonas ou locais conotados com actividades criminosas, nem acompanhar com pessoas associadas à prática de tais actividades;

d) Manter conduta social regular, com observância das regras e padrões normativos vigentes.

2. Em 10 de Abril de 2014, o Director do Estabelecimento Prisional suspendeu a execução do mandado de licença de saída referido em 1.

3. Por despacho de 14 de Maio de 2014, o Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, após rever «o juízo feito acerca da concessão da saída jurisdicional» do recluso, decidiu «não conceder ao recluso a saída jurisdicional requerida».

4. Inconformado, recorre o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se sintetizam:

1ª – Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

2ª – O nº 4, do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais prevê que, quando, entre a data da concessão da licença e a data da sua concretização, ocorra facto ilícito ou alteração supervenientes dos pressupostos legais da concessão da licença, o director suspende a execução do mandado, dando conhecimento do facto ao Tribunal de Execução de Penas.

3ª – Não prevê o Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade qualquer reapreciação da sentença que concedeu uma licença jurisdicional.

4ª – Ao contrário prevê o art. 196º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade que o Ministério Público pode recorrer da decisão que conceda recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional e o recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.

5ª - Foram violados os artºs 666º, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi art. 4º do CPP e artigos 154º, 192º e 196º, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, e foi cometida a nulidade da alínea c) do art. 379º, do CPP.

5. O recluso não respondeu à Motivação de Recurso.

6. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto, secundando os argumentos aduzidos em primeira instância pelo Ministério Público, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

7 - Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II. THEMA DECIDENDUM

Inexistindo impugnação da matéria de facto, os temas a decidir, consistem em saber:

1 – Se se verifica algum vício de conhecimento oficioso que prejudique a apreciação das questões suscitadas pelo Recorrente;

Na negativa;

2 - Se a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 379º, al. c), do Código de Processo Penal.

III. Os actos processuais relevantes para a decisão

1.1. Em 12.03.2014, deu entrada no TEP de Coimbra, o pedido de licença de saída jurisdicional subscrito pelo recluso A..., a coberto do que dispõe o art. 189º, nºs 1 e 2, da Lei 115/2009, de 12 de Outubro, para cuja apreciação foi convocado o Conselho Técnico (fls. 2 a 6).

1.2. Em 1 de Abril de 2014, o Conselho Técnico, presidido pela Exma. juiz do TEP, emitiu parecer unanimemente favorável à concessão da requerida licença de saída jurisdicional, com os fundamentos constantes da Acta de fls. 10, na sequência do que foi concedido ao recluso, A..., uma licença de saída jurisdicional, por sete dias, a marcar e não antes de 1 de Maio de 2014, mediante a imposição das seguintes condições:

a) Regressar ao Estabelecimento Prisional até ao termo do prazo determinado (dia e hora fixados);

b) Residir durante o período de licença, na morada por si mencionada no aditamento ao requerimento inicial, ou na que for indicada pela D.G.R.S, a constar do mandado a emitir;

c) Não frequentar zonas ou locais conotados com actividades criminosas, nem acompanhar com pessoas associadas à prática de tais actividades;

d) Manter conduta social regular, com observância das regras e padrões normativos vigentes.

1.3. Esta Decisão foi notificada ao Ministério Público em 03.04.2014 – fls. 13 – e ao arguido no dia 01.04.2014 – fls. 20.

1.4. Em 10.04.2014, o Director do Estabelecimento Prisional informa o Tribunal de Execução de Penas, que por «existirem fortes indícios da prática de infracção disciplinar», foi instaurado processo disciplinar ao recluso e suspensa a execução do mandado de saída, nos termos do art. 138º, nº 4, do Decreto-Lei nº 51/2011.

1.5. Dada vista ao Ministério Público, o mesmo declarou nada ter a opor à suspensão da saída jurisdicional concedida.

1.6. Concluído o processo disciplinar, foi o recluso sancionado com a medida disciplinar de proibição de dispor do fundo para uso pessoal, pelo período de 20 dias, nos termos da al. c), do art. 105º, pelas infracções previstas nas al. i) e p), do art. 103º do CEPML.

1.7. Em 09.05.2014, o Director do Estabelecimento Prisional informa o Tribunal de Execução de Penas que o «processo disciplinar instaurado ao recluso (…), A... se encontra concluso, por (…) despacho de 28-04.2014, tendo sido alvo da seguinte medida disciplinar:

- Proibição de dispor do fundo de uso pessoal, pelo período de 20 dias, nos termos da alínea c), do art. 105º, pelas infracções previstas nas al.s i) e p), do art. 103º, do CEPML».

