Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4531/23.6T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
DEVEDOR RESIDENTE NA SUÍÇA
CENTRO DOS SEUS PRINCIPAIS INTERESSES
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 294.º, N.ºS 1 E 2, DO CIRE E 62.º, AL.ª C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência que aqui seja instaurado será sempre (necessária e obrigatoriamente, por força do disposto no n.º 1 do art.º 294.º do CIRE) um processo limitado aos bens situados em território português que a lei designa como “processo particular de insolvência” e que está sujeito ao regime fixado nos artigos 294.º a 296.º do citado diploma.

II – O regime em questão não se dirige apenas às insolvências transfronteiriças no âmbito e no contexto da UE, sendo aplicável a todas as situações de insolvência internacional, ou seja, a toda a situação de insolvência que apresente elementos de conexão com países distintos, independentemente de estes estarem (ou não) integrados na União Europeia e submetidos ao Regulamento (EU) nº 2015/848.

III – Se o devedor em questão (que não tem em Portugal a sua sede, domicílio ou centro dos principais interesses) não tiver estabelecimento em Portugal, a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses é feita exclusivamente – como determina o n.º 2 do citado art.º 294.º – em função do factor referido na alínea c) do art.º 62.ºdo CPC, exigindo-se, portanto, a existência de um elemento ponderoso de conexão (pessoal ou real) com a ordem jurídica portuguesa, bem como a impossibilidade ou dificuldade apreciável em efectivar o direito mediante a propositura da acção no estrangeiro.

IV – Nas circunstâncias descritas, estando em causa uma devedora (pessoa singular) que reside na Suíça, que não tem em Portugal o centro dos seus principais interesses nem qualquer estabelecimento, que também não detém aqui quaisquer bens e sem que se conheça (por não ter sido alegado) qualquer facto que permita concluir pela impossibilidade ou dificuldade de propor a acção no estrangeiro, não estão reunidos os pressupostos necessários para a propositura, em Portugal, de qualquer processo de insolvência.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 4531/23.6T8VIS.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Viseu - Juízo Comércio - Juiz ...

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2.º Adjunto: Maria João Areias

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, divorciada, residente (segundo declarou na petição inicial) em ..., Bairro ... ..., veio apresentar-se à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante e alegando, em resumo: que reside na Suíça, tendo como única fonte de rendimento a sua pensão de invalidez no valor de 1.028,83 francos, não possuindo outros bens; que, tendo em conta o custo de vida na Suíça, não tem capacidade para cumprir os vários compromissos que assumiu referentes a créditos que contraiu para fazer face a algumas despesas na sequência do seu divórcio; que, neste momento o seu passivo é constituído por três créditos em relação à A..., S.A., nos valores de 994,74€, 8.908,66€ e 69.124,13€, todos vencidos em 22/09/2023; que paga 970 francos de renda de casa, 600,20 francos mensais em luz, telecomunicações e seguro de saúde e 100 francos mensais em impostos.

Tendo sido notificada para justificar o facto de ter indicado a sua residência em Portugal, apesar de alegar que reside na Suíça e para se pronunciar sobre a competência internacional do tribunal, sobre o seu interesse em agir e sobre a eventual impossibilidade de se considerar a extensão da competência nos termos previstos no n.º 2 do artigo 294.º do CIRE (por não estarem reunidos os respetivos requisitos e porque estaria em causa apenas um “processo particular de insolvência” ao qual não são aplicáveis as disposições relativas à exoneração do passivo restante), a Requerente veio esclarecer que reside na Suíça e que a morada (em Portugal) que indicou é a residência dos seus progenitores e a sua morada em Portugal, sustentando ainda a competência dos tribunais portugueses na medida em que: tem nacionalidade portuguesa, o seu único credor está localizado em Portugal, tendo sido aqui que contraiu as suas dívidas e sendo também aqui (em Portugal) que corre termos a acção executiva para cobrança daqueles créditos.