1. 8 – (…) Mais propõe, a fls. 28, que a licença de saída jurisdicional seja revogada.

1.9. É, então, proferido o despacho recorrido – em 14.05.2014 – que decide «rever o juízo feito acerca da concessão da saída jurisdicional (.) e não conceder ao recluso a saída jurisdicional requerida».

1.10. O Ministério Público foi notificado daquela decisão em 19.05. 2014 – fls. 33.

IV. DO MÉRITO DO RECURSO

1 – As saídas do estabelecimento prisional: seu enquadramento e natureza jurídica

O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro[1] e o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais aprovado pelo Decreto-Lei nº 51/2011, de 11 de Abril, integram e sistematizam o quadro normativo vigente em matéria de execução das penas e medidas privativas de liberdade.

Este regime legal, como aliás, resultava já da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 252/X que lhe serviu de base – nº 3, 6 e 17 – assenta, essencialmente, em dois pilares:

- Redefinição do estatuto jurídico do recluso, com reforço das suas garantias no decurso do cumprimento da pena;

- Jurisdicionalização da execução da pena, com a tutela efectiva dos direitos dos reclusos.

No que toca ao primeiro, definem-se, desde logo, no art. 3º, nºs 1 e 2, como princípios orientadores: a) o respeito pela dignidade da pessoa humana, em harmonia com a Constituição da República Portuguesa, com os instrumentos de direito internacional e com a lei, e, b) o respeito pela personalidade do recluso e os seus direitos e interesses não afectados pela sentença condenatória ou decisão de aplicação de medida privativa de liberdade.

Depois, enunciam-se, expressa e autonomamente, os direitos e os deveres do recluso, de entre os quais, se destacam, em particular, as al. l), m) e n) do art. 7º, quais sejam:

- o direito a ter acesso ao seu processo individual e a ser informado sobre a sua situação processual e sobre a evolução da avaliação da execução da pena ou medida privativa de liberdade;

- o direito a ser ouvido, a apresentar pedidos, reclamações, queixas e a impugnar perante o tribunal de execução de penas a legalidade das decisões dos serviços prisionais e,

- o direito à informação, consulta e aconselhamento jurídico por parte de advogado (art. 7º, al. n).

Sob a égide da jurisdicionalização da execução da pena, estão previstas medidas de tutela efectiva dos direitos dos reclusos, «através da intervenção de num órgão jurisdicional que fiscalize as limitações impostas a esses direitos, de forma a evitar que a aplicação prática das leis penitenciárias esvazie de conteúdo princípios garantísticos[2]».

A esta luz, o Tribunal de Execução das Penas (a quem, nos termos do art. 133º, compete administrar a justiça em matéria de execução de penas e medidas privativas de liberdade) controla, não só, as questões relacionadas com a execução das penas, mas também, os actos administrativos que colidam com os direitos fundamentais.

Ao Ministério Público é deferida a vigilância penitenciária (visitando os estabelecimentos prisionais e ouvindo os reclusos), cabendo-lhe acompanhar a verificação da legalidade da execução das penas e medidas privativas de liberdade (art. 134º e 197º a 199º).

A execução das penas e medidas privativas de liberdade rege-se pelos princípios da especialização e da individualização do tratamento prisional do recluso (art. 3º, nº 4), devendo esta ter por base a avaliação das necessidades e riscos próprios daquele (art. 5º, nº 1).

O tratamento prisional[3] é, nos termos do art. 5º, nº 3, programado e faseado, favorecendo a aproximação progressiva à vida livre, através das necessárias alterações do regime de execução.

O regime de execução da pena é, assim, flexível e moldável às finalidades expressamente definidas no art. 2º: «a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a protecção de bens jurídicos e a defesa da sociedade»; que deve ser alterado, sempre que necessário, de modo a garantir um tratamento progressivo, que favoreça a aproximação do recluso à vida livre (art. 5º nº 3).

As decisões que integram o regime de execução da pena não são rígidas nem estanques, mas antes evolutivas e adaptáveis à realidade de cada recluso, em ordem ao escopo a que se destinam, podendo, como resulta do art. 138º, nº 2, ser modificadas, substituídas ou extintas pelo Tribunal de Execução de Penas, a quem, após trânsito em julgado da sentença condenatória, compete, como se disse, acompanhar e fiscalizar a execução da pena.

  O plano individual de readaptação enunciado no art. 21º, visando a preparação para a liberdade e estabelecendo as medidas e actividades adequadas ao tratamento do recluso, bem como a sua duração e faseamento, nomeadamente nos contactos com o exterior (art. 21º, nº 3), é uma das manifestações mais evidentes da flexibilidade do regime de execução da pena.

Segundo o art. 69º, nº 2, do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, o plano individual de readaptação estabelece os objectivos a atingir pelo recluso, as actividades a desenvolver, o respectivo faseamento, bem como as medidas de apoio e controlo do seu cumprimento a adoptar pelo estabelecimento prisional, contemplando, entre outras, os contactos com o exterior [al. f) do preceito em análise].

Os contactos com o exterior, regulados no Titulo XI, do Livro I do CEP, constituem, assim, um elemento importante para a flexibilização do regime da execução da pena.

Daqueles, e no que ao caso interessa, realçamos as licenças de saída jurisdicionais do estabelecimento prisional, que visam «a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade» (art. 76º, nº 2)[4].

Ao Tribunal de Execução de Penas compete, nos termos do art. 138º, nº 4, al. b) e 79º, nº 1, conceder e revogar aquela modalidade de licença de saída.

As licenças de saída jurisdicional obedecem a determinados pressupostos, uns de índole objectiva (v.g. o nº 2, do art. 79º) e outros de índole subjectiva; destacando-se entre estes, os enunciados nas diversas alíneas do art. 78º, nº1, a saber:

a) fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

b) compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social; e

c) Fundada expectativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou da medida privativa da liberdade.

Esta medida -  como aliás as demais licenças de saída do estabelecimento prisional (o art. 78º reporta-se aos requisitos gerais de todas as modalidades daquelas)  - constitui «uma fase, um estádio de execução da própria medida privativa de liberdade[5]».  

Como nota Anabela Rodrigues, a própria forma de “licença” que reveste a decisão de autorização de saída do estabelecimento prisional admite um certo grau de discricionariedade (cf. A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade, Seu Fundamento e âmbito, Coimbra 1982, pp.50-52).

Trouxemos estes ensinamentos à colação para concluir que as decisões que concedem ou denegam as autorizações para saída do recluso do estabelecimento prisional – as ditas licenças de saída – podem ser alteradas, modificadas ou mesmo revogadas, se, em função do escopo que pretendem alcançar, circunstâncias supervenientes o justificarem, dando-se, assim corpo ao processo evolutivo do regime de execução da pena.

Tal resulta não só do espírito da lei, mas também, das normas e princípios que acabamos de enunciar.

Neste sentido, se pronunciou o Acórdão desta Relação, proferido no processo nº 620/12.0TXCBR-D.C1, onde se escreveu:

«(…) não se vê que a decisão proferida (…) possua um carácter de «definitividade» que a torne imodificável, designadamente perante circunstâncias supervenientes ou cujo conhecimento tenha lugar em momento posterior à decisão;

Só assim encaramos o disposto no art. 138º do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, o qual sob a epígrafe «Licenças de saída jurisdicional», no seu nº 4 estabelece: «Quando, entre a data da concessão de licença de saída e a data da sua concretização, ocorra facto ilícito ou alteração superveniente dos pressupostos legais da concessão da licença, o director suspende a execução do mandado de saída, dando imediato conhecimento do facto ao Tribunal de Execução das Penas [realidade distinta do «Incumprimento das condições» fixadas na decisão que concede a requerida licença de saída jurisdicional, cujo pressuposto reside na «violação» injustificada durante a licença de saída das condições impostas e que pode conduzir à revogação da respectiva saída [artigos 85º, 194º 195º e 145º do RGEP].

Significa, pois, que até por acção da entidade administrativa, a decisão no sentido da concessão de saída, pode sofrer um revés, ditado por circunstâncias supervenientes, cuja verificação é susceptível de pôr em crise, «invalidando» uma decisão, anteriormente, proferida no processo».

Tanto não significa que as decisões que alteram, modificam ou revoguem a saída jurisdicional, por factos supervenientes, possam ser livre, discricionária e infundadamente alteradas.

Não; as decisões do juiz de execução de penas, devem – como, de resto, o impõe expressamente o art. 146º (cf., ainda, o art. 205º da Constituição da República Portuguesa) - ser sempre fundamentadas, com a especificação dos motivos de facto e de direito, após ser observado o inquestionável princípio do contraditório.