Com esses fundamentos e sustentando não ser aqui aplicável o processo particular de insolvência, pediu o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido formulado nos autos, designadamente, o pedido de exoneração do passivo.

A pretensão formulada pela Requerente veio a ser indeferida liminarmente – por decisão proferida em 10/11/2023 – com fundamento na excepção de incompetência internacional do tribunal.

Inconformada com essa decisão, a Requerente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

1. Saber se a decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação;

2. Saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos necessários – designadamente, no que respeita à competência internacional dos tribunais portugueses – para admissão liminar do processo de insolvência que foi instaurado pela Requerente/Apelante, apurando, designadamente, os critérios relevantes para a atribuição dessa competência à luz do disposto na lei e da eventual aplicabilidade (ou inaplicabilidade) do regime estabelecido na lei para o processo particular de insolvência.


/////

III.

A decisão recorrida enunciou como relevantes os seguintes factos:

- Os que resultavam do relatório (síntese da alegação e pretensão da Requerente e actos processuais anteriores à decisão e alegação da Requerente em requerimento posterior, a propósito da sua residência e da competência internacional dos tribunais portugueses);

- A Requerente é cidadã portuguesa;

- No assento de nascimento da Requerente não se encontra averbada qualquer declaração de insolvência.


/////

IV.

1.

A Apelante começa por invocar a nulidade da decisão com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, por alegada falta de indicação dos factos que lhe serviram de fundamento.

Não lhe assiste razão.

Segundo o disposto na norma citada, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Tal disposição aplica-se, com as necessárias adaptações, aos despachos, conforme se estabelece no art.º 613.º, n.º 3, do mesmo diploma.

Começamos por registar que a nulidade por falta de fundamentação, nos termos previstos na citada alínea b), pressupõe, conforme vem sendo entendido de modo praticamente uniforme, a falta, em absoluto, de qualquer fundamentação (seja ela de facto ou de direito) ou uma deficiência de fundamentação de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”.

Assim o considerava Alberto dos Reis quando dizia:[1] «O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade»; e assim continua a considerar-se, de forma generalizada, pela nossa jurisprudência[2].

Na verdade, os vícios susceptíveis de determinar a nulidade são vícios que, pela sua gravidade, afectam o valor intrínseco e formal da sentença; não estão em causa, portanto, meras deficiências da fundamentação, mas sim circunstâncias mais graves que retiram à sentença a credibilidade e legitimidade que lhe deve ser inerente. As meras deficiências e insuficiências ou a mediocridade da fundamentação não têm idoneidade ou gravidade bastante para determinar a nulidade da sentença; o que determina essa nulidade é a total inexistência dessa fundamentação ou uma deficiência da fundamentação que seja de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”, ou seja, por não permitir, de todo e em absoluto, perceber as razões que conduziram à decisão.

Importa ter presente, por outro lado, que o despacho aqui em causa (o despacho recorrido) é um despacho de indeferimento liminar, ou seja, um despacho que indefere liminarmente o pedido por falta de verificação de pressupostos processuais: a competência internacional e os requisitos legais para a abertura do processo de insolvência.

Ora, em sede de despacho liminar, a constatação da falta de pressupostos processuais não é feita, por regra, com base em factos que já estejam provados, mas sim com base na alegação feita pelo autor (esteja ou não já provada) e perante os termos em que ele configura a sua pretensão. Nessa perspectiva, os fundamentos de facto de um despacho de indeferimento liminar corresponderão, em princípio, aos termos em que o autor configurou a sua pretensão e aos factos que alegou para a fundamentar, o que, de algum modo, dispensa a sua especificação na decisão.

De qualquer forma, importa notar que a decisão recorrida até enunciou – no ponto 2.1 – os factos que a fundamentaram e que eram os seguintes:

- Factos que emergem do relatório (ponto 1) e que traduziam a síntese da alegação e pretensão da Requerente;

- O facto de a Requerente ser cidadã portuguesa;

- O facto de, no seu assento de nascimento não se encontrar averbada qualquer declaração de insolvência.