O que, não tendo sido observado pelo tribunal recorrido, nos leva a apreciar a questão de saber se o juiz de execução de penas, antes de alterar, modificar ou revogar a licença de saída jurisdicional, deve ouvir o recluso, questão que apreciaremos de seguida.

2 – Audição do recluso com vista à alteração, modificação ou revogação da concessão de saída jurisdicional por alteração das circunstâncias

O procedimento para a concessão da licença de saída jurisdicional vem regulado no art. 189º e seguintes do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

Nos termos do nº 1 daquele normativo, o processo inicia-se com o pedido do recluso dirigido ao Juiz do Tribunal de Execução de Penas territorialmente competente, mas apresentado na Secretaria do Estabelecimento Prisional, pedido aquele que, devidamente instruído com os elementos referenciados nas alíneas a) e b), do nº 3 do art. 189º citado, é remetido para o Tribunal de Execução de Penas.

Quando os autos devam prosseguir – por inexistência de motivo para indeferimento liminar – é convocada reunião do Conselho Técnico, seguindo-se a tramitação dos artigos 191º a 193º, culminando com uma decisão do juiz, a conceder ou a negar a requerida licença de saída.

No caso dos autos, foi autorizada a saída jurisdicional pelo período de sete dias, mediante a imposição de obrigações.

Posteriormente e antes da execução da licença concedida, veio o recluso a ser sancionado disciplinarmente, por infracção cometida entre a data da prolação da decisão que lhe concedeu a saída jurisdicional e a execução da mesma, o que justificou o pedido de revogação da licença de saída formulado do Director do Estabelecimento Prisional, a fls. 28.

Foi esta circunstância superveniente que a Senhora Juiz a quo considerou para modificar a decisão primitiva e «denegar a saída jurisdicional».

Fê-lo, contudo, sem ter notificado o recluso ou seu defensor para se pronunciar sobre a «revogação da licença de saída» requerida a fls. 28.

Esta omissão, configura, salvo melhor opinião, uma violação do princípio do contraditório.

Em primeiro lugar, porque o contraditório – «o dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a todos os assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão[6]» – é um princípio constitucional que enforma todo o direito, em especial, o que directa, indirecta ou reflexamente, colida com a liberdade da pessoa.

Do mesmo modo, «o direito à audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo» deve ser assegurado em «todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição[7]».

No caso dos autos, a decisão de «não concessão da saída jurisdicional» de fls. 28 – que, a nosso ver, configura uma verdadeira revogação, pelos efeitos que produziu (substituição da decisão primitiva pelo seu contrário e impedimento de novo pedido de concessão de licença, nos quatro meses seguintes) – foi tomada, sem que se tivesse dado ao recluso qualquer oportunidade para se pronunciar sobre os motivos que a determinaram.

 Está em causa um acto decisório que, no momento em que é proferido, contende já com a liberdade de saída do recluso por 7 dias, liberdade essa que lhe havia sido concedida por uma decisão judicial anterior.

«Como justamente se refere no art. 30º, nº 5, da Constituição, “os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas de liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução”. Ora, a licença de saída jurisdicional, à semelhança da liberdade condicional e de outras medidas aplicáveis no âmbito da execução da pena de prisão, constitui um «limite aos limites» próprios da execução da pena de prisão, para mais justificado pela ideia de ressocialização que a própria pena de prisão também serve (cf. art. 2º, nº 1, e 76º, nº 2 do CEP). E, tal «limite ao limite» traduz-se no reconhecimento, ainda que condicionado e temporário, de um «tempo de liberdade» que coexiste com o tempo de execução da pena de prisão (sendo inclusivamente aquele tempo computado neste último – cf. art. 77º, nº1, do CEP)[8]».

  A reforçar estas garantias, está, ainda, a consagração legal da recorribilidade das decisões que revoguem a licença, no art. 196º, nº2.

Nestas circunstâncias, a decisão que reapreciou os pressupostos da concessão de saída jurisdicional, por factos supervenientes, impunha a observância do principio do contraditório, com a notificação ao recluso para se pronunciar, como previsto no art. 32º, nº 5, da Constituição.

O CEP não prevê, expressamente, de que modo se há-de ouvir o recluso, nem  qual a forma de processo adequada à alteração, modificação ou revogação da concessão da saída jurisdicional, com fundamento em que factos supervenientes.