Refira-se que, em bom rigor, a decisão assentou apenas nos factos – que resultavam da alegação da Requerente e que, como tal, eram por ela reconhecidos – de a Requerente residir na Suíça e não ter quaisquer bens em Portugal, resultando claramente da fundamentação da decisão que esta se baseou nesses factos e na sua conjugação com a lei.

Não se configura, portanto, a invocada nulidade.


*

2.

A questão suscitada no recurso prende-se com a competência internacional dos tribunais portugueses para um processo de insolvência relativo a devedor que, apesar de ter nacionalidade portuguesa, não reside em Portugal (mas sim na Suíça) nem tem aqui quaisquer bens (sendo certo que a Requerente alegou e confessou – expressamente – residir na Suíça desde 2008 e não ter em Portugal quaisquer bens).

A decisão recorrida considerou que os tribunais portugueses não detinham competência, argumentando:

- Que a Requerente reside na Suíça e nada alegou que permita considerar que é em Portugal que tem o centro dos seus principais interesses, pelo que, à luz do disposto no art.º 7.º do CIRE, o tribunal português não é competente;

- Que, nessas circunstâncias, o processo particular de insolvência, previsto nos artigos 294.º a 296.º, seria a única forma de tornar efectivo o direito a pedir a insolvência nos tribunais portugueses, sendo certo que estas normas especiais afastam o regime geral do CPC relativo à competência internacional;

- Que, não tendo a Requerente estabelecimento em Portugal, esse processo apenas poderia ser aberto se os tribunais portugueses fossem competentes internacionalmente nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil (cfr. n.º 2);

- Que nada foi alegado no sentido de se concluir pela previsão da norma citada;

- Que, ainda que se verificasse a previsão da norma em questão, o processo de insolvência só poderia prosseguir como processo particular de insolvência, ao qual não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante, que corresponde à única finalidade que a requerente pretende obter da ação;

- Que, além do mais, alegando a requerente que não tem bens, não é possível considerar a competência dos tribunais portugueses, na medida em que o processo apenas abrangeria os bens situados em território português.

A Apelante, por seu turno, sustenta que o processo particular de insolvência não é aplicável em virtude de a Suíça não pertencer à UE, pelo que a competência internacional dos tribunais portugueses tem que ser aferida à luz do disposto nos artigos 59.º, 62.º e 63.º do CPC e, no caso, essa competência assenta na alínea b) do art.º 62.º na medida em que foi em Portugal que contraiu as suas dívidas e onde ocorreu o seu incumprimento e, portanto, foi em Portugal que foram praticados os factos que servem de causa de pedir na presente acção.

Apreciemos então essa matéria.

A competência internacional dos tribunais portugueses é regulada pelo CPC nos artigos 62º e 63.º, estabelecendo o primeiro os factores de que depende a atribuição da competência aos tribunais portugueses e estabelecendo o segundo as situações em que tal competência é exclusiva.

Conforme resulta do disposto no art.º 63.º, a competência exclusiva dos tribunais portugueses em matéria de insolvência ou revitalização resume-se aos casos em o devedor está domiciliado ou tem sede em Portugal, o que, como se referiu, não acontece nos autos, sendo certo que a devedora não reside em Portugal, mas sim na Suíça. Nessas circunstâncias, tal competência apenas poderia encontrar apoio no artigo 62.º.

Considerou, porém, a decisão recorrida que essa norma não é aplicável (pelo menos directamente e na sua globalidade), na medida em que o CIRE contém, sobre essa matéria, regras especiais (artigos 294.º a 296.º) que afastam a aplicação do regime geral previsto no CPC. Ou seja, segundo a decisão recorrida, estando em causa uma insolvência transfronteiriça (por ter ligações com mais do que um ordenamento jurídico, na medida em que, apesar de residir na Suíça, a Requerente tem dívidas em Portugal), ela apenas poderia ser pedida nos tribunais portugueses através do processo particular de insolvência previsto nas normas citadas e, nos termos previstos no n.º 2 do referido art.º 294.º, não tendo a Requerente (devedora) estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses dependia da verificação dos requisitos previstos na alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil (requisitos que, no caso, não se verificavam).