Existe, contudo, como acima se referiu, um processo especial para a licença de saída jurisdicional, previsto nos art. 189º a 196º[9], onde se descortinam duas fases:

1) Uma parte geral que pode desembocar numa de três decisões: a) indeferimento liminar (art. 190º, nº s 1, 2 e 3); b) a concessão da licença (art. 192º, nº 2), ou c) a denegação da saída (art. 192º, nº 3).

2) Uma parte especial que respeita ao incumprimento das condições impostas na autorização de saída (art. 194º e 195º) e constitui um incidente processual como expressamente se afirma no art. 195º.

O incumprimento ocorre se, durante a licença (primeira parte do art. 85º), o recluso «deixar de cumprir injustificadamente qualquer das condições impostas na concessão de licença de saída jurisdicional (art. 85º e primeira parte do art. 194º).

Pressupõe, pois, a existência de dois requisitos:

 a) Que o recluso tenha iniciado e ainda não terminado o gozo efectivo dos dias de licença; e

b) Que durante o período referido em a) viole injustificadamente as condições impostas.

Não se tendo verificado, in casu, nenhum destes pressupostos – nem o recluso estava a usufruir da saída jurisdicional, nem este violou nenhuma das condições impostas na licença para sair por 7 dias do estabelecimento prisional – fica afastada a aplicação do regime do incidental do incumprimento ao caso em apreço.

Resta-nos, pois, a parte geral do processo especial que visa a apreciação da concessão ou denegação da licença de saída jurisdicional.

Se, para a conceder ou denegar, a pedido do recluso, se devem observar os trâmites procedimentais enunciados nos art.s 189º a 192º, o mesmo deve suceder, em nosso modesto entendimento, quando, a alteração das circunstâncias – e não já incumprimento das condições impostas na licença concedida – justifiquem, a pedido do director do estabelecimento prisional ou de outra entidade, a revogação, alteração ou modificação da decisão que deferiu a licença de saída.

Trata-se, salvo melhor opinião, de apreciar novos factos e de sobre eles emitir um novo juízo, tudo se passando como se se apreciasse, ex novo, a licença de saída do recluso.

Porém, e como se trata de alteração, modificação ou revogação duma decisão que colide com a liberdade já concedida – embora temporária e condicionada – impõe-se, como se afirmou acima, que se cumpra o princípio do contraditório em relação ao recluso.

Por outro lado, será, ainda, de equacionar, a necessidade de ouvir, de novo, o Conselho Técnico – órgão auxiliar do tribunal de execução de penas com funções consultivas, a quem compete emitir parecer sobre a licença de saída [art. 142º, nº 1 e 2, al. a)] – como determina o art. 191º, nº 1.

Em suma, a forma de processo que se adequa à modificação, alteração ou revogação da decisão que concedeu ou denegou a licença de saída jurisdicional, com fundamento em circunstâncias supervenientes – não incluídas no incumprimento das condições nela impostas – é o da licença de saída jurisdicional previsto nos art. 189º a 192º.

Mas ainda que, assim, não se entenda, deve, então, recorrer-se ao processo supletivo, nos termos do art. 155º, nº 2.

Na verdade, «a todos os casos a que não corresponda uma forma de processo referida no nº 1» – previstos em lei avulsa, internamento, homologação, liberdade condicional, licença de saída jurisdicional, verificação da legalidade, impugnação, modificação da execução da pena de prisão, indulto e cancelamento provisório do registo criminal – se aplica o processo supletivo mencionado no nº 2.

Este tipo de processo segue, com as devidas adaptações, os trâmites do processo de concessão de liberdade condicional (cf. art.234º).

Todos os casos não elencados no nº 1 do art. 155º, seguem, devidamente adaptados, a forma de processo da concessão da liberdade condicional (art. 234º), regulamentada nos art.s 173º e seguintes, onde é manifesta a imposição da audição do condenado (cf. art. 174º, nº 1 e 176º, nº 2 e 5).

A todas as situações (sem excepção) corresponde, assim e nos termos do art. 155º, uma tramitação processual adequada: a especialmente prevista (nº 1) ou a supletiva (nº 2).

De qualquer modo e, no que ao caso interessa, qualquer que seja a posição que se assuma em relação à forma processual adequada a apreciar a modificação, alteração ou revogação da concessão da saída jurisdicional por alteração das circunstâncias, sempre terá que se observar o princípio do contraditório em relação ao recluso, o que não foi cumprido pela primeira instância.