Será assim?

O citado art.º 294.º do CIRE dispõe nos seguintes termos:

1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.

2 - Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

3 - Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário”.

A disposição legal em questão reporta-se, indiscutivelmente, à insolvência transfronteiriça ou internacional – ou seja, a insolvência em que o devedor tem ligações com mais do que um ordenamento jurídico, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais do que um Estado, ou, por outras palavras, quando as pessoas implicadas (devedor e credores), os bens em causa, ou ambos, apresentam ligações com as ordens jurídicas de dois ou mais Estados[3]

Em relação à delimitação do campo de aplicação da norma referida, a nossa jurisprudência já entendeu – em diversas decisões – que ele se circunscreve ao quadro da União Europeia, visando apenas as situações de insolvência que envolvem exclusivamente Estados-membros da União Europeia (ela não se aplicaria, portanto, quando a insolvência tem elementos de conexão com país ou países que não integrem a União Europeia, como seria o caso dos autos em que a devedora reside na Suíça).

Foi essa a posição adoptada no Acórdão da Relação de Coimbra de 01/06/2020 (processo n.º 324/20.0T8LRA.C1)[4] – que foi subscrito pela aqui relatora na qualidade de 2.ª adjunta – onde se considerou, num caso idêntico ao que está em causa nos autos (em que os devedores residiam na Suíça, mas os credores eram portugueses e as dívidas haviam sido contraídas em Portugal), que os tribunais portugueses eram internacionalmente competentes para a declaração de insolvência, por aplicação do disposto no art.º 62.º, alínea b), do CPC, considerando-se que os artigos 294.º a 296.º do CIRE não tinham aplicação ao caso, uma vez que os mesmos apenas são de aplicar quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro e, no caso, os Requerentes tinham a sua residência num país terceiro, relativamente à UE, no caso, na Suíça.

Foi também esse o entendimento adoptado no Acórdão da Relação de Coimbra de 17/03/2020 (processo n.º 3413/17.5TBLRA-B.C1)[5] em cujo sumário se lê: “O “processo particular de insolvência”, previsto nos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, tem aplicação apenas e só quando se está perante uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro (..) E pressupõe a competência internacional, nos termos do art. 3.º/1 do Regulamento 2015/848, de Tribunais de outro Estado-Membro para o processo principal de insolvência”. Essa posição/interpretação foi igualmente acolhida nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 09/01/2023 e de 28/02/2023 (processos n.ºs 2943/22.1T8FNC-B.L1-1 e 2455/22.3T8FNC-A.L1-1, respectivamente)[6]. E é essa a posição em que a Apelante também se acolhe quando alega que o processo particular de insolvência e as normas que o regulam – designadamente em matéria de competência internacional – não são aqui aplicáveis em virtude de a Suíça não pertencer à UE.

Pensamos, porém, não ser essa a melhor interpretação dos textos legais (o que implica, naturalmente, a revisão e alteração, por parte da aqui relatora, da posição assumida com a subscrição do acórdão acima mencionado de 01/06/2020).