Como qualificar este vício e quais as suas consequências?

A omissão de notificação do recluso para se pronunciar sobre alteração, modificação ou revogação da concessão de saída jurisdicional, por alteração das circunstâncias, não é sancionada, com uma nulidade específica, nem com nenhuma das indicadas nos art.s 119º e 120º do Código de Processo Penal.

Ora, sempre que a lei não cominar o vício que afecta o acto ilegal com nulidade, considera-se que a decisão enferma de mera irregularidade (art. 118º, nº 2 do mesmo diploma), que há-de ser arguida pelos interessados, nos termos do art. 123º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Quando a irregularidade cometida afectar o valor do acto praticado, pode, oficiosamente, ordenar-se a sua reparação, no momento em que da mesma se deva tomar conhecimento (nº 2 do preceito e diploma acabados de citar).

Isto porque, como ensina Manuel Lopes Maia Gonçalves[10]:

«Apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais».

É o que sucede com a decisão sob recurso, em que o Tribunal a quo, antes de prolatar a decisão recorrida, não só não tramitou o incidente por nenhuma das formas processuais previstas no CEP, como não viabilizou, fosse por que meio fosse (nem por notificação ao defensor), a audição do recluso sobre o pedido de «revogação» da licença requerido a fls. 28.

Ou seja, preteriu o princípio do contraditório, omissão que afecta substancial e materialmente a própria decisão sindicada.

Com efeito, a omissão da notificação ao recluso do pedido de fls. 28 – que consistia na revogação da licença de saída jurisdicional – afecta os direitos daquele, designadamente o de se poder pronunciar sobre as circunstâncias em que ocorreu a infracção disciplinar, tanto mais que nem sequer foi junta aos autos a decisão que lhe aplicou a sanção disciplinar.

Por outro lado, a condenação em infracção disciplinar, por si só e desacompanhada de qualquer outra factualidade (como acontece na decisão recorrida), não permite extrair a ilação que deixou de existir «fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes».

Assiste, pois, ao recluso o direito de ser ouvido, de se pronunciar sobre os motivos invocados pelo Director do Estabelecimento Prisional para «revogação» da licença de saída jurisdicional concedida, direito esse que foi preterido pelo Tribunal a quo.

Trata-se de uma irregularidade de conhecimento oficioso, tal como prevista no nº 2 do art. 123º do Código de Processo Penal (não resultando dos autos que o recluso tenha renunciado a argui-la) que afecta a decisão sindicada, tornando-a ineficaz.

3. A decisão que acabamos de tomar prejudica as demais questões suscitadas pelo recorrente.

 V. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar verificada a irregularidade decorrente da violação do princípio do contraditório, com a consequente declaração de invalidade e ineficácia da decisão recorrida.

Baixem os autos à primeira instância a fim de que, uma vez ouvido o condenado sobre o pedido formulado pelo Director do Estabelecimento Prisional de fls. 28, e realizadas as diligências que se tiverem por úteis, se profira nova decisão.

Sem tributação.

Coimbra, 12 de Novembro de 2012

Alcina da Costa Ribeiro - relatora

Cacilda Sena - adjunta


[1] Diploma a que, doravante, nos referiremos sem menção do contrário. 
[2] Exposição de Motivos da proposta de Lei 252/X, nº 17.
[3] Nos termos do art. 5º, nº4, consiste no conjunto de actividades e programas de reinserção social que visam a preparação do recluso para a liberdade, através do desenvolvimento das suas responsabilidades, da aquisição de competências que lhe permitem optar por um modo de vida socialmente responsável, sem cometer crimes, e prover às suas necessidades após a libertação.
[4] O art. 76º, nº 2 e 3, consagra as duas modalidades de licenças de saída do estabelecimento prisional, consoante as finalidades: as administrativas e as jurisdicionais. 
[5] Parecer Consultivo da PGR nº 104/1990, de 21.02.1991.
[6] Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I (2007), pp. 522-523.
[7] Idem nota anterior.
[8] Pedro Machete, voto de vencido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 560/2014,  de 15 de Julho de 2014, acessível em www.dgsi.pt, local onde podem ser visualizados os demais arestos que, de ora em diante, se vierem a referenciar. 
[9] A existência de um processo especial afasta a aplicação do processo supletivo, nos termos do art. 155º.
[10] Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 15ª edição, 2005, página 306.