Na verdade, essa leitura/interpretação não tem qualquer apoio no texto legal. Nada resulta da letra da lei que aponte no sentido de as normas em questão (que caracterizam e regulamentam o processo particular de insolvência) se reportarem apenas às insolvências transfronteiriças no âmbito e no contexto da UE, com exclusão, portanto, de todas as outras insolvências que apresentam elementos de conexão com países não integrados na União Europeia. Importa notar, aliás, que será, sobretudo, fora do contexto da União Europeia que esse regime tem inteira aplicação, uma vez que, no âmbito da União Europeia, ele terá que ceder, na medida do necessário, por força do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015 (quando aplicável) e de outras normas de Direito da União Europeia (que prevalecem sobre o disposto no CIRE, conforme resulta do art.º 275.º do CIRE). Veja-se, por exemplo, que o n.º 2 do art.º 294.º - que permite, em determinadas circunstâncias, a abertura de processo particular de insolvência relativamente a devedor que, não tendo em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, também não tem aqui qualquer estabelecimento – não tem aplicação no contexto da União Europeia, uma vez que, em face do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, a abertura, em qualquer outro Estado-Membro que não seja o competente para o processo principal, de um processo territorial (que corresponde ao processo particular ao que alude o art.º 294.º do CIRE) com efeitos limitados aos bens do devedor que se encontrem no território deste Estado (cfr. n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento), pressupõe que o devedor possua um estabelecimento neste Estado-Membro. Significa isso, portanto, que o disposto no n.º 2 do citado art.º 294.º só se aplica aos processos de insolvências internacionais que não estejam submetidas ao Regulamento[7], sinal evidente de que o regime em questão (do processo particular de insolvência) não se circunscreve ao quadro da União Europeia em que seja aplicável o referido Regulamento.

O regime em causa (artigos 294.º a 296.º) reporta-se, portanto, a qualquer insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, a insolvência que apresente elementos de conexão com países e ordens jurídicas distintas (pertencentes ou não à União Europeia), em virtude, designadamente, de o devedor ter estabelecimentos, bens ou credores em mais do que um país ou em país diferente daquele onde tem a sua sede, domicílio ou centro dos principais interesses.

Nessas circunstâncias e, ao contrário do que sustenta a Apelante, a circunstância de a Suíça não pertencer à UE não obsta à aplicação das normas citadas.

Ora, o que resulta do art.º 294.º é, desde logo, que, se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses – como acontece no caso dos autos – qualquer processo de insolvência que aqui seja instaurado apenas abrange os bens situados em território português (cfr. n.º 1 da citada disposição legal), correspondendo, portanto, a um processo com âmbito e efeitos limitados que a lei designa como “processo particular de insolvência” e que está previsto e regulamentado nos artigos 294.º a 296.º do CIRE. Significa isso, portanto, que o processo particular de insolvência não é um processo opcional ou facultativo, no sentido de ser possível optar entre esse processo particular (submetido às regras referidas) ou um normal processo de insolvência de carácter geral; se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência que aqui seja instaurado será sempre (necessária e obrigatoriamente, por força do disposto na norma citada) um processo limitado aos bens situados em território português que a lei designa como processo particular de insolvência que está sujeito ao regime referido e, designadamente, às especialidades referidas no art.º 295.º, entre as quais se encontra a inaplicabilidade das disposições sobre exoneração do passivo restante.

Resulta, por outro lado, do disposto no n.º 2 do citado art.º 294.º que, se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses para o dito processo depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil, o que significa, naturalmente, em face da natureza especial desta norma (que, como tal, prevalece sobre o regime geral previsto no CPC), que, em tal situação, a atribuição de competência internacional é feita exclusivamente em função do factor referido na alínea c) do art.º 62.º sendo totalmente irrelevante, para o efeito (ao contrário do que pretende a Apelante), a eventual verificação do factor referido na alínea b).

Tal competência pressupõe, portanto, que “...o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”. Consagra-se aqui o denominado “critério da necessidade” que visa salvaguardar a efectividade do direito em face da impossibilidade ou dificuldade apreciável de o tornar efectivo através de propositura de acção em tribunal estrangeiro. Pressupondo-se sempre a existência de um elemento ponderoso de conexão (pessoal ou real) com a ordem jurídica portuguesa, exige-se também uma impossibilidade absoluta de efectivar o direito através de acção proposta no país estrangeiro (o que sucederia, por exemplo, se a jurisdição desse país não se considerasse competente para o efeito) ou uma dificuldade relevante e apreciável (o que sucederia, por exemplo, em situações de guerra, sem excluir, naturalmente, outras situações que, pelo seu carácter relevante e ponderoso, possam implicar um ónus ou sacrifício excessivamente pesado que, em termos de razoabilidade, não deva ser exigido)[8].

No caso dos autos, a devedora não tem residência em Portugal (reside na Suíça) e nada alegou que permita afirmar que tenha aqui o centro dos principais interesses, pelo que, à luz do disposto na norma acima citada e das considerações efectuadas, qualquer processo de insolvência instaurado em Portugal seria, necessariamente, um processo de âmbito e efeitos limitados aos bens que aqui estivessem situados; seria, portanto, um processo particular de insolvência submetido ao regime previsto nos artigos 294.º a 296.º do CIRE. Todavia, alegando a Requerente (devedora) que não possui aqui quaisquer bens, faltaria, desde logo, o pressuposto necessário à instauração desse processo que, nessas circunstâncias, não teria qualquer utilidade ou efeito prático. Na prática, o único objectivo que a Requerente pretende alcançar com este processo é a concessão da exoneração do passivo restante e este objectivo sempre seria inviável (ainda que existissem bens), uma vez que, no âmbito do processo particular de insolvência, não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante (alínea c) do art.º 295.º do CIRE).

Por outro lado, não tendo a devedora (a Apelante) qualquer estabelecimento em Portugal (nada foi alegado e nada resulta dos autos nesse sentido), a competência internacional dos tribunais portugueses pressupunha, conforme se referiu e conforme disposto no n.º 2 do citado art.º 294.º, que estivessem verificados os requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do CPC, ou seja, que, além de existir um elemento ponderoso de conexão (pessoal ou real) com a ordem jurídica portuguesa, existisse também uma impossibilidade ou dificuldade apreciável em tornar efectivo o direito por meio de acção a propor no tribunal estrangeiro. Ora, apesar de existirem elementos de conexão relevantes com a ordem jurídica portuguesa (a nacionalidade da devedora e do seu credor), nada foi alegado que permita concluir pela impossibilidade ou dificuldade apreciável de requerer a declaração de insolvência no país onde reside. Com efeito, a Requerente/Apelante nada alegou, sobre essa matéria, na petição inicial e no requerimento posterior onde, a convite do Tribunal, se pronunciou sobre a competência/incompetência do tribunal e ainda que diga, nas alegações de recurso, que lhe era impossível recorrer à instauração da presente ação na Suíça pelo facto de esta não ser membro da União Europeia e pelo facto de, por essa razão, não poder recorrer ao disposto no regulamento nº 1346/200 (CE), a verdade é que essa circunstância não evidencia, só por si, qualquer dificuldade relevante e muito menos a impossibilidade de tornar efectivo o direito mediante acção a propor nesse país.

Nessas circunstâncias, impunha-se concluir – como se concluiu na decisão recorrida – que, ainda que existissem bens em Portugal (como seria necessário para que fosse viável a abertura de processo de insolvência), sempre se deveria ter como verificada a incompetência internacional dos tribunais portugueses.

Refira-se que a posição que aqui adoptamos foi também acolhida no Acórdão da Relação de Lisboa de 02/05/2023 (processo n.º 2615/21.4T8PDL.L1-1) e no Acórdão da Relação de Évora de 13/07/2022 (processo n.º 5/22.0T8LGA.E1)[9] e implica – como acima se referiu e agora se reafirma – alteração, por parte da aqui relatora, da posição que assumiu por via da subscrição, como adjunta, do Acórdão de 01/06/2020 acima identificado.

Assim e em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                (José Avelino Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)





[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140.
[2] Neste sentido e entre outros, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 (processo nº 02B737), de 19/12/2006 (processo nº 06B4521), de 21/06/2011 (processo nº 1065/06.7TBESP.P1.S1), de 15/12/2011 (processo nº 2/08.9TTLMG.P1S1) e de 06/07/2017 (processo nº 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Catarina Serra, Insolvência transfronteiriça, Revista de Direito Comercial, 2018 (www.revistadedireitocomercial.com)
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pág. 631.
[8] Cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª edição, páginas 139 e 140.
[9] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.